Caminhos e Histórias: A Historiografia do Protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil

Tiago Hideo Barbosa Watanabe[*] []

Resumo

Poucas obras, até o momento, pensaram o fazer histórico no protestantismo brasileiro, assim, evidenciando uma lacuna e procurando preenche-la, faremos uma crítica à historiografia do protestantismo brasileiro (da década de 1950 a 1990) tendo como referenciais teóricos Michel de Certeau (teoria da resignificação e recepção das idéias) e Michel Foucault (teoria do poder). O local de produção dessa historiografia é de fundamental importância para a compreensão dos rumos e sentidos produzidos. Nossa hipótese é de que, ao contemplar as disputas pelo poder, a historiografia reproduziu narrativas apológéticas de posturas teológicas conflitantes da cúpula. A captura dos sujeitos religiosos, através de suas memórias, mostram um lado da historiografia não contemplado. Trata-se de apontar para uma outra história, que tem outra temporalidade e preocupações. Muitas vezes com desdém das disputas eclesiásticas, uma história preocupada com as necessidades e dificuldades desses sujeitos em seu cotidiano; um cotidiano imerso num campo religioso plural e difuso como o brasileiro.

Palavras-chave: Historiografia, protestantismo, história eclesiástica, história cultural.

Abstract

Few works to date have examined the historical production of Brazilian Protestantism. This paper characterizes, and attempts to fill, this gap. It reviews the historiography of Brazilian Protestantism (1950 to 1990), drawing on the theoretical work of Michel de Certeau (theory of re-signification and reception) and Michel Foucault (theory of power). Analyzing the site of this historiographic production is central to any understanding of the paths and directions that emerged. Our hypothesis is that this historiography, in the face of struggles for power, reproduced apologistic narratives shaped by of conflicting elite theological positions. An unanticipated side of this historiography emerges in the fixing of religious subjects by the invocation of their memories. This side reveals another history, with a distinct temporality and unique preoccupations, one that often disdains ecclesiastical disputes. This alternative history concerns itself with the daily necessities and difficulties of these religious subjects, revealing a day-to-day reality that is immersed in the plural and diffuse Brazilian religious field.

Keywords: historiography, Protestantism, ecclesiastical history, cultural history.

1. Introdução

Ao esquecer o trabalho coletivo no qual se inscreve, ao isolar de sua gênese o objeto de seu discurso, um autor pratica, portanto, a degeneração de sua situação real. Ele cria a ficção de um lugar próprio. Contudo, é igualmente excluída a representação objetiva dessas posições próximas ou distantes que denominamos influências. Elas (as influências) aparecem num texto (ou na definição da pesquisa) pelos efeitos de alteração e elaboração que denominamos influências. Tende-se então a interrogar-se sobre os alicerces da atividade científica e a se perguntar se ela não funciona à maneira de uma colagem que justapõe mas articula sempre menos as ambições teóricas expressas pelo discurso e a persistência obstinada, remanescentes, de astúcias milenares no trabalho cotidiano dos gabinetes e laboratórios[1]

A citação de Certeau é oportuna para o estudo do protestantismo brasileiro. Apesar de bem aceita nos meios acadêmicos, poucos estudos históricos dedicaram atenção à problemática posta pelo autor: qual a relação entre o local de produção e as obras da historiografia protestante? Uma pergunta que pretendemos responder apontando limites e problemas não só da historiografia feita anteriormente como também a presente.

Questionar o local de produção frente ao objeto de pesquisa é questionar os alicerces da produção científica. Certeau e Foucault, nesse sentido, avançaram significativamente apontando problemas nas produções que se pretendem isentas da sua temporalidade.

O real que se inscreve no discurso historiográfico provém das determinações de um lugar. Dependência com relação a um poder estabelecido em outra parte, domínio das técnicas concernentes às estratégias sociais, jogo com símbolos e as referências que legitimam a autoridade diante do público são as relações efetivas que parecem caracterizar este lugar da escrita. Colocada ao lado do poder, apoiada nele, mas a uma distância crítica; tendo em mão, imitados pela própria escrita, os instrumentos racionais das operações modificadoras dos equilíbrios de força a título de uma vontade conquistadora; reunindo as massas de longe (por detrás da separação política e social que as "distingue"), reinterpretando as referências tradicionais que existem nelas[2].

Permeado pela disputa da memória e da política eclesiástica (FOUCAULT, 2002: 25), o local de produção da historiografia protestante é do entrelaçamento das redes de poder (FOUCAULT, 2002:183), das representações coletivas comuns (CHARTIER, 2002:75), dum local que possibilitou, devido ao jogo do poder, conseqüências pessoais diferenciadas aos seus escritores (ARAÚJO, 1976: 19). Trata-se de um local dinâmico de luta e resistência (não trabalharemos pelo viés da experiência do proletariado, embora exista essa possibilidade), com regras e específicas formas para fazer o saber (CERTEAU, 1994: 66).

Pensar o local de produção de ontem, o que faremos, implica também pesar o presente do fazer histórico de religião:

A distância do tempo, e,sem dúvida, uma reflexão mais epistemológica permitem hoje revelar os preconceitos que limitaram a historiografia mais recente. Eles aparecem tanto na escolha dos assuntos quanto na determinação dos objetivos dados ao estudo. Mas, sempre, estão ligados às situações que conferem ao historiador uma posição particular com relação a realidades religiosas.[3]

Falaremos, portanto, sobre o local de produção da historiografia protestante. Faremos um recorte para facilitar nosso estudo, da década de 1950 a 1990, na Igreja Presbiteriana do Brasil. Como marco inicial representativo a obra de Émile Leonard, O Protestantismo brasileiro, feita na década de 1950, e o fim, na década de 1990, quando, como nos afirma Lyndon Santos em As outras faces do sagrado, os estudos históricos adotaram outros referenciais teóricos e metodológicos[4]. De início, afirmamos uma unidade discursiva na historiografia desse período pois visualizamos um mesmo local de produção.

2. Qual foi o local de produção da historiografia protestante?

O recorte é amplo e pretende resgatar análises dum período relativamente bem estudado na historiografia. Trata-se de um período que coincide com grandes disputas sociais, políticas, teológicas, religiosas e ideológicas. Período que possuía teorias norteadoras e imaginários explicativos no fazer acadêmico. Faremos o resgate dessas disputas querendo mostrar fluxos que possuíam uma lógica de ser e que se encontraram. Não se trata de movimentos independentes e unívocos, mas contrários:

Entretanto, talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na coerência dos conceitos, mas em sua emergência simultânea ou sucessiva, em seu afastamento na distância que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade. Não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientes gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão.[5]

No cenário político mundial, a Guerra Fria reconfigurou a geopolítica mundial e produziu, segundo Eric Hobsbauwn, uma disputa de pesadelos (HOBSBAWN, 1998:88). Nos anos 1950 o socialismo avançou em áreas significativas do globo (China em 1949, Coréia do Norte 1951, Cuba 1959), e a bipolarização ideológica e politicamente do mundo entre EUA e URSS provocou, sem dúvida, um compartilhar de alguns imaginários como o da revolução comunista mundial e o perigo da destruição mútua provocada pela fabricação maciça de armas.

No cenário político brasileiro, a possibilidade da revolução socialista foi muito presente na sociedade. Da década de 1950 até o golpe militar de 1964, o movimento estudantil era fortemente engajado em questões sociais, a cultura artística era politizada (via teatro de Arena, cinema Glauber Rocha), e politicamente o país, na presidência de João Goulart, conheceu propostas de reformas sociais posteriormente entendidas como socialistas[6].

No cenário religioso institucional, nossa área de maior interesse, houve um grande rearranjo de forças entre 1950 e 1990. Por parte do catolicismo romano, o Concílio do Vaticano II (de 1962-1965) alterou a estratégia evangelizadora na América Latina assim como sua relação frente ao Estado e a sociedade. As outras religiões, nesse período, ganharam visibilidade social e força política. No caso do protestantismo, ocorreu o crescimento das vertentes pentecostais e neopentecostais e também uma alteração da relação do protestantismo histórico, principalmente frente ao Estado e a condução da disputa interna do poder[7].

No cenário teológico mundial de 1950 a 1990, destacamos duas vertentes que não nasceram e nem morreram nesse período: a teologia da libertação[8] e o fundamentalismo protestante (ARMSTRONG, 2001:11). A teologia da libertação, nascida no bojo da proposta do Vaticano II, de maneira geral, agregou alguns valores do marxismo a uma teologia de envolvimento com questões políticas e sociais enquanto o fundamentalismo protestante norte-americano foi seu opositor. Nascido como resposta à teologia liberal européia, o fundamentalismo defendeu, entre outras causas, a literalidade da interpretação bíblica, uma ética pietista e o combate ao comunismo.

Nos líderes protestantes, esse cenário social-político-teológico, até o fim da década de 1970, provocou debates acirrados em torno do poder com conseqüências desastrosas para alguns deles. Na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), de 1950 até o golpe, existiram pessoas que expressavam severas críticas à política nacional e a instituição (SOUZA, 1998:35). Jovens, seminaristas e alguns pastores defenderam, até 1964, o ecumenismo, o envolvimento da igreja em questões sociais, o fim de proibições morais-comportamentais e reformas eclesiásticas como a ordenação feminina. Posteriormente, esse grupo foi expulso devido às modificações no funcionamento eclesiástico.

No meio desses expulsos, alguns encontraram na academia espaço intelectual e de sobrevivência. Ingressos em cursos de pós-graduação do exterior e ideologicamente próximos aos progressistas católicos brasileiros, começaram estudos conjuntos financiados por organismos católicos (por exemplo, a CEHILA) e ecumênicos. Em conjunto com católicos, fizeram reações duras a ditadura militar e defenderam, mediante o ecumenismo, um imaginário revolucionário para construção do "reino de Deus" na terra.

Na academia brasileira, com as limitações políticas do período posterior ao golpe, se fez uma história político-economico-social macro estrutural muito distante dos métodos da História Cultural francesa ou inglesa. O protestantismo, num período de repressão, ganhou estudos na academia. Financiados por aqueles órgãos de pesquisa, os então expulsos tornaram-se cientistas de prestígio acadêmico e social.

Majoritariamente sociólogos, fizeram parte do grupo denominado sociologia da religião e hoje ironicamente chamado de "sociologia religiosa da religião". Com os pressupostos de Max Weber e Karl Marx, a história protestante ficou restrita a estudos que utilizaram a história como pano de fundo de análises sociológicas. A partir de então, podemos dizer que o protestantismo no Brasil tornou-se objeto de análise acadêmica não restrita às instituições religiosas.

A reconfiguração do campo religioso brasileiro, com a perda de fiéis do catolicismo para o pentecostalismo, a maior visibilidade de outras religiões, a redemocratização do país, a queda da URSS, o redirecionamento dos financiamentos de pesquisa da América Latina para o Leste Europeu, as novas formas de interpretação acadêmica que ganharam força no Brasil após a década de 1980 parecem, se não esgotar, ao menos questionar os pilares metodológicos, políticos, teológicos, da ciência outrora feita.

Se a teologia da libertação possibilitou o estudo do protestantismo sob a proteção do catolicismo, hoje, com a aceitação da Nova História Cultural, os novos estudos são feitos não só em instituições ecumênicas ou católicas mas em instituições acadêmicas seculares.

É evidente que a mudança metodológica implica outros objetivos políticos, que não sabemos identificar ao certo. Do fim de um imaginário revolucionário, passando pelos interesses de mercado, de uma outra forma de entendimento do ser humano e suas relações, o momento atual do estudo da religião, no qual acreditamos nos inserir, abre um horizonte ainda desconhecido devido à novidade tanto do objeto quanto da metodologia empregada.

3. Apontar para uma análise crítica da historiografia protestante.

A historiografia tem, entretanto, esta particularidade de apreender a invenção escriturária na sua relação com os elementos que ela recebe, de operar onde o dado deve ser transformado em construído, de construir as representações com materiais passados, de se situar, enfim nesta fronteira do presente onde simultaneamente é preciso fazer da tradição um passado (excluí-la) sem perder nada dela (explorá-la por intermédio de métodos novos).[9]

Apontaremos agora para uma crítica a historiografia a partir das teorias de Certeau (resignificação e recepção das idéias) e Foucault (teoria do poder). Queremos criticar alguns métodos utilizados e alguns resultados produzidos dessa historiografia. Ao mostrar a crítica, propomos outras análises históricas que mostrem outros personagens, temas e conceitos ainda não abordados.

As obras estritamente históricas foram feitas, na maioria das vezes, ou pela instituição (trabalhos informativos) ou pela sociologia (para contextualizar questões tipicamente sociológicas). Um exemplo é a obra de Antônio Gouvêa Mendonça O celeste porvir, que faz um histórico das denominações protestantes para analisar como o protestantismo historicamente dialogou com a política e a cultura brasileira. O histórico foi um instrumento para uma análise sociológica maior. Rubem Alves, em Protestantismo e Repressão, segue modelo parecido. Fez o histórico do protestantismo de Reta doutrina para responder as mudanças de atitudes do protestantismo histórico frente ao cenário político brasileiro da década de 1970. A exceção é a obra de Émile Leonard O Protestantismo brasileiro, única que, até o momento, pode ser enquadrada nos moldes da história das mentalidades.

Devido ao local de produção que apontamos, a historiografia protestante é marcada pela passionalidade entre autor e objeto. Com exceção ao trabalho de Leonard, os demais foram feitos por pastores presbiterianos (na sua maioria), com formação teológica das décadas de 1950 e 1960. A formação teológica marca os trabalhos históricos, uma vez que a teologia tornou-se uma importante fonte de análise histórica para explicar seja a origem, ou o desenvolvimento do protestantismo brasileiro.

Para citar apenas alguns, Alves, Araújo e Mendonça em suas análises, remetem a origem do protestantismo brasileiro contextualizando-a num debate teológico maior. Tratou-se de situar o papel da teologia norte-americana para explicar os rumos e sentidos no protestantismo nacional. Indiretamente, condenava-se esse tipo de teologia. Analisada por categorias de análises sociológicas, a teologia explicava o caráter ascético, pietista, individualista. Vejamos um exemplo:

O fato é que o protestantismo histórico de origem missionária resistiu, pelo menos até agora. Há algumas causas prováveis que podem ajudar a entender e a explicar esse fenômeno. Primeiro, sempre houve forte apelo religioso no protestantismo em virtude do incentivo à piedade individual e da independência pessoal quanto à obtenção da salvação; por sua vez, a ética ascética ligada à rejeição do mundo pareceu ir ao encontro daqueles que tinham motivos suficientes para não estar satisfeitos numa sociedade sempre desajustada e desigual como a brasileira. Segundo, o protestantismo no Brasil organizou-se e cresceu sob o primado do leigo; este fato pode muito bem ter capitalizado parte da mentalidade anticlerical brasileira recorrente em períodos do século XIX e XX. Terceiro, a hegemonia econômico-política do mundo anglo-saxão, agora representada pelos Estados Unidos, nunca deixou de injetar energia nos grupos protestantes[10].

Além da teologia, outras fontes primárias foram utilizadas. Atas, biografias, relatórios, jornais institucionais foram analisados para construção das narrativas. Nesse sentido, as obras foram mais amplas e visualizaram várias questões. Araújo e Alves, por exemplo, ao analisar o Brasil Presbiteriano, encontraram perseguição no protestantismo nacional após o golpe militar (sendo eles exemplos vivos). Boanerges Ribeiro e Júlio Andrade Ferreira, historiadores da instituição, visualizaram o pioneirismo de algumas pessoas, seu heroísmo e a vitória da igreja em meio a dificuldades.

Independente da conclusão extraída, as fontes eleitas como representativas foram as oficiais. O grande eixo explicativo para as ambições do protestantismo é o discurso institucional seja ele teológico ou referente ao seu funcionamento (atas, biografias, jornais oficiais). A opção por esses documentos segue as regras do saber de então e da própria lógica institucional que não permite, diretamente, a expressão da opinião dos fiéis comuns acerca de suas inquietações e dificuldades cotidianas.

Dessa forma, a opção por uma determinada leitura dos documentos oficiais proporcionou estudos que privilegiaram disputas teológicas, divergências da cúpula na condução institucional e as realizações de pessoas eleitas como representativas dum período estudado. Temas como a relação do protestantismo com cultura, sociedade e principalmente política foram eleitos como fundamentais. As convicções teológicas e políticas daquele local de produção explicam essa opção temática.

Nossa hipótese é que, ao contemplar as disputas pelo poder, a historiografia reproduziu narrativas apológéticas de posturas teológicas conflitantes da cúpula. Através da teoria do cotidiano de Certeau, temos certeza que a captura dos sujeitos religiosos, através de suas memórias, mostram um lado da historiografia não contemplado. Trata-se de apontar para uma outra história que tem outra temporalidade e preocupações. Muitas vezes com desdém das disputas eclesiásticas, preocupada com as necessidades e dificuldades desses sujeitos em seu cotidiano; um cotidiano imerso num campo religioso plural e difuso[11] como o brasileiro.

3.1. A disputa pelo poder - o poder centralizado

Os recortes cronológicos evidenciam a preocupação da historiografia com o poder político e uma periodização da atuação protestante conforme o período político: o Brasil monárquico[12], a Primeira República[13], a ditadura militar[14], a democracia[15] . Contudo, as análises são diferentes conforme seu local de produção[16].

Ligados ou não a instituição, as obras valorizaram a ação do poder ligado a uma análise macro-estrutural. Tanto a historiografia orgânica quanto a crítica, viam a igreja e o Estado como detentores do poder e, por isso, deveriam ser estudados. O poder é visto como algo centralizado, localizável em uma instituição e em pessoas da cúpula, "(...) na IPB existe um grupo dominante capaz de decidir pela adoção ou não de práticas neopentecostais. No entanto só podem decidir pela adoção de práticas que não corrompam a doutrina protestante"[17]. O período de 1966 a 1978 (quando Boanerges Ribeiro foi presidente do Supremo Concílio da IPB) foi considerado como exemplo dessa centralização do poder.

Presidente e secretário executivo, pisaram a constituição da IPB e rasgaram-na. Ditatorialmente passaram por cima de um concílio maior da Igreja (...) é patente o clima ditatorial que se inaugurou na IPB. Constituição, código de disciplina, nada disso vigora mais. O que impera é a vontade daqueles que têm maior parcela de poder nas mãos[18].
A última palavra sobre a verdade revelada portanto, não é a voz desta verdade, mas é a voz que, pelo seu poder político, é capaz de silenciar os dissidentes e declarar a questão como encerrada[19]

As obras analisadoras do Era do trovão[20] são unânimes sobre a centralização do poder ocorrida pois Boanerges praticou expurgos e era intolerante a questionadores. Entretanto, as contribuições da teoria do poder de Michel Foucault sugerem outro tipo de olhar sobre o poder:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (...) o indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.[21]

O poder descentralizado abre uma face não explorada na historiografia protestante. As comunidades não foram vistas com dinâmicas próprias, que muitas vezes caminham com desdém das resoluções dos líderes. A disposição das relações de poder descentralizadas relativiza a legitimidade da luta pelo controle eclesiástico.

Na sua procura de identidade, o sujeito é confrontado tanto com o pluralismo reinante na sociedade quanto com o pluralismo interno às próprias organizações religiosas, Atravessadas de correntes múltiplas, estas organizações não oferecem uma vitrine com um único produto. Em conseqüência, o indivíduo constrói sua identidade religiosa. Ele se apropria dos elementos necessários à satisfação de suas necessidades em termos de comunicação e semântica religiosa. Ele escolhe, entre os elementos que lhe são propostos, quais que melhor lhe convêm[22].

Uma rede de outras religiosidades pode ser encontrada nos fieis quando analisamos suas relações específicas de saberes e poderes locais. Ao entender essa construção plural dos sujeitos, a teoria do poder capilar é perceptível nas relações também religiosas.

A inexistência de impactos efetivos nos sujeitos religiosos com a alternância eclesiástica minimiza o papel da cúpula e também da produção de saberes da instituição, uma vez que por trás da historiografia existiu um conflito político-institucional. Por exemplo, a aplicação das disciplinas no período de Boanerges Ribeiro, analisadas pelos fiéis da época, nos daria outra dimensão da IPB assim como para compreensão do campo religioso brasileiro.

3.2. O nosso local de produção - a busca pelos sujeitos religiosos

Uma preocupação do atual momento histórico é a busca, como diz Ronaldo Vainfas, pelos sujeitos "esquecidos"[23]. Nesse sentido, a historiografia da religião busca, para usar um termo atual, seus sujeitos religiosos, ou seja, "escrever a história da experiência religiosa a partir dos sujeitos desta experiência". Isso posto, "implicaria, então, em captar o significado da religião a partir do cotidiano das pessoas, da luta pela sobrevivência, etc e em perceber a subjetividade que perpassa esta experiência como um dado historicamente relevante"[24]. O fiel entendido agora por representações e imaginários ganha uma nova dinâmica já que antes era estudado pela posição ocupada na luta de classes. A organização de estudos a partir das representações possibilita o rearranjo dos sujeitos conforme critérios outros que não o materialismo dialético[25].

Por exemplo, o conceito de História construído a partir do "pobre" da CEHILA é uma problemática posta pela contemporaneidade. Esgotados ou não, os questionamentos atuais acerca dos fiéis, suas práticas cotidianas, e representações no campo religioso brasileiro, não encontram respostas analisando-o apenas pela posição ocupada na luta de classe. A captura de outras dimensões dos sujeitos religiosos é o grande desafio dos historiadores atuais.

De forma geral, o fiel foi visto apenas na lógica da produção do discurso e pouco na sua recepção:

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção sócio-econômica por pregadores, por educadores ou por organizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização"[26]

Ao problematizar o papel do fiel na historiografia protestante, entendemos como "fiel" esses sujeitos que tal qual Certeau nos descreve:

Reempregam um sistema que, muito longe de lhes ser próprio, foi construído e propagado por outros, e marcam esse "reemprego por "super-ações", excrescências do miraculoso que as autoridades civis e religiosas sempre olharam com suspeita, e com razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber a sua "razão".Um uso ("popular") da religião modifica-lhe o funcionamento. Uma maneira de falar essa linguagem recebida a transforma em um canto de resistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a qual possa ser acreditada, nem a lucidez com a qual, aliás, se vêem as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida.

A historiografia presbiteriana produziu uma visão geral muito parecida do seu sujeito religioso. A sobrevalorização da relação Estado-Igreja mostra-nos a visão que a cúpula tinha de sua massa - local de verificação da política eclesiástica. O fiel é um sujeito passivo, ilustrado pela visão eclesiástica cristã do pastor - ovelhas - lobo. As ovelhas são os fiéis incapazes de adotar rumos próprios, dado o estado de ignorância e a posição na estrutura eclesiástica, necessitam da condução de seus líderes, e são naturalmente passivos. Os pastores, principalmente os líderes da instituição, devido a sabedoria e posição eclesiástica são os responsáveis pela grande massa de ovelhas. Ao mesmo tempo possuem uma grande responsabilidade e um privilégio: devem conduzir o rebanho para o rumo certo cabendo a eles a decisão sobre o caminho e, em troca, as ovelhas seguem-no sem qualquer questionamento ou revolta. O lobo é o outro; é aquele que se veste de cordeiro, o inimigo da ovelha e do pastor, o que quer o fim das ovelhas. Ele é o mau, ele é o inimigo político. O enfoque da historiografia, portanto, prioriza quais caminhos são postos diante do pastor e onde se encontra o lobo. Evidentemente que a historiografia dividiu-se atribuindo ao discurso do outro aquele condutor da morte do rebanho.

A analogia que fizemos mostra o quão eclesiástica é historiografia desse período; algo para vermos como fontes secundárias e também primárias, já que relataram a disputa pela memória na instituição.Trata-se de uma relação que diminui o papel do fiel frente à instituição e valoriza a disputa eclesiástica. Uma divisão de responsabilidades: um dirige e o outro obedece, com benefícios a cada um.

Esse obscurecimento do fiel é uma prática excludente e também permissiva. A não redução do olhar sobre suas representações reelaboradas, não permite a visualização de suas manobras cotidianas num campo religioso como o brasileiro, essencialmente poroso, agremiador de valores extra-institucionais e condenados pela instituição. Enquanto é passivo é inocente, isento das responsabilidades, livre de um posterior julgamento de condutas hoje condenáveis como a aliança feita entre IPB e governo militar e as consequências em sujeitos vítimados pela repressão governamental.

4. Conclusão

As fontes primárias oficiais, de fato, dificultam uma análise dos sujeitos religiosos no seu uso cotidiano. Priorizando os feitos de indivíduos eleitos como representativos de um período, construiu-se uma história, dos líderes eclesiásticos e das disputas em torno do poder. As atas, relatórios e biografias foram lidas a partir de uma problematização que entende o poder como algo localizável e centralizado. Um simples paralelo mostra o fazer histórico como a visão cristã do mundo dum poder centralizado e localizado. Nesse sentido, a historiografia protestante é fundamentalista já que não questionou outras possibilidades de fazer histórico fora do texto, no caso, as bulas e documentos oficiais. Ironia da história. Forma teológica tão combatida pela historiografia acadêmica e próxima no fazer histórico.

Apontamos assim para o problema da recepção dos discursos, viés pouco trabalhado na historiografia protestante. Nosso corpo de entrevistados, sem pretensamente nos achar distantes dos mesmos é o de fiéis desse longo recorte cronológico, que moravam em pequenas cidades, ou em vilarejos rurais, onde leigos que conduziam o trabalho eclesiástico foram eleitos como representativos do tipo de historiografia que pretendemos. Também por uma questão pessoal e um certo vínculo afetivo, a cidade de Apiaí -SP, marcada até hoje pela pobreza no estado mais rico do Brasil, cenário da infância dos avós do autor, foi escolhida. As histórias encantadas e escutadas ao pé do fogão, de crenças, medos e lazeres em um tempo, como diz a avó protestante narradora, "de muita ignorância"[27], mostram um cenário plural na religiosidade popular do protestantismo. O vínculo afetivo com os entrevistados nas entrevistas será algo que teremos que refletir.

Os relatos daqueles que podem dizer, a principio através dos recursos de história oral, mostram um cenário cultural rico, composto por uma religiosidade popular também no protestantismo histórico. A ida a benzedeiras e "responsas" (espécie de adivinhos), crença em lendas populares como sacis, mulas-sem-cabeça, assombrações e medo do escuro, mostram como o protestantismo esteve e ainda está inserido na cultura brasileira se não no discurso oficial, no campo da produção eclesiástica de idéias, mas na experiência religiosa do fiel. As conclusões e perguntas que aqui levantamos fazem parte da pesquisa que atualmente realizamos. Apontamos para problemas que precisam de uma maior maturidade e consistência.

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Notas

[*] Graduado em História pela Universidade Estadual de Campinas e mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.

[1] M. CERTEAU, A invenção do cotidiano, p.48.

[2] M. CERTEAU, A Escrita da História, p.21.

[3] Idem, p.42.

[4] L.SANTOS, As outras faces do sagrado, p.248.

[5] M. FOUCAULT, A Arqueologia do Saber, p.40.

[6] Informações retiradas de M.RIDENTI, Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC a era da TV.

[7] P. FRESTON, Protestantes e Política no Brasil: da constituinte ao Impeachment, p.158.

[8] (...) defendia a igualdade na ordem econômica internacional, a descentralização dos sistemas políticos latino-americanos, a formação de cooperativas e sindicatos urbanos e rurais e a autonomia nacional como mecanismo de integração de todos os indivíduos em processo de desenvolvimento. A Igreja deveria tomar a iniciativa de formar "uma consciência política nacional". In K.SERBIN, Kenneth, Diálogos na Sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura, p.243.

[9] M.CERTEU, A Escrita da História, p.18.

[10] MENDONÇA & VELASQUES, Introdução ao protestantismo no Brasil, p.23.

[11] P. SANCHIS, O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In E. HOORNAERT, História da Igreja na América Latina e no Caribe: 1945-1995: o debate metodológico, p.11.

[12] De Boanerges Ribeiro: Protestantismo no Brasil Monárquico, 1822- 1889: aspectos culturais da atuação do protestantismo no Brasil.

[13] De Boanerges Ribeiro: Igreja Evangélica e República Brasileira (1889-1930), de Lyndon Santos: As outras faces do Sagrado. Protestantismo e Cultura na Primeira República Brasileira..

[14] De H. CAVALCANTI, Political cooperation and religious repression: Presbyterians under military rule in Brazil (1964- 1974).

[15] P.FRESTON, Protestantes e Política no Brasil: da constituinte ao Impeachment.

[16] Exemplo o trabalho de Lyndon Santos e Boanerges Ribeiro que trabalharam a Primeira República distintamente.

[17] E. GIESBRECHT, Fiéis em fuga? Uma nova configuração da IPB, p. 34.

[18] J. ARAÚJO, Inquisição sem fogueiras, pp.102-103.

[19] R. ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão, p.127.

[20] Termo usado por H.SILVA, A era do furacão: historia contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil : 1959-1966. e V. PAIXAO JUNIOR, A era do trovão: poder e repressão na Igreja Presbiteriana do Brasil no período da ditadura militar (1966-1978).

[21] M. FOUCAULT, Microfísica do poder, p.183.

[22] P. SANCHIS, O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In E. HOORNAERT, História da Igreja na América Latina e no Caribe: 1945-1995: o debate metodológico, p.90.

[23] R.VAINFAS, Micro-história, os protagonistas anônimos da história, pp. 23-24.

[24] L. WIRTH, Novas metodologias para a História do cristianismo: em busca da experiência religiosa dos sujeitos religiosos, In COUTINHO, Sérgio R (org). Religiosidades, Misticismo e História no Brasil Central, p. 30.

[25] R.CHARTIER, À beira da falésia- a história entre certezas e inquietudes,p.67.

[26] M.CERTEAU, A invenção do cotidiano, p.40.

[27] Entrevista realizada no dia 17/07/2004 com Zenaide dos Santos Lisboa e o seu irmão Josias dos Santos Lisboa ( o "Jôjô").