A identidade indígena.
Estratégias políticas e culturais (século XVI e século XVII)

Ênio José da Costa Brito []

Em Religião como tradução. Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial[*], Cristina Pompa retoma a temática das relações entre índios e missionários, tema muito estudado na história e antropologia. Sua pesquisa contribui para consolidar o incipiente processo de renovação da compreensão desses contatos, superando o binômio interpretativo dominante ao explicitar a dialeticidade do encontro no "plano das práticas e dos símbolos, as primeiras veiculando os segundos e sendo, ao mesmo tempo, determinadas por estes".(p.23)

Diante de um mundo, que se transforma rapidamente, a pergunta feita pela autora é: como identificar a resistência no âmbito de universos simbólicos distintos e articulados? Em outras palavras, como identidades são reformuladas, como surgem novas formações sociais e culturais e como se constrói o sentido do outro?

Para apresentar esse dinâmico processo de mediações, a autora divide o livro em duas partes. Na primeira, intitulada Século XVI: os Tupinambá, empreende uma perspicaz e audaciosa releitura das fontes que relatam o encontro entre os índios e os missionários no século XVI no litoral. O cenário muda do litoral para o sertão na segunda parte, Século XVII: os Tapuia, na qual resgata o encontro entre Tapuia e missionários nas aldeias do sertão do nordeste, resgate que possibilita a emersão do "ser Tapuia".

A fascinante análise histórico-antropológico realizada por Cristina Pompa está respaldada por uma vasta e inédita documentação, relida no contexto histórico, narrativo e cultural. A reconstrução deste processo de encontro, que sabemos ter sido opressor, assimétrico, violento e genocida, passa necessariamente pela construção do sentido do outro. Os relatos de viagem inserem a América e seus habitantes em horizontes oníricos, fortemente marcados pelo maravilhoso. Se o "estado de natureza" dos selvagens levou os cronistas a pensar no Paraíso Terrestre, a sua alteridade radical levou-os a pensar na forte presença do diabólico.

Num primeiro momento, o que sobressai nos relatos de Thevet, Jean de Léry, Hans Staden e Gabriel Soares de Souza são as semelhanças, mas há diferenças de estilo literário, de contextos gerais e específicos, religiosos e culturais. "Os viajantes percebem a diversidade antropológica e constroem as categorias pelas quais a pensam e a escrevem: há diferenças internas nestes olhares, há percepções diferenciadas e estratégias específicas com que cada cronista apreende e transcreve o 'outro' para o papel".(p.40)

As missões

Com relação à "religião" dos Tupinambás, os missionários são unânimes em constatar a sua falta. Para evangelizá-los seria necessário detectar os "semina Verbi" (as sementes do Verbo), sinal claro de humanidade; eles as encontram na veneração de Tupâ, ser mitológico; no mito da passagem de Tomé pelo continente e na vaga idéia do diluvio universal.

Portadores de um código religioso, que via no Demônio o principal inimigo da implantação do Reino de Deus na terra, os missionários acreditam estarem as almas indígenas subjugadas ao Demônio, através dos seus intermediários, os xamãs, ou pajés ou caraíbas. Daí, a insistência, ao longo da evangelização, na afirmação da falsidade das obras dos feiticeiros (falsos profetas) e na verdade das obras dos padres (verdadeiros profetas).

Missionários e indígenas no interior de seus horizontes simbólicos buscam compreender a alteridade religiosa. As santidades indígenas se apropriam dos signos exteriores e da fala dos padres e os inacianos da cultura nativa como linguagem. Disputa-se o poder simbólico. "As 'santidades' e os 'profetas' indígenas são, portanto, uma construção negociada. A linguagem religiosa parece tornar-se o terreno de mediação onde cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar o seu sentido e, portanto, sua 'tradução' em termos culturalmente compreensíveis". (p.56)

A evangelização do Novo Mundo nasceu sob o signo profético milenarista, e gradualmente, passou por mudanças, deixando de priorizar a conversão para pensar a mesma evangelização como um projeto civilizador, um projeto cultural global de reconquista religiosa e civil. A obra missionária de Acosta "De temporibus novicissima" e a visão escatológica de Viera ilustram esse deslocamento. Esta reformulação não negava as orientações tridentinas, mas as concepções radicais milenaristas, como a joaquimita.

A missão da primeira metade do século XVI, baseada no sacramento do batismo, tinha entrado em crise. "A descoberta na Nova Espanha da 'simulação' dos índios, que continuavam praticando seus rituais 'idolátricos' apesar da aparente conversão, fez que fosse elaborado um novo modelo de missão, de tipo 'apostólico', com um corpus de agentes especializados, métodos específicos e lugares apropriados. Esse modelo foi encarnado pelos jesuítas".(p.65) Nas missões no Brasil, os jesuítas elaboram uma autêntica "teologia missionária", seja no âmbito institucional como no teológico. Mostram-se ágeis na adaptação de normas e regras e tolerantes com "violações" que não ofendessem a Deus.

A aldeia, na visão de Nóbrega, era o lugar apropriado para educar e converter os índios. O mesmo não pensava o Visitador Cristovão de Gouveia (1583-1585) que considerava as aldeias perigosas para os missionários. Visão compartilhada pelo terceiro visitador Manoel de Lima (1607-1609) que recomendava seu isolamento do mundo exterior. A reação dos missionários a essas pressões está no extraordinário documento intitulado "Algumas advertências para a província do Brasil", documento revelador das práticas cotidianas dos missionários e das tensões com Roma e com os próprios Colégios no Brasil.

"Advertências"abre caminhos novos para a evangelização ao levar em consideração a mobilidade das aldeias, prática que será corriqueira no século XVII nas aldeias do sertão, criadas em 1660. Emblemática, nesse sentido, é a carta do missionário jesuíta Jacob Rolland, em 9 de janeiro de 1667, defendendo a fixação dos missionários nas aldeias dos Tapuias. As cartas jesuíticas, tanto as edificantes (Ânuas e as Relações) como as hijuelas, entendidas no seu contexto literário e cultural, oferecem inúmeros dados para a compreensão das missões.

Os jesuítas foram pioneiros na aprendizagem das línguas indígenas e na preparação de gramáticas para veicular os conteúdos da fé. A tradução de conceitos teológico-filosóficos para códigos culturais nativos comportava riscos, podendo comprometer a ortodoxia da doutrina. A língua geral, criada pelos jesuítas, era uma língua híbrida, colonial, útil para a comunicação que utilizava palavras indígenas e estrutura sintática latina. A conquista lingüística constituiu-se num encontro de horizontes simbólicos. Os inúmeros "compromissos lingüísticos" e a "mitologia paralela" criada pelos jesuítas atestam essa dinâmica. "Está claro que nesta esfera, que os missionários chamam de 'religião', não apenas há um léxico tupi organizado numa sintaxe cristã, mas uma nova sintaxe, ou melhor, uma nova organização de sentidos". (p.91) Tanto a evangelização quanto a aprendizagem do cristianismo implicaram em mudanças nos sistemas simbólicos de missionários e índios.

O profetismo

Por que caminhos a idéia de profeta, construída historicamente, tornou-se objeto da antropologia? Para a antropologia do século XX, a cultura Tupi-Guarani teria permanecido intacta do século XVI até os dias atuais. Fato que permitiu a antropologia afirmar ser o "profetismo Tupi-Guarani" e o Mito da Terra sem Mal e o Messianismo intrínsecos à cultura Tupi- Guarani.

Para a autora, o que sustenta esta visão são teorias gerais, com suas tipologias classificatórias e chaves generalizantes. Faz-se necessário rever criticamente a bibliografia clássica, relacionada com o tema do messianismo Tupi-Guarani. Para isso, Pompa contextualiza "as interpretações de Métraux, Fernandes, Schaden e Pereira de Queiroz, cujas opções para a hipótese de anterioridade ou a posterioridade do profetismo ao contato colonial aparecem fortemente determinadas, respectivamente, pelo difusionismo, pelo funcionalismo, pela teoria da aculturação e pela categorização sociológica".(p.116)

Estes estudos, como têm dificuldade de pensar as culturas nativas em processos, em constante tensão entre sistemas simbólicos e contingências históricas, não se posicionam com clareza a respeito do contato com o branco. Seria ele causa da eclosão dos movimentos messiânicos ou uma contribuição ao mesmo?

Hélène de Clastres, em Terra sem Mal. O profetismo Guarani, recoloca em termos históricos o problema, mas sua opção pela antropologia política leva-a a compreender a busca da Terra sem Mal como uma luta contra o Estado, contra o poder. O profetismo originaria da insanável contradição entre poder político (chefe) e poder religioso (caraíba). O poder seria a razão primeira e última dos fenômenos culturais. A Terra sem Mal, uma reação às transformações políticas internas do grupo.

Para a autora, só a observação das dinâmicas históricas concretas permite perceber a capacidade nativa de inserção nas mudanças. Perspectiva adotada por Bartomeu Meliá, Eduardo Viveiros de Castro e Ronaldo Vainfas nas suas pesquisas.

Bartomeu Meliá - é dele a mais cuidadosa pesquisa etnográfica Guarani - apresenta uma proposta inovadora: "a possibilidade de que os grupos Tupi e Guarani possam ter 'repensado' seus sistemas de significação e 'transformado' seu universo cultural a partir do impacto com o ocidente colonizador e evangelizador".(p.127) Em torno de duas categorias 'espacialidade e tradição', reconstrói o modo de ser guarani, o teko.

A pergunta que se coloca, então, é: como os grupos Tupi-Guarani construíram sentido no bojo de um processo de profundas mudanças? Eduardo Viveiros de Castro, num magnífico trabalho sobre a "inconstância da alma selvagem", relê as fontes para resgatar as razões culturais geradoras de tensões e interações entre um "ser tupinambá" e um " ser europeu". "Eis, então, que enquanto para os evangelizadores os Tupinambá são 'homens de cera, prontos para receber uma forma (...) vácuo religioso clamando por ser preenchido' nos Tupinambá aparece o 'desejo de ser outro , mas segundo os próprios termos" . (p.130)

Ronaldo Vainfas, ao recolocar a Santidade em seu contexto histórico cultural, mostra que do movimento não nasceu uma migração mítica, mas uma nova religião. Com rara sensibilidade histórica desvela a transformação do conjunto mítico-ritual e o dinamismo da cultura tupi e ainda o papel da evangelização na construção simbólica da Santidade. No espaço da missão se elaborou o catolicismo tupinambá.

Trabalhos da década de 1980 e 1990 vem reafirmando que a compreensão do "messianismo tupi-guarani" impõe "a definitiva renúncia metodológica aos rótulos classificatórios e generalizantes que marcaram quase desde o começo o estudo desses movimentos" (p.132) e passa pela recuperação da historicidade desses movimentos.

A autora, após a leitura crítica das obras clássicas, pergunta pelo valor etnográfico das fontes documentais do século XVI e século XVII na reconstituição do universo religioso Tupinambá. Propõe "uma leitura ulterior das fontes no interior de uma abordagem processual, que parte da relação entre mito e história, na análise dos fatos Tupinambá dos séculos XVI e XVII". (p.135) Tomando o cuidado na leitura de explicitar um contexto triplo: o histórico, o narrativo e o conceitual, de evitar comparações indevidas entre dados pertencentes a contextos diferentes e de buscar a compreensão do sentido dos fatos para os diferentes atores envolvidos.

Essa metodologia desvela as simplificações em muitos estudos- como o silêncio sobre o contexto histórico- das migrações Tupinambá de 1549 (Perú), 1605 e 1609), o que possibilita apresentá-las como êxodo religioso. Não se está negando a religiosidade presente nas manifestações, mas que sua realização se dê sempre em vista da busca da "Terra sem Mal". A utilização desta metodologia mostra, ainda, que estas e outras manifestações foram "soluções lógicas e históricas específicas" para questões diferenciadas diante da presença dos brancos.

A leitura "cruzada", por sua vez, confirma que: "a linguagem religiosa parece tornar-se, assim, o terreno de mediação onde cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu sentido, sua 'tradução' em termos culturalmente compreensíveis". (p.161)

A antropologia contemporânea, ao superar a oposição entre mito e história, os vê como formas complementares de leitura da realidade. O que leva as pesquisas a colocarem em pauta os processos de transformação das estruturas cognitivas e sociais, que se dão nas práticas, incluindo as discursivas. Os estudos recentes, que procuram uma explicação para o milenarismo indígena, ilustram esta perspectiva analítica.

Para a autora, os movimentos Tupinambá "não são algo 'intrínseco' à cultura nativa, nem uma 'resposta' escapista e desagregadora à colonização. Eles se constituem, em primeiro lugar, como processos de revisão lógica da cosmologia, em função da refundação de uma nova história (através dos mesmos elementos 'míticos' com que esta foi fundada, illo tempore) frente à necessidade histórica de dar significado ao 'outro' e ao 'eu', na nova realidade colonial".(p.167)

Depois de constatar que as fontes utilizadas por Métraux para sustentar a afirmação sobre a crença indígena no Paraíso Terrestre, se referem mais aos caraíbas do que propriamente a um lugar, recorre a estas e outras fontes que fornecem dados sobre os caraíbas, para analisá-las do ponto de vista histórico-religioso. Nesta perspectiva, elas apontam para a dimensão de anti-ordem das festas dos caraíbas e não para "sintomas precursores" de uma migração à Terra sem Mal, conforme Métraux.

Estas festas são descritas por Cardim, Nóbrega, Anchieta e Azpilcueta Navarro e principalmente por Jean de Léry. Com a chegada do caraíba na aldeia, instaura-se uma nova temporalidade, hic et nunc, marcada pela inversão simbólica que atualiza o mito. "Se é verdade que a meta das migrações tupinambá, pelo menos daquela que temos registro, era esta terra (que é uma terra de mortos), isto lança uma luz específica sobre o sentido cosmológico e existencial das migrações tupinambá".(p.181) O motivo mitológico dos cataclismos é uma realidade na mitologia dos Tupinambá. André Thevet deixou um precioso relato dessa mitologia. Na cosmologia Tupinambá, a ameaça de outro cataclismo não está descartada. A catástrofe universal não é apenas um fato do passado, pode acontecer de novo.

Com a presença dos europeus (do branco) a realidade e a história da sociedade tupinambá deixa de ser aquela estabelecida pelo mito e refundada temporariamente pela reiteração dos rituais. Os Tupinambá passam a objetivar o "outro" e o "ser tupinambá" de diversas maneiras: pela guerra, pela fuga, pela reformulação dos mitos, pela festa que neutraliza a catástrofe e funda a temporalidade e ainda pela catástrofe que implica na revisão da cosmologia e na construção de um mundo novo. O rito deixa então de ser meio, se torna fim, se torna migração.

Para a autora, as migrações em busca da terra fértil são instituições culturais conhecidas dos Tupinambá que, no período colonial, podem ter sofrido uma transformação semântica significando - "busca da terra onde viver". Estamos diante de escolhas culturais possíveis com lastro no universo simbólico, frente a contingências históricas. Assim, "o cruzamento das fontes já mostra com clareza a insuficiência de uma abordagem do 'mito da Terra sem Mal' que prescinde das modalidades históricas do encontro colonial e atribui uma autonomia cultural ao conjunto profético 'tupi -guarani', independente do contato".(p.195)

A imagem do bárbaro e a guerra

O sertão deve ser pensado como um lugar cultural onde atuam índios, missionários, colonos e militares. No século XVII, a colônia gradualmente se faz presente através de "entradas" no sertão do Nordeste. A documentação jesuítica dá conta das desastrosas conseqüências dessas entradas para a vida social dos indígenas, afetada por descimentos, apresamentos, guerras e epidemias.

A presença holandesa na região implica numa mudança nas relações de forças. Os Potiguara, sob o comando de Pedro Poti (PB) e de Antônio Paraupaba (RG) se aliam aos holandeses e Felipe Camarão comanda os aliados dos portugueses. As cartas trocadas entre estes chefes indígenas "são um testemunho precioso da inserção dos índios no mundo colonial, em condições de igualdade política. Para construir suas estratégias, eles utilizaram-se de todos os elementos das culturas e das práticas dos invasores, holandeses e portugueses: das alianças às armas, da fé ao uso da escrita e até do estilo retórico mais redundante e barroco do lado português , mais enxuto e "objetivo" do lado holandês". (p.209-210)

Com a Restauração de Pernambuco, a economia e a política das alianças são rearticuladas e a exploração e a evangelização do sertão retomadas. No final do século XVII, o sertão do São Francisco já fora totalmente explorado. A economia baseada no sistema da pecuária extensiva propiciou o florescimento de parceria ou assalariamento por tarefas. Nesse complexo contexto, marcado por alianças e resistências, eclodiu a "Guerra dos Bárbaros" que não foi só uma guerra de extermínio. "... Os 'Tapuia' não exerceram apenas o papel de vítimas mudas ou de protagonistas de uma cega quanto inútil 'resistência', mas souberam também (ou pelo menos tentaram) se inserir nas contingências históricas em função de seus interesses de sobrevivência física e cultural".(p.218)

A noção de Tapuia , como alteridade absoluta, constrói-se ao longo do século XVII, juntamente com a noção de sertão, espaço imaginário. "O que parece claro é que o sertão, bem como seu habitante, o 'Tapuia' são um espaço, uma humanidade, um conceito móveis" (p.227) A construção cultural do 'Tapuia' realizada ao longo do tempo por missionários e colonizadores torna extremamente árdua e quase impossível a reconstituição etnográfica dos povos do sertão, marcados pela diversidade cultural e lingüística.

Nas fontes portuguesas é uma constante apresentá-los como inimigo de todos e as holandesas lançam um 'olhar tupinizante' sobre eles. A etnografia histórica tem-se utilizado dessas fontes, além das "Relations" de François de Lucé e Martin de Nantes, de Bernard de Nantes e das Cartas Ânuas dos jesuítas. Ao longo do século passado estudiosos procuraram traçar o mapa etno-histórico, descobrir a origem e identificar a língua desses inúmeros grupos.

A autora elabora uma "etnografia histórica" baseada em dois conjuntos de narrativas: as fontes holandesas e as fontes missionárias. As fontes holandesas descrevem com detalhes os costumes dos Tapuia , "oscilando entre alteridade irredutível e a possibilidade de recuperação no plano da humanidade e da cultura".(p.245) Através dos relatos de Elias Herckman (1639), Jacob Rabbi (1637), Zacharias Wagner (1641), Joan Nieuhof, Gaspar Barléu e George Maracgrave e Roulox Baro (1637) tomamos conhecimento do nomadismo, do aspecto físico, das táticas de guerra, do código alimentar, da "corrida de tora", do casamento, da religião, dos rituais fúnebres antropofágicos, dos movimentos migratórios e do poder de negociação dos Tapuia Jandui no âmbito das novas relações sociais estabelecidas entre indígenas, holandeses e portugueses.

Uma preocupação presente nas fontes missionárias é a de primeiro civilizar o índio e depois evangelizá-lo. Repropõem "com clareza os binômios aldeia/mato, sedentário/nômade, razão/instinto e, acima de todos litoral/sertão como significantes da oposição entre barbárie e civilização, onde a única mediação possível é a graça de Deus e a abnegação dos padres".(p.259) Os relatos capuchinhos e as cartas jesuíticas fornecem inúmeros dados etnográficos e informações sobre a guerra dos bárbaros.

Através dessas fontes entramos, também, em contato com descrições de rituais de iniciação, de canibalismo ritual, de mitologias, de ritos funerais, de conversões, de guerras e de alianças de uma vasta gama de grupos indígenas como: Kracui, Ansuns, Umã, Sapoises, Païaïases, Payayá, Sequakirinheus, Sapouá, Moritisés, Curapans, Acará, Procá e Paiacu.

A Guerra dos Bárbaros, que envolveu curraleiros, soldados e missionários, o Governador Geral e seus aliados "constitui o pano de fundo essencial para a compreensão da dinâmica da missionação no sertão".(p.269) A Guerra dos Bárbaros, chamada , também, de "Levante Geral dos Tapuias", "Confederação dos Kariri", teve início em 1687, com o levante em Pernambuco e capitanias anexas. Há uma vasta documentação sobre as "jornadas no Sertão" reveladora da tentativa do Governo Geral de reprimir os ataques tapuia e da expressiva participação dos índios aldeados (aliados) na guerra. "A documentação sobre os primeiros episódios da guerra pode levar a identificar três momentos, entre 1657 e 1679, localizados em áreas específicas: a guerra de Orobó (1657-1659), a guerra do Aporá (1669-1673) e a guerra no São Francisco( 1674 -1679)".(p.271) A documentação deixa transparecer as táticas de guerra "tapuia", ilumina as complexas relações entre o poder eclesiástico e o poder secular no sertão e a precariedade dos equilibrios entre os diversos agentes sociais.

Sendo complicado acompanhar os episódios dessa guerra, a autora pontua alguns fatos: o envolvimento dos jesuítas nas transferências de aldeias, as várias expedições de paulistas contra os tapuia, os interesses dos curraleiros na guerra e o testemunho dos religiosos Martin de Nantes e Jacob Roland sj.

No dia 10 de abril de 1692, Canindé, rei dos Janduis e o governador Camara Coutinho selam a paz. O documento mostra o processo de adaptação dos Jandui, na dinâmica da colonização, através da releitura e reelaboração dos traços culturais, oferece dados sobre a extensão do reino de Canindé e exige a demarcação das terras indígenas. Aos portugueses é permitido a exploração das minas e ainda contar com 5.000 "homens de arcos" para defesa dos interesses do Rei. A conversão dos Jandui à fé católica sacramenta o tratado de paz.

Infelizmente, os conflitos recomeçam e o governo, os paulistas e os missionários declaram "guerra justa". A guerra desestrutura socialmente os grupos indígenas. "A penetração da frente colonial e as derrotas dos 'revoltosos' levariam à paz celebrada em primeiro lugar no litoral e sucessivamente nos sertões do Ceará. A partir de 1720, não se encontram mais registros de sublevações dos 'bárbaros' ". (p.293)

Ordens religiosas e missões

As missões no Brasil iniciaram com a chegada dos jesuítas, em 1549, seguidos dos carmelitas descalços (1580), dos beneditinos (1581), dos franciscanos (1584), dos oratorianos (1611), dos mercedários (1640) e dos capuchinhos (1642).

O Padroado Régio, ao estabelecer nexos de interdependência entre a Igreja e o Estado, ligava de maneira visceral as missões ao projeto colonial, dando ao Rei de Portugal plenos poderes religiosos. A Mesa da Consciência e Ordens se ocupava das questões religiosas da Colônia. Com a ampliação das atividades missionárias criou-se a Junta das Missões, em 1681.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, a legislação buscou um certo equilíbrio entre Governo Central e Igreja e procurou administrar os conflitos entre missionários, colonos e índios. Os capuchinhos - que excluem de sua história oficial das missões no Brasil, a participação, em 1612 -1615, na tentativa de criação da França Equinocial-, dão como início de sua atividade missionária o ano de 1642, quando capturados pelos holandeses, em São Tomé, foram trazidos para a Colônia. Graças à política de tolerância de Maurício de Nassau puderam missionar.

A relação das aldeias Capuchinhas do São Francisco e das Missões no Curso inferior do São Francisco entre 1670 e 1700 dão idéia da ampla atividade exercida por frades missionários como Martin de Nantes, Bernard de Nantes, François de Domfront, Anastácio de Audierne e José de Chanteugontier entre outros.(p.304-305) A leitura da documentação revela as complexas relações entre índios, portugueses e negros nas aldeias, "afastando a imagem da aldeia missionária como um lugar das relações exclusivas entre índios e padres, que boa parte da historiografia (religiosa ou não) costuma transmitir".(p.307)

Em 1740, as aldeias capuchinhas entram em crise, ocasionada por fugas e rebeliões indígenas. Nesse período, eles não gozam da proteção da Família D' Ávila e um clima de desconfiança com relação a eles se espalha pela região. O diretório Pombalino (1759) tira definitivamente a administração das aldeias das mãos dos religiosos.

Os jesuítas, já pelos anos de 1553 e 1555, começam as entradas visando a penetração dos sertões, com escassos resultados. Essa penetração e atendimento das aldeias do sertão é dificultada no tempo da ocupação holandesa. Inúmeras aldeias jesuíticas foram criadas na região sertaneja, respaldadas pelos Colégios da Bahia e de Pernambuco. No entanto, na Companhia, a relação entre os colégios e as missões eram tensas, os primeiros apostam nos descimentos, os segundos defendem os aldeamentos no sertão. A disputa entre Garcia D' Ávila, da Casa da Torre, que em 1669 destruiu residências e aldeias no sertão e o padre Jacob Roland, missionário entre os Tapuia, ilustra bem essa tensão entre as duas almas jesuíticas.

Nas Cartas Ânuas do período (1690-1691,1693), nos Catálogos (1679-1694) e em outras cartas encontram-se referências aos Pagi Tapuyarum (Aldeias dos Tapuia). A carta para a Junta das Missões, de 1702, por exemplo, apresenta bem a situação das missões jesuíticas nos sertões do nordeste. Estas continuaram até 1759, quando os jesuítas são expulsos.

Além de jesuítas e capuchinhos, os franciscanos e a Congregação do Oratório exerceram atividades missionárias no nordeste. Os primeiros chegam em Olinda, em 1585 e já em 1589 recebem algumas aldeias jesuíticas. O projeto missionário franciscano e capuchinho se adapta mais facilmente às exigências da expansão colonial.

As instruções exaradas pelo Diretório aceleraram o fim das missões; em 1761, quase todas as missões franciscanas já tinham terminado.

As missões da Congregação do Oratório no Brasil iniciam , em 1659, com a chegada em Pernambuco dos padres seculares portugueses João Duarte do Sacramento e João Rodrigues Vitória. Entre 1669 e 1685, várias aldeias foram fundadas no sertão, como a de Araribá, Limoeiro, Tapessuruma, Ipojuca e outras. No final do século, os oratorianos abandonam as missões nos sertões("missões heróicas") e dedicam-se às missões volantes e a prestarem serviços religiosos aos portugueses.

Religião no sertão

A presença Tapuia nordeste permaneceu e a autora procura "recuperar as informações sobre os grupos 'Tapuia', reconduzindo-as às fontes das quais provêm e deixando, na medida do possível, que elas próprias se componham num quadro mais amplo de referências".(p.341) Recorre a três conjuntos de fontes: as cartas jesuíticas, as relações capuchinhas e as fontes holandesas.

As fontes holandesas-Eric Herckman, Nieuholf e Baro Roulex-, descrevem com exuberância rituais xamânicos, festas e os papéis dos feiticeiros, que estão em estreita relação com o demônio. A descrição das crenças é simples, eles creem na imortalidade da alma. Os capuchinhos, diante da alteridade Tupinambá, recorrem a esteriótipos do século XVI para desqualificar a religião indígena. "Os poucos relatos sobre 'crenças' indígenas apresentam já versões cristãs, ou cristianizadas de temas mitológicos".(p.350) As estruturas míticas da cultura kariri são inseridas numa cosmologia cristã (tupinizada) na tentativa de superar o "obscuro conhecimento" dos princípios da fé.

Bernard e Martin de Nantes deixam inúmeras informações sobre os rituais, as festas "pagãs" e o protagonismo dos feiticeiros (práticas de feiticaria). "Também entre os Kariri instaura-se, portanto, o jogo de espelhos entre feiticeiro e missionário, já visto nos Tupinambá: se a leitura missionária das práticas de cura indígena só pode se dar em termos de distorção diabólica, a leitura indígena das práticas litúrgicas acontece apenas via código xamanístico". (p.358) A queixa com relação a inconstância possibilita descobrir as estratégias catequéticas e as respostas práticas e simbólicas dos indígenas.

O Sexennium Litterarum (Bahia, 29/7/1657) traz importantes informações sobre os Tapuia dos Jacobinas, antes da fundação das aldeias. A carta de Jacques Cockle aponta para as superstições dos Kariri. A carta ânua de 1769 traz novas informações sobre a festa de Varakidzan, protagonista de maior e mais difundida festa dos Tapuia. A festa é o espaço-tempo no qual se dá o conflito e a negociação entre a cultura indígena e os missionários. "A relação entre missionários e indígenas foi um complexo e articulado trabalho de tradução recíproca e de organização dos símbolos freqüentemente isolados e fragmentados pelo impacto cultural, numa nova ordem significativa". (p.369) Os rituais mostram também a releitura indígena da simbologia missionária pelos indígenas.

A absorção do outro passa pelo ritual, que tendo o mito como ponto de referência, interfere na realidade para modificá-la. "As práticas (práticas rituais, neste caso) são o terreno privilegiado em que as contingências históricas procuram seu sentido nas estruturas simbólicas e, ao mesmo tempo, as modificam."(p.377-378) O cerimonial cristão, ponto alto da catequese, tornou-se também o espaço de incorporações, de encontro e da tradução.

A catequese tem início num vazio semântico, daí, a importância dos gestos e da música com instrumento de tradução. A exitosa missão junto dos Sequakyrinhos no Sertão dos Jacobinas, em 1670, deixa transparecer o processo de ajuste e adaptação dos índios e dos missionários. Estes, proibidos de batizar sem instrução, cedem batizando os mais velhos. Na catequese, gradualmente, se dá prioridade à confissão - os jesuítas eram exímios confessores -, esta possibilita o acesso ao mundo cristão. Entre os Tapuia havia algo parecido com a confissão, o que facilitou o trânsito cultural e levou os índios a se apegarem à confissão cristã.

Os índios associam ao batismo o poder de dar vida e morte, a relação com a morte é uma constante na história das missões. "O discurso dos missionários, então, filtra através da oposição fundamental verdade/mentira [padre/xamã] uma série de práticas que acabam passando da jurisdição xamanística à católica, permanecendo fundamentalmente as mesmas: a confissão (que passa do mato ao padre), a cura (das cantigas pagãs ao batismo e às rezas católicas), o afastamento do 'diabo' (das cinzas à água benta), o culto à divindade (de Badzé a Tupã)." (p.398).

Duas prerrogativas xamânicas são transferidas para os padres, a profecia e a capacidade de fazer chover. A cultura penitencial responsável pela criação da noção de pecado e de um povo santo (genus angelicum) encontra no ambiente apocalíptico vivido pelos índios um terreno fértil para crescer. "Os padres portanto, e não apenas os jesuítas, tinham plena consciência da importância do "enxerto" das cerimônias novas nas antigas, para o sucesso da catequese". (p.405)

É verdade que a "intransitabilidade" de sentido esteve também presente ao longo do processo de evangelização. A pedagogia jesuítica sempre insistiu na utilização de elementos da cultura indígena. As cartas revelam oscilações conceituais, sinais claros do diuturno processo de tradução e negociação "A leitura dos relatos missionários nos coloca às vezes dramaticamente, diante da tentativa tapuia de reconstruir o sentido de um mundo que não era mais o mesmo fundado pelos mitos e mantido em ordem pelos ritos". (p.414) Para refundar a realidade que desmoronava, os indígenas se apoderam de instrumentos simbólicos que consideravam mais fortes.

A herança cultural religiosa deixada pelas aldeias missionárias do sertão acompanha os indígenas em sua dispersão pelas vilas - como o penitencialismo exacerbado - O catolicismo indígena"continuou a desenvolver-se auxiliado esporadicamente pelas santas missões.

Pompa, na esteira dos estudos de Eduardo Viveiros de Castro, Sergio Gruzinski, Ronaldo Vainfas e Bartomeu Meliá, convida seus leitores a renovarem e aprofundarem a compreensão do encontro entre a religião cristã ocidental e os sistemas míticos e rituais indígenas que se deu no período da colonização do Brasil.

Para responder a questão axial de sua pesquisa: como missionários e indígenas construíram o sentido do outro, retorna às fontes e estabelece pressupostos hermenêuticos histórico-antropológicos capazes de superar visões monolíticas que plastificam no espaço e no tempo indígenas e missionários. Visão ainda recorrente em inúmeros textos que circunscrevem suas análises no binômio resistência e dominação. Missionários demonizando, aldeando, dominando e catequizando e indígenas resistindo, defendendo suas imutáveis tradições. Esse modelo analítico não só congela o catolicismo e a fé pré-colombiana, como não dá conta das rápidas mudanças que ocorrem no mundo colonial.

Sem negar a assimetria do encontro, volta-se para o emergente desafio da comunicação entre sistemas simbólicos diferentes. Pompa elege a categoria analítica da "tradução" para deslindar as diferentes estratégias de reconstrução simbólica e prática do mundo, construídas no dia-a-dia colonial por missionários e indígenas.

Os processos vivenciados pelos grupos indígenas e pelos missionários emergem como fruto de uma minuciosa e refinada análise das fontes, muitas inéditas. Análise sempre acompanhada de uma recontextualização dos conjuntos mítico-rituais de missionários e indígenas.

A afirmação da autora com relação às mudanças ocorridas no mundo indígena ilustra a dinâmica analítica presente no livro. "As convergências de horizontes simbólicos que as fontes mostram repetidas vezes, não são dados preexistentes ao impacto colonial, mas construções nascidas no interior das relações históricas deste último; devemos pensar, portanto, que os elementos 'alheios' foram absorvidos pela cultura indígena porque inseriam-se num preciso contexto significativo, isto é, faziam sentido. A criação de um sistema original de representações (uma 'cultura hibrida', diria Vainfas ou uma 'cultura mestiça' diria Gruzinski) foi uma tentativa da cultura nativa de refundar o sentido".(p.7)

Esta perspectiva possibilita a reconstrução de um universo simbólico em constante renovação e não apenas retraído para manter e preservar sua identidade( indígena); possibilita perceber as transformações internas ao projeto missionário seja em relação aos objetivos catequéticos, a realidade política colonial e às estratégias evangelizadoras

Ilustra bem essa dinâmica o esforço realizado pelos missionários no âmbito linguístico para encontrar "isotropias" nas línguas indígenas para termos portugueses ou latinos. "Isotropias" são substituições às vezes audaciosas para criar ou encontrar, em outra língua e sobre outra forma, a correspondência tradutória semelhante de uma frase, conceito ou expressões(Antônio Houaiss). Os catecismos estão repletos de "isotropias".

Missão como tradução nasce clássico, não apenas pela riqueza de seu texto, por suas qualidades analíticas, pelo rigor conceitual, pela audácia em aventurar-se por caminhos sem dispor de mapas suficientes para orientar o percurso . Mas, há ainda um bom caminho pela frente na discussão de um tema tão complexo, carregado de tantos ressentimentos. Pelos resultados e pelo prazer que se tira da leitura, pode-se dizer que a trilha aberta por Pompa é fecunda e merece ser devassada

Notas

[*] CRISTINA, Pompa. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru, SP:EDUSC, 2003, 444 p.