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MORTOS E DESAPARECIDOS

CONTEXTUALIZAÇÃO




No Brasil e na América Latina o termo desaparecido político é utilizado para qualificar o militante que teve participação política nas organizações de oposição à ditadura civil-militar e seu paradeiro é desconhecido, as circunstâncias do sequestro e assassinato nunca foram esclarecidas e seus restos mortais não foram localizados; por essa razão, tais crimes configuram-se como “crimes continuados”.

Conforme exposto na Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil, o "ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade”, sendo que o Estado “tem o dever de investigar e, eventualmente, punir os responsáveis”. Assim, a responsabilidade pelo desaparecimento forçado de militantes durante a ditadura é das organizações repressivas do Estado brasileiro.

Esse desaparecimento foi realizado em espaços legais como DOPS, DOI-CODI, quartéis, e em espaços clandestinos como a “Casa da Morte” localizada na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, em propriedades rurais como o “Sitio 31 de março” etc., todos funcionando sob o comando direto das Forças Armadas brasileiras, com autorização, apoio e consentimento do Estado. A relação desses centros clandestinos é encontrada no livro Habeas Corpus: que se apresente o corpo – A busca dos desaparecidos políticos no Brasil, organizado por Vladimir Sacchetta e editado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República - SEDH-PR, assim como no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.

De acordo com o livro Direito à Memória e à Verdade, também publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 475 militantes morreram sob tortura ou tiveram suas mortes simuladas como suicídios e atropelamentos, ou tiveram suas prisões não assumidas e seus restos mortais desaparecidos. Esse número pode ser muito maior se levarmos em conta a extensão territorial do Brasil, a ausência de compilação estatística rigorosa, o número de pedidos de indenização, a inclusão recente de militantes, camponeses e operários na lista de desaparecidos e aqueles cujos familiares não deram queixa.

No Brasil, a radiografia dos atingidos pela repressão política ainda está longe de ser concluída, mas conforme levantamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da SEDH-PR sabe-se que pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses da ditadura militar e cerca de 20 mil brasileiros passaram por sessões de tortura. Além disso, existem 7.367 acusados e 10.034 atingidos na fase de inquérito em 707 processos judiciais por crime contra a segurança nacional; sem falar nas milhares de prisões políticas não registradas, nas quatro condenações à pena de morte, nos aproximadamente 130 banidos, nos 4.862 cassados, nas levas de exilados e nas centenas de camponeses assassinados.

Ainda conforme levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade, 191 brasileiros que resistiram à ditadura foram mortos, 210 estão até hoje desaparecidos e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 militantes mortos e desaparecidos. E os agentes dos órgãos de repressão do Estado que foram até agora identificados, responsáveis pelas torturas e assassinatos, totalizam 337.



A luta dos familiares

As primeiras manifestações individuais e coletivas em defesa do esclarecimento das circunstâncias das mortes e desaparecimentos de presos políticos vieram dos presídios por meio de cartas, manifestos e da ação de seus familiares. Entre os textos escritos por presos políticos há o conhecido Bagulhão – a voz dos presos políticos contra os torturadores, produzido clandestina e coletivamente, em plena ditadura, ao longo de seis anos na prisão de Barro Branco, em São Paulo. Este texto é assinado por 35 presos que participaram de sua redação e foi assim chamado para despistar os carcereiros durante o tempo de sua elaboração. Originalmente, esse texto foi uma carta enviada, em 1975, ao presidente do Conselho Federal da OAB, denunciando torturadores e a prática de torturas em quartéis e delegacias de polícia; fatos sobejamente conhecidos de toda a hierarquia de comando dos agentes de repressão, apesar de sempre terem sido negados. Foi publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em 2014. A versão completa deste texto foi publicada em 2016, sob o título A repressão militar-policial no Brasil.


Familiares na porta do DEOPS (acervo Memorial da Resistência)


A formação da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos decorreu da iniciativa de mães, irmãs, esposas e demais familiares de presos políticos mortos em circunstâncias não esclarecidas, ou presos cujos familiares desconheciam seu paradeiro, mesmo quando buscavam encontra-los por meio de habeas corpus, cartas às autoridades, petições a organizações de defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior e denúncias em geral. Ressalte-se que a organização dos familiares, em todo o país em meados da década de 70, também foi uma iniciativa importante na luta pela preservação da vida de presos políticos encerrados nos cárceres da ditadura. Em São Paulo, no início desta mesma década de 70 – que foi um período de grande violência e perseguição desencadeadas pela ditadura – os familiares se encontravam amiúde na Cúria Metropolitana a fim de compartilhar suas dores e angústias e articular suas buscas, amparadas pelo acolhimento de D. Paulo Evaristo Arns.

O objetivo da Comissão de Familiares, inicialmente, era promover o encontro das famílias, conhecer a circunstância da morte ou desaparecimento de cada um de seus entes queridos, dar continuidade às investigações para localização de seu paradeiro e, depois, quando a esperança de acha-los vivos era quase nenhuma, encontrar ao menos seus restos mortais. Essas buscas realizavam-se muitas vezes, coletivamente, nos arquivos de cemitérios ou da polícia política, recolhendo informações de testemunhas, relatos de ex-presos etc. Tentava-se, assim, além de esclarecer as circunstâncias do assassinato de seus parentes e encontrar seus restos mortais, identificar os responsáveis pela tortura, assassinatos e "desaparecimentos", impetrando, quando possível, medidas judiciais.

Em todo o país, muitos familiares de presos políticos, e mesmo ex-presos, foram se agregando à Comissão de Familiares para denunciar não só as mortes e os desaparecimentos, mas também as torturas e as péssimas condições em que se encontravam nas prisões. Essa luta se intensificou, a partir de 1975, com o crescimento da campanha em defesa da Anistia.



A batalha legal

Em 28 de agosto de 1979, foi sancionada a Lei 6.683/79, a chamada Lei de Anistia que previa o fornecimento de um atestado de "paradeiro ignorado" ou de "morte presumida" aos "desaparecidos" políticos, eximindo a ditadura de suas responsabilidades e impedindo a elucidação das circunstâncias das mortes e desaparecimentos.

Esta Lei de Anistia libertou presos políticos e permitiu o regresso do exterior de militantes exilados, contudo, concedeu também uma “auto anistia” aos agentes do Estado envolvidos em ações repressivas, de torturas e assassinatos após o golpe de 1964. Os presos políticos envolvidos nos chamados “crimes de sangue” não foram beneficiados pela anistia; permaneceram nos cárceres e somente foram libertados porque a reformulação da Lei de Segurança Nacional – LSN atenuou suas penas. Eles foram soltos em liberdade condicional e viveram nestas condições durante muitos anos após a anistia. A definição de “crimes de sangue”, apesar de não ser clara, atingiu os que realizaram ações armadas que resultaram em mortes. Estes militantes foram severamente punidos e condenados à prisão perpétua ou à pena de morte, que foram, posteriormente, revistas. Entretanto, os agentes do Estado que além de terem praticado torturas e assassinatos, que ocultaram até hoje cadáveres de presos políticos, nunca foram condenados, nem sequer julgados ou indiciados em processos criminais.

Em pleno desenvolvimento da campanha pela anistia e greves de fome realizadas pelos presos políticos, surpreendentemente o senador Teotônio Vilela, da ARENA, partido da ditadura militar, visitou o presídio Barro Branco onde se encontrava a maioria dos presos políticos de São Paulo, e saiu declarando à imprensa que lá não encontrou nenhum “terrorista”, mas apenas jovens intelectuais e estudantes.

Em novembro de 1979, familiares de mortos e desaparecidos políticos organizaram informações que denunciavam assassinatos e desaparecimentos para serem apresentadas no II Congresso pela Anistia, realizado em Salvador (BA). Este dossiê também foi entregue pelos familiares ao mesmo senador Teotônio Vilela, na época presidente da Comissão Mista sobre a Anistia, no Congresso Nacional. Este mesmo dossiê foi, posteriormente, ampliado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos do Comitê Brasileiro pela Anistia – CBA do Rio Grande do Sul e editado, em 1984, pela Assembleia Legislativa do mesmo Estado. No livro constam 339 nomes, dos quais 144 de desaparecidos. Essa pesquisa, ampliada e revisada, orientou a elaboração de um segundo Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos publicado em Recife, em 1995. No Estado de São Paulo esse livro, no qual entre os mortos e desaparecidos constam os nomes dos cinco estudantes da PUC-SP, foi publicado em 1996 e prefaciado por D. Paulo Evaristo Arns que assim se expressa:

Este é um livro de dor. É um memorial de melancolias. Um livro que fere, e machuca, mentes e corações. Um livro para fazer pensar e fazer mudar o que deve ainda ser mudado e pensado em favor da vida e da verdade.

Em outubro de 1980, familiares dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia percorreram a região dos conflitos para colher informações sobre as circunstâncias das mortes e a localização dos corpos dos guerrilheiros, entre eles o de Cilon Cunha Brum, estudante da PUC-SP. Nesta primeira caravana obtiveram indícios de corpos enterrados no cemitério municipal de Xambioá e a existência de uma vala clandestina numa área denominada Vietnã, próxima àquela cidade. Colheram depoimentos, também, sobre a existência de cemitérios clandestinos em Bacabá, São Raimundo, São Geraldo, Santa Isabel, Caçador e Oito Barracas.

Em abril de 1991, familiares de militantes também da Guerrilha do Araguaia realizaram escavações no cemitério municipal de Xambioá, encontrando duas ossadas: a de uma mulher jovem envolta em tecido de paraquedas e, outra, de um homem idoso. Uma equipe composta pelo Dr. Badan Palhares participou das escavações e transferiu as ossadas para o Departamento de Medicina Legal da UNICAMP. Com o mesmo objetivo, em janeiro de 1993, familiares voltaram à região da guerrilha, na Fazenda Oito Barracas, procurando pelos restos mortais de Helenira Resende, mas não conseguiram acha-los.

Em dezembro de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.140/95, conhecida como a “Lei dos Desaparecidos” que determinou o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de 136 "desaparecidos" políticos e criou a Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos para examinar outras denúncias apresentadas mediante requerimentos de familiares. Novas descobertas a respeito das circunstâncias das mortes e "desaparecimentos" surgiram e alguns restos mortais foram encontrados, ainda que o ônus da prova tenha recaído totalmente sobre os familiares.

As investigações abriram caminho para o desmascaramento de grande parte das versões oficiais da ditadura sobre mortes e desaparecimentos de presos políticos. Entretanto, os limites da Lei da Anistia permanecem e continuam impondo empecilhos durante todo o tempo de sua vigência. Uma das maiores restrições que esta lei cria é que ela não obriga o Estado a investigar os fatos, a apurar a verdade, a proceder ao resgate dos restos mortais, a identificar os responsáveis pelos crimes e a punir os culpados, deixando às famílias a incumbência de apresentar as provas dos crimes e os indícios da localização dos corpos dos militantes assassinados. Além disso, a abrangência da lei é a mesma da anistia, ou seja, contempla apenas os assassinatos por motivação política ocorridos até agosto de 1979, e não possibilita o reconhecimento das mortes ocorridas entre 1979 e 1985.



Mortos e desaparecidos da PUC-SP

Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo há um memorial permanente no hall de entrada do Tucarena, uma das salas de teatro desta Universidade, em homenagem aos cinco militantes que ali estudaram e que integram a lista de mortos e desaparecidos políticos do país, vítimas da ditadura civil-militar que assolou o Brasil durante vinte longos anos, no período de 1964 – 1984. São eles:

• Carlos Eduardo Pires Fleury (1945 – 1971)

• Cilon Cunha Brum (1946 – 1974)

• Jose Wilson Lessa Sabbag (1943 – 1969)

• Luiz Almeida Araújo (1943 – 1971)

• Maria Augusta Thomaz (1947 – 1973)



Este memorial foi inaugurado em 22 de setembro de 2009, data em que a PUC-SP foi invadida pelos órgãos de repressão comandados pelo Coronel Erasmo Dias, em 1977. Participaram do ato de inauguração o Ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República – SEDH/PR, companheiros de organização dos estudantes mortos – ALN, MOLIPO e PCdoB – familiares, entre outros presentes. Composto por seis placas de acrílico e base de aço, o memorial é de autoria da artista plástica gaúcha Cristina Pozzobon.

O memorial faz parte do projeto Direito à Memória e à Verdade – Memorial “Pessoas Imprescindíveis”. E, no caso específico, uma Homenagem aos estudantes da PUC-SP daquela Secretaria de Direitos Humanos, realizada em parceria com esta Universidade.

Na sequência, passa-se aos resgastes da biografia de cada um deles e do contexto político de suas militâncias por meio tanto de depoimentos de seus companheiros de organização quanto da história da luta de seus familiares para a preservação de suas vidas, e quando isso já não era mais possível, para esclarecimento das circunstâncias de suas mortes e desaparecimentos.

Ao resgatar a história destes militantes reverencia-se também a memória de todos os mortos e desaparecidos políticos de nosso país.

Lembrar é resistir.