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MORTOS E DESAPARECIDOS

CARLOS E. P. FLEURY





Carlos Eduardo Pires Fleury nasceu em 5 de janeiro de 1945, na cidade de São Paulo, sendo filho de Hermano Pires Fleury Junior e de Maria Helena Dias Fleury. Era militante da Ação Libertadora Nacional – ALN e à época de sua morte, em 10 de dezembro de 1971, militava no Movimento de Libertação Popular – MOLIPO.

Ingressou no curso de Direito da PUC-SP em 1966 e lá permaneceu até 1967. Em setembro de 1969, o diretor da Faculdade foi interpelado pelo delegado do DEOP, Antonio Fasoli que, por meio de ofício, buscava informações do aluno Carlos Eduardo. Em tal documento constata-se que desde 1967 já não frequentava regularmente o curso e, em 1968, não renovou sua matrícula, pois já estava militando clandestinamente. Além disso, também cursou Filosofia na USP. Carlos Eduardo era conhecido por ser extremamente ativo dentro do movimento estudantil.

Foi preso pela primeira vez em São Paulo, em setembro de 1969, na região da Consolação, quando pertencia ao Grupo Tático Armado – GTA da ALN. Nessa ocasião, foi brutalmente torturado por dias seguidos no DOI-CODI. Transferido para o Presídio Tiradentes, conforme relata o Dossiê Ditadura, escreveu uma carta, em 1970, ao seu antigo professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, à época Ministro interino da Justiça, denunciando as torturas sofridas por ele e seus companheiros, além do assassinato sob tortura e desaparecimento do corpo de seu companheiro Virgílio Gomes da Silva. Um trecho desta carta é reproduzido a seguir:


Ainda segundo este Dossiê, Carlos Eduardo tentou o suicídio inventando para a repressão um encontro em uma avenida qualquer da cidade de São Paulo, ocasião em que, em um descuido dos agentes da repressão, entrou em uma loja, cravou uma tesoura no peito; contudo, não morreu. Levado ao hospital recuperou-se e, apesar de seu frágil estado de saúde, foi novamente submetido a torturas.

Em depoimento prestado à Comissão da Verdade da PUC-SP Reitora Nadir Gouvêa Kfouri , seu companheiro de cela no Presídio Tiradentes, Celso Antunes Horta relata que durante os meses em que passaram juntos nesta prisão, onde dividiam a cela com mais de 40 presos políticos de diferentes organizações, Fleury desempenhou um importante papel, e de liderança, nas discussões e debates que lá ocorriam, sobretudo no que se refere à função de resistência que os presos políticos deviam ter nos presídios. Defendia que a prisão não deveria ser considerada o fim da luta, como os torturadores queriam faze-los acreditar, mas sim um lugar de resistência; por essa razão, desempenhou papel central na promoção de denúncias de torturas e abusos ocorridos dentro das prisões, bem como na luta por melhores condições carcerárias.

Assim, durante os oito anos em que ficou preso, Celso A. Horta afirma que, como herança daquele processo de discussão, muitas ações de resistência dentro da prisão foram realizadas, mesmo sem a presença de Fleury, tais como greve de fome, a elaboração do “quedograma”, uma ferramenta que tinha o objetivo de levar informações às organizações de prisões de militantes que nem sempre eram assumidas pela repressão; divulgação de informações, pistas que a polícia detinha, além da produção de documentos de denúncia, como o livro A repressão militar-policial no Brasil no qual são feitas análises sobre a ditadura e denúncias de assassinatos e de torturadores. Em 2014, foi publicada uma parte deste livro com o nome de Bagulhão – a voz dos presos políticos contra os torturadores, mencionado anteriormente.

Também em depoimento prestado à Comissão da Verdade da PUC-SP, outro companheiro de cela de Fleury, André Ota, relatou que ele desempenhou papel importante na intermediação de discordâncias existentes entre os presos políticos das diferentes organizações, conseguindo acalmar os ânimos por possuir grande experiência política, ideológica e mais tempo de militância que a maior parte deles.


Em 1970, Carlos Eduardo juntamente com outros 39 presos políticos – e quatro crianças, filhos destes presos – foram libertados e enviados à Argélia em troca do embaixador alemão, sequestrado no Rio de Janeiro, Von Holleben, em uma ação conjunta da ALN e da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR. Embarcaram no aeroporto do Galeão em um avião fretado pelo governo brasileiro e assim que alçaram voo foram banidos do país por meio de ato do então presidente Médici. Na ocasião, o Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, ex-reitor da USP, declarou que a presença “daqueles elementos” no país tornara-se “inconveniente, nociva e perigosa à segurança nacional”. E, na mesma ocasião, o líder do governo no senado, Filinto Muller, defendeu que para o “combate das ações terroristas no Brasil” deveria ser feito um “levantamento de todos os subversivos presos e sua expatriação compulsória para países que estivessem dispostos a aceita-los”.

Da Argélia, Fleury, à semelhança de vários outros companheiros, viajou para Cuba onde participou de um treinamento de guerrilhas rural e urbana. Voltou ao Brasil clandestinamente, em 1971, agora como militante do Movimento de Libertação Popular – MOLIPO. Contudo, um documento denominado “Informação n° 0643”, de 30 de novembro de 1971, do Centro de Informação da Aeronáutica – CISA aponta a identificação, por meio de fotos, de seu retorno ao Brasil; fato que indica que ele já estava sendo monitorado por órgãos de segurança.

Fleury foi morto aos 26 anos de idade, em 10 de dezembro de 1971, conforme prontuários n. 9876, 9876A e 118.983 do DEOPS, anexos, ou seja, cerca de dez dias após a notificação feita pelo serviço de informação da Marinha, em decorrência de ação policial-militar realizada em circunstâncias ainda pouco esclarecidas.

Uma notícia oficial divulgada em jornal diário afirmava que, na Guanabara, “por volta das 3:30hs policiais aproximaram-se de um Dodge Dart, placa GB – 4495, estacionado em uma atitude suspeita na Praça Havaí (...) nas imediações do Meyer. Os ocupantes do veículo passaram a disparar suas armas, mesmo antes de serem abordados e, do entrevero, caiu mortalmente ferido Carlos Eduardo Fleury que pretendia abandonar o carro. O restante do grupo conseguiu fugir”. Em outra notícia afirmava-se que seu corpo teria sido levado ao Instituto Médico Legal do Estado da Guanabara e registrado com o nome de Nelson Meirelles Riedel.

Contudo, as contradições com esta nota oficial são muitas.

Um registro de ocorrência da 23ª Delegacia de Polícia, diferentemente desta nota, afirma que o DOPS soube do fato pelo comissário Eduardo que fazia uma ronda nas proximidades da Praça Havaí e que, ao ouvir tiros, dirigiu-se para lá encontrando um carro com o corpo de um homem baleado no banco traseiro e uma arma com seis balas deflagradas.

Além disso, a versão oficial dos órgãos de segurança também entra em contradição com os dados do laudo de necropsia. De acordo com este laudo Fleury foi “encontrado morto no interior de um veículo com um [único] tiro”. Entretanto, a análise das fotografias da perícia do local demonstra que ele recebeu 12 tiros e todos frontais, isto é, com trajetória de frente para trás, fato que não corresponde aos ferimentos de alguém que estivesse sentado no banco traseiro de um carro e metralhado pelos quatro lados do veículo, e que tenha sido morto com apenas um tiro fatal. Ademais, ele apresentava marcas de algemas nos pulsos – fato observado por seu irmão ao reconhecer seu corpo no IML – o que indica que ele esteve preso antes de ser morto.

Igualmente, em documento do DOPS/SP, de 2 de dezembro de 1971, portanto oito dias antes de Fleury ser assassinado, consta a informação de que ele havia sido “reconhecido por fotografia”, fato que reforça a hipótese de que ele já estava preso.

Em depoimento prestado à Comissão da Verdade da PUC-SP, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach, colega de faculdade de Fleury, aponta outras contradições sobre as reais circunstâncias de sua morte. Conforme relata, o irmão de Fleury foi ao Rio de Janeiro buscar o seu corpo e voltou de lá com enormes dúvidas sobre a sua morte, por inúmeros motivos. Primeiramente, lhe foi dito que Fleury estava dirigindo um Dodge Dart quando foi morto, mas conforme afirma o irmão, Fleury não sabia dirigir. Assim, ou ele estava acompanhado por alguém que estava dirigindo o carro e ambos foram assassinados, ou esta segunda pessoa fugiu na abordagem da polícia, ou seu irmão foi morto antes e, posteriormente, montada uma encenação na rua. Esta última hipótese parece ser a que mais condiz com as evidências.

Além disso, quando o irmão de Fleury chegou ao Rio de Janeiro para reconhecer o corpo, encontrou-o completamente nu. Então decidiu comprar-lhe um terno, complementos e inclusive uma gravata para o seu enterro. No dia seguinte, foi divulgada uma foto de Fleury no jornal diário usando o mesmo terno e gravata comprados pelo seu irmão, sentado, com os olhos abertos, como se ainda estivesse vivo.

Assim, por todas estas razões, é muito grande a possibilidade de que Fleury tenha sido preso, torturado, morto e depois colocado dentro de um carro a fim de encenar a sua “morte em tiroteio” na rua. Essa prática era muito usada pelos órgãos repressores na ditadura, com o objetivo de ocultar delatores infiltrados nas organizações, pistas etc.

Em decisão de 18 de março de 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP protocolou o caso de Carlos Eduardo Pires Fleury sob o número 186/96 e reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela sua morte.

Seus restos mortais estão enterrados no Cemitério da Consolação, em São Paulo.