SCHIENBINGER, Londa
O Feminismo Mudou a Ciência? Bauru/SP: EDUSC, 2001

por Eliane Moura Silva []
(Unicamp/IFCH/Departamento de História)

Em 1932, a futura física Joan Freeman então com 14 anos e grande interesse por ciências exatas, particularmente matemática e física, procurou o The Sydney Technical College onde pretendia iniciar seus estudos. Ao ser recebida de forma interessada e acolhedora pelo Chefe do Departamento de Física ouviu dele a seguinte afirmação: " Você deve compreender que eu estou assumindo um risco. As autoridades de educação talvez não aprovem sua presença. Não é um lugar seguro para uma garota. Sua mãe precisa trazê-la e ficar esperando para levá-la de volta após as aulas." Por sorte de Joan, sua mãe concordou sem hesitação, incentivando seus estudos e carreira[1].

Trata-se de um episódio significativo e suscita perguntas: Porque tão pequeno numero de mulheres se profissionalizam e alcançam sucesso nas Ciências Exatas? Qual o impacto cultural das questões de gênero sobre a produção do conhecimento científico, seus pressupostos teóricos, paradigmas e tópicos de pesquisa? Qual o lugar das mulheres na Ciência e na academia? As mulheres elaboram o saber científico de maneira diferente da dos homens? Em suma, há uma forma "feminina" de fazer ciência em oposição ao masculino competitivo e reducionista? Foi pensando nestes questionamentos cruciais para nosso momento histórico que a professora de História da Ciência na Pennsylvania State University, Londa Schienbinger escreveu o livro O Feminismo Mudou a Ciência? (Bauru/SP: EDUSC, 2001).

Na Introdução Londa Schienbinger constata que o(s) feminismo(s) trouxe mudanças à ciência, pelo menos na forma como as relações entre gênero e ciência são analisadas. Por exemplo, as primatologistas (uma área onde mulheres obtém quase 80% dos doutorados nos EUA) com enfoque feminista nas suas observações refizeram paradigmas fundamentais nos estudos e os seres femininos não humanos já não são mais vistos como dóceis criaturas trocando sexo e reprodução por proteção e alimento. Pelo contrário, ao questionar os estereótipos de agressão, dominação e aliança masculina versus submissão feminina, foi possível estudar o significado do estabelecimento de laços por parte das fêmeas em redes matrilineares e chegar a posições assertivas, estratégias sociais, habilidades cognitivas e competição por sucesso reprodutivo.

Contudo, para a autora, deve-se evitar a todo custo as armadilhas clássicas das perspectivas biologizantes estereotipadas sobre papéis de gênero nos estudos científicos. Embora existam métodos alternativos de conduzir pesquisas eles não estão diretamente relacionados a sexo ou qualidades "femininas". Uma historiadora, por exemplo, pode colocar novas questões mas irá respondê-las usando métodos históricos padrão de sua área tais como pesquisa de arquivos, análises textuais ou demográficas e comparação de evidências. Evidentemente, ao tentar tornar visíveis mulheres de determinada classe social sem documentação escrita tradicional, poderá pesquisar a partir de fontes indiretas aplicando uma nova proposta de pesquisa para ampliar questões de gênero mas sempre através de métodos derivados de longos anos de tradição de arquivos com materiais históricos e não provenientes de um conjunto de "qualidades femininas de pesquisadora".

Da mesmo forma, as diferenças históricas entre homens e mulheres não devem servir de bases epistemológicas para novas teorias e práticas científicas, não havendo um estilo feminino ou feminista para ser plugado na bancada do laboratório, nos microscópios, hospitais ou computadores. Trata-se de incorporar uma consciência crítica de gênero na formação básica dos jovens cientistas e no mundo cotidiano da ciência, um entendimento crítico de como os papéis de gênero funcionam na sociedade e na ciência.

O livro O Feminismo Mudou a Ciência? avalia os estudos correntes de gênero e ciência nos Estados Unidos com comparações ocasionais sobre a Europa. Está dividido em três partes: a primeira é história e sociologia das mulheres nas ciências; a segunda do gênero nas culturas científicas; a terceira trata do gênero no conteúdo da ciência. Para Londa, os três problemas centrais – ingresso de mulheres na ciência, a reforma da cultura científica e o surgimento de novas questões e problemas de pesquisa – dependem de análises adequadas do ponto de vista de gênero que deverão também, como contrapartida ajudar o progresso da carreira das mulheres, a reestruturação dos laboratórios bem como a revisão das direções e prioridades das pesquisas.

A Parte I, As Mulheres na Ciência, inicia com um breve histórico sobre a presença das mulheres na ciência, ressaltando que a cultura da ciência já foi mais aberta à presença das mulheres, tendo se fechado progressivamente. O capítulo 1, O Legado de Hipatia, demonstra como historicamente as instituições científicas assumiram suas formas atuais encorajando ou desencorajando a participação feminina, sobretudo após o Iluminismo e o progressivo fechamento das Academias de Ciências no século XVIII às mulheres pelo simples fato de serem "mulheres". Este foi o período no qual características sexuais assumiram um novo significado na determinação de quem iria ou não fazer ciência. As universidades por exemplo, nunca foram boas instituições para as mulheres. Desde sua criação no século XII até o final do XIX (algumas universidades americanas como Harvard e Yale só aceitaram mulheres a partir de 1960) as mulheres foram excluídas. Nas Academias de Ciência, a história se repetiu: A Academie Royale de Sciences em Paris, fundada em 1666, vetou a ilustre física Marie Curie simplesmente por fazer parte do sexo feminino. Ora, sem formação apropriada e acesso a bibliotecas, instrumentos e redes de comunicação, é difícil para qualquer um – homem ou mulher – fazer contribuições significativas ao conhecimento. Estas exclusões também marcam, independentemente de gênero, latinos (as), negros (as), orientais. Numa análise apurado de dados estatísticos, Londa demonstra a exclusão destes grupos nas industrias, academias e universidades, cuja participação diminui progressivamente de acordo com a elevação do grau de prestígio e remuneração da carreira científica.

Revela o papel das divisões tradicionais entre público e privado, emprego e lar, doméstico e profissional como grandes obstáculos ao ingresso de mulheres nas profissões em geral e nas ciências, em particular. Alguns dos problemas das mulheres na ciência dependem de valores interdependentes – prestígio das instituições científicas, acasos de guerra e paz, clima político, economia, estrutura familiar – e muitos tem raízes históricas profundas como os conflitos entre responsabilidades domésticas x profissionais, relógio da carreira acadêmica x biológico. Nos capítulos 2 e 3, Medidores de Equilíbrio e A Linha de Abastecimento respectivamente, examina oportunidades de emprego para as cientistas questionando o modelo de linhas de abastecimento feminino segundo o qual um aumento de meninas interessadas em ciência acabaria gerando mais mulheres cientistas. Chega a conclusão de que a suposição liberal de oportunidades iguais às mulheres (e minorias) levaria a uma progressiva assimilação destes grupos às práticas correntes da ciência sem se revelar, na prática, funcional. Este equívoco liberal estaria no fato de não proporcionar esclarecimentos nem propostas de mudanças nas estruturas das instituições ou práticas correntes da ciência, antes que as mulheres tenham realmente iguais oportunidades nas fileiras dos cientistas.

A Parte II (capítulos 4 e 5), O Gênero nas Culturas da Ciência, trata do gênero no estilo da ciência. Aponta como um problema a suposição corrente de que as mulheres devem ser assimiladas nos termos de um conhecimento científico pré-existente, restringindo seus talentos, características e estilos. O capítulo 4, O Choque das Culturas, parte do pressuposto que características de gênero – comportamentos, interesses, valores "tipicamente masculinos ou femininos" – não são inatos ou arbitrários e sim formulados por circunstâncias históricas podendo e devendo ser modificados. Avalia o impacto da imagem "masculina" do cientista na sociedade e no próprio meio científico, levando muitas cientistas a abandonarem vestidos, maquiagem e adereços característicos de uma "feminilidade" tanto para serem levadas a sério por seus pares como para evitar atenção indesejável à sua sexualidade, adotando um "chador' de trabalho: jeans e blusas xadrez! Forma-se um outro estereótipo: as mulheres cientistas são criticadas por negligenciar a aparência e feminilidade. O complexo de imagens sobre "cientistas" (da masculinidade heróica com barbas e cabelos desgrenhados à profunda excentricidade de comportamento distraído e desligado da vida cotidiana) cria barreiras para as mulheres. Despir-se de atavios de feminilidade tradicional passa a ser uma etapa importante de auto-afirmação intelectual: quando a física Lise Meitner deu sua primeira conferência na Universidade de Berlim sobre "O Significado da Radioatividade nos Processos Cósmicos" em 1922, os jornais relataram seu tópico como "Processos Cosméticos"! Mesmo Marie Curie – modelo popular para mulheres cientistas – tem uma imagem de solitária, introspectiva, vestida de negro, simples e com cabelos severamente presos, sem nenhum tipo de adereço. Será que uma aparência mais feminina tornaria as cientistas mais submissas ou alvo de investidas constrangedoras? Um eterno problema aos códigos masculinos de comportamento e honra? A imagem problemática das mulheres na ciência é paralela ao seu retrato na esfera pública em geral.

Compreender o choque histórico entre culturas discrepantes de papéis de gênero na ciência é fundamental para entender o mal-estar de muitas profissionais no mundo da ciência institucional. Parte deste mal-estar pode ser detectado no conflito entre profissão e vida doméstica. No capítulo 5, Ciência e Vida Privada, a autora sugere arranjos domésticos (divisão das tarefas no lar e com os filhos) e profissionais (empregos em tempo parcial para homens e mulheres com filhos pequenos) como parte da cultura da ciência pois a tensão que as mulheres e, nos dias atuais, os homens encontram entre vida familiar, afetiva, emocional e a carreira já não é mais parte exclusiva da vida privada mas avançam pelo objetivo maior da chamada "qualidade de vida integral". Flexibilidade no emprego favoreceria homens e mulheres cientistas. Pessoas criativas costumam ter múltiplos talentos e, ao contrário do que se pensa, ninguém faz ciência dezoito horas por dia. Não é possível manter a criatividade nem saúde sem tempo para apreciar artes, esportes, política e vidas familiares, afetivas e pessoais. Repensar papéis de gênero e a vida privada entre os cientistas seria um progresso para um conhecimento científico mais criativo e inovador.

Na Parte III (cap. 6-9) são analisadas as influências do feminismo nas diferentes ciências a partir de perguntas básicas: Ciência para quem? Quem se beneficia com o conhecimento e avanço da ciência? A medicina, a primatologia, a antropologia e a biologia aparecem como campos privilegiados. Revisões das teorias de seleção natural, de noções humanas de masculinidade e feminilidade quando aplicadas a plantas ou outras espécies animais foram revistas bem como enfoques alternativos para a saúde da mulher (osteoporose e doenças cardíacas, por exemplo). Contudo, para autora é possível perceber maior progresso de análises de gênero em algumas áreas. Nas ciências humanas e da vida os objetos de estudo podem ser sexuados. Já as ciências físicas e tecnológicas, impessoais e livres de valores humanos bem como formadas por um pequeno número de pesquisadoras, levam a problemas mais específicos.

Os casos da Física e da Matemática são ilustrativos da exclusão de mulheres. Estudos recentes sobre o desempenho de meninos e meninas no ensino fundamental apontam para diferenças de métodos educacionais separando e distinguindo em tenra idade as formações de gênero. É digno de nota perceber que a proporção de mulheres em disciplinas específicas segue a hierarquia de prestígio e valorização salarial nas universidades e comunidades de pesquisa. O Conselho Nacional de Pesquisa americano descobriu que quanto mais matemática é exigida em um dado emprego, maior é o salário e menor a taxa de participação de mulheres. No caso da Física, Londa Schienbinger associa a ausência de mulheres ao prestígio da área de conhecimento entre os militares no período pós-II Guerra e durante a Guerra Fria, sobretudo na década de 1950.

Para a autora a ausência de um contingente significativo de mulheres na Física, Matemática e nas outras ciências físicas não está ligada ao fato de serem conceitualmente "mais difíceis". Deve ser entendida a partir de imagens de gênero, cultura, associações e organizações. Segundo a matemática Claudia Herion, poderosos mitos envolvendo "habilidades matemáticas" trabalham para excluir as mulheres no nível profissional e de pós-graduação: "Primeiro, a matemática é um campo habitado por indivíduos tempestuosos que, trabalhando sozinhos, criam a grande matemática pela pura força de seu gênio imaginativo. Segundo, ser matemático e ser mulher é incompatível: a matemática, com sua ênfase na mente, não é uma profissão para fêmeas da espécie, com seus corpos incômodos que às vezes ficam grávidos e dão à luz. Terceiro, a matemática fornece conhecimento certo, eterno e universal ao qual se chega pelo raciocínio dedutivo e por provas formais." (pp.312-3.)

Ora, como a matemática serve de filtro crítico para as carreira femininas e o prestígio de uma ciência exata depende de seu grau de matematização, esta questão é fundamental e relevante. Acredita-se popularmente, que os meninos são bons em matemática enquanto as meninas são hábeis verbalmente e, mais grave ainda, que estas habilidades são diferenças sexuais inatas refletindo uma organização cerebral específica dos sexos e, portanto, imutáveis, pré-determinadas biológica e geneticamente. As respostas à pergunta "Os homens são melhores do que as mulheres em matemática?" diferem de acordo com a medida de teste adotada. Testes padronizados como o Scholastic Aptitude Test medindo habilidades matemáticas cruas, favorecem os meninos. Contudo, uma avaliação das notas escolares mensurando conhecimentos e aptidões matemáticas, favorecem as meninas. Meninos e meninas mais novos apresentam poucas diferenças de gênero em matemática. As diferenças começam a aparecer e acentuar aos treze anos crescendo durante o curso secundário.

Abandonando por inconsistentes, improváveis e infundadas cientificamente as teorias biológicas deterministas que identificam no cromossomo X, na lateralização cerebral ou nos níveis de testosterona a habilidade matemática ou desempenho científico, devemos pensar as desigualdades produzidas cultural e socialmente, tendo a educação básica e os papéis estereotipados sobre representações de feminilidade importância fundamental. As próprias comunidades acadêmicas masculinas tendem a desenvolver comportamentos sutis de exclusão das mulheres. Um exemplo indicado no livro é o da geóloga Susan Brantley, contratada como a primeira mulher do Departamento de Geologia da Pennsylvania State University. Ao ser convidada para uma recepção de boas vindas foi surpreendida com o fato de que na programação haveria a exibição de um vídeo de mulheres em trajes de banho. Ao dizer não se sentir confortável, os colegas retrucaram que o seu puritanismo estava estragando a diversão do grupo.

Como conclusão de seu estudo, Londa elenca os avanços e problemas da relação entre feminismo, gênero e ciências. Muitas mulheres dirigem agências governamentais, chefiam departamentos e mantém cadeiras acadêmicas de prestígio. Desde de 1982, o governo americano publica relatórios bienais sobre a posição das mulheres na ciência. O feminismo também teve grande impacto no conteúdo do conhecimento humano, sobretudo nas áreas biológicas e médicas, com destaque para os estudos de Humanidades.

Mas, finaliza com uma pergunta: Como continuar a transformar o entendimento crítico das relações históricas de gênero com a ciência, de uma forma culturalmente construtiva? Indica alguns pontos: 1) a introdução de análises de gênero nos cursos básicos de ciências; 2) o desenvolvimento de instrumentos de gênero para pesquisas mais analíticas; 3) prioridades e resultados da pesquisas científicas levando em conta os benefícios para gêneros, classes e etnias; 4) instrumentos de análise valorizando a posição das mulheres na comunidade científica e como o gênero influencia o conteúdo das ciências; 5) repensar culturas da ciência e da domesticidade; 6) decodificar linguagem e representação iconográfica de forma a desmontar estereótipos, analogias e metáforas sobre as relações entre mulheres e ciência; 7) renovar quadros teóricos e reconsiderar definições de ciência. Destaca também o papel da ação governamental, sobretudo das agências financiadoras, para o aumento da igualdade de participação e visibilidade profissional femininas.

Ciência, feminismo, gênero, tecnologia, conhecimento, são conceitos construídos e influenciados pela história, valores culturais e sociais, instituições acadêmicas, fontes de financiamento, mercado de trabalho, redes de informação. Em suma, aspectos culturais que constroem uma dada "realidade", aumentando ou diminuindo conceitualmente similaridades e diferenças, revelando ou ocultando objetos, orientando a construção e delimitação de campos analíticos. Reconhece as dificuldades e a inexistência de soluções fáceis mas admite: " A mudança terá que ocorrer em muitas áreas, simultaneamente, incluindo concepções de conhecimento e prioridades de pesquisa, relações domésticas, atitudes nas pré-escolas e nas escolas, estruturas nas universidades, práticas nas salas-de- aula, a relação entre vida doméstica e as profissões, a relação entre nossa cultura e outras". (pp.351)

O livro O Feminismo Mudou a Ciência? inova e contribui para a questão específica da relação gênero e ciência. Porém, vai mais além ao indagar e apontar todas as sutilezas e perversidades possíveis dos mecanismos de exclusão de mulheres e também de outros grupos minoritários e que frequentemente não são diretos ou claros mas vão insidiosamente provocando inseguranças psíquicas, desconforto emocional, pressão moral, levando sem que se perceba claramente a uma ausência sentida mas pouco estudada. Leitura recomendada a todos os que se preocupam com a igualdade de oportunidades e com respeito as diferenças.

Notas

[1] In Freeman, Joan. A Passion for Physics. The Story of a Woman Physicist. Bristol and Philadelphia, Institute of Physics Publishing, 1991, pp.32-4.