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Mauro Mendes Dias discute o estatuto do semblante na moda, enfocando o feminino como o lugar da falta na psicanálise.

 

 

Dúvidas podem ser tiradas pelo e-mail: psilacanise@pucsp.br



A_barrado.jpg (4395 bytes) Mulher, o Semblante e a Roupa
        por Mauro Mendes Dias

 

Na experiência cotidiana da relação entre os sexos, a mulher é definida como "o ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos, e que se distingue do homem por essas características". Nessa definição, retirada do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a distinção é concebida em termos da diferença anatômica, e as consequências --conceber e parir-- que ela determina. Afora essa indicação, é também conhecida a que se procura estabelecer a partir dos sentimentos. Encontraremos na mesma fonte de consulta : "Mulher dotada das chamadas qualidades e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à família, intuição)".

 

Freud e a Diferença Sexual

A forma como a psicanálise aborda a diferença sexual, terá como ponto de partida um outro referencial. Que, por sua vez, não parte da distinção visual, tampouco da qualidade dos sentimentos.

O que Sigmund Freud introduz de novo no campo de pesquisa sobre a sexualidade é que o sexo não é o que se dá a ver. Consequentemente a diferença não ficará restrita à presença ou ausência de determinada anatomia específica. Nesse sentido ele pode falar em consequ6encias psíquicas da diferença entre os sexos. Abordando as chamadas consequências psíquicas como a formação de uma crença que o sujeito mantém para explicar dois fatos fundamentais: seu nascimento, e o sexo próprio.

Antes mesmo de avançar sobre as elaborações freudianas, constataremos que para a psicanálise a sexualidade não comporta nenhum tipo de naturalidade. Ou seja, não adota o ponto de vista tão comum na cultura, em que o sujeito, sendo portador de determinado aparelho genital, obteria com isso sua identidade sexual. Consequentemente a sexualidade não se estrutura segundo uma identidade preestabelecida. Seja do sujeito com seu próprio sexo, seja do sujeito com o outro sexo. Tal fato apenas acentua a complexidade que está em jogo quando nos detemos na espécie falante, marcada por desejo.

Uma forma de ilustrar a falta de correspondência entre o aparelho genital e a formação de uma identidade sexual é a experiência dos transexuais. Desde cedo revelam uma total imcompatibilidade entre o sexo biológico e o sentimento que tem de pertencer a esse mesmo sexo. Culminando muitas vezes em intervenções cirúrgicas, como tentativa de solucionar essa antinomia. Mais do que reforçar uma perspectiva em que o sujeito não se harmonizaria com o seu biológico devido a uma patologia, o que se procura realçar através da menção aos transexuais é uma impossibilidade de simetria na sexualidade humana.

Já em sua obra de 1905, Sigmund Freud nos esclarece que :

"Do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é o fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração, afinal de natureza química"(1).

Uma vez que o sujeito constrói teorias a respeito de seu nascimento, é porque o desejo que lhe deu origem não lhe é indiferente. A experiência com crianças abandonadas deixa bem evidente de que maneira a ausência de marcas do desejo do Outro é capaz de produzir danos irrecuperáveis. Da mesma forma, a solução que adota para se definir homem ou mulher não permanece isenta de conflitos. A curiosidade e o comentário das crianças ao observar o sexo de seus companheiros indica a presença dos genitais como desprovidos de garantias para manterem-se os mesmos.

Considerando o que foi apresentado até agora, esboçam-se alguns pontos de interesse: A anatomia é responsável pela introdução de uma ordem de conflitos, que remete a sexualidade para um Outro nível de problematização.

A sexualidade é constituída por uma trama que introduz para o sujeito a dimensão de apoio, da identificação, contrariando a concepção naturalista.

Considerar a sexualidade humana pelo avesso de uma naturalidade, implica em abordá-la segundo uma ética que inclua o sujeito do desejo. Isso porque, ao declinar de uma harmonia sexual, um homem e uma mulher serão definidos segundo uma dialética que prescinde da identidade pela simetria corporal.

Uma vez que a sexualidade faz constar uma interrogação, e não mais uma identidade a priori, a relação entre um homem e uma mulher haverá de ser marcada por uma lógica que não coincide à complementariedade amorosa. Nesse sentido o Outro sexo á alteridade, como diferença sem inscrição prévia.

No interesse sobre o qual procuramos avançar, iniciaremos com uma interrogação acerca do lugar ocupado pelas mulheres nos textos freudianos. Apenas uma recompilação criteriosa de todas as nuances e transformações do pensamento de Freud poderia evidenciar sua descoberta nesse campo. Contudo, tendo em vista que tal iniciativa excede os propósitos desse ensaio, daremos destaque às contribuições que mantêm uma conexão mais íntima com o que aqui segue articulado.

 

Freud a as Mulheres

A pesquisa freudiana sobre a estruturação da sexualidade concentrou-se durante bastante tempo nas conclusões a que havia chegado sobre a sexualidade masculina . Freud assinala em 1925 que :

"Examinando as primeiras formas mentais assumidas pela vida sexual das crianças, habituamo-nos a tomar como tema de nossas investigações a criança do sexo masculino, o menino. Com as meninas, assim supúnhamos, as coisas deviam ser semelhantes, embora de um modo ou de outro elas tenham, não obstante, de ser diferentes"(2).

Esse depoimento não se restringe a um interesse histórico. Tampouco, como quiseram alguns comentadores, seria revelador de uma atitude preconceituosa da parte de Freud com relação às mulheres. Sem dúvida que produziu limitações. Entretanto, na medida em que a pessoa de Freud não se sobrepõe à sua obra, haveremos de poder extrair algumas conseqüências.

Detendo-se de maneira extensiva à sexualidade masculina, encontramos presente a dimensão da paternidade e do desejo humano. Tanto a paternidade quanto o desejo incluem uma ordem de conflitos que não é redutível à presença e pessoa do genitor.

"Contra toda a expectativa, até mesmo contra toda idéia, a noção de pai intervém no campo conceitual da psicanálise como um operador simbólico a-histórico. Vamos entendê-la, então, como um referente que apresenta esta particularidade de não estar à ação de uma história, pelo menos no sentido de um ordenamento cronológico. Todavia, ficando fora da história, ele não deixa de estar inscrito no ponto de origem de toda história"(3).

Em 1913, na obra intitulada Totem e tabu, Sigmund Freud constrói o mito do assassinato de um pai primitivo anterior à toda organização social, entendendo esta última como a vigência de uma lei --a proibição do incesto-- que introduz o sujeito na linguagem. A lei que constitui o ser falante como tal é aquela que o confronta aos avatares do desejo. A instância paterna irá demarcar a vigência de uma lei --miticamente construída-- que o define como humano. É o que nos esclarece o autor de "O pai e sua função em psicanálise".

"De fato, a instância do pai simbólico é antes de mais nada a referência à lei da proibição do incesto, a qual é portanto, prevalente sobre toda as regras concretas que legalizam as relações e trocas entre os sujeitos de uma mesma comunidade. Em consequências, é porque o pai simbólico é apenas o depositário legal de uma lei que lhe vem de outro lugar, que nenhum pai real pode se vangloriar de ser seu detentor ou fundador"(4).

Nessa direção, o pai irá introduzir uma mutação fundamental. De figura com quem se confronta, para representante de uma lei que, operada pela palavra, atesta para o sujeito sua própria limitação. O pai passa a ser aquele que faz agir uma função -- a castração -- que por sua vez prescinde das características do genitor para produzir seus efeitos. Nomeado agora como função paterna, ele estará originariamente presente na mãe, introduzindo uma separação entre o sujeito e seu objeto primário de satisfação. Vindo a traçar esse percurso, as substituições haverão de permitir que suas realizações não se restrinjam à disputa pela agressividade.

Quanto às conclusões a que Freud chega sobre a sexualidade feminina, nela haveria também de se obter o reconhecimento quanto à castração, realizando uma equação decisiva no período edípico. Equação simbólica essa, aonde aquilo que ela não tem é substituído por um filho. Diz ele :

"Seu reconhecimento da distinção anatômica entre os sexos força-a a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina para novas linhas que conduzem ao desenvolvimento da feminilidade... Ela abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de um filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor. A mãe se torna objeto de seu ciúme A menina transformou-se em uma pequena mulher"(5).

Sobre esse aspecto é que muitos dos críticos pós-freudianos supuseram que o limite de Freud consistia em valorizar de tal maneira a presença do pênis, que o filho entraria como substituto deste, tão somente. Consequentemente, à mulher não restaria outra alternativa que não fosse gerar o orgão que não possuía sob a forma de um filho. O que merecer ser esclarecido, como foi lembrado antes, é que a sexualidade não se restringe a um problema anatômico --ter ou não ter o pênis. Evidentemente que a presença ou ausência do pênis não deixará de produzir seus efeitos. Na medida mesmo que põe em circulação um jogo de presença e ausência fundamental para o entendimento da sexualidade. Esse elemento ausente, chamado falo, é o operador da sexualidade humana. Portanto, seja homem ou mulher, cada um dos seres em jogo haverá de adotar uma posição frente ao "significante do desejo", o falo(6).

Na direção acima enunciada, podemos acompanhar que esse elemento não visível da sexualidade é o responsável pela dialética que se realiza entre a criança, a mãe e o pai. Nesse sentido, o que a criança espera, em conformidade ao desejo da mãe, é se constituir como o objeto do desejo dessa última, eliminando qualquer tipo de ausência de realização. E não será através de seu orgão genital que ela se lançará para isso. Mas, sim, pelo que é capaz de reconhecer como signo do desejo da mãe apelando, para ela criança, em ocupar esse lugar vazio. Pode-se dizer, portanto que esse elemento não visível da sexualidade é o que determinará, por sua vez, o uso do orgão genital.

Pelo tipo de conclusão a que chega Freud sobre a sexualidade feminina, um de seus limites consiste em englobá-lo no domínio do não ter. Por que isso constitui um limite ? Pelo fato de que não lhe resta alternativa que não seja a de tratar a falta como sinônima de não ter. O que fica deixado de lado é que a falta não significa outra coisa que não seja um meio para reconquistar uma presença. Vale dizer que as elaborações de Freud nunca lhe permitiram adotar uma aproximação maior com o desejo presente nas mulheres. Sua virtude consistiu em não ter se silenciado, daí seu depoimento exemplar : "A grande questão que jamais foi respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus trinta anos de pesquisa da alma feminina, é: O que quer uma mulher?"(7).

 

Jacques Lacan e o Feminino : A Nudez do não ser

Os avanços empreendidos por Jacques Lacan permitiram que a mulher não fosse apenas tomada como referência da que não tem, mas sim como da que não é por inteiro. Nesse sentido, a falta é o que designa a qualidade de não ser. Indicando, com isso, que o não ser permite admitir um Outro campo, o feminino, que por sua vez não comporta o mesmo tipo de referência ao limite, como o do masculino. Se é o não ser que passa a constar como qualidade do campo do feminino, é na medida em que não constitui totalidade, ou seja, o feminino é não todo, tal como a mulher. Avançando um pouco mais nesse raciocínio lógico, podemos entender porque Lacan afirmou que A mulher não existe,. Ela não existe por inteiro, daí sua escrita comparecer marcada por uma barra, forma de atualizar sua não completude.

Se Freud limitou a sexualidade feminina ao não ter, a solução que elegeu para as mulheres foi a da maternidade como recurso de substituição simbólica. Consequentemente, maternidade e feminilidade acabaram por se equivaler. O problema dessa equivalência é aquele que foi evocado antes ao abordarmos a relação da criança com a mãe. A característica dessa última é a de fazer complemento com a criança, investida falicamente. Nesse sentido, a mãe frequenta o campo da totalidade, ao procurar fazer Um com o filho. Enquanto que o campo do feminino, ao se distinguir pelo não todo, compõe um conjunto aonde seu exercício permite a contagem do um a um, como relevo às diferenças.

Há uma precisão que merece ser distinguida no avanço de Jacques Lacan sobre o campo do feminino. Não todo não é sinônimo de não ter. O não todo é primeiramente uma condição lógica que se distingue de uma outra, característica do campo do masculino --o todo. A lógica, por não ser substancializada, permite tratar a questão das posições sexuais dissociada de uma oposição, aonde os valores penderiam mais substancialmente para um dos dois lados. Nesse sentido implica em uma ética, por não adotar a segregação entre os sexos, como forma de distinção entre eles.

O não todo é capaz de produzir seus efeitos também do lado dos homens. O que não coincide com a feminilidade deles, como em geral se difunde. O não todo diz respeito a uma condição que é constitutiva da espécie falante, implicando em suspensão dos limites no campo do sentido, entre outros. Suspensão que permite fazer comparecer um Outro tipo de relação com a lei paterna. Aqui entendida como sinônima da inclusão do sujeito com seu desejo. Por isso mesmo Jacques Lacan pode tomar como paradigma dessa suspensão, a condição que a personagem de Antígona assume na tragédia de Sófocles. Da mesma forma pode se deter na produção das místicas e na modalidade de seu gozo, para aproximar o além do sentido que está em jogo no campo do feminino.

Ao lado de não superpor campo do masculino e campo do feminino com machos e fêmeas, assim também o acesso à suspensão dos limites não se encontra distribuído equitativamente. "A anatomia é o destino", realçou Freud. O que permite supor que a relação do sujeito com sua castração age deferentemente para cada uma das posições sexuais. Leva-nos de volta a uma não complementaridade na relação entre os sexos. Vale dizer que, como característica extensiva, o campo do masculino opera segundo a marca do ser, ou seja, do significante, enquanto este se define como elemento constitutivo e encadeador da linguagem. Enquanto que o campo do feminino se distingue por aquilo que excede ao campo dos significantes, ou seja, excedendo à linguagem.

Se de um lado contamos com a presença do ser, e do outro a do não ser, tal referência não negligencia que, antes mesmo de reservar ao campo do feminino algum tipo de indizível, sua presença revelará uma discursividade diferenciadora. Tendo em vista que o diferenciante consiste na assunção do não ser como marca da existência. Nesse sentido é que pela vertente do feminino somos levados a admitir a dissolução da palavra como condição de sua constituição. Nos termos do que vinha sendo desenvolvido nesse ensaio, é a própria nudez que retorna à cena. Tal como foi afirmado antes, há um a impossibilidade de habitar definitivamente a nudez. Da mesma forma, há uma impossibilidade de frequentar tão somente o campo do feminino. A linguagem como característica distintiva do ser falante marca sua presença à revelia da disposição do sujeito em frequentar mais exaustivamente quaisquer das posições sexuais.

Retomando a passagem do Gênesis de onde havíamos partido, lembremos que a serpente oferece primeiramente o fruto proibido para a mulher. Mesmo sob a vigência da lei divina que proibia comer da árvore do centro do paraíso, a mulher suspende essa proibição, e acolhe o oferecimento. Nesse momento o que fica destacado é que a tentação de suspender os limites possui muito mais força do que a manutenção deles. Tanto é assim que o próprio Adão, arrependendo-se mais tarde, não deixará de ceder a possibilidade que a mulher lhe apresenta. Da mesma forma a suspensão dos limites da lei impede de reencontrá-la em seguida, através da expulsão do paraíso. O que fica marcado, desde então, são os efeitos de dissolução que a suspensão da lei é capaz de gerar. Há uma mudança de estado do ser que se opera a partir dela. No que o não ser ganha lugar, pela suspensão da lei, concomitantemente gera-se um outro estado do ser. Os efeitos do não ser são recuperáveis através de um novo estado do ser. Nesse sentido é que à dissolução da palavra corresponde a assunção dela de uma forma diferenciada. Ser e não ser, não são excludentes. Da mesma forma que masculino e feminino. O que os diferencia é a maneira de operar com o que vigora instituído simbolicamente.

 

Feminino, Moda e Roupa

Pode-se dizer, tomando Eva como referência, que uma mulher não se deixa vestir pelos limites do que existe como instituído. Esclarecendo desde então que a vestimenta é adotada aqui no sentido de reenviar o ser a sua condição de linguagem, marcado pela lei paterna, enquanto lei que o introduz na dimensão do desejo. No que a presença da mulher agencia uma não subsunçao, ela produz uma alteração significativa --a vestimenta surge causada pela nudez, surge causada por aquilo que excede à inclusão do ser na linguagem. Nesse sentido, feminino e nudez se aproximam. Foi por não se deixar vestir pela lei divina que a mulher causou a produção de uma nova vestimenta ---cintas e túnicas que, por sua vez, inauguram uma nova posição do ser-- Queda do paraíso. O Senhor Deus produz roupas para Adão e Eva, somente após a desobediência de Eva. Assim referida, a moda é causada primeiramente pela presença da mulher. Que a moda seja de natureza divina, no sentido em que as primeiras roupas foram produzidas por Deus, remete-nos para o fato de que essa produção torna indissociáveis - mulher (como causa), moda (como linguagem) e vestimenta (como posição).

A nudez característica da mulher acaba sendo revestida pelas roupas que Deus, enquanto linguagem, produz. Consequentemente, poderíamos afirmar que o fato da nudez tender a ser vestida, do feminino ser incluído na linguagem, é um efeito de seu próprio comparecimento. Não há como isolar o feminino para uma região aonde nem sequer poderia se nomear seus efeitos. Sua condição é, como diz André Courrèges, "a de não obedecer à lógica"(9). Posição que define a exceção, nem por isso deixará de ser marcada por aquilo que a envolve, tentando vesti-la. Por isso mesmo não será destituído de importância a ligação da mulher com a moda e a roupa. De saída, nos permitirá considerar a trajetória da moda como uma forma do homem elaborar, vestindo, a relação com a mulher --sua nudez. Nesse sentido, altera-se aqui a afirmação de Engénie Lemoine-Luccioni, autora do ensaio psicanalítico A roupa, de "a moda é feita por e para as mulheres" para "a moda é feita para as mulheres".

Nesse momento, o leitor haverá percebido que a menção à nudez recobre problematizações diferenciadas dos capítulos anteriores. Primeiramente situa o feminino enquanto um campo que é suposto de não ser vestido inteiramente por linguagem. Daí que a moda passa a ser caracterizada como uma atividade que produz a vestimenta --simbólica-- para dar conta da nudez, obtendo como efeito, uma nova posição do ser. Nesse sentido, a vestimenta adquire a função de colocar em cena o ultrapassamento do nível decorativo revelando a presença da nudez, no que pretende vesti-la. Consequentemente a vestimenta irá adotar um limite específico --expediente do ser por onde o não ser se pronuncia. O fato de introduzir um terceiro nível da vestimenta não impede que os outros dois apresentados a ele se relacionem. Entretanto, foi a partir da presença da mulher, como campo do feminino, que se tornou possível uma reestruturação dos níveis anteriores. Isso porque o feminino fará exceção ao que vinha sendo articulado, na medida em que sua insistência terá como fundamento a consecução da nudez. Acompanhemos, pela conjunção dos outros níveis, a presença da mulher, da moda e da roupa no decorrer das épocas.

 

As Vestimentas das Mulheres

Philippe Ariés em seu estudo sobre o traje das crianças observa que "a partir do século XVII duas outras tendências iriam orientar a evolução do traje infantil. A primeira acentuou o aspecto efeminado do menino pequeno. Vimos que o menino à la bavette, antes do vestido com gola, usava o vestido e a saia das meninas. Essa efeminação do menino pequeno, observado já em meados do século XVI, de início foi uma coisa nova, apenas indicada por alguns poucos traços. Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas das meninas que era exatamente igual à das senhoras. Tornou-se impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos. Antes dessa idade, porém eles eram vestidos como meninas, e isso continuaria até o fim do século XIX: o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial, e seu abandono deve ser relacionado com o abandono do espartilho das mulheres: uma revolução do traje que traduz a mudança dos costumes"(9).

A determinação causada pelos hábitos femininos na produção do vestuário não é um fenômeno redutível à época pesquisada pelo autor citado. Tendo em vista que buscamos elucidar nesse momento a ligação entre A mulher, a moda e a roupa, o documento encontrado no século IV a C, intitulado "Oeconomicus", citado em Xenofonte, permite-nos dar relevo à seguinte passagem: "Um marido ficará certamente satisfeito se, se casar com uma mulher que saiba tratar da lã e fazer roupas e distribuir o trabalho de fiar entre as escravas"(10).

Caso partíssemos aqui tão somente do ponto de vista histórico, a menção ao documento não haveria de proporcionar outro tipo de contribuição que não fosse o relativo aos costumes e tradições das mulheres na sociedade grega. Isso porque "fosse qual fosse o grupo a que pertencessem, todas tinham uma coisa em comum: não tinham direitos políticos de qualquer espécie. Eram controladas pelos homens em todas as fases de suas vidas"(11). Da mesma forma que ao incluir a presença de Eva como homóloga à questão da mulher, não se pretende reduzir sua função ao texto bíblico, o fato das mulheres gregas não terem direito à liberdade social, não é condição de explicação para sua ligação com a moda. É nesse ponto que valeria considerar a saída de cena do papel social, como recurso para dar destaque, numa Outra perspectiva, à ligação entre mulher e a moda.

 

Feminino : Caixa de Surpresa e Estilo de Existência

Praticamente em condições sociais pouco modificadas, a mulher no século XIX, informa-nos Gilda de Mello e Souza, "é abandonada a si mesma, aplicou aquela curiosidade desassossegada de se encontrar, que o ócio acentuava, no interesse pela moda".

Tendo a moda como único meio lícito de expressão, a mulher atirou-se à descoberta de sua individualidade, inquieta, a cada momento insatisfeita, refazendo por si o próprio corpo, aumentando exageradamente os quadris, comprimindo a cintura, violentando o movimento natural dos cabelos. Procurou em si --já que não lhe sobrava outro recurso --a busca de seu ser, a pesquisa atenta de sua alma. E aos poucos, como o artista que não se submete à natureza, impôs à figura real uma forma fictícia, reunindo os traços esparsos numa concordância necessária"(12).

É indiscutível que as restrições quanto à participação social da mulher tenderam a acentuar uma ligação mais estreita com as funções que lhe foram atribuídas previamente, dentre elas o cuidado com a aparência e o decoro no trajar. Todavia, ela não haverá de incorporar essas limitações sem deixar de introduzir uma forma de ultrapassá-las. Nessa linha de raciocínio acompanhemos os expedientes usados pelas mulheres no século XIX. Continua a autora de O espírito das roupas.

"Um tal contraste entre a severidade do vestido de dia e a surpresa do traje de noite reforçava, sobremodo, o ritmo erótico, o jogo de entregas parciais de que a mulher lançará mão para, sem ofender a moral burguesa de guardar as aparências. Oferecer-se ao mesmo tempo a uma grande quantidade de homens. Aliás essa posse à distância, realizada pela vestimenta em geral e muito particularmente pelo decote --e que funcionava tanto para as moças como para as senhoras casadas--, foi talvez um dos mais poderosos elementos de equilíbrio da sociedade naquele tempo. E fazia da reunião mundana o momento agudo na luta amorosa"(13).

De maneira a não limitar esses recursos usados pelas mulheres a uma forma de privilégio pela sedução, ressaltemos outra vez que a relação da mulher com a moda não se esgota numa única direção. Considerando a vigência do feminino como capaz de produzir, pelas mulheres, a suspensão do instituído, poderemos sublinhar o efeito de surpresa e um novo estilo de existência, como marcas de sua presença.

"O jogo de esconde-esconde com que a mulher do século XIX chama a atenção para os seus encantos anatômicos, envolvendo-os em mistérios através da reticência e do disfarce, transforma-a numa verdadeira caixa de surpresas. Pois assim como aceitou a moral relacionada com os hábitos do corpo, a mulher desenvolveu ao infinito as artes relacionadas com a sua pessoa criando um estilo de existência --talvez a sua única contribuição à cultura masculina"(14).

 

O Véu : Da Masculinização ao Olhar

Quando adotamos a posição de que a frivolidade é a única marca distintiva da moda, tendemos a limitar ao fator decorativo os diferentes níveis da vestimenta. Tal restrição tende a encarar a sedução como expediente priorizado pela mulher junto à roupa. O fato dela existir não significa que o feminino encontre nisso a sua última expressão. Tanto é assim que a objeção acompanhada ultimamente entre alguns segmentos de mulheres nos países islâmicos para o uso do véu não deve ser entendido como um apelo pelo direito da sedução. Principalmente porque o véu não chega a se constituir como um fator de adorno para esses povos. Mais do que isso, ele assume uma função bastante precisa -- neutralizar a presença da mulher. Evocando a mulher na sua relação com o campo do feminino, encontramos as bases onde se apoia o vaticínio do profeta Maomé : "Não deixarei depois de mim nenhuma causa de discórdia mais funesta aos homens que a mulher"(15).

Como uma amálgama entre a sociedade civil e a religiosa, o espaço concedido à mulher é a da completa clausura. ‘Ela é, como observa Alain Grosrichard, a principal ameaça, representa tudo o que afasta o fiel, pois cada um se põe a pensar no seu objeto causa do desejo, ao invés de pensar em Deus. Por isso o véu faz equivaler toda mulher a qualquer outra na rua. Trata-se de fazer dela um tipo de star negativa, em branco, imagem neutra na sociedade"(16).

Ainda que em muitos países muçulmanos a desobediência ao uso do véu varie do espancamento à morte, há, para as mulheres que o adotam , um detalhe que escapa ao controle da tirania -- a incandescência do olhar. Através dele, elas deixam transparecer que não estão totalmente vestidas, mesmo que cobertas com roupas. Nesse caso, o olhar está para além da visibilidade dos olhos. Faz constar um desejo que é dirigido a um Outro a quem se preocupa enfeitiçar. Para considerar esse aspecto, valeria observar os diferentes estudos fotográficos realizados por Gatian de Clérambault, mestre em psiquiatria de Jacques Lacan, realizados no Marrocos sobre o drapeado.

O véu introduz um caráter duplamente surpreendente. Ao lado de encobrir qualquer imagem que pudesse despertar atração, ele acaba revelando uma nudez que a religião supunha encerrada sob os mantos --o olhar. Responsável pela introdução de uma divisão, o ser de desejo reaparece cativante através de uma pequena fenda entre os panos. Continua Alain Grosrichard:

"No Islã isso é nocivo. É o que eles chamam de fitna, um belo conceito árabe, termo muito importante no Alcorão, e que significa cisão, divisão, subentendia aí a divisão no interior da própria cidade. A fitna é o que divide a própria sociedade, fazendo que não sejamos mais apenas Um. Ao mesmo tempo é uma fitna subjetiva, uma divisão do sujeito que se vê dilacerado entre seu amor por Deus, seu assujeitamento ao Um e seu desejo, afastando-o Dele"(17).

De outra parte, permite-nos acompanhar o adendo do livro Verde do Aiatolá Khomeini - Citações sociais e religiosas, leis divinas que regem a vida cotidiana : "É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica"(18).

Tentativa falhada de cobrir a mulher por inteiro, de negativizá-la pelo extremo da indiferenciação, o véu reúne as mulheres num conjunto fechado. Por isso mesmo, para as mais inflexíveis, ele continua a ser uma forma de evitar o malefício, e permitir fazer uma carreira. É essa a opinião da deputada iraniana Homayoun Maghaddan sobre o uniforme negro: "A beleza e a sedução perturbam a sociedade, e estes atributos acarretam o malefício"(19).

Recurso secular de masculinização, o véu impõe que cada uma seja igual às outras. Sua retirada coloca em perigo o próprio equilíbrio social. Já que não é somente a eliminação de um pedaço de pano que está em jogo. Mais do que isso, é a própria sexualidade que passa a ter direito de cidadania, nessa terra aonde havia sido decretada sua expulsão. É o desejo que retorna em seu pleno exercício, comemorando, à luz do dia, o direito de haverem dois sexos sem excomunhão. Estabelecimento, portanto, de uma dinâmica de relações aonde a religião não continuaria a deter o monopólio dos destinos. O que cai por terra na retirada do véu é a transcendência onde a segregação se apoia.

Identificada em diferentes tradições com o diabo, a mulher põe em exercício uma lógica que abala fundamentalmente a razão de ser. Tentação disfarçada em formas múltiplas, sua presença implica no revogamento do instituído. Por isso mesmo o integrismo religioso providenciará para que nem ela seja vista. A fatwa --condenação à morte-- é o preço a ser pago pelo pecador. O receio é de que, ao descobri-la possam se produzir efeitos semelhantes à visão da Medusa --ficar petrificado, tomado pela diferença naquilo que ela tem de irredutível. Nesse novo estado de ser, com a vida reduzida à sua condição de rocha, o que restaria para ser feito? Haveria outra alternativa, além de ser habitado pela causa do desejo? Está aí uma questão que continua a ser recusada pelos diferentes regimes de crença. A sexualidade acaba sendo reduzida a uma forma de conciliação amorosa, ou mesmo de exaltação idealizada da mulher. Como disse um dos chefes políticos da Argélia:

"É preciso separar as meninas dos meninos e consagrar os estabelecimentos a cada sexo... Numa sociedade islâmica verdadeira, a mulher não é destinada a trabalhar e o chefe de estado deve lhe atribuir uma remuneração. Assim, ela deixa o lar para se dedicar à grande missão de educação dos homens... A mulher é uma produtora de homens, ela não produz bens materiais, mas esta coisa essencial que é o muçulmano"(20).

Na medida em que a diferença sexual é abandonada, a presença da mulher retorna integrando as imagens monolíticas da maternidade e do amor. Dotada de um instinto maternal e de uma capacidade de abdicação, erige-se a servidão como meio de relação entre os sexos. Não é necessário um trabalho maior de reflexão, para perceber a cultura do ódio que se fomenta e a degradação da relação entre os sexos que se atinge.

Volta-se a insistir que a questão da mulher, aqui referenciada ao campo do feminino, não coincide com propor a maternidade como a última palavra, tampouco em alinhar o amor com assepsia e cuidados. Tal elaboração nem sequer pretender obter uma definição para as mulheres. As reflexões que sustentam essa especificidade não tem como meta uma aplicação em práticas de libertação, como forma de resolver definitivamente seus impasses. O que está em jogo quando se inclui a questão do feminino, é de poder conceber uma posição que não fique restrita aos seres biologicamente designados como mulheres. Consequentemente é uma forma de tratar a sexualidade sem categorias oposivas e complementares. Afirmar que o campo do feminino não é limitado aos seres biologicamente referidos, não é sinônimo de participação equitativa. Até porque ser atravessado pelo feminino não é coincidente às manifestações degradadas que ele assumiu na cultura. Posto que o feminino não é sinônimo de adotar os hábitos, gostos, as roupas, preferência das mulheres, etc.

De maneira a introduzir o que se apresenta como campo do feminino pela psicanálise, é necessário retomar o não ser que lhe é constitutivo. Nesse sentido, afastamo-nos da elaboração freudiana, apresentada anteriormente. Os avanços operados por Jacques Lacan irão trazer consequências ao nível do conceito, determinando mudanças para o final da análise. Antes de avançar sobre esse aspecto, articulados à moda e ao semblante, marquemos que o feminino não se inscreve no registro do segredo, como muitas vezes é deixado. A começar pelo fato de que se Jacques Lacan se valeu em boa parte da lógica para dar prosseguimento a seus avanços, importará sua operatividade enquanto capaz de revelar seus efeitos na prática clínica.

 

O Teatro do Feminino : Antígona, Medéia e Édipo em Colona

O que designa como não ser, ou também, não todo, faz menção a um regime de exceção que se refere a um fora dos limites da linguagem. Mais além que determina a suspensão do instituído. Não confundível com revolta às normas, ou mesmo como poder de contestação. E justo porque não se trata de propor qualquer tipo de modelo identificatório, abordaremos inicialmente o campo feminino pelo viés de personagens da tragédia, herança do teatro. É oportuno poder interrogar porque o teatro nos permite introduzir essa dimensão tão essencial da constituição. Não passa desapercebido que a divisão que o homem tem consigo mesmo leva-o muitas vezes a ter "o sentimento de que a vida que ele leva, bem como a que vê ser levada por seus semelhantes, é apenas um semblante, uma comédia, que lhe parece ser representada numa cena com relação à qual ele se situa como espectador"(21).

O que a cena do teatro faz constar é de que o ator, ao falar com as palavras de um Outro, aonde tudo é uma "cena de ficção, descobre paradoxalmente ter o sentimento de não estar mais embaraçado, de ser natural, de esposar um sentimento de verdade que está nele, e, além disso, de fazer passar este sentimento ao nível dos espectadores que, efetivamente tem a aptidão de receber este sentimento de despertar no teatro"(22). Por isso mesmo a cena do teatro nos permite "comemorar aquilo que não é mais rememorável : o surgimento em nós da fala"(23). Na medida em que o sujeito permanece detido em repetir fascinadamente uma série de discursos à sua volta, ele não pode tomar a palavra da forma como os atores a tomam, ou seja, como se fosse dele mesmo. Recurso indispensável para o desenrolar da cena : à assunção da fala de uma forma autêntica corresponde o nascimento do próprio sujeito.

Comecemos apresentando em Antígona, personagem da trilogia de Sófocles, essa qualidade de se deixar tomar. A diferença com o que foi indicado consiste em que ela se deixa tomar pelo thimós, o furor interior, ultrapassando o métron --a medida padrão dos mortais. Daí que ela "é aquela que fornece a via dos deuses-- a heroína"(24). Sem esquecer, contudo, que sua via é a mesma que está acessível ao homem comum. Seu percurso consistirá em refazer o desnudamento da palavra, como abdicação dos direitos da vida. Sendo assim, "Antígona nos faz ver o ponto de vista que define o desejo"(25).

Se a cena teatral refaz o nascimento do sujeito pela palavra, Antígona nos revelará a caminhada do sujeito para o universo sem palavras, sua escolha pela morte. Trata-se de uma aposta derradeira em que o não ser mostra sua face. Após ser interrogada por Creonte, rei de Tebas, sobre os motivos de ter realizado os atos fúnebres para seu irmão Polinices, ela deixa bem claro os princípios que a movem, mesmo que sua desobediência às leis reais venha a ser fatalmente punida:

"... e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de ontem, e desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando elas surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las. Eu já sabia que teria de morrer antes até de o proclamares, mas, se me leva a morte prematuramente, digo que para mim só há vantagem nisso"(26).

De tal maneira sua ação demanda outras coordenadas para ser pensada, que o ultrapassamento de um certo limite só é possível na medida em que ektos atas, o limite da vida, não tem mais sentido de ser mantido. Se não pode rompê-lo, sua vida não vale a pena de ser vivida. O que a impele é esse elemento de ultrapassamento que a alinha com o herói. Como observa Jacques Lacan, são características que evocam os mártires, na medida em que se pode defini-los como "sem temor e sem piedade"(27). É o que nos fala o Corifeu ao relatar a reação de Antígona à condenação: "Evidencia-se a linhagem da donzela, indômita, de pai indômito; não cede nem no momento de enfrentar a adversidade"(28).

O viés da tragédia que aqui utilizamos para indicar a suspensão dos limites em jogo no feminino revela também "a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal. Esse desejo ela o encarna"(29). Trata-se do desejo naquilo em que ele é capaz de fazer comparecer a presença da morte na vida, componente fundamental que assenta o dualismo pulsional freudiano em seu caráter de irreversibilidade. Posição que, "no final das contas, o herói da tragédia participa sempre do isolamento, e está sempre fora dos limites, sempre num vôo e, por conseguinte, arrancado por algum lado da estrutura"(30_. É o que nos assinala o Coro, na peça teatral: "... é por tua vontade e decisão que tu, apenas tu entre os mortais, descerás viva à região das sombras"(31).

Poderia-se objetar a Antígona, sem deixar de admitir que ela testemunha o ultrapassamento de alguns limites, reservando sua contribuição à Mitologia. Aqui no mundo dos mortais ela declinaria de importância, já que nem sequer faz menção ao amor, experiência tão fundamental para todos. A peça de Sófocles nos apresenta uma situação bem diferente: "Antígona: "Nasci para compartilhar amor, não ódio"(32).

Ainda que nos momentos anteriores à sua partida derradeira para a caverna pedregosa ela declare ir "casar-se com o negro inferno", há também a presença de Hêmon, seu noivo, filho de Creonte. Mais do que permitir retirar uma lição, o fato de ser filho de Creonte o noivo de Antígona, acentua a particularidade do amor que está em jogo na tragédia. Dado que Creonte não escuta os argumentos de seu filho e da cidade para suspender a punição, Hêmon irá juntar-se a ela, atribuindo às normas paternas um caráter insensato :

"Com todo o peso do seu corpo se deitou sobre a aguçada espada que lhe traspassou o próprio flanco; no momento derradeiro de lucidez, inda enlaçou a virgem morta num languescente abraço, e em golfadas lançou em suas lívidas um jato impetuoso e rubro de abundante sangue. E jazem lado a lado agora morto e morta, cumprindo os ritos nupciais..."(33).

De maneira a acentuar a particularidade desse amor, deteremo-nos em Medéia, personagem de Eurípedes.

"No prólogo, a ama prepara o clima da peça, fornecendo indícios importantes. Num tom de lamentação,. evocando fatos que, preferiria, não tivessem ocorrido, põe em relevo o princípio da história de Medéia por Jasão : a nau de Argo. Dessa forma, torna ciente o espectador de certos fatos que marcaram a viagem: de um lado, o papel fundamental de Medéia no auxílio a Jasão para a conquista do velo de ouro: de outro lado, o passado de Medéia ressurge, entremeado de crimes. Mata o irmão Absirtes, na fuga com Jasão, para retardar a perseguição paterna, e depois Pélias, o usurpador do trono de Jasão em Iolco . Esse último crime explica o exílio do casal em Corinto. Todos esse atos foram praticados por Medéia em nome de sua cega paixão por Jasão"(34).

Traída por Jasão com a filha de Creonte, Medéia fará agir todas as particularidades que vem sendo atribuídas ao feminino. Tampouco a maternidade será suficiente para deter o fluxo da vingança. Ao sacrificar os filhos que possuía com Jasão, ela assumirá uma condição em geral desconhecida na análise sobre o papel social das mulheres. Suspende qualquer limite que se poderia esperar de uma mãe. O diálogo com o Coro tornará isso evidente:

"Coro: "Mas ousarás matar teu fruto, ó mulher?
Medéia : Assim mais será mordido o esposo.
Coro : Tu te tornarias misérrima mulher.
Medéia: Supérfluas são as falas do meio"(35).

Apreendemos nessa passagem a especificidade do trágico : "O vingador sofre igualmente com a vingança"(36). Tal constatação acentua um compromisso sem barreiras. Continua Medéia, "o furor é superior à minha decisão". Sem outro para garantir seu ato, ela introduz uma perspectiva ética das ações humanas: não ceder sobre o próprio desejo. Para tanto, não haverá de ausentar-se de seu compromisso em virtude de conformismo. Sua visada encaminha-se na direção do não ser, enquanto sinônimo do que é visado como termo no desejo --a morte. Por isso mesmo, não ceder sobre o próprio desejo" e, "de preferência não ser"(37), constituem o binômio que faz agir uma ética alinhada à descoberta freudiana --o inconsciente, já que este último não produz respostas antecipadas.

Após o acompanhamento de algumas elaborações sobre o campo do feminino, obtemos condições de formular suas implicações:

Como campo de referência que ultrapassa o instituído, o feminino não chega a vigorar definitivamente sem limitações. A própria escrita das peças da tradição impõem um limite ao que se pode dizer sobre os personagens que o indicam.

Uma vez que o campo do feminino se fundamenta no não ser, e o campo do masculino dele não é dissociado, então mais do que alinhá-los isoladamente com a morte e a vida trata-se de considerar a possibilidade de situar o feminino numa região intermediária, na qual seja possível abordá-lo. Ao que parece, é o que Jacques Lacan tenta nos transmitir no capítulo intitulado : "Antígona no entre duas mortes". Diz ele :

"Seu suplício vai consistir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte. Sem estar ainda morta, ela já está riscada do mundo dos vivos. E é somente a partir daí que se desenvolve sua queixa, ou seja, a lamentação da vida".

Dando prosseguimento, afirma: "...para Antígona a vida só é abordável, só pode ser vivida e refletida a partir desse limite em que ela já perdeu a vida, em que está para além dela -- mas de lá pode vê-la, vive-la sob a forma do que está perdido"(38). Tendo em vista que essa zona intermediária constitui uma barreira para o sujeito em direção a morte, encontraremos nela a presença do belo.

"A verdadeira barreira que detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical, uma vez que é o campo da destruição absoluta, da destruição para além da putrefação, é o fenômeno estético propriamente dito uma vez que é idêntico com a experiência do belo"(39).

Esse belo que por sua vez nada tem a ver com a experiência da beleza, do belo ideal enquanto privilégio da forma humana, é apreensível na "pontualidade da transição da vida à morte". Nesse sentido ele faz constar um fator temporal enquanto fugacidade desse transição.

"Como o demonstrou admiravelmente Claudel em seu estudo sobre a pintura holandesa, é na medida em que a natureza morta mostra-nos, ao mesmo tempo, e esconde-nos o que nela ameaça --desenlace, desenrolar, decomposição --,que ela nos presentifica o belo como função de uma relação temporal"(40).

Essa passagem da condição do desejo à destruição absoluta, ou seja, nisso em que está contido o desaparecimento do ser, consta uma impossibilidade de dizer. É o que acompanhamos ao final de Édipo em Colona:

"Mensageiro : Quando havíamos nos afastado um pouco, viramos e olhamos. Édipo não estava mais em lugar nenhum; porém o rei Teseu estava em pé sozinho, sua mão cobrindo-lhe os olhos como se houvesse visto um quadro terrível que ninguém poderia suportar; e o vimos saudar sem demora os céus e a terra com uma breve prece. De que maneira Édipo passou para o além ninguém sabe dizer"(41).

Considerar que o campo do feminino faz constar um ponto indizível é sinônimo de afirmar sua não completude. Nesse sentido é que ele mantém uma insistência em direção à abolição da palavra. Entretanto, é se valendo dela como meio de ultrapassamento que a linguagem acaba por assumir um caráter derrisório. O feminino adota a linguagem em seu valor de semblante, ou seja, como "máscara da falta". Não se trata de um equivalência com o campo das aparências, mas sim de uma revolta para se livrar da palavra, tendo em vista que há uma busca insistente para alcançar esse ponto aonde ela não vigora. Como nos diz Medéia,

"Que a morte me livre,
abandonada a hedionda vida"(42).

Na mesma direção Antígona responde à Ismene, quando a última oferece companhia para dividir suas dores: "Antígona: "Os mortos sabem quem agiu, e o Deus dos mortos: não quero amiga que ama apenas em palavras"(43).

 

O Semblante e a Máscara

Uma precisão se faz necessária quanto ao sentido dado à máscara. Ela não tem a função de esconder, tampouco de disfarçar o que se constata, no caso, a falta na linguagem --sua qualidade de não toda. A máscara é o que se adota como único recurso possível para falar da falta na linguagem, de dentro da linguagem. O sujeito é portado pela linguagem, sem que isso o defina por inteiro. Ele encarna a falta, tornando presente uma linguagem destituída de compromisso com os sentidos que o antecederam. A máscara é o semblante, por excelência. O semblante põe em cena uma impossibilidade --eliminar o não ser do ser-- sua morte. Ao lado de fazer operar uma função --abordar a morte, pela palavra.

Adotar o semblante como "máscara da falta"(44). Permite aproximar o lugar do psicanalista na direção da cura. Isso porque não é propriamente ao nível de uma reorganização do sentido que sua função se desenrola. É, fundamentalmente, na referência de uma ética que tem como princípio --"de preferência não ser". Sendo assim, a palavra assume a função de acentuar o compromisso com a causa de sua claudicação. Desse maneira a palavra deixa de ocupar seu lugar habitual no sentido, dessubstancializando o discurso. Progressivamente, a palavra como semblante caminha no sentido de um desenlaçamento do material que a constitui.

Tal posição revela o ponto máximo de sua inflexão, na medida em que conduz o sujeito ao objetivo de atingir seu próprio desaparecimento. Portanto, a máscara não é um envoltório que se resume a mudar as expressões do rosto, com a finalidade de representar um papel. Ela adquire a função de colocar em cena um ser que se apresenta com ela, como única condição de tornar presente algo de uma ordem que escapa à sua pessoa. É o que encontramos de forma aproximativa nos cultos gregos do deus Dionísio:

"Usar máscara é encarnar o Deus que ela representa. Transformando o exterior, a máscara transfigura o interior, permitindo a quem a usa o desempenho de funções próprias de um ser divino ou demoníaco"(45).

O que foi intitulado como revolta do feminino para se livrar das limitações da linguagem é o que encontramos na réplica dada por Antígona a Creonte, quando pergunta porque ela se atreveu em desobedecer as leis promulgadas na cidade. Pode-se constatar que Antígona faz questão de se orientar pelas leis divinas, não escritas pelos homens, não condicionada às suas limitações linguageiras :

"Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais... Se te pareço hoje insensata por agir dessa maneira é como se eu fosse acusada de insensatez pelo maior dos insensatos"(46).

É porque o feminino define uma posição de exceção ao instituído pela linguagem, que seus efeitos não podem ser regulados em comparação com a lógica do masculino, como se fosse complementar a ele. Introduz assim uma ameaça para o campo do masculino , na medida em que sua operatividade realiza a suspensão dos limites em vigor nesse último. Na peça de Sófocles, o personagem de Creonte, ao se confrontar com as respostas de Antígona , teme ser suplantado por ele. Diz ele:

"Pois homem não serei --ela será o homem!--
se esta vitória lhe couber sem punição"(47).

 

A Mulher e a Verdade

Conforme nos conduzimos pelos caminhos por onde se tece o feminino, vamos pouco a pouco constatando sua aproximação com a verdade. Essa busca, muitas vezes considerada insensata, para o ponto em que o ser encontra sua derrisão, sua morte, sua destruição, é também do ponto em que o ser se depara com sua incompletude. Admitindo que o ser se define por sua inclusão na linguagem, que não existe ser falante fora da linguagem, o não ser nada mais é do que aquele ponto aonde a verdade do ser comparece como claudicação dele. Em uma de suas definições clássicas sobre a verdade na psicanálise, Jacques Lacan nos diz; "A verdade não é mais do que aquilo do qual o saber não pode aprender que ele o sabe, senão ao fazer agir sua ignorância"(48).

A ignorância, assim concebida, não é sinônimo de falta de conhecimento. Ela se inscreve na definição de Nicolau de Cusa, como "douta ignorância":

"É a admissão desse caráter necessariamente parcial --e relativo --do nosso conhecimento, da impossibilidade de se construir uma representação unívoca e objetiva do universo, que constitui, em um de seus aspectos, meio de transcender as limitações de nosso pensamento racional"(49).

É por permitir que o não ser, como sinônimo de ignorância, venha à tona, que a verdade terá condições de mostrar sua face, como aquilo que é irredutível à qualquer apreensão pelo saber. Nesse sentido, não há uma região fora da linguagem que o ser se encontraria definitivamente com a verdade. A verdade é aquilo que não permite que o ser se defina pelo todo. O que a verdade vem mostrar é a relação do ser com o feminino, já que a ele --ser-- corresponde uma exceção --o não ser-- lugar do feminino e da verdade. Portanto, "não existe ninguém a quem a verdade não lhe incumba pessoalmente"(50).

Como foi afirmado antes, não existe de um lado verdade e do outro saber, como duas ordens que não se relacionam. Da mesma forma, não existe de um lado o campo do masculino e do outro o feminino, sem qualquer tipo de presença de um sobre o outro. Uma das formas de perceber isso é apreciar o gesto de Antígona realizando os funerais para seu irmão Polinices, como algo que está para além de uma desobediência às ordens de Creonte, proibindo-a do direito à sepultura. Caso entendêssemos o gesto de Antígona sem qualquer relação com o masculino, perderíamos de vista que o que ela realiza ao reclamar os direitos fúnebres é a indissociabilidade do ser à linguagem. Seu ato vem lembrar o direito que todo ser de linguagem possui desde que nasce -- não ser tratado como um animal ao falecer.

"Não se pode acabar com os seus restos esquecendo que o registro do ser daquele que pôde ser situado por um nome deve ser preservado pelo ato dos funerais. Por ele ser entregue aos cães e aos pássaros, e ir terminar seu aparecimento na terra, na impureza, seus membros dispersos ofendendo a terra e o céu, vê-se bem que Antígona representa por sua posição esse limite radical que, para além de todos os conteúdos, de tudo o que Polinices pôde fazer de bem e de mal, de tudo o que lhe pôde ser infligido, mantém o valor de seu ser. Esse valor é essencialmente de linguagem"(51).

 

A Verdade, O Meio Dizer e o Psicanalista

A verdade irá constar no saber como aquilo que produz um meio dizer, ou seja, tal como o feminino, ela não se coloca por inteiro.

"Se há algo que toda a nossa abordagem delimita, que seguramente foi renovado pela experiência analítica, é justamente que nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um meio dizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer. Tudo o que se pode dizer é isto. Aqui, por conseguinte, o discurso se abole. Não se fala do indizível, por mais prazer que isto pareça dar a alguns"(52).

Quando paramos para refletir porque na psicanálise, a partir de Jacques Lacan, a sustentação de uma ética se deu pelo viés trágico, tal fato merece ser situado pelo elemento que é comum ao feminino. Aos dois -- feminino e trágico --correspondente a manutenção de uma posição em que o ser leva o desejo até suas últimas conseqüências-- sua ligação com a morte. Já não mais a morte entendida enquanto falecimento do ser vivo, ou mesmo como destrutividade, mas com o que foi intitulado de segunda morte. É ela que irá constituir a especificidade do ser de linguagem, uma vez que sua presença determina o advento através de uma falta, atualizada como não saber, determinante de uma impossibilidade. É isso também que permitirá admitir um outro tipo de amor, aonde o que está em jogo não é mais a completude -- de dois se fazer um --e sim a castração-- ser dividido, amante pela divisão, "O amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nos levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração"(53).

Com relação ao semblante, o leitor constatará que nomeá-lo –"máscara da falta"-- é sinônimo de reservar a esse conceito uma referência de não completude, mantendo sua relação estreita com a verdade. Dessa maneira, podemos fazê-lo coincidir com a posição do psicanalista na direção da cura, ao admitir que sua função não deve ser recoberta, por inteiro, com o que tradicionalmente tem sido adotado como sua tarefa. A noção de semblante introduz um duplo deslocamento na função do psicanalista. O primeiro consiste em retomar o papel da transferência analítica, e considerar que sua função será exercida mediante o lugar transferencial que ele ocupa para seu psicanalisando, e não mais em função de suas características pessoais. Operando a partir daí, sem contudo corresponder ao que dele é esperado, a função do psicanalista requer tanto esse investimento que sobre ele é feito quanto sua não correspondência. Significa afirmar que o psicanalista é vestido por seus psicanalisandos, mas não por inteiro. Uma vez que ele não corresponde à vestimenta que lhe é atribuída na transferência, o que seu ato diferenciante produz ao intervir é a própria exibição da nudez, como verdade.

É por estar na transferência com a função de semblante que o psicanalista não haverá de operar apenas de dentro da linguagem, produzindo interpretações que se valem do sentido do discurso a ele dirigido. A função de semblante é produzida pela própria transferência. Uma vez que adotemos a transferência como sinônima de suposição de saber realizada pelo psicanalisando para seu psicanalista, esse último será vestido por uma roupagem que não coincide com suas características pessoais. A suposição de saber, ou seja, a transferência, determina que o psicanalista seja vestido por aquilo que o psicanalisando investe nele. Nesse sentido, o semblante faz agir a queda da roupagem confeccionada na transferência. É um desnudamento progressivo que está em jogo. Tal perspectiva introduz uma mudança significativa sobre a forma como se considera a dinâmica das relações numa psicanálise. Até porque haverá de se considerar um tempo de constituição da transferência, capaz de produzir a referida roupagem. Por outro lado acentua a não ação do psicanalista, aqui entendida como seu silêncio, de maneira a que não condicione toda a dinâmica a um conjunto de intervenções pelo sentido. Por isso mesmo a interpretação considerada desde o semblante, declina do lugar de tradução, e faz agir o meio dizer, como enigma.

Tanto o enigma quanto a verdade compartilham da mesma característica --o meio dizer. Nesse sentido a interpretação é "um enigma colhido tanto quanto possível na trama do discurso do psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo, nem considerar, sem mentir, como confissão"(54)que o enigma coloca em evidência é a própria enunciação, na medida em que nela o que conta é a verdade.

Para que se possa estabelecer a interpretação como enigma será preciso considerá-la desde o vocábulo grego áinigma procedente do verbo ainíssesthai, "falar por meios termos". Procede-se na interpretação por enigma, permitindo que a verdade possa vir à tona enquanto meio dizer, para que não se cale a questão em jogo no discurso com um saber que supostamente conteria toda a verdade. Há uma implicação ética que fundamenta o ato, assim entendido, do psicanalista. Ela consiste em afirmar que a verdade não se encontra do lado do psicanalista, a partir de um saber que é suposto dele ter. Por isso mesmo o enigma haverá de qualificar o saber do psicanalista como "um saber sem saber", ou, um "saber como verdade"(55) ato de que o sujeito venha a responder ao enigma com um saber supostamente conclusivo, apenas o aproximará de sua própria verdade, enquanto sua enunciação possível. É o caso de Édipo ao responder ao enigma colocado pela esfinge. Ela lhe propõe a pergunta clássica: "Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio dia com duas e, à tarde com três e que contrariamente à lei geral é mais fraco quando tem mais pernas?" Édipo responde de pronto: "E o homem, porque quando pequeno, engatinha sobre quatro membros, quando adulto, usa as duas pernas e na velhice, caminha apoiado num bastão"(55

O que merece ser relevado não é a suposta propriedade da resposta de Édipo, o adequamento termo a termo do impasse, como se a única resposta possível fosse a que ele deu. Na verdade a importância de sua resposta vai consistir em que, através dela, ele irá se confrontar rapidamente com a questão que lhe concerne -- seguir seu destino edípico. Irá conquistar o trono de Tebas, após ter matado seu pai, e casará com sua mãe. Sua resposta --"é o homem"(58)diz respeito a ele mesmo. Já que, como ser humano, ele irá, sem saber, repetir o discurso que lhe precedeu, como destino. É a conclusão divertida a que chega Jacques Lacan.

"À pergunta de Quimera, poderia ter dado muitas outras respostas. Por exemplo, poderia ter dito : - Duas patas, três patas, quatro patas, é o esquema de Lacan. Isto teria dado um resultado completamente diferente. Também poderia ter dito "-- É um homem, um homem quando criança de peito. Aí começou com quatro patas. Prossegue com duas, retoma uma terceira e, no mesmo movimento, sai correndo como uma bala, direto para o ventre de sua mãe. Isto é o que de fato se chama, com bons motivos, complexo de Édipo"(57)

Depois de ter dado destaque à interpretação como enigma, percebemos o retorno da verdade à cena. Trazendo com ela a especificidade do descobrimento freudiano --"Homens, escutem, lhes dou o segredo. Eu, a verdade, falo"(58)o dizer em operação, o saber como verdade é possível de ser admitido, agora num esclarecimento mais preciso do que vem a ser "saber sem saber".

De que maneira um psicanalista pode esquecer aquilo que já sabe, do ponto de vista de seu saber conceitual, e ainda,, como pode ele ficar espantado por aquilo que já sabe? Será preciso que le tenha o poder de se habituar com o fato de que ele é habitado por uma impossibilidade de fechamento, de haver um saber sem furo. "Tal esquecimento, observa Alain Didier Weill, não pode se aplicar sob comando, não pode aparecer ao analista a não ser no só depois, como sendo a condição necessária para ficar espantado pelo que escuta"(59)

É dessa maneira que poderá conduzir uma cura desde a posição de semblante, ou seja, com a função de fazer agir a nudez que age à revelia da roupagem tecida por seus psicanalisandos. Os efeitos que haverá de produzir se colocarão em conformidade ao que foi apresentado como campo do feminino. Pois é desde esse último, que podemos acompanhar a consecução de seu ato, ultrapassando o discurso instituído. Para tanto o psicanalista atualiza na transferência o seu desejo como um enigma, qualidade que advém ao assumir a psicanálise como causa de seu próprio desejo. Nesse caso, "o psicanalista vai se tornar este infeliz pecador corrompido quando a psicanálise reluzir para ele com esse fulgor charmoso, pelo qual ele se deixará levar, sem saber que por trás dessa máscara adorável e’, sem dúvida, Satã em pessoa, o mestre do desejo que oficia"(60)

Da mesma forma que existe aproximação do lugar do psicanalista com o campo feminino, é preciso recordar que ela não se produz de maneira definitiva. Por isso mesmo sua ética não compartilha de ideais de eficiência. O importante ‘é que possa se dar conta das determinações que o dispositivo da análise cria, à despeito de seu gosto e escolha. Quando aqui se deu relevo ao semblante, foi com o objetivo de destacar um fato muitas vezes esquecido - o psicanalista é vestido por seus psicanalisandos. Deixaria de assumir uma posição ética aquele que acreditasse que a roupagem tecida pela transferência corresponde às suas reais habilidades. O que significa que a nudez é algo a ser cultivado pelo psicanalista --mas não por inteiro. Caso contrário cairia no engodo que é mais importante ser verdadeiro, do que fazer agir a verdade por entre as vestes em que é constituído. Mais vale ser enganado pelas vestes que o cobrem do que privilegiar uma autenticidade e aproximação com a verdade, que não levasse em conta o amor com que são tecidas suas roupas, pela transferência. Contudo, é quando faz agir a nudez que sua posição determina que ele é capaz de introduzir o seu ato, como analítico.

O que a transferência, mola mestra do tratamento permite, é que o sujeito, em função da suposição de saber que dedica a seu psicanalista, se confronte com a verdade que causa o seu dizer. A partir daí, o psicanalista poderá intervir, já não mais como corretor da atribuição deformada que seu psicanalisando tenha lhe dedicado. E justo porque não se trata de uma adaptação das ações à realidade, que na psicanálise o que importa é que o sujeito possa reconhecer o desejo presente em seus conflitos. Desejo até então não articulado, e que necessitará de uma sustentação ética de seu psicanalista para que possa se encaminhar no sentido de sua realização. Supõe-se que a neutralidade seria o expediente garantidor da função do psicanalista. Contudo, a verdade em jogo é que a dessubjetivação atingida ao final da análise lhe permita frequentar uma posição ética sem auto vigilância.

De forma a que o processo anteriormente indicado não se transforme em uma prescrição técnica, o final de uma psicanálise haverá de ultrapassar os ideais de convívio. Caso contrário, as solicitações de respostas e ajuda encontrarão terreno justificado para serem cumpridas, esgotando os limites do tratamento. Nesse sentido, a análise do psicanalista se atualiza nas curas que conduz, na medida em que o limite de sua ação ecoa sua própria experiência.

Depois do que foi desenvolvido, vale interrogar uma das recomendações técnicas, ainda em vigor, dadas aos psicanalistas em formação --usar roupas de tom sóbrio e neutro. Para além da dificuldade em precisar tal medida -- O que são roupas sóbrias e neutras? --resta saber se a roupagem em jogo na transferência é aquela escolhida segundo o gosto pessoal do psicanalista. Privilegiar essa dimensão de cuidado acaba por negligenciar que a roupa é o que assume para o psicanalista um dupla implicação:

Ela é fiada na transferência, segundo aquilo que é determinado pelo investimento de seu psicanalisando.

Ela é, por consequência, aquilo para o qual deve-se estar em condições de fazer agir o desnudamento. Evidentemente que, nesses termos, a roupa não é semelhante à indicada nas recomendações técnica anteriores,. Resta saber se não é por isso mesmo que a roupa e a moda acabaram encerradas no nível da futilidade e da vaidade por essa mesma tradição. Caso contrário, não haveria motivos para deixar de reconhecer que a roupa, como expediente da transferência, é o que se usa e se retira em direção à nudez. Nesse sentido, a roupa é o semblante.

Será preciso poder se deixar enganar de maneira a que, sem manter correspondência, o psicanalista se deixe vestir pela roupagem tecida para ele. Portanto, mais do que prescrever roupas a serem usadas, o importante será considerar que o sujeito é sempre vestido por um Outro. Sendo assim, a roupa põe em cena um investimento que rompe com a capacidade de deliberação do sujeito. Ela é, a um só tempo, declínio da autonomia e impossibilidade da nudez. Ao suspender sua importância, elimina-se essa dimensão tão fundamental do manejo da transferência" - ser enganado. Isso porque a moda vem nos mostrar que não há uma vestimenta que poderia vestir o sujeito por inteiro. Suas diferentes mudanças e variações atestam que no ser falante o desnudamento acaba por imprimir uma resistência à roupa --seu compromisso com o feminino, sua nudez. Ao mesmo tempo, a moda se constitui como um campo capaz de se valer dessa impossibilidade de vestir o ser por inteiro, para confeccionar roupas provocadas pelo feminino.

 

Moda, Mulheres e Tempo

Voltada para as mulheres, admirada por elas, a moda desperta reações inexplicáveis. Apaixonamento, deslumbramento, comoção, crítica, mas dificilmente, ou melhor, quase nunca, indiferença. Sendo verdade que a moda é uma tentativa de vestir o feminino, produzindo roupas, é verdade também que na moda há uma procura de definir A mulher. Seja no que o mercado determina como roupa exclusivamente feminina, seja no que em cada estação há uma resposta para o que a mulher deve ser, e usar. Tais determinações não deveriam apagar que a moda introduz um duplo interesse para o psicanalista.

O primeiro se refere ao liame com o campo do feminino, enquanto uma produção provocada por ele. Nesse sentido, a moda permite estabelecer uma distinção entre ser vestido, como inclusão do ser na linguagem, e vestir-se, como efeito de percurso, de elaboração, pela linguagem. Encontramos, no primeiro caso, o sonho da psicanalisanda que conta estar vestida com a camisa do pai. Deixando entrever que a esse ser vestido corresponde o registro das identificações. Enquanto que o psicanalisando que passa a vestir outro tipo de roupas, após a elaboração das relações com seu pai, vestido sempre de uniforme, ilustra o segundo caso. O fato da roupa constar em seu aspecto material, apenas acentua que sua determinação é provocada por aspectos que excedem uma análise detida ao mercado de consumo.

O segundo aspecto de interesse introduzido pela moda é aquela que põe em cena uma noção diferenciada sobre o tempo. Isso porque no campo da moda aquilo que se nomeia como tendência à mudança deve ser situada segundo uma perspectiva que prescinde do elemento cronométrico. Desde sempre obedece a uma sequência regulada pelas estações do ano. Caracterizando-se por lançar, com antecedência, as roupas das estações por vir. Ao alinhar as roupas com as estações do ano, a moda reafirma a indissociabilidade entre roupa e corpo, no sentido das limitações climáticas. Relação essa que permite mostrar que o tempo vivido pelo ser falante só diz respeito ao clima --inverno, verão, primavera, outono-- na medida em que, para ele, o fator climático possa ser abordado pela vestimenta. É porque o clima produz limitações para o corpo, que o ser falante haverá de abordá-lo pela vestimenta.

A moda vem mostrar que o tempo para o ser falante não se restringe ao que ele conta no relógio. Tanto é assim que uma das formas de se dar conta da passagem do tempo se realiza pela mudança de roupa. Se ele muda de roupa para dormir, sair, passear, etc., é mesmo porque a esses momentos do dia em que muda de roupa correspondem mudanças de sentido. Consequentemente a mudança da roupa permite acompanhar a mudança de tempo, na medida em que mudança de tempo e mudança de sentido se equivalem em psicanálise.

A característica de antecipação presente na moda, através de lançamentos de coleções de roupas para o futuro próximo, demonstra que o tempo não é constituído por uma sequência linear de acontecimentos. Marcado por rupturas, a possibilidade de criar para adiante com o que se conta agora é coincidente à elaboração freudiana, que instituía o futuro como efeito de elaboração do passado. Daí o fator temporal acabar estando integrado na dinâmica das elaborações do sujeito, no sentido de poder ultrapassar suas limitações anteriores. Entretanto, ao lançar antecipadamente suas coleções, o campo da moda determina que aquilo que foi criado seja causa das outras produções. Nesse sentido, o tempo passa a ser contado pelo futuro. Talvez por esse fator, muitos estudiosos da moda encontrem nela uma característica de previsão.

 

O Semblante, A Aparição e a Brevidade

Tínhamos visto que o psicanalista como semblante se alinha com o feminino, e privilegia a verdade como ponto de claudicação do saber. Para assumir essa função, sua pessoa haverá de poder sofrer alguns desdobramentos. Mantendo entre eles um mesmo ponto comum: estar em condições de experimentar que não há um Outro que defina as vestimentas. Caso não o tenha atingido, restará sempre a esperança de que uma roupa decorosa é mais conveniente do que uma aposta verdadeira -- sem temor e sem piedade.

 

Retorno do Véu

Mais uma vez o véu tornará presente a constituição do ser de desejo. Nessa próxima citação teremos oportunidade de encontrá-la como vestimenta da nudez, mantendo relação com o que foi abordado no islamismo.

"Partindo do mais alto da estrutura, vamos nos deter por um instante nessa posição de interposição que faz com o que é amado no objeto de amor seja alguma coisa que está mais além. Essa alguma coisa não é nada, sem dúvida, mas tem esta propriedade de estar simbolicamente. Porque ela é símbolo, não apenas ela pode, mas deve ser este nada. O que pode materializar para nós de maneira mais nítida essa relação de interposição que faz com o que seja visado esteja para além daquilo que se apresenta senão o seguinte, que é realmente uma das imagens mais fundamentais da relação humana com o mundo; o véu, a cortina"(61)

Continua Jacques Lacan em sua elaboração sobre o véu: "O véu, a cortina diante de alguma coisa, ainda é o que permite ilustrar a situação fundamental do amor. Pode-se mesmo dizer que com a presença da cortina, aquilo que está mais além, como falta, tende a se realizar como imagem"(62)

Nesse momento evidencia-se o ponto de ligação com o islamismo. A adoção generalizada do véu é uma maneira de afirmar que A mulher não existe. Se a cobrem tanto, é mesmo porque ela não pode se dar a ver. O problema do islamismo é considerar isso como uma blasfêmia. A blasfêmia seria, portanto, deixar ver que A mulher não existe. Ao mesmo tempo que sua existência é negada, ela permanece como ameaça, daí que a retirada dos véus pelas mulheres nos países muçulmanos é considerado pecado. Recusa-se que caia o véu aonde a mulher deixaria de ser um ser encoberto, uma sombra, um tipo negativo. Para o islamismo, A mulher não existe, desde que ela se mantenha encoberta pelo véu., Avançando a questão do véu com o que está em jogo no fetichismo, encontraremos o seguinte :

"O famoso splitting do ego, quando se trata do fetiche, nos é explicado com o argumento de que a castração da mulher é ali ao mesmo tempo afirmada e negada. Se o fetiche está ali é porque ela, justamente, não perdeu o falo mas ao mesmo tempo pode-se fazê-la perdê-lo, isto é castrá-la. A ambiguidade da relação com o fetiche é constante, e incessantemente manifestada nos sintomas. Esta ambiguidade, que se verifica como vivida, ilusão sustentada e valorizada como tal, é ao mesmo tempo vivida num equilíbrio frágil que está a cada instante à mercê do fechar da cortina, ou de se descerrar. Ë dessa relação que se trata, na relação do fetichista com seu objeto"(63)

Quando no primeiro e segundo capítulos destacou-se a presença da recusa como algo a que desde a psicanálise não se compartilha sobre a moda, justamente porque seria adotar que no objeto roupa se fixa a questão do desejo. Tal atitude tende a promover tanto uma objeção à moda quanto uma aceitação dela reduzida à condição de vestir o sujeito. Com isso se constata que as teorizações que pretendem encontrar na moda apenas um meio de sedução acabam reduzindo a entrada do sujeito, em nome de promovê-la. Não é banindo as vaidades e futilidades que haverá de se adotar uma outra possibilidade de teorização. É preciso incluí-las como de interesse numa abordagem sobre o sujeito do desejo. Caso contrário, haverá de se ficar aguardando por sua manifestação, sem tê-lo considerado. Trata-se de chegar ao ponto em que sua origem de linguagem envia o ser para o semblante, despindo o ser que nele se encontra.

A ligação do semblante com a análise do psicanalista permite que aquilo que o dispositivo analítico condiciona encontre condições de entrar em execução. E a transferência condiciona o semblante, na medida em que o psicanalista é investido por saber. Evidentemente que quanto mais ele responde do lugar do saber, mais o saber adquire consistência, e menos se coloca a possibilidade de se desfazer dele. Para que o saber pelo qual é investido possa adquirir o valor de máscara será preciso descompletá-lo, furá-lo, rechaçá-lo. É nesse sentido também que há um desejo que vigora do lado do psicanalista. Ele compromete a direção do tratamento na via de assumir a diferença, como o outro nome do que é possível de ser alcançado, como experiência derradeira. Quando o psicanalista advém pelo semblante ele faz comparecer um efeito de aparição. Como observa Alain Didier Weill:

"uma aparição, efetivamente não tem aparência. Isso significa que a aparição é alguma coisa que é apreendido, diria eu, por aquilo que em nós é da ordem não do voyeur, mas do voiyant, do vidente. O fato de sermos videntes demonstra que a aparição tem algo de perceptível e de tornado sensível pelo enigma da voz, da tomada da palavra"(64)

Na perspectiva do semblante, lugar do meio dizer, o psicanalista procede segundo o que a própria brevidade de suas intervenções condiciona. Uma vez que se deslocou do lugar de tradutor, sua função agora consiste em ser causa do desejo do psicanalisando. Com isso, o que fica privilegiado é o "efeito de rechaço do discurso", na medida em que se trata de rechaçar a linearidade em vista da ruptura do sentido. Essa posição do psicanalista faz com que ele parta de uma virada, "que é onde o saber se depura, de tudo o que pode criar ambiguidade com um saber natural". Sendo assim, a aproximação entre o lugar do psicanalista e o campo do feminino é fértil, já que a esse último corresponde justamente um lugar entre, esse ponto de virada, onde anteriormente Antígona fora situada. É porque ela foi capaz de rechaçar as leis em vigor, aqui no caso, as leis do discurso, que pôde então assumir uma posição aonde o que passa a importar é a sustentação do desejo, autorizado por um ato. Diferentemente do que estamos acostumados a considerar, Antígona torna presente a ligação entre o desejo e ato. E não pelo fato de que ela faz o que havia se proposto, mas, sim, de que sua aposta pela morte dá valor de verdade a seu discurso.

Na função de objeto causa de desejo está implicado para o psicanalista poder "ser produto das cogitações do psicanalisante, posto que, como tal produto, está ao final destinado à perda, à eliminação do processo"65. Há uma vinculação estreita entre a diminuição do tempo e a posição aqui anunciada. Isso porque a decisão de introduzir um elemento de virada não necessita de qualquer acordo prévio. Da mesma forma, o lugar ocupado pelo psicanalista traz a função de um objeto causador de desejo, que não se encontra explícito no discurso do sujeito. A pressa é o que vai permitir ao que surge como desejo possa despertar ações com vistas à sua realização. Justamente por haver um furo no saber não existirão garantias de assumir uma decisão sem risco. A pressa introduz o ato, concluindo a aposta.

 

Um Achado para Perder

Se antes, na análise do chiste, acompanhávamos Freud afirmando que ele é o sentido no não sentido agora poderemos redefini-lo como "o que transforma o pouco de sentido, em nenhum sentido". Isso porque é o não sentido que vai introduzir um sentido diferente, despercebido. É pela entrada em cena da nudez que o sujeito é levado a mudar sua vestimenta. O não sentido teria por um momento a função de enganar-se, de deixar-nos estupefatos justo o tempo suficiente para que um sentido despercebido se filtrasse "(66

Pelo que segue afirmado, o chiste reenvia à divisão que é a nossa, como sujeitos de desejo. Nesse lugar, à formação do chiste corresponde a criação de um objeto que não se presta mais a qualquer saciedade. O denominador comum entre o sujeito e o Outro é um objeto que se faz para perder. Sem compartilhar qualquer tipo de suplência, o sujeito anuncia, pela brevidade do chiste, a perda em sua origem. Ele comemora, pelo chiste, a impossibilidade da nudez sem vestimenta. Ao lado de experimentar, por um breve instante, como sem sentido, a presença da nudez. Por isso o chiste é uma criação que comemora algo que já se perdeu. Da mesma forma a criação de roupa é feita com o objetivo de comemorar a impossibilidade da nudez. Como disse Chanel : "Criar moda é algo como um achado que se faz para perder"(67)

Ao colocar em evidência a nudez, o psicanalista reintroduz a experiência psicanalítica pela retirada dos panos -- se desfazer das vestes é condição de sua efetuação. Para tanto, o trabalho de desnudamento haverá de ter sido realizado em sua própria análise. Que consiste, entre outros, em furar a crença de que ele é ele mesmo. Dessa maneira obterá oportunidade para dotar a roupa como semblante. Constata também que aquilo que a moda produz como vestimenta, a psicanálise e o feminino desnudam. Sendo assim, a indissociabilidade que encontramos entre a mulher e a moda agora se reafirma como uma impossibilidade do ser falante em ter acesso à Mulher por inteiro.

Se a moda procura vestir a mulher, é mesmo porque ela não existe. Caso contrário haveria uma roupagem que lhe seria definitiva. Retoma também os motivos geradores da ligação entre a moda e as mulheres. A cada nova estação de moda, coloca-se tanto o desafio de vesti-las quanto o prazer do desnudamento. É como se a cada nova estação as mulheres comemorassem o fracasso de fechamento do seu campo. Por isso mesmo a moda é um discurso que fracassa. É um discurso, no que procura engendrar a partir de uma produção algo que dê conta da verdade do ser, E é também um fracasso, no que a roupa, enquanto aquilo que é produzido por ela, não encobre a verdade --sua nudez. Constata-se que a moda é uma atividade provocada pelas mulheres, mas que encontra na tentativa de vestir a nudez sua ligação com o masculino. Da mesma forma, a efemeridade da moda é a expressão máxima do tempo enquanto sinônimo disso que o campo do masculino e do feminino fazem comparecer -- a metamorfose do ser. Nos rituais do deus Dionísio --o deus da metamorfose-- as mulheres acompanhavam seu cortejo vestidas por máscaras, como semblantes.

Ao que parece, a moda, entendida no sentido em que aqui é articulada, se constituiria como o lugar privilegiado de indicar a especificidade da constituição do ser falante. Acompanhada pela psicanálise, o que vem mostrar é uma total irredutibilidade do ser falante em ser vestido por inteiro --sua condição de castrado, marcado por uma impossibilidade de fechamento. Nesse sentido haveria ainda de se poder precisar de que forma essa conclusão se relaciona com o que é admitido de ser alcançado ao final de uma análise.

 

Nomes do Feminino

Pelo que vimos há, por um lado, uma tentativa do ser em permanecer vestido com os sentidos que lhe são dados. De outro lado, há uma insistência do não ser em comparecer com sua potência, desnudando-os. Na medida em que essas posições não se mantém isoladas, haveria de se admitir, pela força da nudez, um ser que cada vez mais acentua sua irredutibilidade, uma vez que não cede às tentativas de vestí-lo. É uma condição irrevogável, já que não há como se desvencilhar dos efeitos que a nudez provoca. Uma outra possibilidade seria aquela em que o ser admite a nudez, mas que não chega a fazer dela uma condição de sua insistência para o não ser. De um lado a aceitação da nudez, de outro, a insistência nela. Tais posições não são sinônimas, mesmo porque ao aceitar a nudez, o que o ser realiza é um limite preciso --mudar de vestimenta sem a tentativa de superação dela. De outra parte, trata-se de considerar a roupa como o último elemento possível na sustentação da nudez --sua condição de semblante.

As posições apresentadas permitem escutar, com o aporte da psicanálise, que a roupa como semblante é o limite do ser. A impossibilidade de frequentar a nudez absoluta não deveria tampouco, impedir de entrever que o que tem sido encarado por muitos como futilidade da moda na verdade é a expressão de uma especificidade -- a transitoriedade do ser de desejo. Sendo assim, não haveria como eliminar a moda, como muitos ideólogos pretendem, tampouco a psicanálise. Talvez por isso Gilles Lipovetsky tenha afirmado que "a moda é a última fase das democracias", ao lado nomeá-la como "menos pior"(68).

Ser vestido e ser desnudado compõem, cada um à sua maneira, a própria aventura da constituição humana. Para além da vestimenta o ser poderá frequentar a nudez num espaço tão curto de tempo, que a brevidade e a fugacidade definem-se para ele como nomes do feminino.

 


Notas

1 Freud, S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. 1905". Volume VII. Obras completas. Rio de Janeiro : Imago.

2 Freud, S. "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. 1925"Volume XIX. Obras completas. Rio de Janeiro. Imago.

3 Dor, J. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

4 Dor, J., ibid, op. Cit.

5 Freud, S., ibid, op. Cit.

6 O falo é o "significante do desejo", entendendo-se o significante como o que designa a ausência de significação, ou seja, sua condição de real. De outra parte permite atualizar uma regulação "da economia do desejo e de sua circulação com referência à mãe e ao filho", operada pelo pai enquanto função, ou seja, excluído "como agente da paternidade comum". Vale lembrar que o conceito de falo não se restringe ao valor em que é utilizado aqui.

7 Freud, S. "Feminilidade". Conferência XXXIII. Volume XXII. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.

8 Luccioni, E. L. "Entretien avec André Courrèges". In: La robe. Paris" Éditions du Seuil.

9 Ariès, P. "O traje das crianças". In: História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara.

10 Massey, M. As mulheres na Grécia e Roma Antigas. Portugal: Europa América.

11 Massey, M., ibid, op. cit.

12 Souza, G. de M. e, ibid, op. cit.

13 Souza, G. de M. e, ibid, op. cit.

14 Souza, G. de M. e, ibid, op. cit.

15 Le Nouvel Observateur. "Islam et les femmes". September, 1994

16 Grosrichard, A. "Formas do imaginário na atualidade. Entrevista em 15 de abril de 1994". Revista Opção Lacaniana. São Paulo

17 Grosrichard, A., ibid, op. cit.

18 Khomeini, A. O livro verde dos princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos. Rio de Janeiro: Record.

19 Le Nouvel Observateur, ibid, op. cit.

20 Le Nouvel Observateur, ibid, op. cit.

21 Weill, A. D. "A aparência e a aparição". In: Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

22 Weill, A. D., ibid, op. cit.

23 Weill, A. D., ibid, op. cit.

24 Lacan, J. A ética da psicanálise, Seminário VII. Rio de Janeiro "Jorge Zahar.

25 Lacan, J., ibid, op. cit.

26. Sófocles. A trilogia tebana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

27 Lacan, J., ibid, op. cit.

28 Sófocles, ibid, op. cit.

29 Lacan, J., ibid, op. cit.

30 Lacan, J., ibid, op. cit.

31 Sófocles, ibid, op. cit.

32 Sófocles, ibid, op. cit.

33 Sófocles, ibid, op. cit.

34 Eurípedes, Medéia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

35 Eurípedes, ibid, op. cit.

36 Hirata, F. Y. Apresentação de Medéia, ibid, op. cit.

37 Lacan, J., ibid, op. cit.

38 Lacan, J., ibid, op. cit.

39 Lacan, J., ibid, op. cit.

40 Lacan, J., ibid, op. cit.

41 Sófocles. "Édipo em Colona: in A trilogia tebana, ibid, op. cit.

42 Eurípedes. Medéia, ibid, op. cit.

43 Sófocles. Antígona, ibid, op. cit.

44 Miller, J. A. :De mujeres y semblantes". Cuadernos do Passador. Argentina

45 Brandão, J. de S. "Dionísio ou Baco: o deus do êxtase e do entusiasmo". In: Mitologia grega. Volume II. Petrópolis: Vozes.

46 Sófocles. Antígona, ibid, op. cit.

47 Sófocles, ibid, op. cit.

48 Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. Escritos. São Paulo: Perspectiva .

49 Koyré, A. Do mundo fechado ao universo infinito. São Paulo: Forense.

50 Lacan J. O avesso da psicanálise. Seminário XVII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

51 Lacan J. A ética da psicanálise, ibid, op. cit.

52 Lacan, J., ibid, op. cit.

53 Lacan, J., ibid, op. cit.

54 Lacan, J., ibid, op. cit.

55 Lacan, J., ibid, op. cit.

56 Brandão, J. de S. "Os Labdácidas: O mito de Édipo". Volume III. Mitologia geral. Petrópolis: Vozes.

57 Lacan, J. O avesso da psicanálise, ibid, op. cit.

58 Lacan, J. "La cosa freudiana o sentido del retorno a Freud en psicoanálisis". Escritos. Tomo I. México "Siglo Veintiuno.

59 Weill, A. D. Preliminares a todas tentativas de definir um novo elo social possível entre analistas, ibid, op. cit.

60 Weill, A. D. ibid, op. cit.

61 Lacan, J. A relação do objeto. Seminário IV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

62 Lacan, J., ibid, op. cit.

63 Lacan, J., ibid, op. cit.

64 Weill, A. D. A aparência e a aparição, ibid, op. cit.

65 Lacan, J. O avesso da psicanálise, ibid, op. cit.

66 Weill, A. D. "Intervención en el Seminário de Jacques Lacan - a topologia e o tempo", in El objeto del arte. Argentina: Nueva Visión.

67 Morandi, P. Elaire de Chanel, Ed Tusquets. Espanha.

68 Lipovetsky, G., ibid, op. cit.

 


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