Religião e Mercado: A Mídia Empresarial-Religiosa

Luther King de Andrade Santana[*] []

Resumo

Em geral os estudos sobre a relação evangélicos e mídia se notabilizam pela apreciação geral que fazem do assunto. Considerando a situação de pluralismo religioso e a sociedade contemporânea como mercadológica e a necessidade de se estudar as rádios evangélicas do Rio de Janeiro, mostrar-se-á neste artigo uma categoria de análise que servirá para identificar as mídias religiosas que tem por motivação a livre concorrência e não a missão e o proselitismo.

Palavras-chave: religião, mídia, evangélicos, mercado, pluralismo

Abstract

Most studies of relations between Evangelicals and the media offer general overviews. This paper examines evangelical radio stations in Rio de Janeiro against the background of religious pluralism and other developments in contemporary Brazilian society, and it frames these issues in terms of processes of commodification. It sets out a specific analytical category and argues for its value in characterizing religious media that are oriented to free competition and not to mission and conversion.

Keywords: religion, media, evangelicals, market, pluralism

Introdução

De modo geral, nos estudos, sobre a relação evangélicos[1] e mídia[2] a ênfase recai na possível influência dos veículos de comunicação em relação ao crescimento deste grupo, no discurso e posicionamento político que o grupo assume em suas mídias ou na concorrência entre igrejas proprietárias de empresas de mídia. Também é crescente o interesse sobre a relação entre evangélicos e televisão, por ser o maior meio de comunicação de nossa época, por envolver cifras astronômicas, pelas imagens fortes e agressivas que as igrejas usam.

A maioria desses estudos fala de mídia de modo geral, incluindo aí vários veículos de comunicação, como a televisão, o rádio, e a literatura. Neste artigo, nosso interesse se volta para o rádio por entendermos ser o meio de comunicação mais popular do Brasil. A dinâmica da comunicação no rádio é diferente: direta, intimista e inclusiva. Hoje as pessoas ouvem rádio em quase todos os lugares, em escritórios, em consultórios, em casa, em bairros que tenham sistema de som público que funcionam nas ruas, em lojas, no carro. O rádio tem um alcance maior que a televisão.

Interessam-nos as rádios orientadas para o público evangélico, em especial duas emissoras que atingem a toda região metropolitana do Rio de Janeiro, a Rádio Melodia FM 97,3 e a Rádio El Shadai FM 93,3.[3] Para tanto, forjamos conceitos que articulados podem nos dar uma condição melhor de análise do alcance dessas rádios sobre esse público. Denominamos essas empresas de comunicação como Mídia Empresarial-Religiosa (MER), porque entendemos que elas fazem a interseção entre o campo econômico e o campo religioso, utilizando estratégias mercantis e empresariais articuladas à semântica religiosa, no caso, evangélica. Ao longo desse artigo outros conceitos serão utilizados para demonstração da validade do termo Mídia Empresarial-Religosa (MER).[4]

1. Um pouco da histórica relação entre mídia e evangélicos

O evangelicalismo[5], sobretudo o que aportou em terras brasileiras, tem como uma de suas marcas a Palavra escrita e falada, a Bíblia. A centralidade da Palavra sempre foi fundamental para esse tipo de culto onde todas as atitudes e decisões deviam fazer referência ao texto bíblico. Tal evangelicalismo foi e, em certa medida, ainda é marcado por um fundamentalismo característico de sua origem sulista norte-americana.[6]

Porém, há pelo menos duas décadas os evangélicos vêm despertando interesse de variados segmentos de nossa sociedade, principalmente da mídia, por estarem estes assumindo diferentes posições e investidas no campo religioso, entre elas: a) o surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) na década de 1980, sua inserção ressignificadora no campo religioso brasileiro e suas relações com a mídia; b) a atuação da bancada evangélica na constituinte de 1988 e conseqüente crescimento de políticos evangélicos nas mais variadas eleições do país; c) o crescimento dos evangélicos em paralelo com o declínio católico apontado nos censos do IBGE.[7]

Entendemos que o campo religioso brasileiro é bastante difuso com variados matizes e ideologias. Mais especificamente, o campo religioso evangélico é um caleidoscópio, em que igrejas são formadas, se dividem e se unem a outras construindo assim um tipo especial de protestantismo. Sendo assim, causa estranheza quando a mídia se refere aos evangélicos como se estes tivessem uma união programática e ideológica muito bem definida e articulada.

Alguns estudos mostram os primórdios da relação entre evangélicos e mídia.[8] A partir de 1940 surgiram no Brasil os primeiros programas evangélicos no rádio e as denominações pioneiras foram a Igreja Adventista, a primeira a alcançar o rádio a nível nacional, e algumas pentecostais como a Assembléia de Deus, a Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo e a Igreja Deus é Amor. O modelo desses programas nos primeiros anos era norte-americano, e posteriormente, passaram a ser idealizados por brasileiros.

Um fato curioso aconteceu no Rio de Janeiro. Em fins da década de 1950 o missionário canadense Robert McAlister começou um programa de rádio (A voz da Nova Vida) que posteriormente deu origem à Igreja de Nova Vida em 1960. Na mesma década começaram acontecer os primeiros programas evangélicos na televisão. Esses programas eram locais, de curta duração e novamente, os adventistas saíram na frente com um programa primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro. Em meados da década de 1960, o missionário Robert McAlister da Igreja de Nova Vida iniciou seu programa na TV Tupi/Rio, sendo o primeiro pentecostal a ingressar na televisão. Outras iniciativas foram acontecendo ao longo da década de 1970, mas nada como a importação dos tele-evangelistas norte-americanos. Eram muitos os programas de TV evangélicos norte-americanos nesta década. Independente de denominações, tais programas se apoiavam no carisma de seus líderes que possuíam várias tendências teológicas e ideológicas. Essa iniciativa foi chamada de Igreja Eletrônica[9]. Programas como Alguém Ama Você de Rex Humbard, Clube 700 de Pat Robertson, e os cultos do Pastor Jimmy Swaggart eram transmitidos para todo território nacional.

Contudo, tais programas não surtiram o mesmo efeito que tinham nos Estados Unidos, ou seja, não tiveram aqui o poder de mobilização e pressão que exerciam entre os norte-americanos, entre outras coisas, porque eram produzidos em outra cultura, com outra perspectiva de vida diferente da dos brasileiros. Esses programas duraram até meados da década de 1980, quando a produção nacional de televisão cresceu e tornou-se independente da produção estrangeira.

Em 1989, quando várias denominações detinham concessões de rádios, a IURD adquiriu a Rede Record de Televisão se tornando a primeira denominação evangélica a ser proprietária de uma televisão com cobertura nacional. Os estudos supracitados enfatizam a repercussão deste fato.

1.1. Descrevendo a relação mídia e evangélicos

Freston[10] apresenta algumas justificativas para a relação entre os evangélicos e a mídia. Segundo o autor, os evangélicos têm por princípio religioso a divulgação de sua fé e isto deve acontecer por quaisquer meios de comunicação. Como consequência, sempre existe, entre os evangélicos, o desejo missionário do proselitismo que tem como característica principal a simplificação da mensagem para conversão de muitos. Além disso, com o crescimento dos evangélicos e a negação dos atrativos mundanos feita por eles, surgem condições culturais para uma socialização sectária através de discursos de variados tipos e produtos de bens simbólicos e materiais para dar sustentação à fé.

Alguns facilitadores contribuíram para o estreitamento da relação entre evangélicos e mídia nos últimos quarenta anos. Primeiro, em vinte anos a televisão se tornou o maior veículo de comunicação de massa do país; segundo, na década de 1970 os programas importados foram substituídos por programas nacionais em horário nobre; terceiro, a televisão brasileira nasceu aberta ao mercado; quarto, o aumento de evangélicos na população brasileira justificou uma mídia especializada voltada para este grupo; e, quinto, o fim do regime militar gerando uma abertura cultural-religiosa no país e abriram espaço para a entrada dos evangélicos[11].

O interesse crescente sobre a relação entre evangélicos e mídia se detém mais no uso que estes fazem da televisão. Com certeza, a televisão dá maior visibilidade a qualquer grupo. Porém, poucas são as denominações evangélicas[12] que possuem concessão de televisão. Para nós, estas formam o que chamamos de mídia denominacional (md), isto é, mídias que estão em função de alguma igreja específica, por exemplo, a IURD e a Internacional da Graça de Deus.

Há ainda as investidas de lideranças evangélicas nas emissoras comerciais com programas próprios, alguns auto-sustentáveis e outros que vivem de mantenedores alcançados pelo próprio programa. É o caso dos programas Vitória em Cristo do Pastor Silas Malafaia exibido na Rede TV aos sábados pela manhã, e outros com menos tempo na mesma emissora e em outras, exemplos que denominamos de Mídia de Lideranças Evangélicas (MLE), isto porque, apesar de todos os pastores e apresentadores que fazem esses programas estarem ligados a alguma denominação, exceto as que têm sua própria mídia, eles não fazem divulgação de suas denominações, mas de si mesmos e de suas igrejas.

Reconhecemos também os programas de igrejas autônomas[13]. Igrejas que têm se notabilizado por um grande aparato administrativo-empresarial e que investem muito em sua marca para conquistar fiéis. É o caso do Programa Diante do Trono, da Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte, também exibido na Rede TV no sábado de manhã e na Rede Super, canal 15 na parabólica. A estas iniciativas chamamos de Mídia de Igrejas Autônomas (MIA).

No entanto, como afirma o próprio Freston, o rádio domina a mídia evangélica ainda hoje, e os argumentos usados para esse domínio radiofônico são esclarecedores: "o custo mais acessível, a facilidade técnica da produção e a disponibilidade maior de horários" [14]. Ou seja, é ainda através do rádio que os evangélicos se inserem na comunicação de massa do Brasil.

O rádio é a mídia de maior alcance de público. Pelo tipo de linguagem utilizada, pelo seu poder de mobilização, divulgação de posições e informações, o rádio toma proporções consideráveis. No rádio é possível direcionar de forma mais clara o público alvo, diferentemente da televisão. De modo geral, a televisão busca um público sempre maior, o que resulta numa padronização da programação. Poucas televisões e poucos programas fogem ao padrão mínimo de aceitação geral. No rádio se específica com mais clareza a quem se quer atingir e qual o público alvo não de um programa, mas de toda uma empresa de comunicação.

Nosso interesse está naqueles grupos empresariais que, desvinculados de qualquer denominação, entram na mídia evangélica para concorrer com as outras agências de mídia e não para fazer proselitismo. Chamamos esse grupo de Mídia Empresarial-Religiosa (MER). São empresas de comunicação com estruturas bem definidas, com quadros de profissionais em marketing, comunicação, contabilidade, evidenciando uma racionalidade administrativa.[15] Nas MER's não há o compromisso de um discurso legitimado por alguma igreja, liderança carismática ou de qualquer denominanção. O direcionamento dessas MER's é para o indivíduo, para o cliente. Nessa situação a dicotomia fiel-cliente[16] não faz sentido porque as empresas de comunicação se interessam pelo cliente, seja ele fiel a uma igreja ou não. Essas MER's não se interessam pelo proselitismo, mas pela audiência, divulgação e venda de seus produtos, seus cantores, seus CDs.

Por outro lado, para que essas mídias sejam reconhecidas como religiosas elas fazem circular linguagens e símbolos comuns aos evangélicos. Por exemplo, nas rádios dessas mídias empresariais-religiosas a programação gira em torno do universo reconhecido pelos evangélicos, desde a música até as propagandas. Tudo tem a marca evangélica, ou seja, não há o interesse de particularizar a audiência se direcionando para alguma denominação ou igreja específica, mas a intenção é de generalizar o discurso fazendo uso de um vocabulário fácil de ser identificado pelos evangélicos em geral. Para entendermos esse conceito, utilizamos os estudos já citados e identificamos as duas rádios FM (Melodia FM 97,3 e El Shadai FM 93,3) que, a nosso ver, atuam no campo midiático com a dinâmica de uma MER.

A Rádio El Shadai FM 93,3 tem como proprietário Arolde de Oliveira, político, formado em engenharia de telecomunicações. Tendo trabalhado na Embratel, nos seus cinco mandatos de deputado federal se notabilizou pela participação na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informação da Câmara Federal. Membro de uma igreja batista, Oliveira faz parte da executiva do diretório regional do PFL no estado do Rio de Janeiro desde março de 1993. Ele afirma que o tipo de música tocada na sua rádio é uma escolha pensada em aspectos de mercado, pois a rádio foi adquirida para divulgar e vender os CDs da MK Publicitá (sua gravadora), e é exatamente o público de classe média seu alvo. Pesquisa desenvolvida por Fonseca (1997) mostra que, membros de igrejas renovadas, com perfil mais moderno e mais classe média são os maiores ouvintes desta rádio (51% contra 26% que ouvem a Melodia). A Rádio El Shadai possui uma programação mais musical, do tipo das FMs tradicionais, locutores com linguagem para jovem, e ritmos modernos que vão do rock ao funk. Segundo dados divulgados pela emissora, o ouvinte da 93,3 Fm fica ligado em média quatro horas e meia por dia, 60% dos quais não trocam de estação. Em 15 dias de programação a Rádio El Shadai atinge 7% dos ouvintes de FM, o que equivale a 62.000 ouvintes por minuto diariamente de 6h às 19h[17]. Segundo o ranking geral das fm's, em março de 2005, a Rádio El Shadai alcançou o quarto lugar de audiência, tendo a 41% de seus ouvintes na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.[18]

A Rádio Melodia 97,3 FM é outra empresa de grande penetração entre os evangélicos. Seu proprietário é o ex-deputado federal Francisco Silva (PL-RJ). Nas eleições de 1994 foi o campeão de votos: 220.000. Sua inserção no universo das igrejas evangélicas deu-se também a partir de uma opção comercial. Adquiriu a Rádio Melodia em 1986 e se tornou conhecido do grande público evangélico. Segundo Fonseca (1997) apenas 1% dos ouvintes tem nível de terceiro grau, sendo, portanto, uma rádio para os menos escolarizados. A programação tem muitas pregações ao longo do dia e as músicas seguem o padrão dos ritmos populares (baião, forró, lambada) com letras pentecostais, que falam em fogo, poder, unção, marcas da teologia pentecostal. Segundo o ranking geral de rádios FM do Rio de Janeiro, a Rádio Melodia, com seus 397.008 ouvintes exclusivos, tem o maior índice de fidelidade absoluta entre todas as FMs. Na disputa pela audiência, nos anos 2000 e 2001, esteve nas primeiras posições. Em novembro de 2001 alcançou o significativo índice de 1,79 de audiência, e no mês seguinte 1,80, o que representou o primeiro lugar. Em termos quantitativos, a Rádio Melodia contou com 151.133 ouvintes por minuto em novembro e, em dezembro 151.886. A audiência da Melodia é mais popular[19]. Em abril de 2005 o ranking geral das FMs apontou a Rádio Melodia em segundo lugar geral com 1,41% de audiência (ou seja 128.642 ouvintes). Em relação ao índice de fidelidade absoluta a Melodia esteve em primeiro lugar com 134.147 ouvintes exclusivos durante 30 dias de 05:00 horas até 00:00 hora[20]. A mera descrição dessas duas rádios nos coloca diante de uma estrutura já percebida pelos estudos que citamos, no entanto, nossa intenção é posicionar a MER na interseção dos campos econômico e religioso.

Se utilizarmos a noção bourdiana de campo[21] percebemos que os campos sociais transbordam, se interpenetram num jogo de força e dinâmica social. Particularmente o campo religioso e o campo econômico estabelecem relações de proximidade de tal forma que a linguagem religiosa se faz presente na economia tanto quanto as estratégias econômicas passam a ser utilizadas pelas religiões. Levando em conta, que as MER's não têm fiéis, mas clientes, poderíamos pensar num novo tipo de indivíduo religioso que busca os bens simbólicos e materiais produzidos por essas MER's. Por isso, entendemos ser necessário identificar, panoramicamente, a contemporaneidade, a sociedade pluralista e mercantil como condição sócio-cultural para todo esse empreendimento comunicacional.

2. Pluralismo, religião e mídia

Segundo Peter Berger, a religião passa por uma crise das suas estruturas de plausibilidade, isto é, com o fim da metafísica, da escatologia e o advento da modernidade, foi tirada da religião a função de sustentar e explicar a realidade. A crise da religião é um dos efeitos claros da secularização, "o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos" [22]. Com o fim da função da religião como ordenadora do cosmos, entramos numa situação de pluralismo onde todas as instituições podem explicar e fundamentar a realidade. O pluralismo é uma situação objetiva, real, de algo que já aconteceu dentro do indivíduo, em sua consciência. Neste sentido a adesão à religião passa a ser voluntária, dependendo da escolha e da preferência do indivíduo e, por isso, é uma religião limitada à vida privada sem, com isso, desempenhar a tarefa anteriormente clássica de "construir um mundo comum no âmbito do qual toda vida social recebe um significado último que obriga a todos" [23].

Para conseguir a adesão de fiéis-clientes, a religião tem agora que usar da lógica da economia de mercado, pois o pluralismo é uma situação de mercado. As tradições religiosas podem ou não ser assumidas como comodidades de consumo. Além disso, as tradições religiosas têm que disputar a "definição da realidade com rivais socialmente poderosos e legalmente tolerados" [24].

Na situação de pluralismo as tradições religiosas são agências de mercado, elas sofrem uma pressão por resultados que provoca a racionalização das estruturas criando assim as suas burocracias. A burocracia se expande para as relações sociais internas (administração) e as relações sociais externas (instituições religiosas com instituições sociais) Ou seja, todas as relações sociais são burocratizadas para minimizar gastos (tempo, dinheiro) e maximizar os resultados, para poder se relacionar com a sociedade, o Estado e outras instituições e para executar métodos de trabalhos conjuntos.

A montagem dessa administração religiosa exige formação e seleção de pessoal adequado, hábil, tanto funcional quanto psicologicamente. Isso faz com que as diferenças entre as diversas tradições religiosas sejam diminuídas. A liderança religiosa burocrática é semelhante ao burocrata de outras instituições: "ativista, pragmático, alheio a qualquer reflexão administrativamente irrelevante, hábil nas relações interpessoais, ‘dinâmico’ e conservador ao mesmo tempo". [25]

A semelhança administrativa entre as tradições religiosas provoca um ecumenismo como forma de ordenação do mercado. Nesse sentido, as tradições religiosas reconhecem afinidades mútuas e promovem ações conjuntas.

Isto leva a competição a um alto grau de racionalização, ou seja, as instituições religiosas lançam mão da pesquisa de mercado para implantação de novas frentes. Há, então, uma demarcação de espaços determinados, levando a cartelização, ou seja, surgem as incorporações e os remanescentes se organizam por acordos mútuos. [26]

O pluralismo atinge os conteúdos religiosos que são mudados pela preferência dos consumidores. Essas preferências acabam por formar os conteúdos da moda. O mundo é secularizado, assim como suas preferências, o que faz com que os produtos religiosos se adeqüem às consciências secularizadas. Por isso, a imposição doutrinária, ainda que exista, dificilmente aparece nítida na mídia religiosa. Há uma aparência objetiva, informativa sobre o real concreto sem que se faça distinção doutrinária.[27] O uso da tradição[28] para legitimar os novos agentes sociais e as novas maneiras de agir de uma instituição, além de ser uma reorganização identitária, mostra que as religiões conseguem se organizar para continuar existindo num mundo plural. Ou seja, se é verdade que o sentido de religião mudou, foi esvaziado, perdeu valor pela pulverização de lógicas religiosas, também é verdade que novas formas de religião apareceram e tentam se firmar acompanhando as mudanças da sociedade.[29]

Juntamente a esse ordenamento acontece também um recrudescimento das heranças confessionais. A ênfase na identidade é "parte do processo de racionalização da concorrência". A busca das heranças confessionais é um correlato estrutural do ecumenismo,[30] afinal quanto mais plural o mundo religioso for maior será a definição identitária dos variados grupos.

No pluralismo as estruturas de plausibilidade são multiplicadas, relativizadas e entram em concorrência. Os conteúdos religiosos passam a ser privados, individuais e passam a se referir à existência individual, a história de vida. A pluralidade faz com que os grupos religiosos busquem cada qual manter seu fragmento frente aos outros fragmentos do mundo. Assim, as possibilidades de legitimações são muito variadas sem serem seguras. O indivíduo escolhe a legitimação, se certifica dela e a legitima com dados existenciais para si mesmo.

Segundo Martino, as instituições estão em busca da legitimidade social a fim de se fazerem ver e divulgar suas ideologias e para tanto oferecem bens simbólicos e bens materiais para os consumidores.[31] As alterações ocorridas nas formas tradicionais das instituições religiosas é que criam a necessidade de uso da mídia para, ao mesmo tempo, se fazerem existir e criarem demandas de bens simbólicos religiosos.[32]

A religião responde às necessidades micro não mais às necessidades macro da sociedade, limitando sua relevância ao privado. Esse controle do indivíduo sobre a religião e seus conteúdos leva as tradições religiosas a uma padronização que facilita a cartelização e o ecumenismo, diminuindo, logicamente, a diferença entre as várias tradições religiosas. Essa padronização aproxima a religião, enquanto produtora de bens simbólicos, da indústria cultural[33], ou seja, ela também produz nos indivíduos efeitos psíquicos que isentam os bens simbólicos de serem vistos como mercadoria, mas também cria o desejo do consumo de tais bens simbólicos.[34]

A entrada na mídia pode favorecer a religião,

"[...] a mídia, que distribui informação, cultura, entretenimento, mas sempre sob critérios gerais de ‘beleza’ (atração formal dos produtos), assumiu na vida de todos um peso infinitamente maior do que em qualquer outra época do passado [...] a mídia produz consenso, instauração e intensificação de uma linguagem comum no social. Ela não é um meio para a massa, a serviço da massa; é o meio da massa, no sentido de que a constitui como tal, como esfera pública do consenso, dos gostos e dos sentimentos comuns".[35]

A mídia é o lugar da visibilidade atual, estar na mídia é existir, é ser comprado, é ditar normas, é atingir a consciência criando consenso. A mídia faz parte da massa de tal forma que só nela e nela mesma que se constitui a linguagem comum. É em busca disso que a religião entra na mídia para poder continuar produzindo sentido.

3. Considerações Finais

A perda de função da religião como ordenadora do cosmos e definidora de todas as situações abriu espaço necessário para o surgimento das MER's. Mesmo cientes de que as denominações, as igrejas autônomas e as lideranças evangélicas estejam no mercado religioso, as MER's, se colocando na interseção dos campos econômico e religioso se destacam na audiência pela eficiência com que articulam ditames empresariais com discurso religioso. As MER’s são fruto de uma situação de pluralismo e de uma sociedade de mercado.

O fato das rádios El Shadai e Melodia alcançarem maior audiência que as concorrentes denominacionais e autônomas que nem figuram entre as dez mais ouvidas, evidencia a colocação estratégica dessas MER's na interseção dos campos econômico e religioso. Quando, as MER's abrem espaços nas suas programações para as igrejas e denominações sem inserção independente na mídia anunciarem seus eventos, fazerem pequenas meditações, participarem de debates com suas lideranças, patrocinarem programas. Elas se colocam de maneira estrategicamente empresarial no campo religioso, puxando para si a audiência de todas essas igrejas e denominações. Entretanto, apesar de entendermos que a recepção da audiência sempre é improvável, ou seja, que todos esses fatos não garantem que os membros das igrejas e denominações agraciadas pelas MER's sejam ouvintes assíduos, os números recentes apresentados evidenciam que de alguma forma há uma considerável audiência dessas rádios que merece um estudo mais aprofundado.

Vale ressaltar que essas MER's estrategicamente disputam a audiência geral na região metropolitana do Rio de Janeiro e que não há nenhuma evidencia que comprove o interesse missionário dessas rádios, mas todos os indicadores apontam para a livre concorrência no segmento evangélico.

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Notas

[*] Graduado em Teologia e Filosofia, mestre e especialista em Ciência da Religião pela UFJF e pós-graduando em Sociologia Urbana pela UERJ. Agradeço as observações da profa. Karina Kosicki Bellotti.

[1] Definimos como evangélicas as igrejas protestantes e pentecostais de variados matizes.

[2] P. FRESTON, 1993; A. F. BRASIL, 1997; V. FIGUEREDO FILHO, 2002.

[3] Essas empresas de comunicação são reproduzidas em quase todo território nacional por pequenas rádios que formam uma rede de comunicação.

[4] Apesar de nosso interesse pelo rádio as empresas de comunicação que escolhemos possuem editora, gravadora de cd's, provedor de Internet e algumas incursões na televisão.

[5] Assim se denomina o movimento que nascido e desenvolvido no seio do fundamentalismo norte-americano em fins do século XIX flerta com a teologia liberal. O movimento não nega sua origem nem assume seu flerte, daí a discussão em torno dessa definição. Segundo Longuini Neto, todas as definições "favoráveis" a definição de evangelicalismo são apologéticas e não analíticas. P.FRESTON, Protestantes e política no Brasil…, pp. 27-63; L. LONGUINI NETO, O novo rosto da missão, pp. 17-31.

[6] L. K. A. SANTANA, Tensão atrás das "muralhas"…, pp. 65-72.

[7] Em números absolutos: o católicos caem de 95,2% (39.177.880) em 1940 para 73,8% (124.980.131) em 2000 enquanto os evangélicos crescem no mesmo período de 2,6% (1.074.857) para 15,45% (26.184.942). L. S. CAMPOS, Protestantismo brasileiro…pp.129.

[8] H. ASSMANN, A Igreja Eletrônica..., 1986; A. P. ORO, Religiões Pentecostais... in: Revista Eclesiástica Brasileira, 50, 198, junho, pp.304-334; P. FRESTON, op. cit., 1993; A. B. FONSECA, Evangélicos e mídia..., 1997.

[9] H. ASSMANN, op. cit. pp.16.

[10] P. FRESTON, op. cit. pp.135-136.

[11] Ibid. p.136.

[12] "A IURD tem a terceira maior rede de TV do país, a Rede Record, composta por cerca de 30 emissoras de televisão; a Igreja Assembléia de Deus opera uma rede com duas emissoras e dezenas de repetidoras no norte do país, a Rede Boas Novas; a Igreja Renascer em Cristo opera, em São Paulo, a Rede Gospel de Comunicação. Até mesmo o ex-nanico, R. R. Soares, cunhado de Edir Macedo, iniciador da Igreja Internacional da Graça de Deus, que tem uma exposição de 60 horas semanais na TV aberta, ensaia colocar no ar um canal pago, operado pela NET, a partir de São Paulo [e tem na Rede Bandeirantes para todo o Brasil em horário nobre o programa Show da Fé todas as noites]. A Universal, por sua vez, além de ser proprietária da Rede Record, usada mais para a disputa no campo das emissoras comerciais, usa também tempo no horário nobre da TV Gazeta, em todas as noites, assim como em outros canais operados pela NET." L. S. CAMPOS, Protestantismo brasileiro..., pp.125-126.

[13] Chamamos de igrejas autônomas aquelas que não estão vinculadas a nenhuma denominação, a nenhuma convenção e que se estruturam eclesiasticamente como empresas, inclusive abrindo franquias.

[14] Ibid. p.137.

[15] V. FIGUEIREDO FILHO, Entre o palanque e o púlpito..., pp.62-84.

[16] R. PRANDI, Religião paga..., pp.257-273; A. F. PIERUCCI, Liberdade de cultos..., op. cit. pp.275-285.

[17] A. B. FONSECA, op. cit. pp. 88-92; V. FIGUEREDO FILHO, op. cit, pp. 62-84.

[18] IBOPE, março-2005.

[19] A. B. FONSECA, op. cit. pp. 88-92; V. FIGUEREDO FILHO, op. cit. pp.62-84.

[20] IBOPE, abril-2005.

[21] P. BOURDIEU, A economia..., 1987.

[22] P. L. BERGER, O Dossel Sagrado..., p.119.

[23] Ibid. p.145.

[24] Ibid. p.149.

[25] Ibid. p.152.

[26] Ibid. p.155.

[27] L. M. S. MARTINO, Mídia e..., p.9.

[28] "[...] entendemos que a tradição é construída, social e historicamente, a partir das muitas possibilidades do presente e de dados fornecidos pela história. Não se pode construir uma tradição isenta do passado e da credibilidade social do presente. Neste sentido, a tradição é ao mesmo tempo uma continuidade com o passado e uma ruptura com ele. Por um lado, quando a construção da tradição faz uma releitura do passado, de alguma forma faz com que se estenda e se prolongue; por outro lado, quando se faz uma releitura ou reinterpretação do passado é porque elementos novos do momento presente estão contribuindo para uma nova construção da tradição. Isto é, a construção de uma tradição é sempre uma nova forma de se referir ao mesmo passado que a tradição anterior se referia".(L. K. A. SANTANA, op. cit. p.31).

[29] Ibid. pp.50-52.

[30] P. BERGER. op. cit. p.159.

[31] Ibid. pp.11-12

[32] Ibid. p.12.

[33] Estamos parcialmente de acordo com a tese adorniana de a indústria cultural produz sentimentos específicos no indivíduo para fazer dele um também um produto, no entanto, discordamos da visão de um indivíduo passivo e mero receptor das mensagens midiáticas. Para nós, o indivíduo também é produtor na sua relação com a mídia, além disso, compactuamos com Luhmann quando diz que a recepção da mensagem midiática é de improvável definição pode ou não se alcançar os objetivos pretendidos e ainda pode se alcançar objetivos contrários ou não esperados. Enfim, a relação indivíduo-mídia não é passiva, mas dinâmica e improvável. (T. W. ADORNO, & M. HORKEIMER, Dialética do..., 1995; N. LUHMANN, A improbabilidade..., 1996.).

[34] L. SANTAELLA, Comunicação e..., p.39.

[35] G. VATTIMO, O fim da..., p.44