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IGREJA E A PUC

IGREJA E A DITADURA

 


No período que antecede o golpe militar de 1964, a Igreja Católica, no Brasil e no mundo, abrigava diferentes posições e conflitos entre correntes progressistas e conservadoras.

O contexto mundial era caracterizado pela disputa ideológica e politica de dois blocos: o bloco comunista, considerado “ateu” e o bloco capitalista, por sua vez, “cristão”, que disputavam a hegemonia de uma orientação politica para a conquista de mais espaço. Em 1959, o apoio Soviético a Cuba e a vitória da revolução cubana estabelecem um marco importante para que o outro bloco, liderado pelos EUA, aumente suas políticas de controle e intervenção em todos os países da América do Sul, apoiando a ação de forças conservadoras e anticomunistas em diferentes países. Com a finalidade de evitar que proliferassem ações de resistência popular como a revolução chinesa, a guerra do Vietnã, a revolução cubana, fortaleceu-se a tendência, muito grande, no bloco ocidental-cristão, de ajudar todas as forças consideradas anticomunistas. Isso significou defender o liberalismo econômico, em toda parte, especialmente na América Latina, favorecer todos os grupos políticos e governos que se alinhassem ao que então se chamou “segurança nacional”.

O Brasil, nos anos que antecederam ao golpe, viveu um período de mobilização de diferentes setores da sociedade. Na atuação da Igreja destaque-se a criação, em 1952, da CNBB e a expansão de projetos e de movimentos sociais impulsionados por católicos de diferentes matizes, tais como o Movimento de Educação de Base - MEB que desenvolvia processos de alfabetização e conscientização com populações carentes; as Comunidades Eclesiais de Base - CEBS, com grande importância no trabalho pastoral no campo, entre outros. Dentre os representantes deste movimento no interior da Igreja Católica na América Latina e no Brasil estavam Frei Carlos Josaphat, Padre Lebret, Padre Yves Congare e o filósofo Emmanuel Mounier, assim como outros citados no relatório da Comissão Nacional da Verdade como responsáveis por iniciarem no Brasil a nouvelle théologie, nova Teologia, a partir do diálogo entre descobertas científicas, o humanismo e a perspectiva socializante.

Frei Carlos Josaphat teve importante papel na dinâmica dos movimentos progressistas da igreja em São Paulo, desde meados da década de 1950. Entrevistado pela Comissão da Verdade da PUC-SP, Frei Josaphat expõe sua trajetória e o desenrolar das lutas desde 1956, ano em que voltou da Europa, terminando a formação como dominicano e empenhado na renovação da Igreja, no sentido da divulgação da dimensão social do evangelho. Neste momento lhe foi confiada a escola dominicana de Teologia, que naquele tempo chamava-se Instituto de Teologia da Província. Como membro do Convento dos Dominicanos, de Perdizes-SP, comentou a importância politica dessa comunidade:

Então nesse momento a gente pode dizer que o convento das Perdizes, particularmente aqui em São Paulo, foi um foco de resistência que cresceu cada vez mais, de modo que nós tínhamos reuniões de grupos ecumênicos para refletir sobre o que era o cristianismo naqueles tempos (...). Isso em 1958. Havia reuniões de mais de mil pessoas aqui. E onde houvesse uma greve, estudávamos para ver se ela era justa. E se ela fosse justa, defendíamos a greve (...). Nós já estávamos um pouco na linha do “ver, julgar e agir”.

Quanto à fundação do jornal Brasil Urgente, Frei Josaphat observou que, no inicio da década de 1960, a opinião pública no Brasil já estava completamente manipulada pelos grandes jornais e pela televisão, que mostravam um país que resistia ao comunismo e se opunha a tudo que fosse renovação no sentido da emancipação do povo, que apoiava tudo aquilo que fosse repressão, tudo que fosse colocar o ”povo no lugar de subordinação”.

(...) Trabalhava conosco o bispo de Santo André, D. Jorge (...) e nós tínhamos também aqui, nas Perdizes, um grande advogado trabalhista que tinha uma rede de sindicatos de luta social, Dr. Mario Carvalho de Jesus (...). Nós três fomos ver uma greve aqui em São Paulo e chegando lá nós avaliamos os problemas, conversamos com os grevistas e enquanto estávamos lá, chegou a polícia, prendeu todos os líderes e anunciaram que a greve tinha acabado. Assistindo a isso, tentamos conversar, mas não nos deixavam falar. Fizemos então uma nota, contando isso a todos os jornais (...). A maioria não publicou e o jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, publicou que “acabou a greve e que D. Jorge, Mario de Carvalho e Carlos Josaphat não ficaram muito satisfeitos e andaram discutindo com a polícia” (...). Aí fizemos uma reunião, em 1962, no convento nas Perdizes e nessa reunião nós discutimos o fato do quanto era difícil, para cumprir nossos objetivos, não ter a imprensa do nosso lado e pensamos em fundar um jornal alternativo que desse as informações de verdade, conforme os interesses do povo, que pudesse ser distribuído nas paróquias, nas comunidades, por todos os agentes pastorais. Daí saiu, então, o jornal BRASIL URGENTE, [em 1962] (Trecho da entrevista do Frei Josaphat à CV PUC-SP). (link para entrevista).

Sabe-se que a Igreja Católica tinha no Brasil um movimento forte de leigos progressistas que eram alinhados às principais reformas de base propostas pelos movimentos e partidos de esquerda. Entretanto, a Igreja não era monolítica, seus setores progressistas não representavam a maioria de seu episcopado, nem de suas bases leigas. Havia ainda o agravamento da conjuntura mundial no contexto da guerra fria e da polarização entre os EUA e a União Soviética.

Para organizar as manifestações em defesa do anticomunismo, um conjunto de bispos e leigos contou com o apoio da Central Intelligence Agency - CIA e do Padre Patrick Peyton. A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o episódio mais conhecido de protesto às iniciativas do governo Jango Goulart, atribuída à Igreja Católica. Essa Marcha fez parte de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964, em resposta à suposta ameaça comunista representada pelo discurso, feito em comício realizado pelo então presidente João Goulart no dia 13 de março daquele mesmo ano, no qual prometeu realizar as reformas de base, quais sejam a agrária, estudantil, administrativa, financeira, a reforma urbana, a implementação de um imposto sobre grandes fortunas, entre outras. Porém, quem organizou esse movimento de marchas e mobilizações de massas não foi apenas, nem majoritariamente, a Igreja Católica. Participaram vários grupos sociais, incluindo o empresariado com o apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FIESP, dos ruralistas, representados pela Sociedade Rural Brasileira e do controverso Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES.

Além disso, as mulheres, e especialmente as mulheres católicas, tiveram um papel muito importante. Em aliança com vários setores políticos organizaram essas marchas e contribuíram para levar às ruas mais de um milhão de pessoas com o intuito de derrubar o governo Goulart, em nome de Deus, da Família e da Liberdade. Em São Paulo a Marcha congregou entre 300 a 500 mil pessoas. Fizeram parte da organização destes eventos grupos como a Campanha da Mulher pela Democracia - CAMDE, a União Cívica Feminina - UCF, entre outras. Após a deposição do presidente pelos militares, em 01 de abril de 1964, as marchas passaram a se chamar "Marchas da Vitória".

Envolvida nessa onda conservadora, a Igreja quase em sua totalidade, apoiou o golpe. No entanto, não podemos esquecer que nesta época já havia no Brasil setores significativos da Igreja, adeptos de uma orientação progressista que praticava e defendia a Ação Católica representada pela Juventude Agrária Católica - JAC, a Juventude Operária Católica - JOC, a Juventude Estudantil Católica - JEC, a Juventude Universitária Católica - JUC, pelas CEBs e pelo MEB, constituindo forte conjunto de militantes que se destacavam na luta por justiça social e por uma Igreja comprometida com os pobres. Desta forma, importantes representações da Igreja Católica progressista no Brasil, atuavam de forma independente da instituição eclesiástica, mantendo fortes articulações com bispos e padres, que não conseguiram, de imediato, manifestar suas posições frente ao golpe. Essa postura só será assumida por esses setores mais progressistas quase dois anos depois do golpe. Entretanto, segundo Frei Beto, já “na primeira semana de junho de 1964, dois meses após o golpe, o CENIMAR, serviço secreto da Marinha, promoveu no Rio um arrastão destinado a prender militantes da Ação Popular – AP”. Para ele não havia diferença entre Ação Católica e Ação Popular. “O apartamento da direção nacional da Ação Católica, da JUC e da JEC, vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na madrugada de 5 para 6 de junho de 1964. Fomos todos presos”, disse Frei Beto que, continuando, observa:

como membro da direção nacional da Ação Católica, participei no Rio, no Convento do Cenáculo, na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da reunião da CNBB na qual os bispos católicos definiram sua posição frente à quartelada. Houve acalorada discussão entre progressistas e conservadores. De um lado, Dom Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio, apoiado por Dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, criticaram os militares por desrespeito à Constituição e à ordem democrática. De outro, Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina (MG), exigiam Te Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu esta segunda posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares golpistas. Mas, não foram apenas os dominicanos que foram acusados e perseguidos; em outras regiões do país, leigos, religiosos(as) e padres foram presos e/ou convocados a depor em IPMs [Inquérito Policial Militar].

Esse episódio narrado por Frei Beto revela que logo após o golpe a repressão percebeu que nem toda a Igreja Católica continuava dando apoio. Havia até mesmo bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a defender a ação evangelizadora da igreja numa perspectiva de defesa dos Direitos humanos. Uma questão ficou clara: a igreja não era monolítica.