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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


15. Questão da Alta em Psicopedagogia

A Psicopedagogia atua num território - a aprendizagem - no qual a expectativa de alta de um tratamento está diretamente ligada a resultados acadêmicos mensuráveis (notas, promoções) e o próprio paciente espera do terapeuta que essas expectativas sejam atendidas. Quando esse resultado não vem de imediato ou como se desejava, ou ainda, no tempo em que se esperava, o atendimento psicopedagógico pode ser visto como ineficiente. Será isto legítimo?

Por outro lado, admitir que o êxito acadêmico não é o fim visado pelo tratamento psicopedagógico não é uma forma de evitar a dor do reconhecimento de um fracasso? Não é uma racionalização? Afinal, qual é atualmente para o psicopedagogo o resultado desejável de um tratamento psicopedagógico? O que pacientes e psicopedagogos têm como meta de um atendimento psicopedagógico? Mais "sucesso" escolar, aprovações, notas? Mais possibilidades de construir conhecimento? Mais verdade, conhecimento de si? Mais prazer ao aprender? Menos sintomas relacionados à aprendizagem? Menos inibições?

O objetivo do presente trabalho é apresentar brevemente o atendimento psicopedagógico de uma paciente de modo a explicitar algumas reflexões preliminares sobre o tema "a alta em psicopedagogia".

O atendimento psicopedagógico que deu origem ao presente trabalho foi aqui relatado o ano passado, na 3ª Jornada da Clínica . Não é o caso de relatar novamente o que já foi apresentado na última Jornada. Porém, faz-se necessário retomar brevemente alguns dados desse atendimento, a fim de ser possível descrever o "Fim" desse trabalho, ocasião em que se colocou para o grupo de supervisão e particularmente para a estagiária - co-autora deste texto e responsável pelo atendimento da paciente na ocasião de sua finalização, questões sobre as quais todo o grupo passou a pensar e que foram por ela assumidas como orientadoras de estudo visando a construção de seu trabalho monográfico em Psicopedagogia, ainda em elaboração durante este ano letivo.

O que será aqui relatado, portanto, não é um estudo conclusivo, mas as primeiras elaborações sobre o tema "a alta em psicopedagogia, as quais deverão ser aprofundadas no contexto da monografia a ser apresentada como exigência do Curso de Psicopedagogia.

Para começar, no entanto, é preciso dizer que estamos empregando o termo alta no sentido de momento adequado de finalização do tratamento, por se julgar cumpridos os seus objetivos. É preciso também retomar alguns dados do atendimento que deu origem ao presente estudo.

O ATENDIMENTO DE LIA

No início do atendimento (2º sem. de 2002), Lia tinha 21 anos, cursava o 1º ano de Pedagogia de uma universidade de renome. Queixava-se, na ocasião, de dificuldades para realizar tarefas solicitadas pelos professores na universidade: compreender/interpretar textos; resumir textos; entregar trabalhos no prazo; escrever s/ss, z, ou ç; dificuldades para perguntar, quando em dúvida, pois temia ser ridicularizada pelos colegas; dificuldade para relacionar-se com colegas, pois sentia que nada tinha a oferecer aos grupos.

Após um período dedicado à avaliação psicopedagógica da estudante, compreendemos um pouco mais o sentido de suas dificuldades. E essas dificuldades eram múltiplas. Desde dificuldades diretamente relacionadas às habilidades acadêmico-pedagógicas esperadas de uma estudante universitária - Lia conquistara o domínio da técnica de leitura e escrita, mas apresentava muitas dificuldades para compreender textos que requeriam algum nível de abstração e para escrever textos, mesmo narrativos, respeitando parâmetros temporais e espaciais - até dificuldades básicas relacionadas à sua própria constituição como sujeito (não se referia inicialmente a si mesma usando o pronome "eu" ).

Junto a tudo isto, uma enorme dificuldade para lidar com as perdas de pessoas significativas (avós, tios). Lia supria essas perdas, comendo.

Apresentava também intensa ligação com a figura materna e certo distanciamento da figura paterna bem como dificuldade para lidar com figuras de autoridade e com prazos e limites, apelando freqüentemente para a busca de parcerias benevolentes.

Transferencialmente, Lia se colocava no lugar de alguém submisso, dependente, vazio, deficiente.

Do ponto de vista cognitivo-intelectual, pareceu-nos situar-se na transição do período pré-operatório para o operatório concreto, segundo os resultados obtidos nas provas operatórias piagetianas que foram aplicadas.

No ano seguinte (2003), iniciado o tratamento mais especificamente, enfatizamos a diferenciação eu-outro no trabalho que realizamos com Lia, ou seja, a construção de sua auto-imagem e, simultaneamente, o aprimoramento das noções de tempo e espaço essenciais ao melhor funcionamento cognitivo-intelectual da paciente e indispensáveis à construção de seus textos e à melhor compreensão de suas leituras.

Como relatado em artigo publicado no Boletim Clínico XVIII da 3ª Jornada da Clínica (2004), observamos algumas conquistas. Lia foi capaz de escrever uma autobiografia relativamente detalhada e organizada do ponto de vista lógico. Observamos também que a paciente passou a utilizar mais assiduamente o pronome pessoal "eu", bem como passou a ser capaz de iniciar as sessões e a falar um pouco mais de si, sem precisar ser interrogada. Demonstrou, até, interesse em dirigir o carro da família sozinha, para se tornar mais independente, dizia. Em sala de aula, continuava se sentindo diferente dos colegas, mas não abria mão de terminar o curso em que se matriculara. Começamos também a notar que Lia se mostrava mais vaidosa e bem cuidada. Sofrera muito no início do ano com o rompimento de um namoro, mas ao final do ano parecia mais animada e disponível para novas experiências amorosas.

No início de 2005, Lia já não se mobilizou a ampliar a construção de sua autobiografia. Começou a admitir algo até então impensável: não finalizar o seu curso. Os trabalhos multiplicaram-se, bem como as cobranças, os prazos vencidos, os prazos adiados...Começou a formular um projeto de mudar de curso. O atendimento voltou-se para lidar com esses novos conteúdos trazidos pela paciente sem, todavia, perder de vista as dificuldades cognitivas e simbólicas atuantes no seu modo de lidar com as questões acadêmico-pedagógicas.

Nessa etapa final do atendimento, Lia revela uma melhor discriminação eu-outro; provoca, agüenta e planeja, junto com a estagiária-terapeuta, uma mudança significativa em sua vida: mudar de curso. Mostra-se mais autônoma nas decisões que toma, mais capaz de resolver seus problemas, porém continua apresentando dificuldades de ordem cognitiva e instrumentais ou acadêmico-pedagógicas, embora já se mostre capaz de entrar em contato com essas dificuldades e de procurar uma saída profissional aparentemente mais compatível com suas condições e habilidades pessoais. No final do 1º semestre/2004, Lia resolve abandonar o curso que vinha fazendo (Pedagogia) e prestar um novo vestibular para Gastronomia (foi aprovada em Panificação e Confeitaria). Ao retornar das férias de julho, decide finalizar o tratamento psicopedagógico. Lia dá-se alta.

CONCLUSÕES PRELIMINARES

Pensamos que o atendimento psicopedagógico realizado com Lia ajudou-a a construir uma visão mais realista de si mesma, de suas dificuldades e facilidades, além de lhe ter ajudado a tomar uma decisão - mudar de curso - de modo pensado, planejado e aparentemente autônomo. Dir-se-ia, portanto, que o trabalho psicopedagógico cumpriu seu desígnio, a despeito de sua finalização prematura (segundo nosso ponto de vista) e do rumo surpreendente que tomou.

Porém, como conquistar uma maior clareza, consistência e fundamento para sustentar essas conclusões a que chegamos? O que diz a literatura psicopedagógica e, mais amplamente, a literatura clínica, sobre o significado da "alta" em tratamentos de natureza "psi"?

A ALTA NA LITERATURA PSICOPEDAGÓGICO-CLÍNICA

No livro A mulher escondida na professora (1994), Alicia Fernández relata o atendimento psicopedagógico-clínico de uma professora universitária, cuja queixa era a ocorrência de "brancos" quando os alunos lhe dirigiam perguntas em sala de aula: é o caso de "Virgínia, a ensinante bulímica ou a culpa por aprender" (título do capítulo do livro). Neste texto, Alicia Fernández explicita o que entende por "fim do tratamento psicopedagógico".

Após três anos de atendimento, ainda que continuasse o motivo da consulta inicial, paciente e terapeuta decidiram que havia chegado o final do atendimento psicopedagógico. Os argumentos de terapeuta e paciente eram diferentes, porém complementares. Enquanto a paciente ressaltava os resultados observados - "havia conseguido escrever, questionando outros; podia autorizar-se a opinar diferentemente"...etc, a terapeuta não se preocupava com a permanência do motivo de consulta, já que os processos psíquicos que lhe davam lugar haviam sido modificados.

No caso apresentado, Alicia propôs o fim do tratamento psicopedagógico baseado fundamentalmente na análise do vínculo tranferencial, levando em conta o diferente lugar a partir do qual a paciente falava e a terapeuta escutava, no início e no transcorrer do atendimento.

A paciente havia reconstruído o espaço transicional necessário para autorizar-se a pensar. Levando em conta as mudanças estruturais ocorridas durante o atendimento, podia-se esperar que o motivo da consulta desaparecesse, o que aconteceu, segundo relato da paciente à autora, apenas um ano após o término do atendimento.

Por sua vez, Sara Pain, em Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem (1985) considera que "Os objetivos básicos do tratamento psicopedagógico são obviamente, a desaparição do sintoma e a possibilidade para o sujeito de aprender normalmente ou, ao menos, no nível mais alto que suas condições orgânicas, constitucionais e pessoais lhe permitam" (p.80) (grifos nossos).

Todavia, a autora acrescenta: "...não basta aprender para aprender bem: é necessário pôr ênfase no como se aprende" (grifos nossos), isto é, o tratamento deve (p.80-82):
1) favorecer uma aprendizagem que seja uma realização para o sujeito;
2) favorecer uma aprendizagem independente, por parte do sujeito (vínculo com a tarefa e não com o psicopedagogo);
3) propiciar uma correta autovalorização do sujeito.

A ALTA NO CONTEXTO DA PSICANÁLISE

Na Psicanálise - disciplina que muito tem contribuído com a Psicopedagogia, uma vez que permitiu ressignificar e ampliar o conceito de sujeito da aprendizagem que, de sujeito cognitivo, passou a ser entendido como sujeito cognitivo e desejante - o fim da análise (que estamos chamando de alta) é discutido a partir de uma formulação distinta: discute-se a CURA.

Fábio Herrmann, entre nós, tem sido um psicanalista que tem se dedicado a pensar a questão da cura em Psicanálise.

Para ele, a palavra cura "sofreu uma reificação pragmática na medicina, como se se tratasse de consertar alguma coisa", razão pela qual, talvez, a palavra tenha caído em desuso no meio psicanalítico.

A medicina, segundo Herrmann, reduz a cura a uma visão que não interessa à psicanálise, pois "... a noção pragmática de cura da medicina não combina com a nossa visão psicanalítica do processo de cura, daquilo que se alcança em uma análise. Não temos como objetivo a remoção de alguma coisa, o sintoma. Curar-se não significa retirar algo que estava atrapalhando..." (2000: 427).

O ideal de restituição à integridade original, à normalidade de direito, da medicina, é um lema que para a psicanálise não é útil. "Nosso homem nunca é integral, muito menos em seu ponto de partida, tampouco no ponto de chegada. Por isso, talvez a grande reação que houve contra a noção de cura em psicanálise" (id.ibidem).

A partir de um rastreamento da origem etimológica da palavra "cura", Fábio Herrmann nos permite entender a riqueza dessa palavra, o que justifica o seu resgate à literatura psicanalítica, a despeito de seu uso restritivo, pragmático e redutor, na medicina.

Em síntese, "cura", palavra de origem latina, pode significar cuidado (aparência descurada); direção, administração (o curador da exposição), o fim do tratamento (sinônimo de "alta")...Na religião, indica salvação (cura d'alma e cura da igreja) ou simplesmente o padre (o "cura").

Mas a palavra "cura" é ainda empregada num sentido muito especial: a cura do queijo.

"Curado, um queijo torna-se plenamente 'queijo daquela espécie' (p.430).

E mais adiante, esclarece que "Nessa acepção de cura, cura do queijo, que é como tomar ponto, chegar à sua potencialidade, nem mais nem menos, já se vê que não se trata de erradicar alguma coisa da personalidade, mas de sazonar, amadurecer, desenvolver, palavras equivalentes a curar." E alerta-nos para um perigo: curar uma coisa (um queijo-de-minas, por exemplo) com critérios de cura de outra coisa (um queijo camembert, por exemplo). Nestes casos, "pode-se curar de menos, pode-se curar demais, no sentido do queijo, e pode-se curar errado, que é o pior de tudo, ou seja, dar uma direção completamente alheia ao sentido do desejo" (431).

Aliás, este é o sentido de cura para a Psicanálise, segundo Herrmann: cuidar do próprio desejo.

Outra vertente da reflexão sobre o conceito de cura em psicanálise pode ser encontrada em Winnicott. A cura remete, segundo esse autor, à noção de cuidado que se dá na relação de confiança que se estabelece entre paciente terapeuta. "Ao proporcionar um ambiente facilitador adequado, o analista contribui para que se estabeleça no paciente a saúde, que se traduz em uma 'maturidade relativa à idade do indivíduo' " (Winnicott, 1999: p 4, apud Girola, 2004,p.153 ). Mas deixemos um exame mais detalhado dessa concepção de cura para a monografia.

FINALIZANDO SEM FINALIZAR

Este trabalho não comporta uma finalização. Trouxemos aqui o momento de largada de uma monografia ainda em elaboração. O atendimento de Lia finalizou; o estágio da turma de 2004 , na Clínica psicológica da PUCSP, também finalizou. Mas este trabalho está apenas iniciado. Trata de um tema que capturou a todas nós - supervisora e supervisionandas - razão pela qual pretendemos fazê-lo avançar.

Por enquanto, no entanto, o caminho percorrido até o momento nos ajudou a referendar nossa hipótese inicial: o trabalho psicopedagógico realizado com Lia parece ter cumprido seu desígnio.

Se levarmos em conta as mudanças ocorridas na relação transferencial como parâmetro orientador do momento de finalizar um tratamento psicopedagógico-clínico, como proposto por Alicia, é evidente que a decisão, tomada por Lia, de mudar de curso e de interromper a terapia psicopedagógica é sugestiva de uma alteração de seu posicionamento subjetivo frente ao outro. De um posicionamento dependente, praticamente passivo, no início do atendimento, Lia tornou-se capaz de escolher e de mudar o rumo do atendimento e o rumo que vinha dando a sua vida profissional.

Se levarmos em conta o que nos diz Sara Pain sobre os objetivos básicos do tratamento psicopedagógico (cf. descrito na pg. 5 ) podemos concluir que os sintomas de Lia não foram superados. Apesar disso, parece-nos plausível rejubilar-nos com a decisão da universitária de buscar uma profissionalização mais compatível com suas possibilidades de realização pessoal, favorecedora de uma aprendizagem mais independente e, provavelmente, de uma melhor e maior autovalorização pessoal, conquistas indispensáveis ao BEM aprender e não necessariamente ao aprender BEM.

Por fim, ajudadas pelas reflexões de Fábio Herrmann, compreendemos que assim como a idéia de "cura" na Psicanálise não pode ser abandonada, a despeito dos vieses redutores e pragmáticos a que foi submetida, na Psicopedagogia não podemos também abrir mão de refletir sobre o que significa "cura" ou "alta" de um tratamento psicopedagógico-clínico. Precisamos, como esse autor tem feito, e ressalvada a especificidade de nosso trabalho, estar alerta para o perigo de "curar de menos", ou de "curar demais" e, o pior de tudo, "curar errado", ou seja, tratar o sujeito do conhecimento como se fosse um sujeito-padrão, ou melhor, como se não fosse um sujeito de desejo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNÁNDEZ, Alicia. A mulher escondida na professora - uma leitura psicopedagógica do ser mulher, da corporalidade e da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
GIROLA, Roberto. A Psicanálise cura? Uma introdução à teoria psicanalítica. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2004.
HERMANN, Fábio. A cura. Jornal de Psicanálise. São Paulo, 33 (60/61): 425-442, dez.2000.
MELO, Maria Lúcia de A . e MACIEL, Andréia Gonçalves da Silva. História de Vida como processo de construção do sujeito da aprendizagem. Boletim Clínico, São Paulo: Faculdade de Psicologia da PUCSP, Volume XVIII, 2004.
PAIN, Sara. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.