O protestantismo foi um movimento histórico que atuou como força cultural e religiosa no campo religioso nas primeiras décadas da República brasileira. As noções de campo, representação e crença nortearam a pesquisa. O protestantismo foi analisado desde as suas origens, conflitos, números e representações, na sua configuração regional maranhense. O processo de romanização da Igreja Católica no Maranhão definiu estratégias, confrontos e o controle das devoções populares, e determinou dificuldades para os protestantes. As mudanças e transformações ocorridas durante a Primeira República redefiniram os novos centros do sagrado no campo religioso brasileiro. Em busca de posições neste campo, os protestantes construíram sentidos e identidades por meio de instituições e de publicações. O pluralismo evangélico incidiu na pluralidade cultural e religiosa em curso na sociedade brasileira, e articulou, junto com outros movimentos, os discursos da civilização e da modernidade. A crença evangélica em sua interface com a cultura e a religiosidade foi analisada a partir da historiografia sobre o protestantismo, da iconografia do quadro dos Dois Caminhos, da biografia de Miguel Vieira Ferreira e do olhar desinteressado do jornalista João do Rio. As outras faces do sagrado protestante na cultura brasileira foram múltiplas a partir dos paradigmas da crença, das representações, do sujeito e da cultura.
Palavras-chave: Protestantismo, Igreja Católica, Romanização, Campo religioso, República, Cultura, Sagrado.
Protestantism acted as a religious and cultural force in the religious field in the first decades of the Brazilian Republic. The notions of “field”, “representation” and “belief” guided research for this paper. The paper analyses the regional origins, conflicts, numbers and representations of Protestantism in Maranhão. The Romanization of the Catholic Church in Maranhão defined strategies, conflicts, and control over popular devotions, and it shaped certain difficulties faced by these Protestants. The changes and transformations that occurred during the First Republic redefined new centers of sacredness in the Brazilian religious field. Maneuvering for positions in this field, Protestants constructed new meanings and identities by means of their institutions and publications. This Evangelical pluralism formed part of Brazil’s emerging cultural and religious pluralism, and it articulated, along with other movements, the discourses of civilization and modernity. The paper analyses the intersection between Evangelical belief and Protestant historiography, drawing on the iconography of the well-known painting “The Narrow and the Broad Way”, on Miguel Vieira Ferreira’s biography, and on the disinterested views of journalist João do Rio. The other faces of a specifically Protestant sacredness in Brazilian culture were varied, ranging across paradigms of belief, representations, subjects and culture.
Keywords: Protestantism, the Catholic Church, Romanization, Religious field, Republic, Culture, Sacredness.
Este artigo apresenta um comentário da tese de mesmo título defendida no dia 10 de março de 2005, na UNESP-Universidade Estadual Paulista, campus de Assis/SP (SANTOS, 2004). Trata-se de um olhar posterior ao produto final, que revê e ao mesmo tempo avança sobre o texto escrito. Comentar a pesquisa representa um exercício instigador para sua leitura e releitura críticas. Não fizemos uma resenha, obviamente, mas uma tentativa de autocrítica, muito condescendente, do texto final.
A narrativa histórica resultou das pesquisas realizadas diretamente de fontes documentais e orais, do diálogo bibliográfico e dos questionamentos feitos no contexto acadêmico nos últimos quatro anos, especificamente no debate sobre a historiografia da religião e do protestantismo. Os simpósios da ABHR-Associação Brasileira de História das Religiões foram momentos significativos para esse diálogo. Trazer os resultados finais desta pesquisa para a ABHR e, especificamente, ao debate no Grupo de Pesquisa de Protestantismo e Pentecostalismo, representa o reconhecimento da importância que esse espaço teve na construção da pesquisa.
O protestantismo no Brasil está historicamente representado por uma diversidade de denominações e igrejas oriundas da Reforma Protestante do século XVI. Além dos ramos principais surgidos neste acontecimento histórico, o protestantismo como um todo integra o movimento pentecostal iniciado em 1906 em Los Angeles e que chegou ao Brasil nos anos seguintes. Contemplamos as linhas de força que se demonstraram comuns aos vários ramos do protestantismo brasileiro, embora reconhecendo as particularidades de cada segmento. Procuramos perceber as interseções entre a cultura e a mentalidade dos adeptos que, embora tenham incorporado o habitus evangélico na ética, nos rituais e nas doutrinas, reproduziram visões e estruturas de pensamento cujas referências sempre vieram da cultura e da religiosidade pré-existentes. Enfim, a pesquisa rediscutiu as abordagens consagradas dentro das ciências sociais e, especificamente, na produção historiográfica, sobre o protestantismo enquanto objeto de estudo.
Procurei demonstrar o lugar que um movimento religioso, inteiramente originado, inserido e participante da cultura ocidental, teve e tem na sociedade e na cultura brasileira. Não deixa de ser, em certa medida, uma reivindicação ou um alerta para com a produção historiográfica do protestantismo no Brasil, em fazer valer seu espaço e lugar na história mais ampla da sociedade brasileira, no tocante ao seu desenvolvimento cultural e religioso. Isto porque, ao nosso ver, este esquecimento ou esta lacuna não é de todo inocente mas justificados política e ideologicamente.
No entanto, esta reivindicação encontra eco diante do recente crescimento dos evangélicos no campo religioso brasileiro, bem como a maior visibilidade no campo da política e na mídia em geral. Na medida em que os evangélicos crescem e marcam sua presença nas variadas esferas sociais, a busca por justificativas deste crescimento parece ser o movimento inevitável e até inconsciente da pesquisa.
Em seu conjunto, foi construída uma narrativa a partir das análises das fontes e dos documentos, preocupada com a historicidade do movimento religioso denominado protestante na sua relação com a cultura brasileira. Isto porque, entendemos que essa relação é nuclear:
Desta forma, a defesa não é do protestantismo enquanto religião mas sim do seu lugar na história cultural e religiosa do Brasil. Mostrando as outras faces do sagrado evangélico, pretendi, ao mesmo tempo, dar reconhecimento deste lugar. A historiografia brasileira ainda não reconhece o lugar que, ao nosso ver, foi de fundamental importância no processo de recomposição do campo religioso brasileiro e co-participante da ordem moderna e liberal, bem como do pluralismo cultural e religioso em curso atualmente. Em outras palavras, a religião evangélica ainda é invisível aos historiadores quando estudam as religiosidades no Brasil.
A pesquisa buscou estabelecer a horizontalidade das relações sociais e culturais mediadas pelo espaço religioso, e, assim, escapou de escrever uma história institucional ou uma história religiosa das instituições. As faces que as instituições e os discursos oficiais demonstram sobre a fé evangélica no Brasil, não falaram tudo sobre ela. Foi preciso atentar para os estratos mais profundos das relações sociais e culturais, as subjetividades, as experiências dos sujeitos, a imprevisibilidade do sagrado. Da mesma forma, as faces que a sociologia histórica tem construído sobre o campo protestante perdem o foco da sua historicidade, de seus sujeitos, suas mentalidades, seu cotidiano, suas formas de pensar, de ver e de sentir (MENDONÇA, 1990; MARIANO, 1999).
Nesse caminho, foi necessário superar a distinção feita entre protestantismo e pentecostalismo, embora reconhecendo a validade das classificações e das tipologias que consagraram esta distinção (MARIANO, 1999). A historicidade da experiência dos féis protestantes e das igrejas constatou a continuidade e os empréstimos mútuos entre os históricos e os pentecostais, que são tão históricos quanto os históricos. Essa superação foi importante para estabelecer outros recortes de duração da experiência evangélica no Brasil, sem partir dos recortes institucionais. Os pentecostais introduziram novas marcas da experiência religiosa mas reproduziram os modelos construídos pelos protestantes e pela cultura religiosa mais ampla.
Sob a estética do relato histórico correram águas teóricas cujas correntezas eram ora turvas ora límpidas. Bourdieu emprestou as noções de campo religioso e de habitus (BOURDIEU, 1989, 1999 e 2001). Ginsburg (1991) e Bloch (1993) auxiliaram nas perspectivas metodológicas de se trabalhar as crenças. Michel de Certeau (1994) ajudou olhar para os detalhes e para os heróis ordinários, para a preocupação com a escrita da história e Dominique Julia (1976) auxiliou na noção de representação no campo de estudo da religião. David Morgan (1996; 1998), Jean Delumeau (2003) e Peter Burke (2004) ajudaram a trabalhar imagens como fonte histórica ou como testemunhos históricos. Em geral, estes foram os autores de diálogo direto e aberto. Outros ficaram escondidos, implícitos. Procurei pensar a teoria como um ar que se respira durante a leitura do relato histórico. Estes empréstimos tomados, além de se constituírem em dívidas, foram arbitrariamente utilizados ou apropriados, num exercício consciente, a fim de não cair numa repetição mecânica de categorias prontas. A História Cultural, portanto, foi o marco teórico e metodológico na abordagem de nosso objeto (CHARTIER, 1990; DOSSE, 2001 e 2003).
Os capítulos da tese foram, cronologicamente, situados de acordo com a seqüência quase estrita das pesquisas realizadas durante o período do doutoramento. A formatação final foi fruto de uma engenharia necessária para a configuração de um trabalho de conclusão, sujeita à confluência entre criatividade e rigor. A estrutura, o conteúdo e a forma refletiram, portanto, o tempo e os marcos das pesquisas em seus variados momentos, historicamente situados.
A introdução, dentro do seu esquematismo inevitável, procurou situar a tese tornando clara a hipótese a ser defendida: "... o protestantismo foi um movimento significativamente atuante na recomposição do campo religioso e da cultura no período da Primeira República" (SANTOS, 2004: 14). Essa afirmação não dá conta, inicialmente, do denso processo histórico e social vivido por seus agentes, seus sujeitos e suas instituições que construíram os modos de ser evangélico no Brasil, desde os tempos imperiais. Estes modos de ser têm tido mudanças acentuadas nas últimas décadas. No entanto, concluímos que as bases e as raízes desse movimento religioso em mutação hoje estão fincadas na conjuntura e na temporalidade delimitadas pelo trabalho. Eis, portanto, a importância deste período histórico, por vezes relegado a um plano secundário no desenvolvimento político, econômico, cultural e religioso no Brasil.
O primeiro capítulo intencionalmente partiu da pesquisa - laboratorial - do protestantismo no Maranhão, estabelecendo recortes históricos e institucionais, mas privilegiando o olhar para a cultura e as representações da fé evangélica. O embate com as fontes suscitou e antecipou as questões que seriam trabalhadas a posteriori: os lugares e os sentidos das representações e das crenças protestantes no campo religioso brasileiro. Neste momento inicial, já estava colocada a maneira de ver o protestantismo como um movimento diversificado e não homogêneo. Sua experiência no Maranhão desenhou um protestantismo com colorações regionais, incluindo o pentecostalismo, mas que reproduziu as linhas de força do centro deste movimento situado na região sudeste.
O significado do Maranhão está no fato de ser uma região considerada periférica na história do Brasil. O enfoque regional serviu para relativizar a concentração da pesquisa histórica em geral voltada para o centro-sul, bem como a mentalidade que ignora o periférico como de importância secundária. O estudo das representações do protestantismo a partir da capital e do interior do estado ajudou na compreensão da relação entre a experiência religiosa e a especificidade do contexto cultural regional.
No segundo capítulo, reconheci a necessidade de ver o catolicismo como religião hegemônica em suas contradições regionais e as dificuldades engendradas ao protestantismo. Foi possível ver como o rearmamento católico, denominado de romanização, tinha como referência, dentre outras, o avanço protestante, embora ainda ausente ou rarefeito, inicialmente, mas forte o suficiente para fazer ressoar na Igreja Católica a necessidade de se romanizar mais. Confesso que, aqui, ao trabalhar a romanização, abri o espaço para muitas outras questões estritas ao catolicismo no Maranhão e no Brasil que ainda estão em aberto para pesquisas posteriores.
O catolicismo era visto, na sua vertente popular e sincrética, com desconfiança por parte das elites eclesiásticas e políticas seculares. Essa forma devocional de religiosidade católica manifestava-se por meio de festas, procissões, romarias, das confrarias e das irmandades. Sua força estava na mobilização cultural e popular espontânea, operando suas próprias sínteses no encontro com os cultos afro e outras práticas religiosas populares. O catolicismo da esfera oficial representado pela hierarquia incumbiu-se de, no decorrer do século XIX e início do século XX, organizar a Igreja em sua força política e institucional, aperfeiçoando seu aparato burocrático, preparando novos sacerdotes por meio dos seminários, visitando os cantões da diocese a fim de marcar a presença do bispo e reafirmar seu papel de construtora da ordem e modeladora das condutas sociais.
Neste sentido, a fé católica oficial enfrentou conflitos de várias ordens ante os interesses secularizantes de grupos sociais e políticos, o caráter indisciplinado das devoções populares, a crise fundamental do modelo do padroado na relação com o Estado, a falta de recursos para o sustento e manutenção dos cultos e o conflito sangrento na tentativa de colonização dos índios na região de Grajaú, terminando com o morticínio de sacerdotes e freiras. Este quadro reproduzia a situação da Igreja Católica no todo do país porquanto as orientações do bispado ultramontano levaram ao processo conflitivo da romanização que também se fez sentir no Maranhão.
No entanto, a análise do catolicismo foi necessária a fim de avaliar e enxergar quais os espaços concretos de atuação da fé evangélica na sociedade maranhense. Descobri, para surpresa histórica, que esses espaços não foram conquistados somente pela luta proselitista e de transplantação cultural e religiosa, mas pela própria dinâmica da sociedade e do catolicismo maranhenses que estabeleceram concessões para os casamentos entre protestantes e mulheres católicas, à luz das necessidades econômicas e políticas. A absorção destes evangélicos apontava para a adaptação que a sociedade e a própria Igreja Católica no Maranhão teriam que passar diante das mudanças em curso.
No terceiro capítulo, procurei dar um vôo mais amplo e aberto, mas não menos direcionado, saindo do regional para olhar o protestantismo em seus sentidos e identidades construídos dentro do redimensionamento do campo religioso na Primeira República. O protestantismo, neste prisma, foi também um esforço de protestantização, um fazer-se a si mesmo na conjuntura das primeiras décadas do século XX. Aqui o recorte não foi institucional e nem cronológico mas dos discursos elaborados pelas instituições e por alguns intelectuais evangélicos, sempre desconfiando que estes discursos obtiveram outras apropriações por parte dos crentes comuns em sua vivência cotidiana. Esta abordagem partiu do pressuposto de que os sentidos da fé protestante na sociedade foram historicamente situados e elaborados a partir de demandas específicas que corresponderam a práticas sociais.
A comparação entre os discursos protestante e católico revelou suas polarizações e suas convergências se tomados diante da questão da cultura e da religiosidade popular. A protestantização foi o processo levado a efeito por instituições, igrejas, organizações, intelectuais, lideranças eclesiásticas e associações na direção de construir sentidos e identidades para a fé evangélica no Brasil. A auto-atribuída superioridade da religião protestante ancorou-se em premissas teológicas, políticas e ideológicas, como a ideologia do pan-americanismo (BRAGA, 1916; BUENO, 2003).
Os sentidos e as identidades foram tecidos no interior dos espaços estabelecidos de visibilidade social, o que denominamos de ilhas de sentido. Estas ilhas foram responsáveis pela afirmação, construção e reprodução do ethos evangélico no Brasil. Elas funcionaram como espaço para as novas relações sociais estabelecidas. Foram organizações e instituições reforçadas pela divulgação e propagação das doutrinas e da ética religiosa, por meio da literatura, dos ideais religiosos e sociais do protestantismo. A A.C.M. (Associação Cristã de Moços) foi uma destas ilhas que gestou essas identidades, formou gerações de líderes e intelectuais, reproduziu e divulgou os ideais cívicos e religiosos liberais por meio de palestras e literatura (KENEDY, 1898). O alinhamento da religião ao conceito de civilização utilizado no período buscava reforçar essa superioridade e alinhamento com o sentido da modernidade (LEFEBVRE, 1969; LE GOFF, 1996).
No quarto capítulo, estabeleci o foco entre o protestantismo e a cultura brasileira a fim de trabalhar alguns paradigmas encontrados na produção historiográfica sobre o protestantismo, na iconografia evangélica e num exemplo biográfico de conversão. Esse foco revelou que a produção historiográfica tangenciou a questão da relação entre cultura e religião, não aprofundou as análises necessárias entre protestantismo e cultura brasileira porquanto esteve cativa às elaborações sociológicas, teológicas e confessionais. A produção histórica privilegiou o estudo das doutrinas oficiais ou das instituições religiosas, "sem arriscar incursões mais arrojadas no plano das crenças". Daí o percurso do capítulo em mostrar o comportamento, os sentidos, a força da crença protestante na sua relação com o contexto brasileiro, suas apropriações e novas sínteses.
A trajetória do quadro dos Dois Caminhos me fez pensar mais num percurso de sentidos do que na força de uma imagem, em perceber o quanto a sociedade prolonga a sobrevivência de objetos simbólicos em razão de necessidades que ela mesma constrói. A crença protestante teve como representação um conjunto de figuras e símbolos, que sobreviveu e atravessou credos diferentes, sendo ele mesmo ressonante aos sentidos já postos pela religiosidade antecedente. O quadro em si foi resultado de tendências teológicas e culturais européias, mas que foram sendo reapropriadas ao chegar no Brasil.
Surgida na década de 40 dos oitocentos, no contexto do pietismo alemão, a gravura originalmente pensada e patrocinada por uma mulher protestante, Charlotte Raihlen, migrou para a Holanda, para Inglaterra, para Portugal e, finalmente, para o Brasil, já pelo ano de 1910. Ao chegar no Brasil, o quadro dos Dois Caminhos havia adquirido cores, novas inserções iconográficas, novos sentidos e separou-se do texto escrito pela autora que deveria acompanhá-lo. Na Inglaterra, o quadro foi utilizado como instrumento proselitista por cerca de vinte anos seguidos pelo pregador Gawin Kirkham, que realizou mais de novecentas pregações utilizando o quadro (KIRKHAM, 1888). Nos cerca de 70 anos de utilização do quadro pelas igrejas evangélicas no Brasil, o quadro marcou profunda presença no interior dos templos e das famílias, como objeto visual de doutrinamento e representação de mundo para os fiéis.
Para os protestantes a representação de mundo foi sintetizada percebendo-se o quadro dos Dois Caminhos como um mapa dualista da vida cristã vivida no mundo hostil. Além disso, suas imagens reproduziam o ideal puritano tal como foi representado pelo clássico da literatura religiosa protestante escrito por John Bunyan, O Peregrino (WHAREY,1960). Por fim, identificamos o peregrinismo como uma disposição religiosa a ser repetida pelo fiel evangélico. O quadro migrou, no Brasil, para espaços sagrados de outros credos como o católico e o Tambor de Mina, culto-afro, no Maranhão.
Tomei a experiência da conversão ou da mudança de campo simbólico de Miguel Vieira Ferreira como emblemática de como um brasileiro reelaborava as crenças. Não pretendi erigir um tipo ideal de conversão, antes, perceber como os componentes culturais e religiosos transitam e formam a experiência mística do sagrado. Miguel Vieira Ferreira foi um maranhense ilustrado que na segunda metade do século XIX aceitou a fé reformada na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro. Após passar pelo catolicismo, pelo positivismo e pelo espiritismo, Miguel teve uma experiência de transe religioso num culto presbiteriano onde afirmou ter sido arrebatado e recebido uma missão diretamente de Deus. Aceitando o credo protestante, baseou sua espiritualidade na revelação divina direta tornando-se um pregador carismático. A incompatibilidade resultante de sua prática e doutrina religiosa levou-o a sair da Igreja Presbiteriana e fundar sua própria Igreja, a Igreja Evangélica Brasileira (LÉONARD, 1968 e 1988).
O foco entre cultura e protestantismo teve ainda o olhar do jornalista João do Rio que escreveu uma importante obra denominada As Religiões do Rio (RIO, 1976). João do Rio registrou suas impressões acerca dos vários segmentos evangélicos na capital da República na virada do século XIX-XX. Trata-se de um olhar de fora para dentro, de alguém desinteressado para com o assunto religião, mas que proporcionou ao pesquisador uma significativa fonte sobre a experiência religiosa no Brasil, no caso no Rio de Janeiro, uma fonte não construída pelos discursos oficiais dos agentes religiosos. O jornalista elencou os diferentes cultos na capital demonstrando a pluralidade religiosa no cotidiano carioca, dando a cada um suas características próprias. Sua perspectiva sobre os cultos evangélicos e suas igrejas foi criticamente positiva porquanto aliou às peculiaridades dos evangélicos os traços culturais dos brasileiros.
O protestantismo enquanto religião oficial não atuou de forma direta e decisiva na cultura e na religiosidade, destacando-se como movimento de vanguarda nas mudanças operadas na primeira república, também tomando os campos da política e da economia. Mas ele esteve organicamente inserido e alinhado ao discurso da modernidade, ao imprimir marcas e traços que formaram sentidos e identidades a partir de suas crenças, instituições, publicações e ações concretas. Podemos afirmar, contudo, a contribuição indireta para o conjunto da cultura e da religiosidade brasileira se tomarmos o parâmetro institucional como referência de análise. Neste nível, constatamos a conivência com a ordem republicana e liberal, da perspectiva progressista mas de não questionamento da ordem estabelecida. Os discursos dos códigos de postura, da moral, da higiene, da civilização, do trabalho e da ética, compuseram o cardápio de idéias e valores que foram reproduzidos por seus fiéis.
No entanto, no estrato mais cotidiano da vivência dos sujeitos, da subjetividade, das visões de mundo, das práticas e das estratégias, outros ritmos e faces do sagrado foram demonstrados:
Enfim, procurei tecer um relato historiográfico que fosse narrativo e auto-reflexivo ao mesmo tempo, ciente de que os cortes temporais são relativos e não determinantes do sentido histórico dos acontecimentos. Desta forma, o relato resultou em fragmentações, diacronias, descontinuidades e, porque não, em fragilidades. Se não quisermos a palavra fragilidade, posso substituí-la por flancos abertos, canais ou sulcos deixados para ainda serem trilhados e explorados. Pois o sagrado sempre terá faces a serem descobertas de acordo com as necessidades e os imperativos do presente da pesquisa histórica.
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[*] Dr. Lyndon de Araújo Santos é professor no Depto. de História da UFMA - Universidade Federal do Maranhão.