Os últimos dias: os pentecostais e o imaginário do fim dos tempos[*]

Robson Franco Guimarães[**] []

Resumo

O pentecostalismo brasileiro, em suas diferentes expressões, vem sendo investigado, por diferentes pesquisadores, devido ao seu expressivo crescimento no número de adeptos e à sua visibilidade. Porém, sobre a relação entre pentecostalismo e escatologia somente tem sido apontada, indiretamente, sua importância nas origens do movimento pentecostal. Este estudo busca compreender a mentalidade dos pentecostais da Assembléia de Deus de Belo Horizonte (MG) relacionada ao imaginário do fim dos tempos, nas três últimas décadas do século passado, interligando uma análise da hermenêutica bíblica desse grupo relacionada à emergência dos últimos dias, com sua interpretação dos acontecimentos históricos à luz da perspectiva do fim da história e com a construção de uma identidade própria e diferenciadora de outros grupos cristãos, na qual a escatologia é um dos elementos centrais. Foram pesquisados depoimentos orais e fontes escritas.

Palavras-chave: Pentecostalismo, escatologia, identidade, imaginário

Abstract

A number of researchers have investigated aspects of Brazilian Pentecostalism motivated in part by its significant growth and visibility. However, when it comes to eschatology, researchers limit themselves to mentioning its importance in the origins of the Pentecostal movement. Little has been said about the ongoing relations between eschatology and Pentecostalism. This study investigates Pentecostal attitudes toward the End Times, exploring interrelations between (1) biblical hermeneutics concerning the emergence of the "last days"; (2) interpretations of historical events from the perspective of the "end of history"; and (3) the central role of eschatology in constructing an identity distinct from that of other Christian communities. The study focuses on beliefs within a specific church (the Assembly of God in Belo Horizonte, Minas Gerais) over the last three decades. It analyzes both oral interviews with members and doctrinal texts.

Keywords: Pentecostalism, escatology, identity, imaginary

Introdução

Domingo à noite. Culto no Templo Central da Assembléia de Deus em Belo Horizonte, MG. Depois de decorrido um longo período sem que participasse de uma reunião formal na igreja em que passei parte da minha infância e adolescência, retorno, agora, com o objetivo de iniciar minha pesquisa de campo e, também, rememorar alguns fatos e acontecimentos de anos anteriores que se perderam na minha memória.

Primeira surpresa: a manifestação cúltica da congregação é bastante semelhante àquela das décadas passadas. Segunda surpresa: é cantado pela congregação um hino que possuía uma estreita relação com meu objeto de pesquisa:

Quando lá do céu descendo para os Seus Jesus voltar,
E o clarim de Deus a todos proclamar,
Que chegou o grande dia do triunfar do meu Rei,
Eu, por Sua imensa graça lá estarei.

Coro

Quando enfim, chegar o dia
Do triunfar do meu Rei,
Quando enfim, chegar o dia,
Pela graça de Jesus eu lá estarei!

Nesse dia, quando os mortos hão de a voz de Cristo ouvir,
E dos seus sepulcros hão de ressurgir,
Os remidos reunidos, logo aclamarão seu Rei,
E, por Sua imensa graça lá estarei.

Pelo mundo, rejeitado foi, Jesus, meu Salvador.
Desprezaram, insultaram meu Senhor,
Mas, faustoso, vem o dia do triunfar do meu Rei,
E, por Sua imensa graça lá estarei.

Em mim mesmo, nada tenho em que possa confiar,
Mas Jesus morreu na cruz prá me salvar;
Tão somente nEle espero, sim e sempre esperarei,
Pois, por Sua imensa graça lá estarei.[1]

O fato de que este cântico ainda estivesse sendo cantado com vigor pela comunidade apontava para certa perplexidade que viria das entrevistas que seriam posteriormente realizadas.

Esta pesquisa se iniciou com uma suspeita: a mentalidade escatológica dos pentecostais da Assembléia de Deus[2] e particularmente da Assembléia de Deus em Belo Horizonte teria conhecido seu ápice entre os anos 80 e início dos 90. Por quê? Politicamente, o Brasil superava o apogeu da ditadura militar lentamente em direção à distensão do regime autoritário e à democratização, passando da perseguição aos comunistas e aos opositores do regime para o retorno dos perseguidos através da anistia e à abertura política. Por outro, o debate em torno do perigo da destruição do mundo através de uma hecatombe nuclear tornava-se mais acessível ao homem comum, principalmente através da popularização da mídia.[3] A televisão começava seu ritmo espantoso de crescimento em direção a todas as classes sociais brasileiras, a partir de fins dos anos 60 e início dos 70, tornando mais fácil o acesso à informação da população, apesar da tentativa de controle dos meios de comunicação através da censura.[4] Dentro do ambiente pentecostal, os livros e as matérias jornalísticas de conteúdo apocalíptico reproduziam, com certas peculiaridades, o imaginário da sociedade brasileira. Depois deste período, esta mentalidade conheceu uma fase de latência entre aqueles pentecostais que viveram estes anos, se estendendo até os dias atuais, conforme será verificado mais adiante.

Primeira definição necessária. O que entendemos por mentalidade? Segundo Le Goff, o substantivo mentalidades agrupa as noções de grupo de crenças, de práticas, de sistemas de valores, de comportamento, de atitudes, de idéias, de costumes, de pensares, de sentimentos.[5]

Segunda definição necessária. O que entendemos por escatologia? Para Moltmann:

Na realidade escatologia é idêntica a doutrina da esperança cristã, que abrange tanto aquilo que se espera, como o ato de esperar, suscitado por esse objeto. O Cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só a moda de apêndice (...) De fato, a fé cristã vive da Ressurreição do Cristo crucificado e se estende em direção às promessas do retorno universal e glorioso de Cristo.[6]

A definição proposta por Moltmann se insurge contra uma noção puramente dogmática da escatologia cristã e se aproxima da noção de espera, da esperança de algo novo em oposição a uma realidade presente. É espera por Cristo, pelo Cristo ressuscitado, situada no porvir, mas que opera mudança no cotidiano dos cristãos e na sua missão e ação salvífica e transformadora do status quo. Portanto, mentalidade escatológica pode ser definida como uma preocupação com o porvir vivenciada pelo fiel no presente, que envolve suas crenças, sentimentos e anseios e que se traduz numa linguagem através da qual espera-se pelo retorno iminente de Cristo.

O pentecostalismo no Brasil é um fenômeno religioso que tem seu nascimento nos primeiros anos do século XX. Em seu início, o movimento pentecostal brasileiro possuía uma forte ligação com seu similar norte-americano, devido ao fato que os primeiros missionários que aqui aportaram, apesar da nacionalidade européia, eram imigrantes naquele país. Ambos pentecostalismos se tornaram independentes um do outro, guardando suas próprias especificidades. Porém, é claro que houve influências provenientes dos primeiros missionários suecos que chegaram ao Brasil e que possuíam uma cosmovisão forjada no meio pentecostal de Chicago, EUA.

Dayton[7], ao estudar a pré-história do movimento pentecostal nos EUA, localizando-o no século XIX, efetua uma busca pelas suas raízes teológicas. Ele sintetiza em quatro afirmações cristológicas a essência de uma igreja que se diz pentecostal: Cristo como Salvador, Cristo como batizador com o Espírito Santo, Cristo como aquele que cura enfermidades e Cristo como Rei que virá outra vez.

Do ponto de vista da história nascente do pentecostalismo norte-americano, a escatologia seria um dos traços essenciais? Consideraremos dois protagonistas históricos a fim de iluminar esta questão. Charles Parham é considerado o pioneiro do pentecostalismo nos EUA. Através de sua direção, estudantes da Escola Bíblica de Betel, em Topeka, Kansas, foram ensinados a buscarem pela verdadeira evidência do recebimento do Espírito Santo através do estudo do capítulo segundo do livro de Atos dos Apóstolos. Uma das alunas, Agnes Ozman, em 01 de janeiro de 1901, se tornou a primeira a falar em línguas estranhas, experimentando, segundo ele, a evidência inicial do derramamento do Espírito Santo da mesma forma que os apóstolos no dia de Pentecostes. Nos dias posteriores a esse acontecimento, o próprio Parham e outros estudantes passaram pela mesma experiência. Posteriormente, ele iniciou a publicação de um periódico quinzenal, denominado Apostolic Faith, que se tornou o principal veículo de difusão de seus ensinamentos. "Ele contribuiu para a definição das doutrinas básicas que posteriormente definiram o movimento pentecostal: conversão pessoal, santificação, cura divina, pré-milenismo e retorno escatológico do poder do Espírito Santo evidenciado pela glossolalia" (tradução nossa).[8]

O afro-americano William Seymour também é considerado um dos mais importantes líderes da primeira geração pentecostal. Após ouvir Charles Parham em Houston, Texas, ele recebeu um convite para pastorear uma pequena comunidade em Los Angeles. Teve um papel destacado no movimento conhecido como Azusa Street Mission. Ele e seus discípulos contribuiram para dar um caráter mundial ao nascente pentecostalismo, visto que este movimento se tornou um grande centro de difusão da mensagem pentecostal.

O significado de Azusa foi centrifugal - aqueles que eram tocados por ele levavam suas experiências para outros lugares e tocavam a vida de outras pessoas. Reunidos pela crença e pelos conceitos teológicos de salvação pessoal, de santidade, de cura divina, do batismo com o Espírito Santo como autoridade para o ministério, e pela expectativa do iminente retorno de Jesus Cristo, eram amplamente providos de uma grande motivação para dar ao despertamento verificado entre eles um impacto de longo alcance (tradução nossa).[9]

Estes movimentos relacionavam escatologia e pneumatologia. A crença na atualidade da experiência do derramamento do Espírito Santo, à semelhança dos tempos apostólicos, sinalizava que os últimos dias haviam chegado. E esta dupla percepção contribuiu para que um sentido de urgência se acercasse dos primeiros pentecostais, razão porque um intenso movimento missionário se alastrou pelo próprio EUA e pelo mundo, nas duas primeiras décadas do século XX.

A escatologia também poderia ser considerada um tema importante para o pentecostalismo brasileiro? Alencar, ao estudar em sua dissertação de mestrado a origem e a implantação da Assembléia de Deus no Brasil, de 1911 até 1946, anota que "A AD [Assembléia de Deus] tem em seu ethos uma natureza de ‘aversão ao mundo’ que se justifica por razões internas: sua escatologia iminente não lhe dá tempo para pensar no presente"(grifo do autor).[10] Em outra passagem, após analisar as edições do jornal Boa Semente - primeira publicação oficial da igreja -, entre os anos de 1919 a 1929, diz: "Há uma forte convicção da verdade (no caso, doutrina pentecostal) aliada a um senso de urgência (escatologia) de que se precisa fazer o máximo no menor tempo possível".[11] Freston faz uma referência indireta ao discurso apocalíptico ao afirmar que

O auge da presença sueca foi nos anos 30, com cerca de 20 famílias missionárias. Depois de 1950, o fluxo praticamente cessou [...] Suecos ocuparam a presidência da Convenção Geral até 1951. Quando a último leva de missionários chegava ao Brasil, a sociedade sueca se transformava numa próspera social-democracia e, depois, na vitrine da sociedade permissiva. O pentecostalismo sueco, por sua vez, adquiria maior respeitabilidade, moderando seu discurso apocalíptico e estabelecendo uma série de instituições próprias. Mas essa nova fase do pentecostalismo sueco não deixou marcas na AD do Brasil.[12]

Souza, no primeiro livro publicado no Brasil sobre os pentecostais, afirma que "Mencionada pelos líderes e na literatura doutrinária, a crença a respeito da segunda vinda de Cristo não constitui para os fiéis, como pudemos observar, motivo de interesse comparável ao encerrado nas principais doutrinas do Pentecostalismo [batismo do Espírito Santo e dons espirituais, citadas anteriormente]."[13] Estes três exemplos ilustram a dificuldade de se trabalhar com esta temática da escatologia dentro do pentecostalismo brasileiro, visto que não houve, até o presente, um aprofundamento por parte dos pesquisadores neste tema específico.

Nossa investigação transcorreu em duas frentes de trabalho: a primeira analisou as fontes escritas produzidas pela teologia oficial da igreja, privilegiando as matérias publicadas pelo jornal Mensageiro da Paz.[14] A segunda constou das entrevistas efetuadas com alguns membros da Assembléia de Deus em Belo Horizonte.[15] Por que fazer uma relação entre a documentação oficial e as entrevistas efetuadas diretamente com os pentecostais? Em primeiro lugar, no início dos anos 80, o Mensageiro da Paz começou a ter uma penetração muito grande em algumas igrejas locais, resultado de uma política de expansão da distribuição, por parte da direção do jornal, realizando uma parceria com os líderes das igrejas e incentivando a aquisição, com preços reduzidos. Lançou-se, então, uma campanha nacional de ampliação do público leitor e da base de assinantes. A igreja de Belo Horizonte engajou-se prontamente. Foram adquiridos por mês, inicialmente, 1.000 exemplares de maio/1981 a fevereiro/1982; 2.000 exemplares de março a junho/1982; 4.000 exemplares de julho/1982 a maio/1983; 5.000 exemplares de junho a setembro/1983; 6.000 exemplares de outubro/1983 a setembro/1984; 4.000 exemplares de outubro/1984 a março/1989.[16] Os jornais eram vendidos em uma livraria localizada na entrada do templo, por ocasião dos cultos regulares - reuniões de obreiros, de oração, de doutrina, de professores da Escola Bíblica Dominical, Ceia do Senhor - , por intermédio de oficiais da igreja. Conclui-se, portanto, que, nestes anos, as matérias jornalísticas tiveram algum tipo de penetração entre os membros da comunidade, alcançando, pelo menos, seus membros letrados. Por isto nossa opção por estes dois tipos de fontes, com a expectativa de que, através da conjugação de ambas, seria possível aproximarmos melhor de uma mentalidade escatológica pentecostal, nem puramente clerical, nem plenamente laica.

1. Hermenêutica bíblica

Uma das primeiras perguntas que propusemos aos entrevistados versava sobre a contemporaneidade dos últimos dias: O/A senhor/a considera que estamos vivendo os últimos dias? O objetivo era avaliar até que ponto esta expressão últimos dias era comum à compreensão dos mesmos, independentemente da necessidade de definição de conceitos. Abaixo seguem as respostas:

Considero. Eu abro o jornal e vejo essa guerra que todos os dias você vê no jornal, falando de mortes, de Israel, de Jerusalém... Realmente você vê que está se cumprindo a palavra de Deus. Estamos nos últimos dias (FB, 49 anos, casada, bancária).
Sim, eu creio. Porque, como nos mostra a Palavra de Deus, os sinais ... Tudo nos mostra que [Cristo] realmente está voltando dado os acontecimentos, pestes, fomes, guerras e tantas outras coisas. Até mesmo os sinais, vamos dizer assim, da própria natureza, nos mostram que a natureza está muito alterada (JS, 52 anos, casado, comerciário).
Todo indício da Palavra de Deus fala que nós estamos nos últimos dias porque que vem acontecendo apostasias, rumores de guerras, terremotos, o adversário trabalhando com muita fúria na vida dos casais, nos lares, nos jovens. Tudo que acontece de ruim prediz a vinda do Senhor (MM, 56 anos, solteira, vendedora).
Pelo cumprimento das profecias de Jesus, capítulo 24 e 25 de Mateus, nós estamos passando por fases que ele mesmo citou, como guerras, rumores de guerra, terremotos, doenças que surgiram e estão surgindo, angústia das nações, pois todas as nações estão angustiadas com esse terrorismo que está surgindo ultimamente (CG, 83 anos, casado, funcionário público aposentado).

É importante verificar que, dos dez entrevistados, nove afirmaram que estaríamos vivendo os últimos dias. E qual seria a explicação disto? São duas, basicamente: primeira, de que a palavra de Deus estaria tendo seu cumprimento; segunda, alguns sinais que estão ocorrendo na atualidade apontariam para o final dos tempos. Existe, entre eles, uma comum interpretação da Bíblia que acredita que seu teor é contemporâneo. Quando é dito que estão se cumprindo as Escrituras, uma compreensão singular de um texto histórico emerge. Considera-se a Bíblia uma série de textos escritos para uma determinada época, ou na interpretação dos pentecostais, um único texto escrito. Este possui uma espécie de transcendência que o faz superar as limitações geográficas, históricas, sociológicas, culturais e políticas de sua produção, e o transpõe diretamente para a realidade atual. Esta escritura possui aplicação no hoje e agora. Pressupõe-se que ao ser escrita, ela visava e visualizava o tempo atual em que todos estão vivendo, antevendo uma realidade basicamente por ser sempre contemporânea à mesma.

Uma segunda pergunta procurava identificar, indiretamente, o conceito de últimos dias, relacionando a experiência do derramamento do Espírito Santo, considerada o grande diferencial dos pentecostais em relação a outros movimentos cristãos, e a crença no retorno de Cristo: O/A senhor/a percebe alguma relação entre o derramamento do Espírito e o retorno de Cristo?

Esta é a promessa de Joel: "Naqueles dias derramarei do meu Espírito sobre toda a carne". É desejo de Deus que todos cheguem ao pleno conhecimento da verdade e que todos busquem com ansiedade e com vontade o derramamento do Espírito Santo [...] O derramamento do Espírito na igreja é primordial e isto está intimamente ligado a vontade de Deus de enviar Jesus para buscar a sua igreja (LS, 57 anos, viúva, enfermeira).
Claro que sim. A Bíblia diz, o profeta Joel diz que nos últimos dias, Deus derramaria do Espírito dele sobre toda a carne. Eu vejo uma intimidade muito grande entre o derramamento do Espírito Santo e o retorno de Cristo (MS, 40 anos, casado, comerciante).

Os últimos dias não seriam somente tempos catastróficos. Seriam caracterizados, também, pelo derramamento do Espírito Santo. A lembrança que muitos têm da narrativa do profeta Joel se refere à versão do discurso descrita pelo apóstolo Pedro no livro de Atos dos Apóstolos (2:17-21), por ocasião do derramamento do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus. Este texto é caro aos pentecostais:

E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra; sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.

Novamente se percebe uma hermenêutica do texto bíblico no qual se conjuga passado e presente. E o mais importante para nós, neste momento, é a identificação dos últimos dias com o evento de Pentecostes e com o retorno de Cristo. Por quê? Em primeiro lugar, o derramamento do Espírito Santo ou o batismo com o Espírito Santo é, como dissemos anteriormente, uma das claras marcas que identificam o pentecostal. Em segundo lugar, este importante signo está intimamente ligado à volta de Cristo e aos últimos dias.

Para o Mensageiro da Paz, o tempo atual também aponta para o fim:

Nunca esqueçamos que, pela primeira vez na história, o Apocalipse está ao alcance do homem. A insânia da violência coletiva pode levar à extinção do escrúpulo final diante das guerras. Que a família, as escolas, as igrejas, todas as instituições ajam com urgência. Começamos a viver a undécima hora, como diz o Evangelho.[17]
O profeta Daniel fala de ‘tempos de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação’, e Jesus afirma: ‘E se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria.’ Dn 12-1, Mt 24-22. Por mais pavorosas que tenham sido as guerras da história, nenhuma logrou sequer ameaçar de extermínio a população da Terra. Nem mesmo as duas guerras mundiais. Por isto muitos escarneciam das citadas palavras bíblicas, considerando-as uma prova da impossibilidade da inspiração da Escritura Sagrada. Mas a ciência da guerra desenvolveu-se a tal ponto que hoje poucas pessoas duvidam de que possa ocorrer um suicídio mundial.[18]

2. Interpretação histórica

Diversos acontecimentos contemporâneos indicados pelos colaboradores e listados a seguir indicam que os últimos dias chegaram. Estes eventos são considerados sinais, pistas, que demonstrariam que o fim dos tempos estaria muito próximo. Busca-se uma inteligibilidade nos fatos, uma causalidade maior, o descobrimento da finalidade dos mesmos. Quais seriam estes sinais? Guerras, rumores de guerras, angústia das nações, terrorismo, nação contra nação, reino contra reino; acontecimentos ligados a Israel e a Jerusalém. Em segundo lugar, doenças, pestes, fome. Em terceiro lugar, problemas ecológicos, tremores de terra, furacões, terremotos. Quarto sinal: o despertamento religioso (evangélico) e a evangelização mundial. Quinto: a propagação do misticismo. Sexto: o ataque às famílias por Satanás, os casamentos e descasamentos, Satanás trabalhando com fúria na vida dos casais, dos lares e dos jovens e a idolatria sexual, a depravação, o adultério e a promiscuidade de pastores. Sétimo: a teologia da prosperidade, a idolatria, os falsos profetas e falsos ensinamentos, as novas seitas, os falsos cristos, o movimento carismático, o engano religioso, as apostasias, o G-12[19], heresias. Oitavo: a descrença na existência de Satanás, e a ação deste com "o sapatinho de algodão".[20] Nono: o aumento no número de mortes e de assassinatos, a violência, a iniquidade. Décimo: a corrupção, a inversão dos valores morais. Décimo-primeiro: o aumento no uso de drogas e de bebidas. Décimo-segundo: relações sociais deterioradas: pai contra filho, filho contra pai, irmão contra irmão e o esfriamento do amor fraternal. Décimo-terceiro: a cobiça pelo dinheiro. Décimo-quarto: a política dentro da igreja, a igreja se conformando ao mundo (relativismo moral), a igreja sendo aceita pela sociedade.[21]

Os sinais apontados pelos entrevistados fazem uma conjugação de citações literais de passagens de textos bíblicos, associando-as aos acontecimentos contemporâneos, "confundindo" os dois momentos. Há uma apreensão dos eventos que circundam a sociedade moderna, facilitada, com certeza, pela multiplicação dos meios de comunicação. Esses acontecimentos são lidos a partir da ótica da interpretação bíblica.

E qual é a hermenêutica bíblica e a interpretação da história que provém do Mensageiro da Paz?

Na era apostólica, teve lugar o início do derramamento do Espírito Santo. Foi, portanto, o cumprimento da promessa mas não o fim [...]A promessa do batismo com o Espírito Santo é para a Igreja dos nossos dias [...] Estamos vivendo à plena época dos últimos dias, portanto, à época do derramamento e do batismo com o Espírito Santo (grifo do autor).[22]
Haverá uma tremenda mudança na presente ordem das coisas. Jesus também indicou que os sinais de sua vinda seriam guerras, fomes, pestes e terremotos em vários lugares. Em nossos dias esses terremotos estão ocorrendo com muita violência e muita freqüência, prenunciando a vinda iminente de Jesus, única conclusão lógica que podemos tirar desses acontecimentos tão trágicos.[23]

A interpretação das Escrituras que o Mensageiro da Paz realiza acerca dos últimos dias é bastante semelhante àquela majoritária entre os entrevistados.

Uma terceira pergunta tentaria identificar, no nível do desejo, a espera pelo retorno de Cristo. As anteriores haviam se firmado sobre conceitos. Esta adentraria o universo pessoal do entrevistado, ou seja, seu sentimento íntimo e individual, sua intenção em aceitar uma ruptura com sua história cotidiana e sua inserção em uma nova ordem de coisas: O/A senhor/a deseja que Cristo volte rapidamente?

Eu desejo que Cristo volte rapidamente porque o mundo está muito difícil de se viver nele. É um desejo meu como humano mas eu tenho que entender que aqueles que não conhecem também precisam de Jesus. Eu gostaria muito de ser arrebatado sem experimentar a morte física, mas se isto não for possível, eu quero estar com Cristo de qualquer jeito (JS).
Eu desejo que Cristo volte rapidamente porque eu quero ver meu irmão de volta. Eu quero vê-lo de volta porque isso é a coroação da minha esperança. Eu tenho esperança. O que eu digo pra os meus filhos, o que eu digo para todas as pessoas, o que eu vivo sonhando, o que eu vivo cantando, eu quero sentir isso [...] No dia em que eu sentir isso, eu vou explodir. Para mim vai ser uma verdadeira explosão no dia em que isso acontecer para mim (SS, 57 anos, casado, funcionário público municipal).
Quando eu estou muito magoada, ou muito triste, ou quando vejo essas coisas terríveis que estão acontecendo: Oh! Jesus podia voltar! Está tão ruim viver neste mundo! Depois eu penso: E os que não são salvos? Aí eu desejo com um egoísmo meu. Eu falo: Eu sou egoísta. Eu querendo me safar. E os outros? E meus parentes e muitos que não são crentes, que não conhecem a Cristo? Tem hora que eu desejo que ele volte (IM, 74 anos, casada, dona de casa).

O fim dos tempos desperta sentimentos que, do ponto de vista dos próprios pentecostais, reafirmam suas crenças e seus valores. A emoção está alinhada com a esperança.

A documentação escrita aborda estes mesmos temas. Relacionamos, a seguir, algumas manchetes do jornal Mensageiro da Paz, de periodicidade mensal a partir da edição de abril de 1981 até agosto de 1984: Um aviso de Jesus: Eis que venho sem demora; Nave Colúmbia: sinal dos tempos; Violência amedontra a sociedade; Ameaça ecumênica; MCE: plataforma do Anticristo; No rastro do 666; Armagedom: última batalha da história; Satanás será amarrado por mil anos; A um passo da Grande Tribulação; Israel, sinal do retorno de Cristo; A marca do Anticristo; Bomba atômica: precursora do Armagedom; Precursores do Anticristo; Grande terremoto abalará a Terra; Anticristo ameaça o mundo; Chuvas, enchentes e vendavais: efeitos do alinhamento dos planetas?; Num minuto tudo pode explodir; Mil anos de paz sobre a Terra?; Confirmado: catástrofes climáticas assolarão a humanidade; Guerra nuclear: pesadelo ou realidade?; Podemos identificar o Anticristo?; Drogas: a Peste Negra está de volta. De um total de quarenta edições do jornal, em cerca de três anos, vinte e três manchetes versavam sobre temas apocalípticos. Nas edições posteriores, verificamos que algumas manchetes com temática apocalíptica surgem de modo descontínuo: A maldição chamada AIDS[24]; A sangrenta paz do Natal[25]; Sinal na testa é o mais novo sistema de identificação[26]; Por trás do Muro de Berlim[27]; Golfo Pérsico: palco do Armagedom?[28]. Em síntese, os conteúdos das reportagens apontam uma expectação pelo fim dos tempos. Alguns signos que confirmariam a chegada da época derradeira da história da humanidade seriam o avanço científico, o aumento da violência, o ecumenismo religioso, a fundação do moderno Estado de Israel, a previsível guerra atômica, as catástrofes naturais, a formação de blocos econômicos entre as nações e, enfim, a convicção da presença atual da ação do Anticristo na sociedade.

Quais as conclusões que podem ser tiradas dessa pesquisa do jornal oficial das Assembléias de Deus? Primeira, que os artigos sobre escatologia conheceram um boom no período referente ao início de 1981 até fins de 1985. Segunda, que antes e posteriormente a esse período, ou seja, nas edições desde o início de 1975 até o final de 1980 e de 1986 até o fim de 1991, o assunto foi tratado, de forma regular, em artigos internos do próprio jornal. Portanto, o jornal possuiu, por certo período, uma linha editorial própria que cria e tentava fazer crer que a iminência de Cristo era chegada, fato este que coincide com um período de grande penetração do mesmo na comunidade local de Belo Horizonte.

3. Identidade pentecostal

O que dizem os próprios pentecostais acerca de si mesmos? À questão O que significa para o/a senhor/a ser pentecostal?, obtivemos as seguintes respostas:

Ser pentecostal para mim é crer e ser batizado com o Espírito Santo, viver a vida sob a direção do Espírito Santo (ES, 70 anos, casado, encarregado de eletricista).
É o cumprimento da promessa do avivamento que nasceu em Jerusalém em cumprimento do profeta Joel, capítulo 2, quando eles foram batizados com o Espírito Santo. Todos os evangelhos falavam e ensinavam que é necessário ser batizado com o Espírito Santo (CG).
Seria ser realmente revestido de poder, começando com a experiência de Atos 2. No dia de Pentecostes, eles foram revestidos no Espírito Santo. Ser pentecostal é ser revestida do poder de Deus e que inclui falar em línguas e outras coisas (EB, 57 anos, viúva, enfermeira).
Ser pentecostal, pra mim, sem milagre, sem novidade, é ser um sujeito com S maiúsculo, que acredita no poder do Espírito Santo, na renovação espiritual diária e constante, em uma experiência muito forte com o Espírito Santo. Ser pentecostal é isso. Não tem segredo, não (MS).
É uma experiência muito boa porque, conforme a Palavra de Deus, eu creio naquele Pentecostes que foi inaugurado em Jerusalém. Eu creio nessa doutrina do Pentecostes, do batismo com o Espírito Santo, em que a gente é cheio do Espírito Santo (JS).
Ser pentecostal significa crer em todos os dons espirituais que a Bíblia relata - o batismo com o Espírito Santo, o falar em línguas, a profecia, a revelação, os dons de curar - todos os noves dons que estão dentro da palavra de Deus que se cumpre, porque tem se cumprido na minha vida. No ano passado, eu recebi três curas maravilhosas [...] Tudo isso foram promessas confirmadas na minha vida. O Deus que eu sirvo, que nós servimos e que as outras denominações também servem, é esse Deus que promete, que fala, que revela, que impulsiona e que faz maravilhas. Isso, para mim, é ser pentecostal (MM).
Ser pentecostal pra mim é ser a melhor coisa que eu poderia ser sendo um ser humano e sendo um cristão. É estar realmente bem equipado para fazer toda e qualquer obra na casa de Deus, estar bem capacitado para viver, para fazer tudo no trabalho e ter a orientação de Deus em todos os sentidos da vida (SS).

Para os pentecostais, sua identidade - pessoal e coletiva - é tanto afirmativa quanto negativa. Enquanto positiva, ela está relacionada ao relacionamento místico com o Espírito Santo, aos benefícios que esta experiência com o Espírito traz para a vida diária: os dons miraculosos, as curas, a direção de Deus nas escolhas pessoais e profissionais, o estímulo ao melhor desempenho da sua vocação. Ser pentecostal equivale a ser um escolhido e a ser plenamente cristão, de forma semelhante aos apóstolos, visto que a experiência pentecostal teria a capacidade de construir uma ponte entre essas duas épocas. A busca pela legitimação da identidade pentecostal no passado aponta também para o presente, ao atualizar uma experiência considerada paradigmática.

Paradoxalmente, existe uma identidade de negação, que se pretende diferenciadora em relação ao outro. Ao serem perguntados Por que o/a senhor/a resolveu fazer parte das Assembléias de Deus?, os entrevistados disseram:

Eu e minha esposa nos casamos na Igreja Presbiteriana. Naquela época as outras igrejas não aceitavam muito a doutrina pentecostal. Sendo a minha sogra convertida ao pentecostalismo, ela me convenceu que a doutrina mais certa era a doutrina pentecostal, por causa do batismo com o Espírito Santo. A igreja Presbiteriana, onde eu casei, não ensinava essa doutrina, então eu decidi ir para a Assembléia de Deus (CG).
Eu sempre fui criada na Assembléia e achava que era a única igreja que era uma igreja certa, que era aquela igreja que eu deveria estar. Depois eu fui conhecendo outras igrejas, mas, apesar de saber que em toda igreja há pessoas salvas e sinceras que servem a Deus, eu optei por ela. Eu acho que a gente deve ser um crente fiel, sincero, independentemente da igreja que a gente pertença. Tem muita coisa na Assembléia que eu gosto, que eu concordo, que são bíblicas. A forma como nós ensinamos e aceitamos o batismo com o Espírito Santo, embora eu saiba que hoje outras igrejas também fazem isso e ensinam da mesma maneira. Alguns princípios, que seriam princípios e não doutrinas. Eu ainda sou um pouco conservadora, então eu prefiro ficar com eles (EB).
Mamãe já era crente há muitos anos e a gente freqüentava a igreja presbiteriana. O papai era presbítero da igreja presbiteriana. Depois de casada, quando eu tive o primeiro filho, é que eu e meu marido fomos para a Assembléia de Deus. Eu já sabia sobre o batismo com o Espírito Santo. Na presbiteriana não se falava nisso. Eu já acreditava e achava que se não cresse no batismo com o Espírito Santo não era crente. Eu e o meu marido aceitamos juntos. Ele primeiro do que eu (IM).
Desde que eu nasci, meu pai já era pastor da Assembléia de Deus. Eu me identifiquei muito com a Assembléia de Deus primeiramente por causa dos procedimentos do meu pai, um homem dedicado, um homem que seguia o modo, os princípios, os preceitos e a doutrina da Assembléia de Deus. Foi muito admirada a doutrina da Assembléia de Deus. Muitos costumam até dizer: "Ah! A doutrina da Assembléia de Deus é pesada demais. Para andar na Assembléia de Deus tem que ser realmente um crente muito fervoroso, muito correto, senão não anda." Eu acho que Deus não tem meio termo. Para ser realmente um cristão para Deus, tem que ser totalmente, ou ser ou não ser (SS).

Concomitante às explicações sociológicas e antropológicas[29] que os localizam nas categorias de pobres, ingênuos, heréticos, agentes duplos, místicos, pobres com dignidade, "filhos do Rei", fundamentalistas modernos, e da maior ou menor importância das mesmas para eles, os pentecostais se consideram batizados com o Espírito Santo, novas criaturas, pessoas renovadas que, em sua relação com os outros, possuem traços diferenciados que os singularizam e produzem uma auto-imagem particular. Se consideram cristãos à semelhança de outros evangélicos, porém são crentes quentes em contraposição aos frios. Foram contemplados com o dom de falar em outras línguas, expressão de sua proximidade e conhecimento de um deus que os escolheu em meio a um universo de pessoas que se vangloria de sua posição social ou de seu conhecimento intelectual, mas que não receberam o mesmo carisma. O derramamento do Espírito Santo iniciado entre os apóstolos de Cristo e que, segundo eles, desapareceu da história da igreja cristã devido ao desvio do catolicismo romano na era pós-constantiniana, é agora retomado na experiência pentecostal.

Considerações finais

De início, demonstramos como a escatologia foi importante nos primórdios do movimento pentecostal, nos Estados Unidos e no Brasil. Depois, mostramos como a apropriação, pelos pentecostais, da experiência religiosa do batismo com o Espírito Santo esteve intimamente ligada à convicção da realidade da emergência dos últimos dias. Em seguida, evidenciamos a permanência dessa mesma concepção tanto no jornal oficial das Assembléias de Des quanto entre os nossos entrevistados, no período referente às três últimas décadas do século passado, ao articularmos sua hermenêutica de determinadas passagens bíblicas referentes ao fim dos tempos com uma peculiar interpretação dos acontecimentos históricos contemporâneos mediada pelas Escrituras. Por fim, verificamos que os próprios pentecostais consideravam, a si mesmos, pessoas escolhidas por Deus, que experimentaram o cumprimento da promessa do batismo com o Espírito Santo, destinada a todos os crentes nos últimos dias, ao manifestarem a glossolalia, sendo, portanto, participantes da ação de Deus na história;

Estamos convictos de que a amostragem dos entrevistados não foi quantitativa ou estatisticamente significativa para que sejam feitas generalizações. Todavia, acreditamos que podem ser oferecidos algumas pistas importantes que até hoje não foram consideradas pela bibliografia sobre o pentecostalismo no Brasil e que deverão ser mais bem testadas em novas pesquisas que contemplem um universo maior de entrevistados.

Primeira questão: estaríamos assistindo a um ressurgimento da escatologia na sociedade ocidental? Artigo publicado em uma grande revista de circulação nacional parece confirmar esta indagação:

À primeira vista, trata-se de um romance de suspense como outro qualquer. A contracapa resume o começo da história: enquanto pilota o seu 747 lotado, o comandante Rayford Steele enfrenta o dilema de ceder ou não aos encantos da chefe das aeromoças. Mas uma notícia espantosa o arranca de seus devaneios: diversos passageiros do avião simplesmente evaporaram! Basta ler alguns capítulos de Deixados para Trás, no entanto, para perceber que esse não é um thriller normal. Nele, há muitas citações da Bíblia. A principal arma contra os vilões é a oração. Ninguém faz sexo. Ninguém usa palavrões. E quem toma bebidas alcoólicas é moralmente repreendido. Em outras palavras, estamos diante de um "thriller evangélico". Nos Estados Unidos essa modalidade literária já se tornou um negócio graúdo. Aos poucos, conquista leitores no Brasil.
Para os curiosos, eis o que explica os sumiços no 747: aqueles passageiros, e outros milhões de pessoas ao redor do mundo, foram levados para o Paraíso. Na terminologia crente, passaram pelo Arrebatamento. Já quem ficou na Terra, lutando por uma segunda chance, terá de enfrentar sete anos de provações apocalípticas, incluindo o ataque de cavaleiros demoníacos e a fúria do Anticristo. A história vai longe. Deixados para Trás é apenas o primeiro de uma série de doze livros. Seus autores são um romancista profissional, Jerry B. Jenkins, e um pastor aposentado, Tim LaHaye, que dá bases teológicas à trama. No Brasil, o segundo e o terceiro volumes da série, Comando Tribulação e Nicolae, também estão disponíveis. Lá fora, seis títulos já foram lançados, atingindo uma vendagem impressionante: quase 10 milhões de exemplares.[30]

Dados mais recentes evidenciam o sucesso deste tipo de literatura entre parcelas significativas de nossa sociedade. Até o presente, foram publicados, no Brasil, onze volumes da coleção de livros intitulada Deixados para trás: Deixados para trás (vol. 1); Comando tribulação (vol. 2); Nicolae: o Anticristo chegou ao poder (vol. 3); A colheita: a escolha está feita (vol. 4); Apoliom: o destruidor está solto (vol. 5); Assassinos, missão, Jerusalém, alvo: Anticristo (vol. 6); O possuído: a Besta toma posse (vol. 7); A marca: a Besta controla o mundo (vol. 8); Profanação: o Anticristo apodera-se do trono (vol. 9); O remanescente: no limiar do Armagedom (vol. 10); Armagedom: a batalha cósmica das eras (vol. 11). Há uma série especial voltada para o público adolescente, atualmente em dez volumes: Os desaparecidos (vol. 1); Segunda chance (vol. 2); Através das chamas (vol. 3); Encarando o futuro (vol. 4); A volta à escola (vol. 5); O clandestino (vol. 6); Atrás das grades (vol. 7); A tragédia (vol. 8); A busca (vol. 9); A fuga (vol. 10). Este sucesso, por outro lado, deve-se a uma estratégia comercial que inclui sua venda em livrarias comerciais e grandes empresas da Internet. Trata-se de uma literatura escatológica, com apelo também fora do ambiente evangélico. A uma escatologia de fundo religioso corresponderia uma escatologia secular, presente hoje, por exemplo, entre pessoas comuns e ecologistas e seus temores da destruição do planeta? Perguntado se o temor do fim do mundo, que estaria presente na Idade Média, atravessou os séculos, Duby respondeu:

É algo que perdura. Minha mãe, por exemplo, não estava convencida de que o fim do mundo não chegaria em breve. Vivemos ainda marcados por tudo o que nossos ancestrais muito longínquos fizeram e pensaram. Se vasculhássemos as consciências de nossos contemporâneos, seriam encontradas muitas pessoas que sempre alimentam a idéia de que a história humana pode interromper-se bruscamente. Lembro-me dos primeiros testes atômicos, as pessoas indagavam-se se isso não ia provocar reações em cadeia e fazer explodir o universo. Quando ouvimos dizer, atualmente, que o crescimento demográfico é tão grande que, em algumas décadas, a terra não poderá mais alimentar os homens, muitos perguntam-se o que será da espécie humana.[31]

Segunda questão: este renascer estaria ocorrendo entre os pentecostais? Ao invés de ressurgimento, considero mais pertinente o conceito de permanência da mentalidade escatológica entre os pentecostais. Essa permanência possuiria duas facetas: escatologia latente e fervor escatológico. O estudo clássico de Anderson[32] acerca da volta de Cristo como principal convicção do pentecostalismo inicial norte-americano, demonstrou que esta característica marcante, com o decorrer do tempo, teria perdido seu impacto devido à demora da concretização do retorno de Cristo. O que observamos, no caso brasileiro em estudo, é que, pelo contrário, o componente escatológico teve uma continuidade desde as suas origens até os dias atuais. A partir das entrevistas realizadas, percebemos que a mentalidade escatológica dos pentecostais é permanente: em determinados períodos, ela continua existindo em um estado de latência e, de repente, sobrevem com um forte ímpeto à superfície. A dificuldade em percebê-la deve-se ao fato de que ela parece moribunda. Mas, uma conjugação de uma leitura dos acontecimentos atuais a partir da interpretação bíblica, pode rapidamente conduzi-la ao fervor. Que tipos de acontecimentos? Catástrofes naturais, guerras, pestes e outros fatos tidos como sinais precursores da volta de Cristo. Na vida cotidiana, o estado de latência parecer ser o normal. O fervor, todavia, é imprevisível porque alguns fatores externos têm a capacidade de desencadear uma mentalidade preexistente.

Estas duas considerações precisariam ser mais bem analisadas, tanto na sua dimensão diacrônica interna à Assembléia de Deus quanto em relação a outros grupos pentecostais e à sociedade em geral.

Bibliografia

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Notas

[*] Este texto é uma versão modificada do capítulo 2 da dissertação de mestrado intitulada Os últimos dias: crenças, sentimentos e representações dos pentecostais da Igreja Assembléia de Deus em Belo Horizonte relativos ao imaginário do fim dos tempos, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), sob a orientação do Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth.

[**] Mestre em Ciências da Religião (UMESP).

[1] H. M. Wrigth, O dia do triunfo de Jesus. In: Harpa Cristã.

[2] A classificação das igrejas pentecostais tem gerado um intenso debate entre os pesquisadores. Como nosso trabalho visa estudar um grupo pertencente a uma igreja considerada pentecostal clássica, sobre a qual há menos disputa, não nos deteremos nessa questão. Há excelentes trabalhos publicados que retomam essa discussão (P. FRESTON, 1993; R. MARIANO, 1999; L.S. CAMPOS, 1997; B. M. SOUZA, 1998).

[3] E. HOBSBAWN, Era dos extremos, p. 241.

[4] T. SKIDMORE, Brasil: de Castelo a Tancredo, p. 222.

[5] J. LE GOFF, As mentalidades: uma história ambígua. In: História: novos objetos, pp. 68-83.

[6] J. MOLTMANN, Teologia da esperança, p. 22.

[7] D. DAYTON, Raíces teológicas del pentecostalismo, p. 123.

[8] S. BURGESS; E. VAN DER MASS (Ed.), The new international dictionary of pentecostal and charismatic movements, p. 955.

[9] S. BURGESS; E. VAN DER MASS (Ed.), The new international dictionary of pentecostal and charismatic movements, p. 349.

[10] G.F. ALENCAR, Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo e todo louvor a Deus, p. 47.

[11] Ibid., p. 74.

[12] P. FRESTON, Evangélicos na política brasileira, p. 82.

[13] B. M. SOUZA, A experiência da salvação, p. 60.

[14] Órgão oficial da Assembléia de Deus no Brasil.

[15] Foram escolhidos dez interlocutores, segundo os seguintes critérios: distribuição igualitária por sexo masculino e feminino; faixa etária de 40-60 e acima de 61 anos; de raça branca, parda e negra; solteiros(as), casados(as) e viúvos(as); com grau de escolaridade do ensino fundamental, médio e superior, tanto incompleto quanto completo; que fossem membros desta comunidade desde a década de 1980.

[16] Estas informações eram publicadas nas próprias edições do jornal. Relacionavam-se todas as igrejas que compravam acima de 1.000 exemplares.

[17] Mensageiro da Paz, Ano LI, nº 1131, julho/1981, p. 1.

[18] Id., Ano LII, nº 1140, abril/1982, p. 3.

[19] Uma das diversas espécies de movimentos de crescimento de igreja que valorizam "as células" ou grupos familiares, considerando que as mesmas são um retorno às práticas dos cristãos da época apostólica.

[20] Esse colaborador lembrou de um cântico popular em Belo Horizonte, de autor desconhecido, que diz o seguinte:
"Cuidado, irmão, muito cuidado/Muito cuidado com essa falta de união/Se o inimigo entrar, você não vê/Por que ele usa sapatinho de algodão."

[21] Mantivemos as expressões conforme apareceram nas entrevistas.

[22] Mensageiro da Paz, Ano XLVI, nº 6, 1976, p. 7.

[23] Id., Ano LII, nº 1141, maio/1982, p. 4.

[24] Mensageiro da Paz, Ano LVI, nº 1183, nov./1985.

[25] Mensageiro da Paz, Ano LVI, nº 1184, dez./1985.

[26] Id., Ano LVI, nº 1186, fev./1986.

[27] Id., Ano LX, nº 1236, jan./1990.

[28] Id., Ano LXI, nº 1249, mar./1991.

[29] Vários pesquisadores do pentecostalismo e do neopentecostalismo vêm realizando uma análise bastante profícua das diversas caracterizações que os pentecostais têm recebido desde sua inserção na América Latina e Brasil (C. L. MARIZ, 1996, 1997; B. CAMPOS, 2002; R. R. NOVAES, 1998; M. D. C. MACHADO, 1996).

[30] Veja, ano 33, edição 1645, nº 16, 19 abr./2000, p. 150.

[31] G. DUBY, Ano 1000, Ano 2000, p. 140.

[32] R. M. ANDERSON, Vision of the disinherited.