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BOLETIM CLÍNICO - número 20- julho/2005

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


6. Direção do Tratamento num Caso de Abuso Sexual

O CASO DE A., 8 ANOS, SEXO MASCULINO

A. é um menino de 8 anos que iniciou o atendimento na Clínica da PUC pois há cerca de um ano sua mãe descobriu que o filho de sua irmã, seu sobrinho, P. de 15 anos, estava abusando de seu filho. Quando A. tinha 7 anos sua mãe resolveu ficar uma tarde em casa para estudar quando passou pela sua cabeça que seu filho havia sido abusado. Foi atrás dele e sentiu um clima estranho: ele e o primo procuravam a bola que havia sumido. Imediatamente levou-o para dentro de casa e lhe perguntou sobre o acontecido. Mesmo a criança negando qualquer tipo de abuso, a mãe insistiu por ter visto "medo nos olhos dele" (sic). Então ela disse à ele que algumas pessoas faziam coisas com crianças que não deviam fazer como apertar e abraçar e que ele não podia mentir para ela nem para o papai do céu. A criança começou a tremer e confessou. Disse que já há algum tempo seu primo colocava o pipi na bunda dele e que na primeira vez doeu. Mostrou a mãe o baú no qual era obrigado a se debruçar sendo abraçado por de trás e sendo segurado pela barriga. A mãe pediu para olhar o ânus dele e reparou que estava dilatado. O filho disse que não podia contar pois tinha medo do pai e da mãe e por ter sido ameaçado pelo primo. A mãe optou por poupar sua irmã, mãe de P., que passava por uma fase difícil e não delatar o sobrinho. Ele estava sendo abusado desde seus 4 anos e meio quando passava as tardes com o primo sob os cuidados da avó materna que nunca percebeu nada.

Ao procurar o serviço de psicologia, a mãe diz que andava angustiada com medo que seu filho não sabendo que o que fizeram com ele é errado, virasse um abusador ou homossexual, pois achava seus desenhos estranhos e agressivos e nas figuras, ele circulava principalmente os olhos das mulheres e também fazia cílios, pintava a unha e a boca. Quer passar para o seu filho que isso é errado. Diz que quando quer saber mais detalhes sobre o que ocorreu, seu filho se fecha, se afasta e pergunta à ela porque ela ainda quer falar disso. Lembra que desde os quatro anos e meio ele começou a ficar afeminado, usando seus sapatos e tiara. Relata que quando viam uma cena de beijo ou sexo na TV ele arregalava os olhos com pavor e olhava para ela. Mais tarde veio a entender que ele queria dizer algo, que estava sendo abusado. Inclusive entendeu os beijos que ele insistia em dar na sua boca mesmo ela mandando parar e os abraços por de trás segurando sua barriga como o primo havia feito com ele. Desde que descobriu o abuso ele ficou "mais homenzinho e menos afeminado" (sic.).

A mãe se separou do pai de A. quando ele tinha 2 anos por ter descoberto de repente, após 7 anos de relacionamento, que era viciado em cocaína. O filho não viu mais o pai, que pergunta sobre ele e a mãe diz que não sabe se seria bom o filho ver o pai pois ele ainda deve se envolver com drogas, sem ao menos verificar se ele ainda realmente usa drogas.

Ela ainda mora com sua mãe apesar de ter medo que esta ensine algo errado ou antiético ao filho. Acha que sua mãe vai expulsá-la de casa se fizer denuncia do sobrinho ao conselho tutelar, pois sua mãe sempre ignorou o ocorrido dizendo para não denunciar porque A. era criança e iria esquecer. A mãe acha que como os dois envolvidos são netos desta avó fica muito difícil para ela assumir o que ocorreu preferindo abafar o caso. A avó pede para levar A. para passear nas férias na casa do primo abusador. A mãe recusa a idéia e a avó insiste, mentindo, dizendo que a psicóloga da PUC autorizou e que faria bem para ele enfrentar o primo. A mãe relata que não pode mais ficar quieta e fingir que nada aconteceu para agradar sua família que prefere não ver o que ocorreu, vindo na psicóloga encontra forças para enfrentar a família e não ser mais cúmplice e "voltar a ser mãe no lugar de deixar ele nos cuidados com a avó".

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA EM PSICANÁLISE

Lacan propõe que a experiência analítica deve ser lida através de três registros: real, simbólico e imaginário. Nos deteremos especificamente no registro do real para explanação dos mecanismos psíquicos no caso do abuso. "O registro do real está imbricado com o trauma, o qual marca o início da vida de um sujeito, quando o exterior lhe chega sem possibilidade de tradução, ou seja, sem poder de antemão se compor com o simbólico, precisando de um momento posterior para ser lido (...) após um segundo momento, é que passa a haver traumatismo, isto é, depois de configurado um simbólico gerador de identidade subjetiva, é que o sujeito pode "reler" o exterior primordial como traumático, como da ordem do real" (Mees, 2001, p.103). O real em psicanálise não é somente o exterior, como o excesso, o não simbolizado, o gozo. Os registros do simbólico e do imaginário captam esse gozo (esse real) que faz intrusão no sujeito dando um recobrimento que o torne mais afável. Esse gozo é gozo do Outro (fazendo referência ao gozo materno), porque é um gozo anômalo e exterior, ao mesmo tempo que estrutural, que traumatiza a criança pela impossibilidade de assimilar aquilo que lhe é descortinado no campo do sexual por um adulto. O que a criança não pode saber e que lhe escapa - é que ela é puro objeto do gozo do Outro, posição alienada, alijada do saber e do ato. O trauma originário é a vivência de um gozo antecipado, antecipado porque ocorre antes que o sujeito seja capaz de um ato, sendo então puro objeto.

O abuso sexual é a da ordem do trauma porque a criança é tomada como objeto do gozo do Outro. Essa repetição da invasão do gozo do Outro (no abuso) remonta a cena primária de constituição do sujeito que é traumática por excelência porque o gozo do Outro vem como uma realidade exterior intraduzível. É pela criança ser totalmente passiva frente ao desejo do Outro, por ser um puro objeto que se marca um trauma, um real. As operações de simbólico e imaginário permitem ao sujeito recobrir a cena traumática, o real, permitindo uma distância desta experiência, porque diante desta primeira cena, (constituinte, a criança não tem recursos que a protejam do gozo devastador materno, uma vez que a mãe é o primeiro Outro que inscreve o sexual no filho. No abuso portanto a criança fica próxima de sua cena traumática com recursos subjetivos reduzidos.

Nesse sentido a direção do tratamento não visa ao assentimento da criança, isto é levá-la a uma posição subjetiva de reconhecimento e aceitação de sua modalidade de gozo, isto é, de estar numa cena de gozo sexual, pois fazê-lo é liquidar com o tempo do infantil. Se o trauma do abuso desvela todo um recobrimento da estrutura, o trabalho analítico infantil diferentemente no caso de abuso de adultos, é no sentido contrário. É somente na fase adulta que o sujeito adquire uma posição frente ao gozo e por isso é responsável por ele podendo falar como agente dos seus atos e perpetuador da posição de gozo escolhida. Na história de Peter Pan, a luta final com o Capitão gancho ele vence, porém opta por salvar o carrasco de cair no barranco e morrer. O capitão responde tentando matá-lo novamente. É aí, e não anteriormente, que Peter Pan surpreso reconhece pela primeira vez a maldade do Capitão. O reconhecimento da maldade é o reconhecimento de um gozo ao qual o sujeito está assujeitado, saber inexistente na infância, inocência perdida pela entrada no mundo adulto, abandonando assim a infância. Fazer uma criança reconhecer esta cena é desvelá-la e introduzi-la portanto na ordem do desejo sexual de um adulto que tem conhecimento de sua posição sexual.

As repetições no real de um gozo anômalo (o abuso repetido) durante a infância faz com que esse gozo normalmente captado ou recoberto pela fantasia (recurso de recobrimento simbólico) se desvele, fique descoberto. Há uma constante invasão do real que é atualizada pela experiência do abuso. O trabalho analítico visa permitir que a criança recubra através da fantasia, o gozo. Retomaremos algumas sessões com A. para que se possa compreender como isso se coloca.

Inicialmente brincávamos de dama. A criança dizia que iria ganhar. Mas no seus atos, diferentemente do discurso, ele queria perder. Ele evitava comer minhas peças e quando não comia as peças dele, dava dicas para que se o fizesse. Dizia: "Ih! Ih!" (evidenciando onde eu deveria comê-lo). E fazia gestos estereotipados colocando mão na testa e na boca indicando o momento oportuno para comê-lo. Eu ignorava e continuava a não comê-lo, porque isso se repetia em todas as sessões. Até que ele diz: Você não vai me comer? Fazendo resistência em comê-lo digo: "Ora! Você não disse que ia ganhar?" A resistência do analista em fazer o que ele pede, deve-se a intenção de fazer com que se coloque, se estabeleça em cena através do jogo lúdico a posição de A. como objeto para que se possa depois permitir a passagem à posição ativa. Na teoria lacaniana não é somente o jogo lúdico, uma representação simbólica, que permite a elaboração da condição do trauma. A própria mudança de uma posição do sujeito no ato de brincar à outra posição, repetidas vezes, deve ser objeto de trabalho analítico. O sujeito se coloca inicialmente para ser comido, é o próprio sujeito tomado como objeto do Outro, posição passiva fixada pelo trauma e confirmada pelas repetições do abuso. O que se objetivava aqui é tornar essa posição rígida, pois a criança sempre se oferecia para ser comida, numa posição mais frouxa, maleável, que lhe permitiria deixar a posição estabelecida e permitir ao sujeito a virada para outra posição: passar de passivo à ativo, de quem é comido para quem come. Quando a criança pergunta se o Outro não vai comê-lo ele revela uma posição alienada frente jogo. A reposta do sujeito a minha intervenção, é a demanda "Me come". Com isto ele assume e reconhece uma posição subjetiva frente ao jogo. No momento em que decido comê-lo, ele revela que fez eu comê-lo para tirar minha peça da linha de base deixando-me vulnerável na base. Ele diz ter me pregado uma peça, estava se fazendo de bonzinho. Faz-se aí a virada da posição. Agora ele é o que come. Passa de objeto comido a sujeito que come. Ele atinge a base ganhando uma dama e passa a me comer com mais poderes. Inventa uma regra na qual ele come o quanto quer da forma que quiser pois tem a Dama. Mas diz que não vai me comer todinha de uma vez, vai deixar eu jogar um pouquinho mais para poder me comer várias vezes. Existe aí no jogo lúdico a representação dos consecutivos abusos sofridos através do "vou te comer várias vezes" e este é uma repetição que visa elaborar os vários abusos sofridos.

Mudamos de brincadeira, mas era possível observar a mesma repetição. Ele fazia com que eu batesse na bunda do carro dele dizendo sempre ser minha culpa, mesmo quando ele era responsável pela batida. Tento inverter a posição para eu ser batida e ele bater. Ele recusa, eu insisto. A insistência aqui tem o papel novamente de fazê-lo ocupar outra posição que não do objeto gozado, ele como agente - o que bate na teoria de Freud (Bate-se numa Criança). Ele resiste, mas insistir aponta no sentido de tentar vencer as resistências da criança em sair da posição de objeto gozado e através da simbolização mudar de posição.

O recurso ao simbólico (o jogo) através da fantasia (comer/ser comido/se fazer ser comido) permite que seja construída uma versão sobre o traumatismo que lhe chega como uma batida. Assim qualquer invasão do real, qualquer perplexidade diante do não sentido, o sujeito poderá ligar a versão da fantasia, satisfazendo-a. A fantasia, segundo Freud, é uma cena onde se coloca em jogo três posições: a do agente, aquele que faz a ação (pai), o objeto sobre o qual se faz a ação (criança) e um terceiro que olha a cena (a testemunha). A terceira posição permite com que a criança, não estando nem como agente e nem como objeto, fisgue o gozo que circula entre os dois. Freud situa que o batido, nessa fantasia de espancamento aponta para a posição de objeto, objeto do gozo do Outro, masoquismo originário, posição fundante do sujeito. Lacan relê este texto de Freud "Bate-se numa criança" propondo que seriam três posições fixadas pelo significante bater: o agente que bate, o objeto batido e o sujeito que olha numa identificação com a vítima se fazendo bater. Assim as inversões de posição feitas durante as brincadeiras mencionadas permitem o recobrimento pela fantasia, fazendo tela protetora (simbólica) ao trauma.

Por conseguinte, não é exatamente o jogo lúdico que permite a simbolização mas as viradas da pulsão - comer, ser comido, se fazer ser comido, que permitem ao sujeito passar da posição passiva para ativa e assumir o fazer-se comer. O analista deve permitir estas viradas de posição, não pode nunca se fixar em uma. Porém certos momentos, quando a criança faz a Lei, implica numa identificação com o outro absoluto - lugar da mãe fálica (ou outro abusador). Essa é a Lei caprichosa sem limite que retoma o tempo da inscrição do Outro materno no trauma. A lei do pai como interventora coloca um limite no gozo. Por isso em alguns momentos críticos eu digo que não vou mais brincar para fazer a tentativa dele passar pela Lei.

A criança está na dependência total do Outro, demandando o amor do Outro, assim lê as pistas do desejo: O que o Outro quer de mim? Isto é, O que você deseja para eu ser amado? Assim o efeito do abuso na criança depende tanto de como o Outro da criança se posiciona dando elementos ou não para ela recobrir o trauma como das repetições do abuso e interdição através da lei.

As repetições do abuso é um elemento importante pois fala do número de vezes que esse sujeito sofreu a invasão do real e quanto maior for, menos os recursos serão suficientes para afastar o sujeito da lembrança do insuportável por mais recursos que ele possa disponibilizar.

A forma como o Outro se posiciona também determina os efeitos, portanto não é somente o ato em si que se leva em consideração para os efeitos. No caso de A. algumas atitudes da mãe impedem com que ele faça uma simbolização do que aconteceu. Como foi contado anteriormente ela costumava perguntar incessantemente a respeito dos detalhes da cena. A. pedia que ela parasse mostrando que cada vez que era falado, o acontecimento era revivido e portanto descoberto. A criança em análise, diferentemente do adulto, não tem que falar, assumir o gozo presente na cena. Ela não deve ser tomada durante a infância como a que gozou, ela foi gozada. É preciso primeiro esquecer que foi objeto de gozo, recalcar para que depois na adolescência a experiência possa ser retomada sob o matiz da assunção, da posição adulta, que é o de assumir uma posição frente ao gozo e por isso a partir daí o sujeito pode falar sobre o abuso. A mãe de A. ainda acedia aos apelos libidinosos da criança como os beijos e abraços exagerados que ele demandava. Esses apelos deveriam ser algumas vezes recusados pela mãe pois indicam uma sexualidade que foi despertada precocemente introduzindo a criança no mundo dos adultos. A recusa da mãe trataria de devolver à criança ao seu mundo, a uma tranqüilidade maior, à uma sexualidade inocente. E mais um agravante, a mãe apesar de perceber a relação que a avó tinha com o neto, não tratou de proteger seu filho ao deixá-lo ao cuidado dela. A posição da mãe de cumplicidade ao ato de abuso se dá pelo seu silêncio e submissão a demanda de sua mãe de que se cale.O que torna o gozo do Outro devastador pela falta de Lei, recurso simbólico que poderia suavizar o abuso. Esta finalmente acabou por levá-lo à casa do perversor. A avó ao não reconhecer o que aconteceu se coloca ao menino como um Outro perversor, pois não reconhece a Lei, não interdita o abuso. Ela deveria mostrar em seus atos que isso não se pode fazer com alguém, mas ao contrário. Tira a gravidade de caso dizendo que ele esquecerá logo, que o primo não deve ser punido e que não tem problema A. reencontrar o primo. A. foi abusado, foi gozado por um Outro e não se faz uma barreira contra esse gozo devastador. Ao contrário, empurra-se ele de volta para o mesmo. Há uma transgressão, o adulto não barra, não protege a criança permitindo recobrir o traumático com elementos simbólicos.

A interdição através da lei se dá no sentido da mãe reconhecer que o não se deve abusar ou ser abusado, ou seja, ser gozado ou gozar do outro. Ela verbaliza ao filho que o ato é errado. Ensina pedagogicamente, o que é diferente de mostrar nos seus atos. No ato é possível notarmos que ela não sai da posição de cumplicidade ao do abusador. Não toma atitude alguma no sentido de barrar o que foi feito. Continua deixando o filho ao cuidado de uma mulher que insiste em fazer o abusador e abusado de reencontrarem e que nega os efeitos do abuso. Nesse sentido não é possível permitir a criança perceber que ela não deve ser objeto dos outros nem fazê-los de seu objeto. É por esse motivo que A. pode tanto se identificar com as duas posições com pouca lei e muito gozo na execução das mesmas (abusar ou ser abusado). Na última sessão ele brinca que mata um assaltante bandido mesmo depois dele ter se rendido e largado a arma no chão. Eu pergunto porque matou o assaltante se ele disse que o bandido não feriu ninguém e ainda largou a arma. Ele diz que ninguém manda nele pois é policial (aquele que faz a lei e não obedece a uma lei vigente) e que ele faz o que quiser. Eu digo que como chefe de polícia peço um relatório sobre o ocorrido entre assaltante e polícia. Ele se nega. Eu digo que não quero mais brincar pois tudo tem que ser do jeito dele. Ele diz que eu tenho obrigação de brincar pois sou enfermeira e devo salvar um ferido. Eu digo que se ele não faz o que é devido no seu trabalho como policial eu também não vou fazer no meu. Ele decide voltar a brincar fazendo um relatório onde diz que como policial não deve satisfação. Ele acede ao pedido de relatório, acede à lei ao fazê-lo; mas não se submete inteiramente, pois se recusa a explicar no relatório o que ocorreu no assalto e também apesar de saber escrever faz um monte de rabiscos fingindo ter escrito (ou seja não escreve). Eu fico em silêncio em função dele ainda escapar um pouco da Lei, ele decide repetir a cena de captura do bandido sem matá-lo. Mas dá 4 tiros. Pergunto porque tantos tiros. Diz que deu um tiro na mão e a arma caiu, mas depois o bandido ia pegar com a outra mão a arma e aí deu tiro na outra mão. Aí o bandido ia fugir e deu tiro no pé, mas daí ele tinha outro pé para fugir e resolveu atirar no outro pé também. Pergunto: mas você não matou, né? Ele diz que não. Considero já uma boa resposta para esta sessão para uma criança que tinha dificuldades enormes em fazer passagem pela Lei. Nota-se que nesta altura os jogos estão mais indiretos com relação à cena do abuso (ser comido) e também que ele está mais para agente do que objeto. São os efeitos da própria análise permitindo o sujeito recobrir inúmeras vezes com a fantasia se afastando cada vez mais do trauma (posição e objeto). A questão deixa de ser com que ele renuncie a ser objeto e passe a deixar de fazer o outro de objeto (ao matar) passando pela Lei.

Portanto em relação ao abuso na infância durante o tratamento deve-se impedir que a criança faça passagem a posição adulta (o que é diferente de fazer ela passar a uma posição ativa visto que o adulto fala no discurso como sujeito responsável pelos seus atos) pelo fato de ter sido despertada precocemente na sua sexualidade. Ela não deve fazer uma passagem ao ato, ou seja, ser agente do ato pois é isso que separa o mundo dos adultos do mundo das crianças. A passagem ao ato é um mecanismo inverso do recobrimento que a fantasia faz do trauma pois ali onde não há recursos para sustentar o abuso, é eliminado do interior do sujeito retornando como algo desconhecido, estranho e vindo de fora do sujeito, desde o real, atormentando-o. O sujeito aí não tem aí a fantasia a sua disposição para regrar a distância do objeto. A fantasia visa portanto dar forma à relação com o outro, que aparecerá menos intrusivo. Ela marca a impossibilidade do sujeito se fundir no outro enquanto parte do outro, objeto do outro. Ela coloca o indivíduo na posição de sujeito desejante.

Por outro lado impedir de ser agente do seu ato nada tem a ver com impedir da criança assumir um a posição ativa. Esta posição é essencial para se fazer um recobrimento da posição passiva sofrida no abuso. Transformar esta cena passiva da qual ele teria participado ativamente, permite uma simbolização que lhe abre possibilidade de ação. Na passagem ao ato implica um a questão com a Lei. Ao longo do tratamento as vezes que A. tenta gozar fazendo o outro de objeto. A analista intervém. A repetição do abuso aparece no campo transferencial. Na representação simbólica lúdica, a repetição se dá no gozo, comer ser comido, se fazer ser comido, ou seja, alternância das posições de sujeito, objeto e testemunha (gozo especular). Experimentar estar posições permitem ao sujeito a saída da completa posição de objeto do gozo do Outro

A direção do tratamento não implica somente em fazer o jogo lúdico com a criança. A mãe deve renunciar ao gozo - ele é o abusado - o que remete o filho como objeto do fantasma materno. A mãe tem que sair da posição de gozo escópico em relação a criança como objeto de um abuso ou agente de um abuso.

No trabalho analítico é essencial a renúncia ao gozo materno em fazer da criança objeto de sua fantasia. No caso o medo dele ser um abusador revela ali o próprio fantasma dela, que ele vire um abusador. A culpa que ela revela diz respeito a um gozo que ela não renuncia fazendo seu filho responder ao seu fantasma. E a criança o faz, por amor para responder ao pedido da mãe, pois mostra em total dependência desta. Ela mostra-se consciente do posicionamento que deve tomar em relação a proteger seu filho e retomar a maternidade. Acha que precisa impedir do filho ver o primo, se mudar da casa da sua mãe pois esta desautoriza todos e quaisquer limites que coloca ao filho, denunciar ao conselho o sobrinho para ser acompanhado e não abusar mais de ouras crianças, etc. Mas não o faz. Depois de se dar conta destas questões, ela passa a faltar e finalmente se desliga o atendimento. Numa sessão seu filho beija-a na boca na frente da analista. Ela continua quieta. Ele começa a esfregar a boca na boca dela dizendo: "Olha o que eu faço com a minha mãe! Eu beijo ela na boca!" (sic) Ele vai aumentando a intensidade que faz o ato. Este ato pode ser considerado uma passagem ao ato. Ele se faz agente de uma sexualidade adulta (eu escolho fazer isso). Como a mãe se recusou a interceder, a analista tenta uma interpretação. Pergunto: Você está beijando a boca de sua mãe?! Ele sai correndo da sala e bate a porta. Ela não faz nada. Ela resiste ao corte no gozo com o filho (como par sexual). Na sessão seguinte diz que como ele está bravo comigo e vai respeitá-lo até que ele decida vir. Não fazer a interdição dessa da demanda libidinosa do filho é o mesmo que autorizar a fazê-lo (o silêncio aí denuncia seu gozo). Diz não gostar de colocar limite nele para compensar o abuso que sofreu. Queixa-se também que ele desliga o telefone na sua cara se ela dá ordens. E toda sessão que ela chega a uma conclusão de que tem que tomar uma atitude de interdição em relação ao gozo dele ou dela como mãe, ela falha, vindo na sessão seguinte com angústia de que ele vire um abusador. Não fazer o corte no gozo (dela ou do filho) faz portanto a fantasia dela se concretizar - que ele vire um abusador - daí a angústia e o medo. A angustia é a resposta de que ela o põe para responder dessa maneira que ele tem comportado. Certa vez ela teve uma crise, gritou pela escola pois ele havia sumido com um amiguinho e ela acreditava que ele poderia estar abusando do colega. Ela passa a faltar sistematicamente depois desta sessão que aconteceu o beijo. A angústia para Lacan é o único sentimento que não mente (sentiment - equivale à que os sentimentos mentem por não denunciarem a verdade do inconsciente, somente a angústia o faria), ela vem a denunciar portanto o ponto onde o sujeito (mãe de A.) evanesce para fundir-se ao Outro (sua mãe). Isto é, é por demanda de amor a sua mãe (avó de A.) que ela se põe a ser cúmplice (ficar calada) da cena de abuso de seu filho ao não interditar simbolicamente o que aconteceu. Ela realiza o gozo do seu Outro. Nesse sentido o desejo é desejo do Outro e não dela e é por esse motivo que falamos que o sujeito evanesce ao ser devorado pelo Outro (ao não desejar).

Apesar de termos apontado alguns mecanismos psíquicos envolvidos em relação a situação de trauma, fica ainda uma questão. "(...) fixar quais são os mecanismos psíquicos utilizados após o abuso sexual é desconsiderar a especificidade de cada estrutura e de cada sujeito. Além disso, é obturar a escuta das diferenças, o que restringe a possibilidade de intervenção terapêutica com aqueles que foram objeto de abuso sexual" (Mees, 2001, p.108).

BIBLIOGRAFIA
MEES, Lúcia Alves. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e ofícios, 2001.
FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:1980.
____1919. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. vol.XVII, p.217-224.