SERBIN, Kenneth P.
Diálogos na Sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura, tradução: Carlos Eduardo Lins da Silva, Companhia das Letras: São Paulo, 2001, 566 p.

por Sara Cristina de Souza[*] []

O mês de abril de 2004 foi particularmente agitado em terras brasileiras. Nos canais de televisão, em fascículos de jornais, em publicações acadêmicas e palestras, o 40º aniversário do Golpe Militar (ou da Revolução Redentora) foi analisado. A tortura, a cassação dos direitos políticos e os abusos do regime militar foram relembrados, os presos políticos, tanto os vivos como os mortos, foram cultuados, e até mesmo as Forças Armadas, em suas declarações, não esqueceram de mencionar esse período, o qual, como todos acreditam, pertence, exclusivamente, ao passado e à história de nosso país.

Muitos escritores, principalmente sociólogos, historiadores, políticos, teólogos e jornalistas, tentam, desde a época na qual os militares ainda governavam, explicar as circunstâncias e o período nos quais interrompeu-se no país a democracia, e as conseqüências que tal ruptura trouxe para a atual política brasileira. A grande maioria desses trabalhos ressalta os horrores do regime e, concomitantemente, a coragem e determinação da oposição, fosse ela estudantil, operária, comunista ou católica. No caso dos que escrevem sobre as atitudes da Igreja Católica durante o Regime Militar, não são poucos os que descrevem a Igreja Progressista como “heroína”, guardiã e defensora dos direitos humanos e da liberdade de expressão.

Não podemos ignorar o papel de oposição aos militares exercido por muitos setores católicos, mas também não podemos nos contentar em escrever uma história com “mocinhos” e “bandidos”; devemos, ao contrário disso, tentar entender qualquer período histórico - não só a ditadura militar -, como uma confluência de várias idéias e ações, e, nesta, encontrar tanto as diferenças quanto as semelhanças entre essas mesmas idéias.

Encontramos no livro Diálogos na Sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura um exemplo de análise histórica que leva em consideração, entre outras coisas, a confluência acima descrita, com suas diferenças e semelhanças, conflitos e contradições. Ao escrever sobre o relacionamento entre a Igreja Católica e as Forças Armadas durante a ditadura, Kenneth P. Serbin, historiador norte-americano e professor da Universidade de San Diego, Califórnia, cuidadosamente relativiza a oposição entre católicos e militares e, diferentemente de muitos trabalhos sobre o assunto, analisa a aproximação e o diálogo entre as duas instituições, utilizando como objeto de estudo para tal a Comissão Bipartite.

A Comissão Bipartite, segundo Serbin, era formada por membros da alta hierarquia católica (como Dom Eugênio Sales e Dom Paulo Evaristo Arns) e militar (como o General Antônio Carlos da Silva Muricy, chefe do Estado Maior do Exército na época), a qual manteve, por quatro anos (entre 1970 e 1974) encontros secretos – aprovados pelo então presidente Médici e pelo ministro do Exército, Orlando Geisel – visando discutir e resolver os principais conflitos surgidos entre a Igreja Católica e as Forças Armadas.

Para o autor, a Igreja e o Exército representavam, e ainda representam, as principais instituições brasileiras. Mesmo que, no fim do século XIX, o Exército tenha colaborado para a separação entre a Igreja e o Estado, suas relações melhoraram com o passar dos anos, principalmente com o trabalho de Dom Sebastião Leme durante a era Vargas. Tal trabalho recuperou o prestígio e o respeito pela Igreja nos setores governamentais através da “concordata moral”, recolocando a Igreja como um dos braços do Estado. Essa relação, ao mesmo tempo formal (por ser extremamente importante e válida) e informal (por não ser legitimada constitucionalmente, por exemplo), permaneceu, de acordo com Serbin, até os primeiros anos do Regime Militar.

O Exército, firmou sua influência política durante o século XIX e a primeira metade do século XX, buscando modernizar-se durante a Guerra Fria, adotando em seus quadros, por exemplo, ideologias anti-comunistas norte-americanas. A Igreja, por sua vez, também trabalhou para modificar-se (enquanto instituição tradicional e voltada prioritariamente aos seus dogmas) e inserir-se em um “mundo moderno” – materialista, egocêntrico, no qual os valores católicos não eram tão relevantes como outrora.[1] A inserção em tal modernidade – antes atacada e condenada pela Neocristandade – deu-se nos anos 1960, quando a Igreja, não tendo mais como renegá-la, realizou o Concílio Vaticano II. Presidido por João XXIII e Paulo VI, foi um marco para as diretrizes políticas e pastorais do catolicismo mundial, principalmente por sua ênfase na necessidade de um compromisso com a justiça social.

Em 1964, simultaneamente, tropas militares brasileiras depõem o então presidente eleito João Goulart e dão início a um governo ditatorial que se estendeu por 21 anos, até 1985. Nas palavras de Serbin: “Em plena conjuntura do Vaticano II, o golpe proporcionou um teste político decisivo para a Igreja. A polarização política ressaltava dois campos opostos. À direita, ficavam os conservadores religiosos e sociais, que censuravam os perigos da mudança. À esquerda, estavam os militantes da ACB [Ação Católica Brasileira], os padres radicais e a liderança da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], que apoiara as reformas sociais de Goulart. Representantes dos dois lados entraram em confronto quando 33 dos bispos mais importantes se encontraram em uma reunião especial no fim de maio de 1964 para escrever uma declaração sobre a Revolução. Os conservadores elogiavam o golpe e condenavam o comunismo, enquanto os progressistas defendiam uma crítica mais dura ao novo governo.”[2]

O que fazer, então? As inovações trazidas pelo Vaticano II eram seguidas pelas Igrejas e religiosos, não só por nelas acreditarem, mas também por uma questão hierárquica: o concílio ditava as novas normas, e elas teriam que ser adotadas. É claro que a Igreja, assim como hoje, não é unânime em suas questões, e os que não eram muito favoráveis às diretrizes pastorais pós-conciliares foram chamados de conservadores, e seus entusiastas, de progressistas. Essa nomenclatura, como veremos nas próximas páginas, é um tanto problemática, mas, nesse caso, demonstra a divisão existente dentro da Igreja em relação ao novo sistema político. Apesar disso, as declarações públicas deveriam mostrar a unidade da instituição, mesmo que apenas no discurso. O que resultou, enfim, foi um pronunciamento “confuso” e “contraditório”[3], na opinião de Serbin, no qual encontramos o apoio dos bispos ao novo governo imposto naquele ano. No entanto, essa confusão, assim caracterizada pelo autor, não pode ser considerada extraordinária: a política da época era confusa, os posicionamentos também, apesar da crescente polarização (entre as duas potências da época, URSS e EUA). Essa, por sua vez, não se restringia apenas no âmbito político-governamental; influenciava também outros setores da sociedade, como a Igreja Católica, por exemplo. Não é compreensível, então, que os discursos e declarações da época também pareçam, aos nossos olhos, um tanto confusos?

O apoio dos bispos, porém, não durou muito. As atitudes repressivas do governo, com a utilização freqüente da violência para deter os opositores ao regime, caminhavam na contra-mão do discurso católico sobre a justiça social. Na visão dos militares, esse discurso católico começa a ser visto como uma perigosa forma de subversão da ordem, aliada ao marxismo e ao comunismo. Muitos católicos passaram a ser perseguidos, assim como guerrilheiros e políticos, e a tortura passou a ser adotada cada vez mais nos Inquéritos Policiais-Militares. É nesse cenário que muitas pesquisas enfatizam a oposição e, até mesmo, um rompimento nas relações entre o Estado e a Igreja; é nesse cenário também que, além da oposição, Serbin enxergará o que ele caracteriza como “continuidade”[4] nessas relações: a Bipartite.

A Igreja, mesmo preocupada com a justiça social e com os direitos humanos, não deixou de se comportar como uma instituição, e uma instituição poderosa. Sua alta hierarquia advinha, na maioria das vezes, de famílias tradicionais da elite brasileira, há muito tempo fazendo parte dos círculos de poder. A Igreja Católica não queria perder seu grau de influência em um dos países mais católicos do mundo; queria continuar a exercer seu papel de “guia moral para a economia política brasileira.”[5] O Exército, por sua vez, também não queria ter uma inimiga tão poderosa. A Igreja era, na época, a única instituição suficientemente forte para desafiar o regime; o seu apoio, nessa órbita, seria uma “benção”, além de melhorar a imagem do país nos países estrangeiros, deteriorada pelas muitas denúncias de tortura feitas contra os militares. Com isso, a Bipartite era importante não só para diminuir os conflitos entre duas instituições poderosas, mas para assegurar que ambas continuariam a exercer seus trabalhos sem maiores problemas, como uma “medida preventiva”: “A Bipartite evitou incidentes […]. O conflito foi canalizado para o diálogo. O resultado foi a diminuição das tensões entre a Igreja e o Estado e a prevenção de uma ruptura mais profunda, o que nenhum dos dois lados desejava. Os bispos receberam poucas concessões, mas o diálogo salvou a Igreja de uma represália ainda mais dura e a beneficiou por manter assuntos católicos e eclesiásticos na agenda governamental. A Bipartite permitiu que a Igreja e o Estado coexistissem durante o pior momento de seu longo e complexo relacionamento.”[6]

Dessa forma, Serbin mostra como essas reuniões secretas, longe da polêmica que tais encontros poderiam causar tanto nos setores progressistas da Igreja quanto entre a facção linha-dura do Exército, foram importantes para as duas instituições, pois, além de concessões, criaram um espaço para discutir as atitudes de cada uma delas. As Forças Armadas poderiam pedir explicações diretamente aos bispos, assim como esses poderiam perguntar sobre as políticas repressivas aos generais, sem intermediários. É claro que, nessa discussão, o aparato militar era maior que o episcopal; afinal de contas, eles, não os bispos, eram os governantes do país. Mas, mesmo assim, pelo respeito que os militares tinham em relação aos bispos ali presentes, estes conseguiram “inverter” essa vantagem, continuando a exercer o papel de guias morais. Ao final, a Bipartite não serviu apenas para que o Estado controlasse os bispos e suas ações: “A Bipartite surgiu como uma forma pela qual a Igreja podia manter seu domínio moral e religioso e tratar de suas preocupações institucionais. Exclusivamente católico numa época de ecumenismo, o Grupo Religioso preservava a tradição brasileira de manter o papel privilegiado da Igreja no processo de decisão da elite. À medida que o regime enfraquecia, a Igreja começou a se retirar da oposição política e a se concentrar de novo na cooperação com o Estado. Durante todo o período moderno, a Igreja manteve uma imagem de si própria como criadora e protetora da identidade católica do Brasil e como guardiã moral do país.”[7]

Esse novo papel da Igreja durante a ditadura militar que a pesquisa do professor Serbin aponta, juntamente com sua análise sobre o período, foi fruto de um intenso trabalho, principalmente com as fontes. O autor teve acesso a uma vasta documentação, tanto nos EUA como no Brasil. Vale ressaltar o arquivo do general Muricy, no qual Serbin encontrou alguns dos relatórios sobre os encontros da Comissão. Segundo ele, a Comissão realizou cerca de 24 encontros, mas apenas metade dos relatórios se encontrava entre os papéis de Muricy. O general, segundo o autor, não só influenciou a história da Bipartite por ter participado dela, mas, também, por ter lido e revisado todos os relatórios, além de selecionar os que fariam parte do seu arquivo. Esse dado é importante pois, através dele, percebemos que Serbin não se interessa apenas em interpretar as fontes, mas também seus autores e suas intenções. Em relação ao restante dos relatórios da Bipartite, o autor acredita que, devido à ênfase dos militares na segurança e na divulgação de seus documentos, a outra metade ainda esteja guardada, assim como muitos outros documentos importantes para a compreensão do período e das relações do Exército com a Igreja.

Além das fontes escritas, Serbin também realizou várias entrevistas com alguns dos participantes dos encontros: Candido Mendes, Muricy, Dom Eugênio Sales e Dom Paulo Evaristo Arns, por exemplo, colaboraram para que o historiador pudesse compreender melhor o universo no qual estava trabalhando, quebrando estereótipos e questionando conceitos, como os tão utilizados (até mesmo nesse texto) “conservador” e “progressista”. Nesse caso específico, essa nomenclatura analítica pode atrapalhar os pesquisadores e impedir que eles enxerguem, sem conceitos pré-determinados, os personagens envolvidos na Comissão Bipartite. É relevante a análise sobre Dom Eugênio Sales, o qual, muitas vezes caracterizado como o modelo do conservadorismo, não apoiou o golpe militar e trabalhou junto com os bispos, tanto progressistas quanto conservadores, para manter as atividades pastorais da Igreja fora do círculo repressivo dos militares.

A análise das personalidades envolvidas na Bipartite é um ponto à parte no trabalho de Serbin. Para construir a história da Comissão, sua criação e seus desdobramentos, o autor presta atenção à história de vida de cada um dos participantes; entender seus pensamentos e decisões depois de se conhecer um pouco de cada trajetória individual torna-se um pouco mais fácil, além de nos livrar, como dissemos acima, dos muitos estereótipos que podem aparecer.

É claro que o trabalho de Serbin não é perfeito, o que, por muitos motivos, é positivo; afinal, se os trabalhos historiográficos fossem perfeitos, os historiadores não teriam motivos para se dedicar a novas pesquisas e passariam, simplesmente, a reproduzir um conhecimento puro e cristalizado. Mesmo assim, sua relevância é notável, como apontamos nessas poucas linhas. Nele encontramos, além dos muitos documentos e interpretações sobre o tema, um alerta muito importante para nós, pesquisadores e historiadores formados ou em formação, o qual, seguido pelo autor, proporcionou a construção de seu livro: “Devemos todos manter a mente aberta com respeito ao passado. Se não, estamos condenados a distorcê-lo para nossos próprios propósitos.”[8]

Notas

[*] Graduanda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora-bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq com o projeto “A Igreja Católica Popular no Brasil a partir dos documentos (1960-1980). Levantamento e análise das fontes do Arquivo Edgard Leuenroth”, orientado pela Profª Drª Eliane Moura da Silva, do Departamento de História da mesma universidade.

[1] A maneira pela qual a Igreja da Neocristandade vê o mundo moderno é explicada também por Scott Mainwaring: “A Igreja percebia o mundo moderno como sendo essencialmente maligno porque corroía ... [a] fé devota e encorajava o culto da personalidade, do prestígio, do dinheiro e do poder. Como escreveu um padre, ‘deste mundo está ausente a caridade, o devotamento, a cooperação generosa com o bem do próximo. E o mundo, curvado sobre si mesmo, os olhos presos na terra, no estômago, no dinheiro, no conforto, na estima das posições de relevo, no culto de todos os sentidos’. A sociedade moderna também corroeu um grande número de valores relacionados com a religião, tais como a família tradicional e o respeito pela autoridade.” in MAINWARING. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, pp. 44-45.

[2] SERBIN, p. 102.

[3] Idem, p. 103.

[4] Idem, p. 413.

[5] Idem, p. 414.

[6] Idem, p. 415.

[7] Idem, p. 441.

[8] Idem, p. 433.