Editorial - REVER número 1, ano 6, 2006

Religião e Sexualidade: discussões em curso

As relações entre religião e sexualidade atravessaram distintas situações ao longo dos séculos. Variaram de cultura a cultura e de época a época. Constituíram, sempre, um ponto nodal na vida social, econômica e cultural dos povos. O debate em torno dessas relações atravessa a história e também as várias Ciências Humanas e da Religião. É um ponto nodal, especialmente, nas controvérsias que a Psicologia e a Psicanálise suscitaram quanto à sexualidade.

Este número monográfico de “REVER” aborda uma pequena fatia dessas relações. Não tem, nem poderia ter, a pretensão de abranger todo o amplo espectro discussões existente em torno delas. Desde o início do planejamento do presente número, os editores entendiam abranger apenas uma parcela bem delimitada do problema. Para tanto, foram tomadas duas decisões: a de circunscrever a temática apenas às religiões cristãs e, para melhor delimitar e dar certa unidade ao enfoque e ao objeto deste número, a de privilegiar apenas o enfoque psicológico das possíveis questões. Deixamos para números posteriores a abordagem da questão a partir de outras religiões e/ou de outros prismas do estudo científico do problema. Por estas razões, os/as estudiosos/as convidados a participar do presente número são da área da psicologia. Foi tomada, além disto, uma terceira decisão, a de tentar encarar de modo mais específico (não exclusivo, no entanto) a homossexualidade. Essa variante da sexualidade ganhou relevância com a recente publicação, pelo Vaticano, de uma “Instrução” a respeito da seleção e aceitação de candidatos de orientação homossexual às ordens religiosas. A atualidade da questão e a relativa falta de clareza sobre o assunto nos levaram a esta delimitação. Tanto mais, na razão em que a temática da homossexualidade tem fundamental importância teórica e clínica para um adequado entendimento do processo de formação da identidade sexual e de gênero, seja pessoal, seja coletiva. Na atual conjuntura histórica vivida pelas religiões cristãs, representa, sem dúvida, um dos temas mais polêmicos.

1. Para a Secção temática foram selecionadas cinco exposições. As duas primeiras versam sobre itens em discussão nas Igrejas protestantes.

O primeiro trabalho é do Professor Antônio Máspoli, da Universidade Mackenzie. Máspoli aceitou o desafio de abordar as representações do corpo na sexualidade protestante contemporânea. Após percorrer a Bíblia, ele passa a apresentar a evolução dos conceitos cristãos sobre a sexualidade desde os primeiros séculos do Cristianismo. Mais adiante, discorre sobre as posições de Lutero e Calvino, para finalizar descrevendo a visão do protestantismo brasileiro. O segundo artigo é de Daniela Borges Bessa, doutoranda da PUC-SP. Tem um viés mais psicossocial. Ela escreve sobre o erotismo assim como este aparece no que em ambientes protestantes alguns denominam de “batalha espiritual”, objeto de importante fatia da chamada “literatura de ajuda religiosa” protestante.

2. Seguem-se dois textos provenientes de contextos católicos. Ambos têm como autores psicólogos diretamente dedicados ao atendimento psicoterapêutico de pacientes com distúrbios de natureza sexual. Um trabalho é do psicanalista espanhol Carlos Dominguez Morano, que começa a ser conhecido também no Brasil por seus escritos sobres sobre psicanálise (freudiana) e religião. Morano explicita e situa neste paper seu modo pessoal de ver a sexualidade humana. a partir de conceitos psicanalíticos como os de sublimação, repressão e narcisismo. Ele não está preocupado em citar fontes e autores de referência; quer apresentar as conclusões a que chegou. Sua atenção se volta para um fato singular presente em várias religiões: o da abstenção sexual (celibato temporal ou perpétuo) como expressão de uma entrega mais plena à realização espiritual-religiosa. Neste contexto, o autor apresenta elementos interessantes para se compreender criticamente a visão que a psicanálise atual tem da relação entre religiosidade e sexualidade. Para “REVER”, é uma honra tê-lo entre seus colaboradores. O público brasileiro especializado será seguramente o maior beneficiado.

O outro texto é de Eliana Massih, pesquisadora e psicoterapeuta ligada ao Instituto Terapêutico Acolher (ITA), de São Paulo, uma instituição especializada no atendimento terapêutico de clérigos e religiosos/as da Igreja Católica. Massih descreve o andamento de um caso clínico de orientação homossexual pedofílica. Suas reflexões fogem aos chavões usuais quando se fala em homossexualidade e pedofilia, elucidando, em especial, como o comportamento concreto de um religioso de mais de 40 anos, de orientação pedofílica, escondia uma tentativa mal-sucedida de conciliar pulsões e fixações evolutivas de seu passado com aspirações elevadas de uma religiosidade carregada de culpabilidade. Lido em conjunto com o texto mais teórico de Morano, o caso trazido por Eliana Massih ajuda a perceber a maneira como a psicoterapia vê hoje esta modalidade de atração sexual compulsiva que pode levar pessoas religiosas – bem-intencionadas em nível consciente - a cometerem abusos sexuais inaceitáveis, não obstante suas convicções e “boas intenções” no plano religioso consciente.

3. O quinto artigo é de um autor vindo do Congo, atualmente terminando seu doutorado no Programa de Ciências da Religião da PUC-SP. Rufino Waway pesquisa a identidade intercultural de africanos natos que se associam a congregações religiosas de origem européia. Suas leituras e sua experiência como africano o colocaram em contato com o costume da infibulação feminina, um ritual religioso de iniciação que afeta de maneira expressa a sexualidade da mulher e as relações homem-mulher. Waway estuda mais de perto o que acontece com povos de etnia e cultura bantu. No Brasil, dispomos de poucos estudos sobre o tema. A leitura do breve artigo deste pesquisador africano mostra facetas interessantes do contato entre sexualidade e religião fora do mundo cultural ocidental e brasileiro. Não deixará de suscitar interesse em leitores brasileiros.

II

Para ilustrar de maneira bem concreta as posições (de abertura e fechamento) que a religião ou, mais especificamente, a Igreja Católica, adota quanto à sexualidade (de tipo homo) “REVER” preparou uma espécie de Dossiê sobre a Instrução da Santa Sé a respeito dos critérios a serem usados para a seleção e admissão de pessoas com tendências homossexuais aos seminários católicos e ao sacerdócio.

1. A Instrução é uma resposta da Igreja aos repetidos escândalos sexuais de clérigos trazidos a público pela imprensa mundial. Foram episódios que provocaram fortes acusações à Igreja Católica, em especial nos Estados Unidos. Sem dúvida, a Instrução do Vaticano foi uma resposta a este clamor. Não obstante tenha em mente mais a situação norte-americana, trata-se de uma medida que afeta o resto do mundo. Irá, na certa, suscitar discussões acesas, uma vez que se baseia em uma visão da sexualidade que não corresponde às tendências hoje presentes na cultura dominante. As concepções, valores e comportamentos que regram hoje as relações entre sexualidade e religião estão em crise. A Instrução, além do mais, toca em um fenômeno de crescente importância no mundo atual - o da cultura “gay” - na qual se expressam mudanças comportamentais e reivindicações sociais e políticas que fazem parte da própria modernidade.

2. O dossiê foi dividido em duas partes. Traz, inicialmente, o próprio texto da “Instrução”. Sem uma leitura atenta do mesmo, o debate tenderá a perder em objetividade. Depois, para permitir um aprofundamento na leitura do que se subentende no texto, são apresentados três estudos escritos por especialistas (Benjamin Forcano, Marco Antônio Torres e Edênio Valle). Objetiva-se, com isto, esclarecer melhor o pensamento da Igreja Católica no que se refere à homossexualidade. Entender bem o posicionamento e o embasamento do discurso da Igreja sobre a homossexualidade é indispensável para se enquadrar com rigor o sentido, o alcance e os limites desta Instrução que é rapidamente criticada pelo moralista espanhol o Padre Benjamin Forcano.

Marco Antônio Torres, mestre em Psicologia pela UFMG, resume parte de sua recente pesquisa acerca dos significados que a homossexualidade experimenta no discurso moral-religioso da Igreja Católica. Ilustra, em especial, como a relativa tolerância hoje presente no discurso sobre a homossexualidade foi sendo historicamente engendrada em função de pressões e circunstâncias várias. Torres apóia-se teoricamente em Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, oferecendo elementos pertinentes para entender o que se esconde por trás dos posicionamentos que sustentam a Instrução.da Sagrada Congregação para a educação Católica.

O outro artigo é de Edênio Valle, professor de Psicologia da Religião na PUC-SP. Valle discorre sobre a ética dos principais documentos emanados do Vaticano no tocante à homossexualidade. Restringe sua análise aos últimos três decênios indicando como, ao lado de algumas aberturas, o magistério mantém firme o “núcleo duro” do pensamento teológico e mítico-religioso da tradição. Descreve, também, em rápidas pinceladas, como os teólogos contemporâneos se colocam diferentemente ante o que ensina o magistério oficial, aceitando-o e/ou criticando-o. Finalmente, visando o discernimento psicológico e pastoral de indivíduos de orientação homo, levanta alguns critérios e pistas que segundo ele podem ajudar a compreender e lidar de modo psicologicamente mais adequado com as pessoas e grupos de índole homoerótica.

III

A intenção deste número de “REVER” é abrir parte do complexo leque de problemas que se esconde por trás do que pode parecer uma disputa intra-eclesiástica sem maior repercussão. Documentos como a Instrução vaticana e revisões como as que ocorrem atualmente nas Igrejas cristãs sobre a “corporeidade”, “o erotismo”, a homossexualidade, etc, tratam de uma importante tentativa de repensamento que interessa a todos. São perspectivas, problemas e ângulos de análise cujo interesse vão muito além das fronteiras desta ou daquela denominação cristã. As Ciências da Religião têm, aí, um importante filão de estudo. Ë um assunto, reafirmamos, para outros futuros números de “REVER”.


Edênio Valle