O lugar da nova ortodoxia judaica paulistana no cenário do campo religioso brasileiro: algumas observações

Marta Francisca Topel[*] []

1. Introdução

O papel relevante da religião nas sociedades contemporâneas, se bem surpreendeu um grande número de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e historiadores, já é um fato indiscutível. A discussão daquilo que parecia improvável agora se restringe à compreensão, interpretação e explicação dos movimentos religiosos que, dia a dia, estão recrutando mais e mais adeptos, transformando os componentes da identidade dos atores diretamente envolvidos e da sociedade como um todo.

No Brasil, apesar de alguns cientistas sociais serem conscientes da dupla direção através da qual se expressa essa nova religiosidade, isto é, a crescente mestiçagem cultural-religiosa, por um lado; e o isolamento em universos religiosos fechados, por outro (Pace 1997), a tendência é definir os novos movimentos religiosos como essencialmente sincréticos, não-tradicionalistas, relativistas, híbridos ou difusos, com um forte componente antiinstitucional e antiautoritário (Sanchis, P. 1997; Moreira, A. & Zicman, R. 1994).

Nessa realidade, é preciso salientar ainda, o sujeito transforma-se numa figura central, "com um direito individual de escolha, construção, envolvimento e trânsito" no multifacetado mercado de bens religiosos (Brandão, 1994:35). É assim que aquele que busca o sagrado na sociedade brasileira se identifica com a figura do andarilho que, de igreja em igreja, de culto em culto e de milagre em milagre, procura outorgar um sentido transcendental à sua vida, e uma pertença social e comunitária que o ajude nessa direção.

Nesse processo de busca, os dados revelam que já não existe a idéia de profanar uma religião se a ela se acrescentam ou se com ela se misturam conteúdos ou rituais de outros cultos. Ao contrário, o que vemos são religiões criadas à imagem e semelhança do homem de fé, e, não, produtos de uma estrutura externa a ele, eficaz para lhe impor uma visão religiosa considerada "a única verdade" (Sanchis, 1997).

Só que, a meu ver, essa compreensão da religiosidade contemporânea brasileira, para ser representativa e explicativa do que acontece no campo religioso do Brasil, deveria servir como instrumento para compreender todos e quaisquer movimentos religiosos que nesse espaço se criam e recriam, como o movimento de teshuvá[1] que, em menos de dez anos, decuplicou o número de adeptos, transformando-se num dos corpos mais representativos do judaísmo e da "judeidade" do País.

Todavia, as categorias analíticas supracitadas não nos ajudam para o caso em questão, uma vez que o movimento de teshuvá, apesar de constituir uma tentativa de "re-encantamento do mundo", foge a cada uma das definições de religiosidade supracitadas, revelando-se, pelo contrário, como uma estrutura totalizante e totalizadora, autoritária, particularista, tradicionalista, altamente institucionalizada, compreensiva, exclusivista e ortodoxa. Uma estrutura que, não seria exagero afirmar, constitui a antítese do pluralismo; uma ortodoxia inflexível que condena e excomunga qualquer heterodoxia; hermeticamente fechada para aqueles que estão fora da categoria de membros, e imensamente generosa com aqueles que ao grupo pertencem[2].

Dessa forma, se o movimento de teshuvá em São Paulo se distancia dos padrões da maioria dos movimentos religiosos que hoje atuam na sociedade brasileira, erguendo-se como uma contra-cultura que questiona frontalmente os valores normativos, culturais e simbólicos da sociedade maior; ao mesmo tempo, se não paradoxalmente, pelo menos de forma curiosa, revela traços do que denomino de brasileirização da ortodoxia judaica. É esse duplo caráter do movimento de teshuvá paulistano que pretendo explorar nas páginas a seguir.

2. A teshuvá como retorno: alguns dados

Um ponto de partida fértil para iniciar a discussão é refletir sobre o significado da expressão teshuvá, escolhida pelos atores para designar o processo pelo qual judeus laicos aderem à ortodoxia judaica. Segundo o dicionário Even Shoshan[3], a raiz da noção teshuvá refere às idéias de retorno e resposta. Contudo, nos textos rabínicos e no discurso dos novos ortodoxos (Maimônides, 1992; Steinsaltz, 1994; Soloveitchik, 1964), só se menciona a acepção de retorno, no sentido de uma volta às origens (ancestrais) e ao caminho do bem, i.e., um caminho livre de pecados, no qual o papel da Halachá[4] é o de um manual orientador. Em outras palavras, o retorno à comunicação com Deus, trilhando um percurso criado pela própria divindade, no qual cabe ao homem um ato de contrição e arrependimento, ao qual se segue uma atitude de obediência e submissão às regras a ele impostas nessa caminhada.

Todavia, se a noção de retorno é enfatizada no mundo ortodoxo; na sociedade israelense, aqueles que aderem à ortodoxia judaica são conhecidos como chozrim be'teshuvá, cuja tradução não pode ser outra que os que retornam à resposta, já que seria absurdo imaginarmos a expressão redundante "aqueles que voltam ao retorno". Além do mais, os que se afastam do modus vivendi ortodoxo são chamados chozrim be'sheeilá, isto é, os que retornam à pergunta. Mas, que pergunta e que resposta poderiam ser tão importantes para, através delas, nomear grupos de judeus que se afastam de, ou se aproximam à, religião judaica na sua versão ortodoxa? A convivência com judeus pios e a leitura da literatura rabínica apontam a uma direção clara que tentarei resumir e ordenar a seguir, apesar dos riscos envolvidos em qualquer resumo desta índole.

Assim, se no início houve o caos, depois houve uma aliança entre Deus e o grupo, selada através dos Mandamentos divinos, cuja obediência traria benções, mas cuja transgressão multiplicaria o sofrimento dos transgressores e do grupo como um todo. E aos Mandamentos seguiram-se códigos mais complexos: desde as 613 mitzvot de Maimônides e os milhares de mitzvot[5] e halachot[6], até os inúmeros manuais direcionados a facilitar o cumprimento das leis para quem, no final do século XX, precisa de orientação para não se converter num transgressor. E aqui o interrogante – já que é impossível sequer mencionar a cadeia de questionamentos possíveis - é o seguinte: transgredir o quê?

Se tomarmos como pressuposto que o judaísmo é uma religião realista, uma religião do mundano, preocupada com o homem e suas experiências cotidianas e não com dogmas abstratos ou com atos de fé, a Halachá recebe o lugar de uma práxis religiosa que, através das mitzvot, fixa normas de conduta, refletindo a necessidade de uma ordem e previsibilidade nas relações humanas e comunitárias (Leibowitz. Y. 1997; Hartman, D. 1987).

Nesse sentido, as mitzvot não devem ser compreendidas pelas suas razões filosóficas, e sim como a matriz do judaísmo, assim como ele é vivenciado pelos judeus pios (Leibowitz, Y. 1997; Hartman, D. 1987). Poderíamos ilustrar esta definição com o tão repetido raciocínio dos rabinos doutrinários, quando inquiridos por algum chozer be'teshuvá, sobre o valor e razão de tal ou qual preceito. "Naasé ve'nishmá", "faremos e só depois nos interrogaremos", costumam explicar as autoridades religiosas, ancoradas numa interpretação judaica do livro Êxodo. Contudo, esse se interrogar que é posterior ontológica e cronologicamente ao cumprimento da Lei, só tem uma fonte de inspiração legítima para nela sondar respostas: a própria Lei, assim como ela foi canonizada séculos atrás.

Nessa visão de mundo que toda a vida da pessoa abarca, organizando seu cotidiano através de preceitos que regem seu comportamento nas áreas mais diversas, não existe mais a noção de indivíduo, assim como ela foi criada na Modernidade e exacerbada na pós-modernidade, porque não há incertezas nem riscos, porque todas as perguntas estão respondidas, e porque o detentor das respostas é uma autoridade inquestionável, representada pela figura do rabino. É assim que o novo ortodoxo, ávido para mudar o rumo de sua vida em procura de um sentido transcendental que descobre no judaísmo "autêntico", escolhe um caminho longo e árduo, escolha corajosa que tem no seu bojo o fim da possibilidade de escolher. Perguntas, questionamentos e indagações só são considerados se o objetivo último é levar à prática a única resposta possível: o cumprimento da Lei, veículo através do qual o grupo se diferencia e distancia de todos os outros grupos, de suas práticas rituais e simbólicas, de seus valores normativos e estéticos, segregando-se até o ponto de viver em espaços geograficamente isolados.

Neste cenário, fica impossível pensar em sincretismo ou bricolage religioso, já que a alteridade, neste caso a brasileira, só é introjetada como uma entidade em oposição à qual se sacralizam e consagram o tempo e o espaço exclusivos do grupo e, como decorrência, cada um de seus membros e o próprio grupo como um todo. Transgressor, então, é aquele que, por motivos diversos e através de modos diferentes, ousa diluir a distinção entre o grupo e a sociedade geral ou, para usar uma expressão cara aos atores, entre o povo escolhido e as demais nações[7].

3. Os chozrim be'teshuvá paulistanos e a brasilerização da ortodoxia judaica

Todavia, a exclusividade que caracteriza a ortodoxia judaica não constitui uma barreira social e cultural que, por decreto, possa separar os seus membros e a própria organização do grupo da sociedade maior. Um observador atento que se interessasse pelo movimento de teshuvá em São Paulo, logo perceberia que a ortodoxia judaica paulistana possui componentes que refletem a influência da sociedade e cultura brasileiras. Além do mais, os próprios atores - consciente ou inconscientemente - e algumas características da organização do grupo apontam para a brasileirização da ortodoxia judaica, produto do processo histórico de inserção da comunidade judaica no Brasil.

Em se tratando da organização institucional da ortodoxia paulistana, pode-se assinalar, em primeiro lugar, a inexistência de uma "organização-teto" que congregue todas as correntes internas da ortodoxia e que sobre elas tenha um poder decisório (Cf. Rattner, 1987). Simultaneamente, as barreiras internas que em outros contextos nacionais separam – às vezes em verdadeiros campos de batalha - as diferentes nomeações ortodoxas, estão ausentes, observando-se, pelo contrário, um trânsito de rabinos e chozrim be'teshuvá pelas distintas congregações e sinagogas, sem a exigência de afiliar-se, incondicionalmente, a uma delas.

A falta de uma separação clara entre sefaraditas[8] e ashkenazitas[9], vislumbrada na existência de rabinos sefaraditas que dirigem sinagogas ashkenazitas e vice-versa, constitui uma outra variação dessa mesma tendência. No que diz respeito a como se vêem os novos ortodoxos paulistanos vis-à-vis os ortodoxos em geral, é interessante assinalar que, apesar de se orgulharem de haver atingido um estado tal que os faz membros iguais da comunidade de Mea Shearim[10], dessideratum último para aquele que se aventura no mundo ortodoxo; ainda assim manifestam traços e desejos que refletem a sua pertença à cultura brasileira.

Cabe destacar, nesta dimensão, a preferência por cônjuges brasileiros e a opção por continuar vivendo no Brasil, apesar dos esforços de alguns rabinos para concretar casamentos extranacionais e o envio, por lapsos longos, de potenciais chozrim be'teshuvá aos Estados Unidos ou a Israel. O processo de brasileirização que estou observando também se expressa na cisão do Binyan Olam[11] da yeshivá Aish há'Torá[12] que, segundo me foi explicado, resultou da incompatibilidade entre as visões norte-americana e israelense, com a brasileira, em relação à teshuvá.

Cabe aqui uma pausa para que se possa dimensionar corretamente o fenômeno da teshuvá em São Paulo, seguindo os eixos da discussão proposta. Assim, apesar de certas contradições, não se pode negar que como resultado de seus princípios básicos, tanto teológicos quanto sócio-históricos, o movimento de teshuvá se ergue como uma entidade diferente e contraposta à sociedade e cultura brasileiras, fugindo às tendências mais difundidas no campo religioso do Brasil.

As raízes desse fenômeno são complexas e apontam, a meu ver, à função da ortodoxia judaica como religião de uma minoria étnica de origem estrangeira, ao estreito vínculo religioso institucional que mantêm os atores com as diversas congregações e rabinos e à falta de autonomia religiosa dos chozrim be'teshuvá, depois de optaram pela ortodoxia judaica. Neste caso, fica clara a impossibilidade de falarmos em "religião difusa" ou "implícita", ou hibridismo religioso.

Todavia, as fronteiras do grupo não são impermeáveis ao ponto de isolar em universos hermeticamente fechados aqueles que escolheram o caminho da reconversão religiosa. O livre trânsito de rabinos e chozrim be'teshuvá por diferentes congregações e sinagogas expressa aquilo que caracteriza o mercado religioso do Brasil contemporâneo, a saber: a transumância entre diferentes concepções e visões de mundo religiosas, ainda que no caso em questão, a ortodoxia judaica seja a única instituição dotadora de sentido legítima e imaginável.

Finalmente, e com as devidas relativizações, acredito que pode-se afirmar que assim como a Modernidade exigia dos judeus da Diáspora a integração à sociedade maior; a pós-Modernidade lhes permite voltar a manifestar sua particularidade, opção que tanto no Brasil como em outros contextos nacionais o Movimento de teshuvá está levando até suas últimas conseqüências, com o paradoxo de, nesse processo, a noção de indivíduo ter sido cerceada.

Bibliografia

BRANDÃO, C.R. "A crise das instituições tradicionais produtoras de sentido" em Moreira e Zicman (orgs): Misticismo e Novas religiões. Petrópolis: Vozes, 1994.

HARTMAN, D. "Halackha" in Cohen, A.A. & Mendes-Flohr, P. Contemporary Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements and Beliefs. London: The Free Press, 1987.

LEWIBOWITZ, Y. Judaism, Human Values and the Jewish State. London: Harvard University Press, 1997.

MAIMÔNIDES. Mishné Torá: O Livro da Sabedora. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992

MOREIRA, A. & Zicman, R. Misticismo e Novas Religiões. Petrópolis: Vozes, 1994.

PACE, E. "Religião e Globalização" em Oro, A. P. & Steil, C.A. (orgs). Globalização e Religião. Petrópolis: Vozes, 1997.

RATTNER, E. Tradição e Mudança. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

SANCHIS, P. "O campo religioso contemporâneo no Brasil" em Oro, P. A. & Steil, C. A. (orgs) Globalização e Religião. Petrópolis: Vozes, 1997

SOLOVEITCHIK, J. On Repentance. Jerusalem: Orot Publishing House, 1965

STEINSALTZ, R. Teshuvá: Um guia para o judeu recém-praticante. São Paulo: Editora Maayanot, 1994

Notas

[*] Programa de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, FFLCH/USP Centro de Estudos Judaicos/USP

[1] Denominação utilizada pelos atores religiosos para se referir ao Movimento de conversão de judeus laicos à ortodoxia judaica.

[2] Acredito que esta característica intrínseca à chazará be’teshuvá só poderá ser compreendida se for analisado o fenômeno desde uma perspectiva que inclua o religioso e o étnico, assim como eles se apresentam na realidade, isto é, interpenetrando-se e determinando-se mutuamente.

[3] Even Shoshan, A. Há’milon haivri hamerukaz. Jerusalem: Ed. Kiryat Sefer Ltda., 1992

[4] Halachá, do hebraico: caminho: Compêndio de leis e preceitos que seguem os judeus ortodoxos.

[5] Plural de mitzvá. Preceitos religiosos que seguem os judeus ortodoxos. Segundo a codificação de Maimônides, são 613 as mitzvot que está obrigado a respeitar um judeu pio.

[6] Plural de halachá. Preceitos e leis, seguidos pelos judeus ortodoxos que foram acrescentados às 613 mitzvot codificadas por Maimônides na Idade Média.

[7] Só para dar um exemplo, a violação do mandato endogâmico é considerada pela ortodoxia judaica a maior transgressão, símbolo do "holocausto espiritual" no qual vivem os judeus conhecidos como "assimilados".

[8] Sefaraditas: judeus cujas origens se remontam às comunidades judaicas da península ibérica, logo dispersas, principalmente, nos países do norte da África. Os judeus sefaraditas costumam falar ladino e árabe, e seguem uma liturgia secular particular.

[9] Ashkenazitas: judeus cuja origem se remonta à Europa Central e Oriental. Os judeus ashkenazitas, dispersos ao longo dos quatro cantos do globo, costumavam falar ídiche. A liturgia dos serviços religiosos ashkenazitas difere daquela dos judeus sefaraditas.

[10] Mea Shearim: bairro ultra-ortodoxo se Jerusalém.

[11] Congregação ortodoxa, criada por judeus brasileiros do Rio de Janeiro, cujo objetivo é aproximar judeus laicos ao judaísmo religioso.

[12] Congregação ortodoxa, criada a meados da década de 70 por judeus norte-americanos. A sua sede, porém, se encontra em Israel e tem como missão aproximar judeus laicos à ortodoxia.