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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


16. Uma Leitura Psicopedagógica das Marcas do Sujeito-Autor no Discurso

Já nas primeiras sessões Clarice demonstrou não confiar em sua capacidade de autoria. Não no sentido corriqueiro atribuído a esse termo, ou seja, autoria referida a um produto ou resultado, mas antes o entendendo como um modo do sujeito se relacionar com o conhecimento, de se reconhecer como diferente do outro, como sujeito desejante, de poder tornar-se responsável por aquilo que pensa, escreve ou diz.

Por ser o pensamento um fenômeno humano em que processos cognitivos e subjetivos se interligam, se entretecem, o (in)sucesso que o sujeito apresenta na forma como dá sentido ao que lê e ao que escreve, bem como a forma como organiza suas idéias coesa e coerentemente, na produção oral e/ou textual, é expressão de suas estruturas cognitiva e simbólica.

A significação que o ato de conhecer tem para o sujeito é determinante na conquista de sua autoria. Assim, a compreensão das possibilidades de vivência e de criação do sujeito, do quanto ele pode arriscar-se para interagir e se expressar por escrito ou oralmente, do quanto pode reconhecer-se como protagonista nesse ato de produção de sentidos, é fundamental para propiciar ao sujeito o reconhecimento e sustentação de sua autoria.

Adotamos, como se vê, a concepção de autoria de Alicia Fernández que a define como o processo e o ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção.

Alicia Fernández (2001) fala do nascimento da palavra a partir do vínculo mãe/pai/filho e de como essa relação é determinante para a constituição da autoria de pensamento. Segundo a autora, a aprendizagem se dá na articulação entre organismo, corpo, inteligência e desejo e é por seu intermédio que o sujeito se introduz no meio, na cultura, e se torna um ser humano.

Os pais são as primeiras figuras ensinantes e com eles constrói-se a matriz organizadora de posteriores aprendizagens. Por isso, é fundamental que eles dêem voz à criança, que a reconheçam diferente de si, como sujeito pensante. Nas relações posteriores de aprendizagem, na escola, por exemplo, essa relação vincular inicial tende a se repetir (transferência). O ensinante (professor) deve permitir que o aprendente (aluno) se signifique como diferente dele, que se reconheça como autor, podendo formular hipóteses, questionar, opinar etc.

A presente comunicação visa indicar e refletir sobre as marcas do sujeito-autor no discurso de uma paciente, Clarice, bem como apresentar em linhas gerais o trabalho que realizamos no Estágio Supervisionado em Psicopedagogia, durante o ano de 2004.

CLARICE E A CULPA POR CONHECER

Clarice, estudante universitária, procurou o atendimento psicopedagógico na clínica Ana Maria Poppovic aconselhada por uma de suas professoras da graduação. Fez todas as mudanças necessárias em seu horário de aulas para poder freqüentar a clínica, o que nos demonstrou sua vontade de ser atendida.

Assim, chegou Clarice, mostrando ser assídua e organizada, capaz de cuidar de sua vida e organizar questões práticas. Sua queixa, porém, era a de não conseguir se organizar, não conseguir entregar os trabalhos. Alegava ter dificuldade em acompanhar o curso: não conseguia apreender o sentido dos textos indicados para leitura e acreditava não poder fundamentar suas produções orais e escritas.

Clarice dizia sentir-se discriminada pelos colegas, já que era bolsista. Dizia que, por sua origem social e defasagem cultural em relação à turma, suas opiniões não eram consideradas pelas colegas nas discussões em grupo. Segundo ela, os professores da instituição sempre a acolhiam e respeitavam.

Clarice é uma moça bonita que se dizia feia. Acreditava ter um olho maior do que o outro, o que não pudemos observar. Várias vezes Clarice fez observações negativas em relação à sua aparência: "Sou desleixada"; " Sou horrorosa".

Seus pais, de origem humilde, nunca fizeram uma universidade. Segundo Clarice, o sonho do pai, um trabalhador braçal, era fazer uma faculdade, talvez Direito, mas esse sonho nunca se concretizou. Clarice tem irmãos, e o mais velho também está na faculdade. Segundo ela, a mãe permite que as irmãs usem roupas que para ela são proibidas, como shorts, pijamas curtos e minissaias.

Nos primeiros meses de atendimento, Clarice falava pouco da mãe, mas o pai aparecia em seu discurso de forma muito ambivalente: ora odiado, ora amado, situação que vimos concretizar-se num determinado momento, em que Clarice dizia que o pai sempre fora muito distante e fazia com os dedos um gesto de aproximação, batendo os dois indicadores.

Clarice dizia que o pai bebia, que gastava o dinheiro para ajudar os amigos, mas nunca ajudava a família; ela sempre repetia o que o pai lhe disse quando soube que ela entrara na faculdade: "Estudar não é pra peão". Outra frase que ela atribuía ao pai era :"Você é aleijada", que seria dita como gracejo por conta de um defeito físico (aparentemente não observável) que ela dizia apresentar.

A moça tentava afastar-se desse vaticínio, de que estudar não era para ela, desdenhando o pai e tudo que ele fazia. Por outro lado, muitas vezes afirmava que era como ele: "Sou o xerox dele", afirmou numa sessão, ao dizer que, como o pai, preocupa-se com questões sociais.

A mãe, que pouco era citada inicialmente, começou a aparecer depois de alguns meses no lugar da provedora. Clarice afirmava que, de fato, a mãe sustentava e organizava a casa. Via-se, então, entre o lugar do pai, que almejara o Conhecimento e terminara incapaz, fracassado, e a mãe, "ignorante", mas capaz, provedora, organizada.

Quando Clarice nasceu, a mãe já abortara espontaneamente várias vezes. Houve algum tipo de complicação no parto, que a paciente não nos soube explicar. "Sei que demorou para eu nascer... Se tivesse demorado mais um pouco eu teria ficado com deficiência" , afirmou, completando: " Eu sei que ela me falou que eu quase levei ela para o caixão". Nesta frase, sentimos a força da palavra da mãe, já que Clarice não sabe do fato por conhecimento próprio, o que poderia ter sido expresso por "Eu sei que quase levei ela para o caixão." A moça parece resignar-se a um saber porque a mãe "falou".

Nas sessões do segundo semestre, Clarice trouxe a figura da mãe como impositora de seus desejos, impedindo-a de crescer. Foram suas palavras textuais: "Ela quer que eu seja sempre criança. É horrível ser criança".. E ainda: "Todos os sonhos da minha mãe ela colocou em mim. É muito difícil. Tem uma hora que não vou agüentar". Aqui, na falta de concordância entre O "tem" e o "vou agüentar", já que um verbo está no presente o outro no futuro , Clarice pareceu-nos dizer que essa hora já havia chegado.

Por outro lado, a mãe era descrita por Clarice como um modelo de sucesso: conseguia organizar tudo, conseguiu ter uma família, sustentava a família com seu trabalho. Fazia tudo isso sem ter estudado, ao contrário do pai, que, apesar de ter concluído o ensino médio e de ser bem informado e politizado, era, aos olhos da moça, um fracassado.

Clarice várias vezes disse que a mãe era extremamente religiosa, e que ambas freqüentaram uma organização religiosa muito rígida e tradicional. Em seu discurso, alternou momentos em que a religiosidade foi colocada como uma questão positiva, dizendo que os princípios da mãe eram os mesmos dela, e momentos em que mostrou que não concordava com a postura muito conservadora da mãe, como quando disse que ela chegava a ser "brega", querendo que a filha usasse anágua e ficando transtornada quando Clarice queria sair. Relatou, por exemplo, que houve uma vez em que a mãe ficou muito brava por ela ter dormido na casa de uma amiga, e relacionou essa intolerância à religiosidade excessiva. O desejo da mãe de que a filha fosse freira apareceu várias vezes nas sessões, como quando a moça deu a seguinte declaração:

"Minha mãe quer que tudo o que ela não foi eu fosse. (...) Ser freira, ser leiga ...ela me obrigava a ir para o centro J. todos os domingos... As pessoas de lá, se você não sabe, elas não vão ficar falando, elas respeitam e tentam ensinar. (...). Minha mãe me obrigava a ir nos cursos de etiqueta e de hotelaria , mas eu achava tudo aquilo uma bobeira: ficar cortando as frutas... enquanto elas explicavam como tinha que cortar a banana, eu pegava, descascava uma e comia. Todo o mundo ficava olhando para mim, a rebelde! Eu questionava tudo! "

Vemos, mais uma vez, uma quebra na concordância dos tempos verbais: "Minha mãe quer que tudo o que ela não foi eu seja" ou "Minha mãe queria que tudo o que ela não foi eu fosse", seriam formas adequadas do ponto de vista gramatical. Clarice, no entanto, deixa muito claro que a mãe AINDA quer, ao conjugar o verbo querer, cujo sujeito gramatical é "Minha mãe", no presente; por outro lado, mostra também que, para ela, ser o que a mãe deseja não é uma possibilidade muito concreta, elegendo o imperfeito do modo subjuntivo ("...eu fosse") para conjugar o verbo ser quando o sujeito gramatical é "eu" : "Minha mãe QUER que tudo o que ela não foi eu FOSSE". Essa conjugação é um ato de autoria, talvez tão rebelde como o ato de descascar uma banana e comê-la com as mãos enquanto alguém explica como deveríamos fazer para cortar a banana e descascá-la com a faca...Mas é ainda uma autoria que não pode ser plenamente sustentada.

Clarice, porém, em muitos momentos parece não conseguir contrariar o que a mãe e o pai inscrevem em seu modo de ser. Tenta rebelar-se contra o "estudar não é pra peão", de seu pai, mas sente-se incapaz diante dos textos e atribui isso à sua origem, à sua trajetória de estudante de periferia, aceitando-se, por vezes, nesse lugar de "peão" onde o pai, pelo discurso, a instaurou.

Em relação ao desejo da mãe, Clarice declarou-se, nos primeiros meses de terapia, desorganizada e preguiçosa, como se esse discurso fosse dela, até que trouxe claramente a voz da mãe, já no mês de dezembro de 2004. Clarice disse que "as pessoas" só viam os seus defeitos. Ao ser perguntada quem eram essas pessoas, respondeu:

"Minha mãe, por exemplo. As mães das minhas amigas viviam dizendo que as filhas faziam tudo dentro de casa, lavavam, passavam... e a minha mãe só dizia que eu era preguiçosa, acomodada."

Clarice mostrou, em muitas ocasiões, aceitar a definição que a mãe lhe impôs. Cada vez que, angustiada, contava não ter terminado um trabalho ou ter deixado de colaborar para um trabalho em grupo, dizia que ela era assim mesmo, desorganizada, preguiçosa, acomodada. Sempre ressaltou que fazia com que as pessoas perdessem a confiança nela, por não cumprir seus compromissos acadêmicos. No final do ano, a jovem pôde atribuir a autoria dessas frases à mãe, ou ao menos admitir uma co-autoria. Chamou-nos a atenção, também, como ela não questionou se as amigas eram mesmo modelos de cumpridoras de tarefas, como se apenas o discurso daquelas mães fosse capaz de constituir as filhas daquele modo. Seguindo essa suposição, Clarice estaria aprisionada no desejo de sua mãe, que, para ser a pródiga provedora que cuidava de tudo, talvez precisasse mantê-la como a preguiçosa incapaz, que não cuidava de nada.

Clarice afirmou que a mãe nunca a deixara fazer nada em casa, como se ela não fosse capaz. A matriz vincular entre ela e sua ensinante-mãe, então, não permitiu que Clarice pudesse mostrar o conhecimento.

Há exemplos de produção da paciente, em diversas sessões, que, textualmente, indicam essa dificuldade em se reconhecer autora. Num trabalho de colagem seguido de escrita, por exemplo, a primeira imagem que Clarice escolheu foi a de um velocímetro de automóvel, que foi colado bem no meio da folha, em uma sessão em que ela havia se atrasado. Ela disse que aquilo era uma bomba-relógio, e escreveu: "Querer fazer tudo ao mesmo tempo e não sair do lugar". Foi significativo o fato de Clarice ter escrito um período composto por frases impessoais (Quem quer fazer tudo? Quem acaba não saindo do lugar?). São idéias adversativas, que poderíamos unir por um MAS, unidas, entretanto, por uma conjunção aditiva com valor adversativo. Há, na própria construção sintática, uma ambivalência entre o querer e o fazer e uma concretização do não se assumir como sujeito do texto, pela escolha da impessoalidade dos verbos.

Noutra sessão, além de ligar palavras (de seu próprio discurso na sessão anterior) pela rima, formando pares, ela juntou alguns termos num versinho:

"A menina de bondade, bondosa ela é. Faz caridade da cabeça à ponta do pé."

Tal verso é emblemático de um modo do funcionamento de Clarice, que é o "ou tudo, ou nada": ou ela tira dez ou sente que tirou zero; ou se é linda, como "todo o mundo" ou se é "horrorosa", como ela se descreve; ou se escreve "direito, certo, sem fazer rascunho", como " todo o mundo da faculdade", ou não se escreve nada; ou se é exatamente como os pais querem que se seja, ou não se pode ser filho dos próprios pais.

O conflito entre ser absolutamente a filha que os pais querem e negar esse desejo completamente apareceu de forma clara na sessão em que fizemos o desenho da família. Ao executar "A Família que você gostaria de ter", Clarice mostrou o conflito entre ficar "na casa dos pais", num bairro pobre, o que não lhe permitiria ter o Conhecimento, e sair para a "outra São Paulo", a da classe média, o que faria com que ela perdesse sua identidade. Ao responder onde seria a casa em que sua família ideal viveria, Clarice disse:

"Num bairro simples, bem simples. Eu não nasci para morar em bairro em classe média. Porque têm duas São Paulos, uma perfeita, em que tudo é lindo, e a outra em que eu vivo, que eu conheço bem, que é muito ruim, muito difícil. Aqui na faculdade acho que a maioria não conhece essa São Paulo feia, e eles são arrogantes. Eu não quero ser como eles, não quero esquecer. Porque eu sei de onde eu vim, eu sei quem eu sou. ( ...) Eu tenho medo, sabe, porque o conhecimento traz a solidão.

Outro registro de Clarice associando imagens a palavras foi, a partir de uma imagem de um olho, o seguinte: "O olho para mim tem um significado importante, pois meu olho era de tamanho diferente com relação as pessoas da minha família, achavam que eu tinha decendência (sic) oriental, mas se fosse apenas isso estaria bom, mas redicularizavam-se (sic) por ser um pouco estrábica"

O que é esse olho de tamanho diferente? Poderia ser um olho que busca ler, que busca o conhecimento? A interpretação é tentadora. De qualquer maneira, o olho de Clarice era para ela diferente em relação às pessoas de sua família, como se esse olho fugisse daquilo que a família desejava. Ser diferente, então, é não ser família, é talvez ter uma ascendência de um pai-imaginário (oriental), é habitar uma outra casa.

Na última oração, vemos que o verbo "ridicularizar" vem marcado por uma hipercorreção: escrito com E, e não com I , talvez por influência de palavras que, como "perigo", escrevem-se com E mas pronunciam-se com I. Querer fazer tão certo leva ao erro. Além disso, conjugado na terceira pessoa do plural (eles ridicularizavam), pelo contexto esperaríamos um pronome objeto "me", isto é, "eles ridicularizavam-me por eu ser um pouco estrábica". Clarice, no entanto, talvez se coloque como autora, questionando essa ridicularização ao trocar o pronome objeto de "me" por "se" e ao omitir o sujeito do infinitivo "ser": "os ridículos vesgos eram eles", pode estar nos avisando. Porém, mais uma vez, trata-se de uma autoria em processo de autorização.

A leitura psicopedagógica de textos de pacientes não tem como único ou principal objetivo a correção gramatical, pois tal correção, se desejada, será alcançada pelo sujeito a partir do momento em que ele se reconhecer autor. As marcas do sujeito no discurso, que podem aparecer também nas inadequações em relação à norma culta, podem revelar a voz desse sujeito autor e, no trabalho clínico , o psicopedagogo deve buscar assinalar essa voz, dirigindo o olho do autor para seu próprio texto que terapeuticamente repercutirá em sua autoconstrução.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FERNÁNDEZ, Alicia A mulher escondida na professora. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.

BIBLIOGRAFIA
CAMPOS, Regina Celi Quarenta. Autoria e produção escrita: um estudo sobre a concepção de autoria a partir do olhar psicopedagógico. Monografia, PUC- SP - COGEAE, 2005 (em fase de elaboração).
MELO, Maria Lúcia de Almeida. Subjetividade e Conhecimento - Miradas (Psi) pedagógicas. São Paulo: Ed. Vetor, 2002.
SILVA, Adriana Pucci. Subjetividade, Linguagem e Conhecimento: reflexões sobre uma concepção psicopedagógica da linguagem. Monografia, PUC- SP - COGEAE, 2005.