A retórica de "aniquilação" -
Uma reflexão paradigmática sobre recursos de rejeição a alternativas religiosas

Frank Usarski

1. Introdução

Quando cristãos falam sobre 'pagãos', muçulmanos se posicionam contra 'descrentes', hindus se distinguem de mlecchas e povos 'civilizados' se sobrepõem aos 'bárbaros', dá-se uma estratégia que, seguindo uma denominação de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, é chamada aniquilação. Tal elemento retórico surge tipicamente numa situação de competição entre 'realidades sociais' contraditórias, ou seja, quando diferentes 'concepções do mundo' se encontram e pelo menos um dos partidos sente a necessidade de defender o próprio 'universo simbólico' diante de dada alternativa. Para uma aniquilação ser eficaz é preciso uma instância detentora de um poder de definição, uma entidade que apele à consciência coletiva do maior conjunto social que ela representa. Os aniquiladores aparecem com a finalidade de manter a plausibilidade interna do seu grupo ao diminuir a posição e desvalorizar retoricamente a qualidade de uma ideologia adversa. Degradando o "eles" em relação ao 'nós", a aniquilação tenta estabelecer um desnível em favor do "próprio" e em detrimento do "outro" e assim rejeitar o desafio potencial do seu competidor. Em palavras de Peter L.Berger e Thomas Luckmann isto significa: "A ameaça às definições sociais da realidade é neutralizada atribuindo-se um status ontológico inferior, e com isso um status cognoscitivo que não deve ser levado a sério, a todas as definições existentes fora do universo simbólico"[1].

Rótulos pagãos ou seitas representam "cristalizações" históricas dos esforços ocorridos no passado, quando certos círculos sociais tenham efetivamente aniquilado um "outro". Colocam-se aqui algumas questões: Sob quais circunstâncias surgem tais rotulações? Mas, talvez, mais importante seja indagar quais são aos condições que contribuem para que uma aniquilação ganhe força numa sociedade. A elaboração de dois recursos retóricos relacionados com a estratégia da aniquilação podem auxiliar a responder a essas questões: o exagero seletivo de certos aspectos do fenômeno desafiador e a transferência ao tal fenômeno de definições socialmente negativas.

Nos próximos parágrafos estes dois recursos serão discutidos, tomando-se dois exemplos alemães como referencia: a fase inicial de adoção do budismo por volta da passagem do século XIX para o século XX e uma mais recente discussão pública sobre o surgimento de novos movimentos religiosos a partir dos anos 70.

2. Recursos de aniquilação: O exemplo do Budismo

2.1. A adoção do budismo na Alemanha por volta da passagem do século XIX para o século XX

No fim do século XVIII surgiu, entre filósofos, pela primeira vez na Alemanha, um interesse profundo pela Ásia. No início, ainda difusa, esta paixão pelo Oriente se concentrava, a partir da metade do século XIX, cada vez mais no Budismo, graças ao crescente conhecimento científico e a então divulgada obra do pensador pessimista Arthur Schopenhauer (1788-1860)[2]. Neste clima Friedrich Zimmermann, sob o pseudônimo de Subhadra Bikschu [Monge Subhadra], publicou seu "Catecismo budista" em 1888, um livro que a longo prazo evidenciar-se-ia como um impulso decisivo para a institucionalização do Budismo alemão[3]. Em 1903, este processo se concretizou com a fundação da primeira entidade budista na Alemanha, ou seja, a Associação da Missão Budista para Alemanha [Buddhistischer Missionsverein für Deutschland]. Em seguida demais corporações como a Sociedade Alemã do Pâli [Deutsche Pali-Gesellschaft], a Sociedade-Mahabodhi [Mahabodhi-Gesellschaft] ou ainda a Federação para a Vida Budista [Bund für Buddhistisches Leben] foram estabelecidas.

Embora o número de membros destes grupos permanecesse relativamente pequeno, eles ostentaram atividades consideráveis não só a respeito da fundação de instituições, mas também quanto à publicação de livros e à divulgação de jornais próprios.

2.2. O olhar da crítica cristã sobre o Budismo alemão

Logo depois do lançamento do "Catecismo budista" por Friedrich Zimmermann [Subhadra Bikshu], vários teólogos, sobretudo da Igreja Luterana, começaram a reagir negativamente ao budismo alemão e seus seguidores. Inumeráveis obras de autores cristãos surgiram no decorrer de poucos anos, enfrentando o desafio representado por uma "nova" religiosidade oriental no ambiente europeu.

É verdade que no amplo espectro dessas publicações, encontram-se capítulos, em vários ensaios, que demonstram a tentativa de descrever detalhadamente as raízes históricas, os axiomas filosóficos, as implicações morais e os aspectos soteriológicos do Budismo. Todavia, todas as obras relevantes, inclusive aquelas que superficialmente parecem ser mais constitutivas, acabaram em uma comparação substancial entre Cristianismo e seu "adversário" e finalmente terminam com uma avaliação decididamente negativa do Budismo. Em outras palavras, mesmo os ensaios teológicos que inicialmente dão um tratamento sério, trazem depois uma caracterização negativa motivada pela aspiração de desvalorizar o Budismo diante da única e completa verdade da própria religião. Neste sentido os artigos, panfletos e livros contra o Budismo alemão manifestam fontes abundantes a respeito de recursos constitutivos pela aniquilação.

A compilação instrutiva, colocada no próximo parágrafo fará evidente, quão negativo o Budismo ou na Ásia ou na Alemanha era percebido e descrito pelos críticos cristãos.

2.2.1. Exageração seletiva de certos aspectos do Budismo como um recurso aniquilador

2.2.1.1. A crítica ao Budismo no seu ambiente original

Já, em obras relevantes em que os autores especulavam sobre a origem sócio-cultural do Budismo, encontra-se uma desvalorização desta religião. Alfred Bertholet, por exemplo, referiu em uma publicação do ano 1904 aos efeitos degenerativos do clima na Índia e atribuiu a estas condições a atitude budista de rejeitar o mundo exterior. Aludindo à imigração de tribos européias entre 2500 e 1500 a.C. no sub-continente, Bertholet escreveu: "O país natal do Budismo é a Índia onde a terra úmida do Ganges, sob o intenso calor abafado de céu tropical, deixa, no seu seio, crescer profusamente o arroz nutritivo em abundância, sem que o homem tenha de dar-se muito a este trabalho. No povo de conquistadores que tinha sido educado pela natureza rústica do seu lar original do noroeste [...] o esplendor opulento da terra ganha causava um enlevo e a este enlevo seguia o fastio da alma saciada". Neste processo de depravação, "também as vívidas, ativas figuras de antigo panteão védico decaíam até seres meio fantasmagóricos: o céu desaparecia junto com o prazer pelo mundo exterior." Os conquistadores "retiravam-se para o interior, abstraiam-se da matizada multiplicidade das coisas, cismavam e sonhavam e os sonhos estendiam-se junto à voluptuosidade da vegetação ao redor. Não por acaso: nisto se revela a verdadeira essência do Indiano, para quem a vivência interior significa consideravelmente mais do que a exterior, que tem uma inclinação imensa para a contemplação e especulação profunda"[4].

Já em 1893, Otto Peek ­ tinha julgado que os "povos da Índia e do Oriente" estavam em um "estado de pressentimento e de sonho". Para corroborar tal caracterização, ele se referiu à arte religiosa desta região, lembrando as "estátuas de Buda que representam o Esperto com abraços indolentemente pendidos e olhos quase fechados"[5]. No mesmo tom, Ernst Haak escreveu, no seu artigo "Cristo ou Buda" de 1898: "A cultura de povos afiliados ao Budismo não dispõe de nenhuma força de progresso. Já desde séculos ela é condenada à estagnação e seria muito mais, se tivesse implantado conseqüentemente aquela apática filosofia do Nirvana de tédio de vida e da indiferença diante das questões humanas"[6]. Também em 1989,W.Ph.Englert recorreu à metáfora de "toxina oriental da interiormente já morta cultura budista" e acusou os asiáticos de "sentarem ao alcance da sombra da morte, nas trevas do Budismo"[7]. Quatro anos mais tarde, Robert Falke acrescentou a respeito do monaquismo budista: "Cansado, apático e preguiçoso o discípulo fiel de Buda arrasta-se através da vida e da ânsia pelo silêncio da morte"[8]. Peter Sinthern caracterizou o Budismo com as seguintes palavras: "Fraquinho, sem tutano, doentia, assim é a fisionomia geral do Budismo. Tal religião oriental é um "inimigo irreconciliável de qualquer cultura", pois "diante de seu glacial hálito destrutível, cada flor murcha, cada brilho de beleza estética decompõe-se; nele os triunfos mais orgulhosos do pensamento e da criação humana são sepultados e quando aqui se quer falar ainda sobre 'vida', é a vida de cadáver moderno"[9]. Dois anos mais tarde, Josef Kohler julgou o Budismo uma "religião de fraqueza", de "cansaço e de abatimento"[10]. Em 1909, Theodor Simon confirmou preconceitos já estabelecidos repetindo: "O que o Budismo trouxe para os homens e povos foi uma suavemente acalentadora bebida de atordoamento"[11].

2.2.1.2. A crítica à adoção do Budismo na Alemanha

Por volta da passagem do século XIX para o século XX, a discussão alemã sobre o Budismo não se limitou à critica do seu caráter como tal e seus efeitos "destrutivos" na Ásia. Ao contrário, o debate trouxe especulações sobre o perigo da adaptação daquela religião oriental pelos ocidentais e as conseqüências individuais, sociais e culturais desta paixão espiritual no contexto
europeu. Os autores cristãos, por exemplo, pressupuseram que houve uma relação entre a atração do Budismo, por um lado, e condições psicológicas específicas de seus seguidores alemães, por outro.

Já em 1894, na revista entabulada Die Katholische Bewegung in unseren Tagen [O movimento católico em nossos dias] podia-se ler que se o Budismo fosse uma opção real no Ocidente na época valeria vale apenas "para esnobes pândegos modernos, que tinham lido seu Schopenhauer e que, em uma situação fatal, por qualquer motivo, meter-se-iam uma bala na cabeça"[12]. Em 1905 Karl von Hase registrou que, naqueles tempos, seguidores do Budismo "entusiasmaram-se pela filosofia e poesia da Índia antiga com sua sonhadora monotonia". "Todos aqueles beberam do veneno doce e apanharam cobiçosamente, como qualquer asiático, o cachimbo do ópio budista"[13]. Em 1913, Walther Glawe, ao se referir ao traço do Budismo de se retirar do mundo e prestar grande atenção no desenvolvimento interior, formulou a respeito de seus seguidores alemães: "Somente naturezas exageradamente sentimentais, espiritualmente degeneradas e mórbidas são capazes de negar qualquer valor da existência"[14].

2.2.1.3. Síntese intermediária

As citações acima provam uma visão extremamente seletiva. Nas publicações relevantes, o Budismo foi reduzido à sua tendência soteriológica de "fuga do mundo" como se fosse o único traço desta religião. Frente a este elemento que, na opinião radical de seus críticos, foi predominante e constitutivo para a identidade do Budismo, outras facetas foram negligenciadas, caladas ou, pelo menos, desvalorizadas. O resultado foi a tristonha imagem de uma religião que se esgota na aspiração ao Nirvana. Não se encontra nenhuma apreciação nem sobre sua erudição monástica, nem sobre suas criações estéticas e nem sobre o fato de que ela, no decorrer da sua história, tem mostrado uma grande tolerância a condições adversas. Além disso, os críticos sofreram uma percepção distorcida quanto à situação real nas organizações budistas alemãs. Os autores cristãos não levaram em conta a intelectualidade dos budistas. Não expuseram as contribuições leigas que vários protagonistas do Budismo fizeram na Alemanha, entre eles o filólogo Karl Seidenstücker, os médicos Wolfgang Bohn e Paul Dahlke, o professor universitário de medicina, Hans Much, o jurista Georg Grimm, o industrial Arthur Pfungst.

Muitas publicações também omitiram as intensas atividades internas das associações budistas cujos membros, ao contrário do preconceito divulgado, não se sentavam em um canto de sala de assembléia para contemplar apaticamente, mas se reuniam por ocasião de palestras e de debates ou com o objetivo de melhorar a programação do Budismo ao público comum, por exemplo, por meio do lançamento de um novo livro. Também as aspirações políticas que alguns budistas alemães articularam explicitamente não foram mencionadas como o protesto do budista mais ativo em Leipzig, Karl Seidenstücker, contra a vivisseção e em favor da paz internacional.

Referências adequadas sobre o Budismo teriam contribuído para um julgamento do Budismo mais imparcial. Por outro lado, a ausência de uma descrição objetiva procura esconder o motivo desencadeador de lançamento de artigos, panfletos e livros. Eles não surgiram com o objetivo de abrir o horizonte de seus leitores, mas sim para aniquilar uma religião alternativa, substancialmente capaz de desfiar o cristianismo e seu tradicional monopólio no Ocidente.

2.2.2. A transferência de definições socialmente negativas ao Budismo alemão

Em 1913, o Budista G. A. Dietze, da cidade de Leipzig, lamentou num artigo da revista Mahabodhi-Blätter que ele e seus correligionários fossem permanentemente confrontados com o preconceito que o doutrina de Buda 'cloroformiza" a vontade e "os chamados neo-budistas aparecem como criaturas estressadas, deslumbradas, crédulas, decadentes, exageradamente sentimentais, espiritualmente degeneradas e mórbidas"[15]. Lê-se esta lista de palavras negativas, como um resumo das acusações mais comuns por volta da passagem do século XIX para o século XX. Como se explica a homogeneidade das metáforas e alusões com que os críticos tentaram aniquilar a religião desafiadora do oriente? Porque o Budismo surgia constantemente num conjunto de associações que apontam para a indolência, a fraqueza, a doença ou até mesmo a morte?

Um entendimento das condições que preestabeleciam a argumentação negativa contra o Budismo depende de uma problematização daquela retórica apologética num contexto sócio-cultural mais amplo, ou seja, referir ao espírito mais geral da época. Com uma reflexão correspondente, aqui reduzida aos aspectos centrais, pode ser demonstrado que a discussão contra o Budismo não se esgotou no primeiro recurso aniquilador, isto é, o exagero seletivo de certos de seus aspectos, mas que, ao mesmo tempo, encerra também um segundo elemento, isto é, a tentativa de caracterizar o Budismo, transferindo-lhe definições socialmente negativas.

Para iluminar melhor a atmosfera social que contribuiu para a homogeneidade dos argumentos contra o Budismo nas obras de autores cristãos, é importante lembrar que os anos entre 1880 e 1930 marcaram, grosso modo, um período perturbado da historia alemã [16]. Esta época, durante a qual um acelerado progresso na área da tecnologia transformou em industrial uma sociedade agrícola, foi caracterizada por inumeráveis contradições, por uma diversidade desconcertante de tendências, por uma heterogeneidade de atitudes e valores, por uma forte tensão entre tradicionalismo e modernização. Esta ambivalência, penetrando todas as áreas da vida, era percebida individualmente como uma insegurança emocional e uma desorientação cognitiva. Em reação a estas circunstâncias, desenvolveu-se, entre intelectuais daquela época, especialmente entre teólogos protestantes, uma intensiva discussão sobre o conceito de "cultura": um conceito "harmonizador", teoricamente não só abrangendo, mas também integrando, qualquer aspecto isolado, qualquer processo singular; um conceito ideologicamente capaz de limitar as fragmentações da vida e diminuir as forças centrífugas em uma sociedade em radical transformação.

Estas sobreditas condições põem em revelo que o tema da cultura, correntemente se manifestando na discussão sobre o Budismo, não se originou especificamente no contexto estrito daquele último debate especial, mas sim que os apologéticos cristãos tratavam retoricamente a desafiadora religião oriental referindo-se a um quadro de interpretação socialmente já estabelecido. Todavia, a observação geral de que esses autores mostraram uma forte tendência de se referir ao tema da cultura não é suficiente para entender as circunstâncias sob as quais surgia a argumentação pejorativa contra o Budismo. Neste sentido é necessário também ter em conta que a lógica implícita do tema da 'cultura' incluía um segundo elemento mais sutil e provocante, isto é, a problematização do futuro da sociedade alemã. Esta dimensão do debate não era um privilégio dos intelectuais como era o caso da teorização sobre o conceito da cultura como tal: as reflexões sobre a qualidade vindoura da cultura repercutiam preocupações compartilhadas pela maioria do povo alemão daquele tempo. Do ponto de vista de hoje, a popularidade da questão do futuro é inteligível, uma vez que faz parte do conjunto das reações psicológicas às mudanças rápidas e profundas em todos os níveis da vida.

Pesquisas sobre esta aquela movimentada fase indicam que a transição não-mediata de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial sensibilizou os indivíduos tanto para as potencialidades positivas destes desenvolvimentos como para seu lado negativo e seus perigos. Historiadores contemporâneos alemães caracterizam retrospectivamente aqueles anos apontando não só por um divulgado sentimento de "estar numa linha divisória das épocas", mas também por uma freqüente "sensação de vertigens", uma consciência intensificada de "abismos do caminho" diante das manifestas modificações da vida material e institucional. No seio da ambigüidade, no fundo da tensão entre esperanças e aflições, as massas, na sua busca pela orientação, estavam dispostas a aceitar projeções inequívocas, mesmo que se tratasse de um rascunho definitivamente pessimista.

Uma das expressões mais salientes deste tipo foi o famoso livro de dois volumes de Oswald Sprengler com o significativo título "O declínio do Ocidente"(1918-1920). Já algumas décadas antes desta publicação, o termo "fin de siècle" tinha se estabelecido como uma designação do espírito da época entre 1870 e 1900. A noção referia-se etimologicamente à palavra latina "finis saeculi", isto é, o fim do mundo, trazendo, pois, um significado ainda mais dramático do que o título sugestivo do livro de Sprengler. Embora no cotidiano geralmente não seja aproveitado neste sentido radical, o termo polivalente trouxe dois sentidos principais. Como denotação mais específica "fin de siècle" é o título de um movimento da literatura de língua alemã muito produtivo na época correspondente, com seu centro em Viena, mas com fortes núcleos também em Berlim, Munique e Leipzig e com editoras mais importantes na Alemanha. Em um segundo sentido, "fin de siécle" era entendido como "decadência", um termo também em voga por volta da passagem do século XIX para o século XX[17].

Quanto ao primeiro significado, não é difícil identificar nos romances de autores do "fin de siècle" vários elementos-chave que foram tratados como argumentos contra o Budismo pelas publicações apologéticas da época. Segundo Fritz Schalck, as personagens principais nos livros de "fin de siècle", apesar de mostrar consideráveis diferenças, seguiram regularmente o mesmo padrão: "estar numa relação de tensão com seu ambiente, na busca de algo novo, mas sem ter ânimo para tornar-se realmente ativo." Pelo contrário, características a todas estas personagens são "a introspecção", o desejo por "excitantes de qualquer tipo" e por "atordoamentos"[18].

Já no âmbito do segundo significado vale a pena procurar a palavra decadência nos dicionários alemães[19], pois essa busca pode tornar mais claro de onde vêm os argumentos aproveitados pelos críticos do Budismo alemão. Como o léxico nos ensina, o termo é associado à idéia de "declínio, degeneração , especialmente relacionado a culturas". Como designação contraposta a palavras como "progresso" ou "prosperidade", "decadência" alude às "fases finais de formações de sociedades". Ao mesmo tempo, o termo traz o sentido de "ilusão", "sensibilidade", "exotismo" ou "morbidade". Quem, segundo os dicionários alemães, é vítima de uma mentalidade decadente, incorpora "o patológico, o nervoso" e o "frágil" e está dominado pelos sentimentos de fraqueza da vida.

Resumindo. As acusações contra o Budismo não eram resultado de uma original reflexão apologética. A imagem pejorativa dessa religião era fruto de uma transferência, atualização ou aplicação secundária de padrões de interpretação já existentes; efeito de uma concretização de categorias amplamente conhecidas e principalmente consensuais. Em outras palavras: a aniquilação do Budismo foi realizada ao relacionar diretamente as preocupações frente a uma cultura instável exposta a uma religião considerada capaz de escavar ainda mais a sociedade alemã.

3. Recursos de aniquilação: O caso das "religiões para jovens"

Enquanto por volta do passagem do século XIX para o século XX, o Budismo e sua adoção no Ocidente foram um tema principal para teólogos, desde o início da década de 70 é o surgimento da "nova religiosidade" que tem preocupado instâncias eclesiásticas na Alemanha. De novo foi especialmente a Igreja Luterana que ativamente agiu no combate contra novos movimentos espirituais por intermédio de seus chamados "encarregados para seitas". Como fruto de uma campanha forte por meio de artigos, palestras e petições e apoiados por associações de pais, reclamando a "perda" de filhos que tinham aderido a um dos grupos polêmicos, líderes de opinião na luta contra "seitas" obtiveram um importante sucesso quando convenceram o Governo Alemão a levantar voz crítica neste debate. Assim, uma declaração do Ministério Federal para Juventude, Família e Saúde feita em julho de 1978, em uma entrevista coletiva, conferiu à discussão sobre "seitas" uma outra qualidade, confirmando oficialmente um já divulgado anti-sentimento contra novas religiões. Quando o muro entre as duas Alemanhas caiu, a atitude hostil contra formas não-eclesiásticas de espiritualidade já fazia parte integral da consciência coletiva do povo da 'antiga' República Federal e espalhou-se rapidamente sobre o país reunificado.

Olhando retrospectivamente o debate sobre "seitas", os seguintes parágrafos mostrarão que os recursos retóricos aproveitados neste contexto tem sido os mesmos que constituíam a discussão sobre o Budismo no final do século XIX e no início do século XX.

3.1. O Estudo de Viena como ponto de referência

Em 1981 foi terminado o chamado Estudo de Viena entitulado "Razões e efeitos da recusa social dos adolescentes sob o prisma das religiões para jovens"[20]. Trata-se de uma pesquisa solicitada pelo governo da República Federal da Alemanha e realizada por um instituto científico com sede na capital da Áustria. A obra versa sobre os novos movimentos religiosos ocidentais, surgidos a partir da década de 60. Nomeados 'cultos' nos países de língua inglesa, os alemães têm designado estes grupos religiões para jovens [Jugendreligionen] ou seitas para jovens [Jugendsekten].

Do ponto de vista da sociologia da religião, o mérito deste trabalho está na construção de uma tipologia de novos movimentos religiosos, no sentido de uma classificação de acordo com um triplo sistema de categorias. O primeiro critério mais evidente é a origem geográfica de uma religião para jovens, fator que separa o conjunto da nova religiosidade em duas sub-classes: os originários do Oriente (na maioria dos casos na Índia) e os originários do Ocidente (predominantemente nos Estados Unidos). Em segundo lugar, os autores prestaram atenção na organização social existente em cada grupo. Esta categoria se refere ao grau de abertura de uma dada religião para jovens, concebida dentro de um contínuo virtual encerrado nos dois pólos ideais. Um lado extremo é representado por um "firme grupo primário decisivo para o conduto da vida e das relações externas" e no qual o indivíduo desenvolve, sob fixas regras coletivas, uma nova identidade incluindo novas atitudes, valores e estilos de comportamento [21]. O outro extremo é caraterizado por uma estrutura social que também favorece uma mudança de personalidade e uma orientação aos ideais, objetivos e estilos do grupo. Todavia, isto acontece de maneira diferente, pois aqui a socialização não é uma questão de ordens e de obediência, mas uma questão da adoção voluntária de "reconhecimentos espirituais" e "doutrinas', por meio de uma prática de meditação ou de outros exercícios espirituais[22].

O terceiro critério de classificação dos novos movimentos religiosos sugerido pelo Estudo de Viena refere-se à posição dos grupos diante da sociedade em geral. Para classificá-los os autores propuseram três subcategorias: fuga do mundo, mudança do mundo e integração do mundo. No caso da fuga do mundo, um grupo põe como absoluto sua ideologia, seus valores e seus padrões, ignorando a realidade fora da própria organização religiosa e tentando evitar, o máximo possível, o contato externo. Mudança do mundo significa que o grupo se esforça por criar uma sociedade ideal em substituição ao status quo considerado decadente pelos membros deste tipo de movimento religioso. A categoria integração do mundo, por sua vez, preocupa-se com a aspiração dos participantes de uma nova religião de crescer individualmente sob dadas circunstâncias sociais, para cumprir melhor a sua função particular e com isso contribuir para um positivo desenvolvimento da sociedade[23].

Embora o Estudo de Viena introduzisse vários aspectos importantes na discussão sociológica nos países de língua alemã, tal pesquisa não chamou atenção suficiente. Pelo contrário, o debate público sobre as chamadas religiões para jovens permaneceu sem referência teórica, favorecendo uma abordagem estereotipada, um tratamento de fenômeno não-diferenciado e um vocabulário pejorativo. Urgente é lembrar da sistematização oferecida por um estudo que, se tivesse sido divulgado num grau mais amplo, teria sido apropriado para romper com uma discussão pública, dominada por dados falsos e preconceitos profundos.

Sistema de categorias do Estudo Viena

RELAÇÃO
COM O
MUNDO
EXTERNO
ORIGEM ocidental oriental
SOCIA-
LIZAÇÃO
grupo fechado  treino-psicológico
individual
grupo fechado treino- psicológico 
individual
fuga do mundo Meninos de Deus    Luz Divina/
ISKCON
  
mudança do mundo
(pro-capitalista)
      Igreja da
Unificação
  
mudança do mundo
(pro-socialista)
      Ananda Marga   
integração do mundo    Cientologia    Meditação Transcentental/
Rajneesh
Fonte: Berger, H.: P. Hexel: Ursachen und Wirkungen gesellschaftlicher Verweigerung junger Menschen unter besonderer Berücksichtigung der "Jugendreligionen". Wien 1981

3.2. Comunicado de governo federal de 11 de julho de 1978 sobre seitas para jovens

Embora o governo alemão tivesse anunciado a divulgação do Estudo de Viena, a obra nunca chegou ao público. Até mesmo departamentos universitários, apesar de entrar diretamente em contato com o ministério responsável, enfrentaram dificuldades para receber o trabalho, ao menos uma versão inicial. Esta hesitação por parte do governo, de fazer o Estudo de Viena acessível, estava em contraste nítido com o fato de que, em julho de 1978, em uma entrevista coletiva, um porta-voz do próprio ministério havia advertido em estilo drástico que as Jugendreligionen sejam destrutivas seitas para jovens e representariam um grande perigo para o povo alemão, especialmente para os jovens. Como resultado desse encontro com os jornalistas, surgiu, nos jornais alemães em 11 de julho 1978, sob o título: "Seitas arriscam jovens. Já quase 150 000 adolescentes já são dependentes", o seguinte artigo distribuído por uma agência de notícias:

"Aparentemente as polêmicas Jugendsekten ganham cada vez mais fiéis. De acordo com estimativas do Ministério Federal para Juventude, Família e Saúde quase 150 000 adolescentes correm o risco se tornar dependentes daquelas seitas. Na segunda-feira em Bonn, Secretário de Estado, Wolters, comparou a significância deste problema para adolescentes à toxicomania, ao alcoolismo e também à subcultura de terroristas. São destacadas especialmente seis seitas: a Igreja de Cientologia; a 'particularmente agressiva' Seita do Reverendo Moon; os anti-sionistas Meninos de Deus, acusados de práticas imorais como a 'prostituição para Jesus'; a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna; a Missão de Luz Divina e a Sociedade de Meditação Transcendental. Wolters falando sobre uma 'seita-droga', informou que os conhecimentos, também na área de ciência, sobre métodos e influência dessas seitas sobre os adolescentes ainda são insuficientes. A Universidade de Tübingen recebeu recentemente do ministério um pedido de pesquisa. Como motivos de adesão de adolescentes foram mencionados: uma freqüente fuga do mundo por causa de medo do futuro; problemas na família, na escola e na profissão, bem como a incapacidade de enfrentar competição. Aparentemente nos casos de muitos membros de seitas, uma alarmante mudança de personalidade é relacionada à adesão. Wolters admitiu que ainda não era possível apresentar prova inequívoca de que seitas na República Federal usassem métodos, restringindo ou, até mesmo, eliminando a vontade própria e a liberdade de decisão dos indivíduos afetados. Na opinião de Wolters o objetivo comum das seitas religiosas na República Federal é caraterizado pela aspiração pelo poder e pelo dinheiro. O estado da Baixa Saxônia já deu ordem a seus serviços municipais não conferir mais permissão para coleta. Também secretarias da fazenda não devem mais conceder bônus de impostos. O ministério federal atribui importância significativa ao trabalho de organizações de juventude, de associações de pais e das duas grandes Igrejas, para impedir, por meio de ações preventivas, que adolescentes caiam na dependência de seitas."

3.3. O exagero seletivo como recurso retórico no contexto do debate sobre seitas na Alemanha

No caso do comunicado do governo alemão sobre "seitas para jovens", tratou-se de uma redução radical da verdadeira diversidade da nova religiosidade que se tinha desenvolvido a partir da década de 70 na Alemanha. Em vez de diferenciar aquele conjunto múltiplo e falar adequadamente sobre uma escala de grupos qualitativamente diferentes, Wolters desenhou uma imagem extremamente limitada e incapaz de representar o espectro real dos seis novos movimentos religiosos citados no artigo de 11 de julho de 1978. Localizando tal caracterização estereotipada no sistema de categorias dos autores do Estudo de Viena, torna-se evidente que as seitas, no entendimento do então Ministério Federal para Jovens, Família e Saúde, correspondiam melhor a grupos que, no esquema do Estudo de Viena , ganham sua coesão por meio de fortes ligações internas sob uma liderança autoritária e se posicionam frente à sociedade em geral por uma atitude de fuga do mundo. Todavia, estas duas qualificações combinam apenas com três grupos quantitativamente menos significantes, isto é, os Meninos de Deus, a Missão de Luz Divina e a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. Por outro lado, a notícia divulgada pela imprensa em julho de 1978 omitiu que a caracterização dessas chamadas seitas para jovens restringiu-se a criar um modelo exagerado, distante de maioria dos novos movimentos religiosos, incluindo os grupos abertos e motivados por uma integração do mundo como o da Igreja de Cientologia e o da Sociedade de Meditação Transcendental freqüentados por milhares de adeptos.

3.4. A transferência de definições socialmente negativas como recurso retórico no contexto do debate sobre seitas na Alemanha

Além de representar o exagero seletivo tratando a complexa nova religiosidade como se fosse um conjunto de grupos fechados e autoritariamente liderados, o citado artigo de 11 de julho de 1978 também contém o segundo elemento retórico constitutivo para uma aniquilação: a transferência de definições socialmente negativas. Este aspecto torna-se visível à medida que se tome em consideração a dimensão conotativa[24] do comunicado sobre as seitas para jovens. Neste sentido vale a pena prestar atenção para a combinação de palavras com a qual os novos movimentos religiosos, em geral ou em particular, foram caraterizados pelo porta-voz do Ministério Federal para Juventude, Família e Saúde. A fala é sobre toxicomania, alcoolismo, terrorismo, agressividade, anti-sionismo e prostituição, no entanto, esta escolha lexical precede no artigo a manifestação que ainda faltam à sociedade conhecimentos concretos, também na área de ciência, sobre o assunto.

Não deve ser difícil imaginar, do ponto de vista do público, o impacto emocional deste comunicado em uma época em que grande parte do povo alemão não tinha tido nenhuma informação sobre atividades desses grupos, enquanto outra parte nem sabia de sua existência. O cidadão comum, preocupado com qualquer fenômeno social fora da normalidade que poderia arriscar a moral e a integração da sociedade, sabia bem como se posicionar contra problemas como drogas, terrorismo, anti-sionismo e prostituição. Em 11 de junho de 1978, ele aprendeu, por meio de uma declaração oficial dada em nome da instância política mais alta do país, que ele deveria considerar seitas para jovens não apenas como se fossem uma mera variação de um comportamento irregular, mas quase como a soma de todas as pretensões subversivas até então conhecidas.

3.4.1. A transferência de definições socialmente negativas no início do debate sobre "seitas para jovens"

Quando se analisa a vasta e estereotipada literatura sobre seitas, publicada nas décadas de 70 e 80, demonstra-se que na discussão pública as áreas de problemas mencionadas pelo artigo de 11 de julho de1978 foram hierarquizadas. Embora fosse comum que autores localizassem as seitas no campo de interseção de vários conflitos, a crítica se concentrou na acusação de que novos movimentos religiosos restringiam a vontade própria e a liberdade de decisão dos seus membros. A maioria das publicações desta época trazia a preocupação de que os fiéis dos grupos em questão seriam incapazes de perceber adequadamente a realidade. Isto significa que a idéia preferida pelos críticos era de que os membros das seitas sofriam de um defeito de percepção e de uma distorção de sentidos. Segundo os autores, pessoas que freqüentam novos movimentos religiosos são caracterizadas por uma dependência viciosa de líderes carismáticos, por uma paciência fleumática e por uma falta de energia e estes aspectos, por sua vez, são causado por um controle hipnótico do cérebro[25] ou por uma mutação de psique[26]. Com efeito, mais do que qualquer outro fenômeno irregular ou amoral, as duas palavras-chave dependência e drogas sinalizavam urgência, referindo-se a um debate anterior sobre as conseqüências destrutivas do uso de narcóticos, especialmente os alucinógenos. Esta visão predominante na primeira fase do debate sobre novos movimentos religiosos foi explicitamente representada por artigos com títulos como Das drogas à seita para jovens (1976), Da maconha à seita para jovens(1979) ou Drogas e seitas. Fenômenos da fuga (1981). Neste contexto também vale lembrar as palavras com que o encarregado para seitas da Igreja Católica na Bavária, Hans Löffelmann, havia introduzido a nova religiosidade como um problema social. Em um dos primeiros artigos alemães sobre o tema, ele enfatizou em 1976 que o público precisaria entender "que não somente o traficante com suas drogas representa um perigo mortal para os jovens e a sociedade, mas também o 'chefe' de uma seita para jovens, pois, enquanto o traficante destrói seus 'clientes' fisicamente, um líder religioso é capaz de fazer o mesmo à psique dos jovens[27].

3.4.2. A transferência de definições socialmente negativas no debate sobre "seitas para jovens" na Alemanha oriental depois da reunificação

Quando o muro do Berlim caiu, o debate sobre seitas no território conhecido como Alemanha Ocidental estava numa fase moderada. Depois de inumeráveis publicações, palestras e apelos, o saber sobre a potencialidade destrutiva dos novos movimentos religiosos fazia parte do senso comum e os repetidos argumentos de adversários explícitos contra os grupos tinham levado a uma situação de saturação, causado um arrefecimento de indagações sobre o assunto. Em contrapartida encarregados para seitas, especialmente da Igreja Luterana, encontraram um campo alternativo de agitação na outrora Alemanha Oriental[28]. Lá o debate ganhou nova força não só por causa de um exagero quantitativo a respeito da expansão dos movimentos religiosos[29], mas também por meio de uma retórica que combinou com a mentalidade de um povo que, por enfrentar mudanças em todas as áreas da vida social, viu-se obrigado a se adaptar a um sistema político ainda desconhecido. Na busca de orientações no correr deste processo, foi altamente dependente das opiniões de especialistas vindo do Oeste da Alemanha para dirigira integração dos cinco novos estados e de seus habitantes na reunificada República Federal.

Como já foi dito anteriormente, a retórica de uma aniquilação social implica dois recursos, isto é, o exagero seletivo de certos aspectos do fenômeno desafiador e a transferência ao tal fenômeno de definições socialmente negativas. A respeito deste último recurso é possível identificar na discussão, ocorrida no Leste da Alemanha, pelo menos três elementos.

Em primeiro lugar é evidente que as ações ideológicas contra seitas serviram-se de um vocabulário da guerra fria. Havia pouco tempo que o povo da comunista República Democrática Alemã tinha sido alertado sobre a possibilidade de uma defesa à mão armada contra uma investida militar capitalista. Depois da dissolução dos dois grandes blocos políticos, resíduos da preocupação de um confronto hostil foram revividos, quando os "encarregados para seitas" caraterizavam o pessoal dos novos movimentos religiosos como tropas[30]; suas tentativas de ganhar novos membros, como um recrutamento; estabelecimento de centros, como postos de alistamento militar; e tudo isso, como passos inicias de uma ação estratégica a longo prazo, tendo por alvo final a ocupação do que fora a Alemanha Oriental[31].

Em segundo lugar, de certa forma, apontando para uma direção oposta, novas religiões foram comparadas à FDJ [Freie Deutsche Jugend], isto é, o movimento oficial de juventude da antiga República Democrática Alemã. Uma expressão comum deste segundo elemento foi a imagem do "efeito de porta giratória", propondo que a queda do sistema comunista deixara um vácuo ideológico que, por sua vez, levou a uma tendência compensatória, abrindo espaço para grupos religiosos com uma estrutura semelhante àquela do FDJ. Especialmente no início do processo da reunificação, ou seja, em uma situação de transição nacional caracterizada por esforços coletivos de vencer tanto estruturalmente quanto ideologicamente a herança de um sistema autoritário, fechado, não-tolerante e não-livre, a fórmula "seitas" =FDJ não deixou de funcionar como recurso aniquilador. Era consenso amplo que a FDJ, movimento elitista, unilinear, hierarquizado ou ainda para-militar, era uma instituição típica do estado comunista, uma entidade que não tinha e nunca deveria ter nenhum paralelo na República Federal da Alemanha[32].

O terceiro conjunto de argumentos, aproveitado pelos adversários dos novos movimentos religiosos consistiu em acusações de duvidosas atividades econômicas por parte daqueles grupos. Neste contexto, especialmente a Igreja da Cientologia tornou-se o objetivo principal da crítica, substituindo a ISKCON ("Hare Krishna"), os Meninos de Deus e a Igreja de Unificação (movimento do Reverend Moon) que tinham sido os mais polêmicos objetos na primeira fase da discussão nos anos 70.

A Cientologia, tradicionalmente mal vista na Alemanha Ocidental, regularmente atacada por causa de suas aspirações 'imperialistas' e 'capitalistas, foi ainda mais combatida na antiga Alemanha Oriental[33]. Nesta parte do país, a mentalidade da maioria de seus habitantes era caracterizada por um alto grau de insegurança frente à obrigação de impor-se individualmente no escasso mercado de trabalho, de sobreviver em novas estruturas e mecanismos de um sistema anteriormente conhecido como hostil, desumano, ou seja, como fonte afluente de competição e de egoísmo. Sob estas circunstâncias, já logo depois da reunificação, no lado oriental da Alemanha circulavam particularmente notícias sobre seitas acusando-as de se esconder atrás de uma pseudo-religiosidade revelando assim seus verdadeiros motivos pecuniários. Vários casos provam o uso desta argumentação. Por exemplo, em Erfurt, capital do Thüringen, uma briga sobre o BEP ("Bewußtseins-Erweiterungs-Programm") considerado um novo grupo religioso, teve muita repercussão. Segundo uma alarmante informação de um representante da Igreja Luterana, este movimento tinha recebido apoio financeiro de um fundo público. Em Berlim, o mesmo "encarregado para seitas" denunciou que o polemica AAO ("Aktions-Analytische-Organisation") tinha conseguido adquirir um terreno vendido pela sociedade fiduciária (Treuhandgesellschaft) responsável pela privatização do patrimônio nacional da antiga República Democrática Alemã[34].

Porém, enquanto notícias como as citadas se referiam a acontecimentos singulares, a discussão correspondente sobre a Cientologia ganhou rapidamente uma própria dinâmica. Centenas de artigos em jornais e revistas surgiram no decorrer dos anos seguintes à reunificação, atribuindo a este grupo de manobras duvidosas e subversivas especialmente no campo da economia. Até mesmo por parte oficial, circulavam rumores sobre somas exorbitantes ganhas pelos cientologistas. Por exemplo, no encontro de uma comissão do Parlamento Federal sobre "seitas", em 9 de outubro de 1991, um membro desta agremiação lamentou que, além de sessenta negócios já existentes, a cada dia fossem criadas novas firmas trazendo para a Cientologia uma renda anual entre 300 e 500 milhões de marcos alemães. Esta estimativa ainda foi superada por um outro membro argumentando que esta quantia seria três vezes mais alta. Especulações como estas esquivavam-se de uma verificação, mas em vez de relativizar as acusações, a falta de provas ainda reforçou as suspeitas justificadas pelo argumento de que os cientologistas agiram clandestinamente e subversivamente e por isso eles estiveram interessados em contratar somente membros da própria Igreja como trabalhadores[35].

4. Reflexão final: A atualidade de definições socialmente negativas sobre "seitas para jovens" na Alemanha

Foi mencionado acima que, na Alemanha Ocidental, o debate sobre seitas para jovens começou em 1973. Deve ser destacado mais uma vez que, no correr de mais de 25 anos, essa discussão tem atraído uma extraordinária atenção pública e, quanto aos novos movimentos religiosos, sua imagem já chegou na segunda metade dos anos 70 a um alto nível de homogeneidade. Não se encontram muitos outros temas contemporâneos que tenham sido tratado com tanta freqüência e unanimidade. Neste sentido, o debate sobre seitas é também um bom exemplo para o fato de que o grau de sucesso de uma campanha de aniquilação não é exclusivamente uma questão da substância do debate, mas depende ainda de aspectos formais, ou seja, da duração e da intensidade com que a retórica aniquiladora é aplicada. Em outras palavras: quanto mais argumentos negativos são repetidos e divulgados dentro de uma comunidade tanto mais é provável que um conceito pejorativo se estabeleça como uma parte integral e duradoura da realidade socialmente construída.

Um caso mais recente justifica a validade desta hipótese e demonstra ao mesmo tempo como sentimentos profundamente enraizados contra falsos, sedutores e perigosos fenômenos podem ser instrumentados por agências sociais em favor de seus próprios objetivos.

Em janeiro de 2000, o F.D.P. - Partido Democrático Liberal - lançou, por ocasião de uma campanha eleitoral estadual, um cartaz que provocou uma grande polêmica. A propaganda mostrava três fotos. Adolf Hitler, no centro, era enquadrado pelo rosto cicatrizado de Freddy Krueger, figura de filme de horror, à sua esquerda, e pelo mestre indiano Osho, antigamente conhecido como Bhagwan Shree Rajneesh, à sua direita.

Sob estas três fotos podia-se ler o slogan: "Se não garantirmos logo mais professores, nossas crianças encontrarão os seus próprios."

Exposto durante algumas semanas, um forte protesto público levou à revisão do cartaz. O texto permaneceu o mesmo, mas as ilustrações de Hitler, Krueger e Osho foram substituídas por uma imagem de um grupo neo-nazista. Quando o líder estadual do F.D.P. divulgou a nova versão nas mídias, pediu perdão pela campanha anterior, argumentando que seu partido não pretendera ferir os sentimentos de ninguém, como se dera com aqueles que "não queriam ver nunca mais nenhuma imagem pública de Hitler"[36].

Enquanto o produto de fantasia, Freddy Krueger, não exigiu nenhum comentário, é importante observar que não houve nenhuma justificativa pelo uso da foto de um líder espiritual. Porém, quem conhece bem a tradicionalmente hostil atmosfera contra novos movimentos religiosos na Alemanha, não deve ficar surpreso, mas sim deve compreender a maneira problemática da representação pública de Osho, como uma confirmação de uma retórica constantemente aproveitada há décadas.

Notas

[1] Cf. Berger, Peter L.; Thomas Luckmann: A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Vozes, 1985, p.155

[2] Cf. Usarski, Frank: Das Bekenntnis zum Buddhismus als Bildungsprivileg. Strukturmomente der "lebensweltlichen" Theravada-Rezeption in Deutschland im Zeitraum zwischen 1888 und 1924, in: Antes, P.; Pahnke, D. [orgs.]: Die Religion von Oberschichten, Marburg, Diagonal, 1989, pp.75 - 86.

[3] Cf.. Notz, Klaus-Josef: Der Buddhismus in Deutschland in seinen Selbstdarstellungen, Frankfurt/M., Peter Lang,1984, p.35.

[4] Bertholet, Alfred: Der Buddhismus und seine Bedeutung für unser Geistesleben, Tübingen/Leipzig, Mohr, 1904, p.2.

[5] Peek, Otto: Buddha und Christus, Berlin 1893, p.32 e p.45.

[6] Haak, Ernst: Christus oder Buddha?, Schwerin 1898, p.23.

[7] Englert, W.Ph.: Christus und Buddha in ihrem himmlischen Vorleben, Wien 1898, p.11 e p.18.

[8] Falke, Robert: Zum Kampfe der drei Weltreligionen (Buddhismus, Islam, Christentum). Ein Katechismus für Wahrheitssuchende Leute, Gütersloh 1902, p.73.

[9] Sinthern, Peter: Buddhismus und buddhistische Strömungen in der Gegenwart. Eine apologetische Studie, Münster 1905, p.79 e 124 ff.

[10] Kohler, Josef: Buddha oder Christus?, em: Der Morgen: 1907, p.35-39, especialmente p.37.

[11] Simon, Theodor: Das Wiedererwachen des Buddhismus und seine Einflüsse in unserer Geisteskultur, Stuttgart 1909, p.42.

[12] Buddhismus und Christentum, in: Die Katholische Bewegung in unseren Tagen. Monatsschrift für die Gegenwart: 1894, p.215-223, especialmente p.223.

[13] Hase, Karl von: Neutestamentliche Parallelen zu buddhistischen Quellen, Berlin 1905, pp.4 f.

[14] Glawe, Walther: Buddhistische Strömungen der Gegenwart, Berlin 1913, p.12.

[15] Buddha und Christus, in: Mahabodhi-Blätter. Eine Zweimonatsschrift für Buddhismus: 2 (1913), Nº­.2, julho-agosto, p.35.

[16] Cf. Peukert, D.J.K.: Das Janusgesicht der Moderne, in: DIFF [Org.]:Jahrhundertwende. Die Entstehung der modernen Gesellschaft 1880-1930, Studenbegleitbrief 0, Weinheim/Basel, Beltz, 1988, pp.60-106, especialmente p.68.

[17] Cf. Ibid., p.4.

[18] Schalk, Fritz: 'Fin de siècle", em: Bauer, R. Et, al. [orgs.]:Fin de siecle. Zu Literatur und Kunst der Jahrhundertwende, Frankfurt am Main 1977, pp.3-15, especialmente pp.4 -5.

[19] Cf.Brockhaus Enzyklopädie, Mannheim 1988, p.208; Lexikon der Kunst, Vol.II; Leipzig 1989, pp.105-106;Der Literatur-Brockhaus, Vol.1, Mannheim 1988, pp.472 f.

[20] Berger, H.: P.Hexel: Ursachen und Wirkungen gesellschaftlicher Verweigerung junger Menschen unter besonderer Berücksichtigung der "Jugendreligionen". Wien 1981

[21] Ibid., p.8.

[22] Ibid.

[23] Ibid., p.11.

[24] Cf. Ungeheuere G.: Inhaltliche Grundkategorien sprachlicher Kommunikation. Überlegungen zur Inhaltsanalyse, em: Schweisthal, K.J. [org.]: Grammatik-Kybernetik-Kommunikation. Festschrift für Alfred Hoppe, Bonn 1971, pp.192 ff.

[25] Cf. Thomas, K.: Persönlichkeitsveränderungen junger Menschen in destruktiven Kulten. Von der überwertigen Idee bis zur hypnotischen Gehirnkontrolle, em: Karbe, K.G.:Müller-Küppers, M. [org.]:Destruktive Kulte: Gesellschaftliche und gesundheitliche Folgen totalitärer pseudoreligiöser Bewegungen, Göttingen 1983, S.116 ff.

[26] Cf. Thomas, K.: Psychomutation. Jugendsekten als Gefahr für die Gesundheit, em: Archiv für Religionspsychologie: 15 (1982), S.195 ff.

[27] Cf.Löffelmann, H.: Das Geschäft mit der Religion. Neue Jugendreligionen schiessen wie Pilze aus dem Boden/Von allen Seiten wird gewarnt, em: Bundesvorstand des BDKJ (org.): Son­derdruck aus BDKJ?Informationsdienst vom 15.März 1976, p.2.

[28] Cf. Usarski, Frank: The Response to the New Religious Movements in East Germany after Reunification,em: Wilson, Bryan and Jamie Cresswell (orgs): New Religious Movements: Challenge and Response. London, Routledge, 1999, pp.237 ? 254.

[29] Cf. Usarski, Frank: "Alternative Religiosität" in Ostdeutschland im Kontinuum zwischen cult-movements und Esoterik-Angeboten, em: Pollack, Detlef; Gert Pickel [orgs.]: Religion und kirchlicher Wandel in Ostdeutschland, 1989-1999, Opladen (Leske & Burdrich) 1999, pp.310-327.

[30] Cf. Sekten im Osten, Invasion des Glaubens, em: Wochenpost de 12 de jeneiro de 1995.

[31] Cf. Sekten und Psychokulte auf dem Vormarsch in den Osten. Gespräch mit Thomas Gandow, Sektenbeauftragter der Ev.Kirche von Berlin-Brandenburg, em:Sächsische Zeitung 1.3.1995

[32] Cf. Mun statt Marx, em: Der Spiegel, 36, 1990, pp.97-99.

[33] Cf. Billerbeck, L.v.; F.Nordhausen: Der Sekten-Konzern. Scientology auf dem Vormarsch, München 1993.

[34] Cf. Deutscher Bundestag. 12. Wahlperiode. Ausschuß für Frauen und Jugend. 14.Ausschuß, Protokoll Nr.13. Stenographi­sches Protokoll über die 13.Sitzung des Ausschusses für Frauen und Jugend am Mittwoch, dem 9.Oktober 1991, 14.00 Uhr, Bonn, Bundeshaus, Sitzungssaal NH 2302 (Vorsitz: Abg. Dr.Edith Niehuis (SPD)) Einziger Punkt der Tagesordnung: Nichtöffentliche Anhörung 'Jugendsekten', p.48.

[35] Cf. Usarski, Frank: Neue religiöse Bewegungen in den Neuen Bundesländern, em: Klöcker, Michael; Udo Tworuschka [orgs.]:Handbuch Religionen in Deutschland [HdR], 4. Ergänzungslieferung, Köln, Olzog, 2000.

[36] Ersatz für Hitler-Plakat, Focus, edição internet, 6 de abril de 2000.