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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



20. Questões sobre a Sexualidade Infantil

Na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" da PUC-SP, durante o período entre fevereiro e dezembro de 2003, foi realizado por mim e supervisionado pela Profª Célia Terra o atendimento de Artur - 8 anos - totalizando cinqüenta e quatro sessões, excluindo as entrevistas iniciais compostas por anamnese, hora lúdica e contrato.

A partir das sessões com a criança, das supervisões e das aulas teóricas do Núcleo de Psicoterapia Infantil Psicanalítica, pude fazer algumas considerações sobre a expressão da sexualidade do paciente e suas possíveis implicações e motivos.

Identificação do paciente

Ao iniciar o atendimento, o paciente tinha sete anos de idade, e completou anos três meses após o começo do processo terapêutico. Artur é filho único e adotivo de Gabriel - 39 anos - e Simone - 36 anos -, cursa o primeiro ano do Ensino Fundamental no Colégio São Domingos.

Considerações sobre o sintoma

Há poucos dados a respeito das experiências iniciais da vida da criança em questão, pois esta foi adotada quando contava 1 ano e 3 meses. Segundo Simone, Artur se encontrava no abrigo Menino Jesus, em São Paulo, havia 1 ano, ou seja, a criança foi encaminhada para o local quando contava 3 meses. Simone afirmou ter buscado informações para tentar montar o quebra-cabeça da vida da criança desde o seu nascimento até os 3 meses de idade e soube, por meio do juiz que acompanhou o processo de adoção e da escrivã do Fórum, que o pai biológico de Artur era um policial muito violento e a mãe biológica era uma "galinhona" (sic), "mulher fácil" (sic). Quando a criança tinha 3 meses, seu pai bateu em sua mãe e nela, sendo ambos encaminhados para o hospital e lá houve a denúncia de agressão ao bebê. Entrou-se em contato com parentes de Artur, mas ninguém quis se responsabilizar pela sua guarda.

A respeito do desenvolvimento cognitivo da criança, Simone afirmou que sempre houve dúvidas sobre possíveis seqüelas decorrentes da agressão sofrida em tenra idade e após a adoção, foram realizados exames neurológicos que nada acusaram. Houve atraso na aquisição da linguagem e a criança foi acompanhada por uma fonoaudióloga, no entanto, continuou falando frases sem sentido, sem seqüência e as palavras eram pronunciadas equivocadamente, de modo que repetiu o Jardim II. Quando foi transferido para o Colégio São Domingos, "deu uma arrancada" (sic) e tudo o que pediam para fazer, ela fazia. Simone comparou seu filho ao primo deste, 4 meses mais novo, e chegou à conclusão de que Artur não correspondia à evolução do primo, afirmando: "a cabecinha dele tá um ano de atraso, a cabecinha dele, imaturidade" (sic).

De acordo com os trechos da história de Artur e do relato de sua mãe, pode-se observar que Simone faz referência ao atraso de Artur remetendo ao período que a criança viveu até ser adotado, pouco mais de um ano; e faz referência ao desenvolvimento do mesmo remetendo ao período em que esteve acessorado por ela, que se disponibilizou a ajudar ativamente na educação da criança.

Artur foi trazido ao atendimento psicológico devido dificuldades relacionadas ao seu ensino pedagógico. Segundo a mãe, ele se ressentia por não conseguir acompanhar o ritmo de seus colegas e sentia-se inferiorizado. Essa situação, durante o ano de 2003, levou o menino à psicopedagogia, ao reforço escolar oferecido pelo Colégio em que estuda e ao acompanhamento intensivo por parte da mãe aos estudos de Artur. Apesar desses esforços e depois de diversas conversas entre a equipe do colégio e os pais da criança, Artur não conseguiu ser alfabetizado e teve que refazer o primeiro ano do Ensino Fundamental.

A criança e seu núcleo familiar

O núcleo da família em questão é formado por três membros, o paciente e seus pais. Quem sempre trouxe a criança aos atendimentos foi Simone, sendo que não tive contato direto algum com Gabriel, inclusive nas entrevistas iniciais, apesar de a família morar nas redondezas da Clínica. Dessa forma, tenho apreciações mais claras a fazer em relação à Simone. Esta demonstra dificuldade de elaboração do processo de adoção, já que por diversas vezes não apresentou uma das funções maternas mais importantes na educação de uma criança: o colocar limites. Na educação infantil, uma tarefa difícil é saber dosar amor e permissividade com limite e autoridade. Se por um lado, limites extremos geram crianças apáticas, desinteressadas e rigidamente bem comportadas, por outro lado, a não colocação de limites pode levar as crianças a desenvolverem problemas como desinteresse pelos estudos, falta de concentração, dificuldade para suportar frustração, falta de persistência, desrespeito pelo outro etc.

Tendo em vista que as crianças preocupam-se com regras, pois agir dentro de limites oferece-lhes uma estrutura segura para lidar com uma situação desconhecida, é fundamental que os adultos tenham clareza de suas convicções e sejam fiéis a elas porque são vistos como modelos pelas crianças, já que é por meio do convívio com essas fontes de referência que eles estruturam sua própria personalidade.

A esta atitude, somam-se outras que remetem à tentativa de proteção e preservação do filho, como Simone limpá-lo sempre que ele vai ao banheiro defecar. Tais comportamentos sugerem que a mãe tenta compensar Artur pelas dificuldades enfrentadas por ele durante sua primeira infância ou pelas dificuldades econômicas atuais pelas quais a família está passando. No entanto, nessa relação - mãe e filho - observa-se outro extremo: a desvalorização de Artur por parte de sua mãe, por exemplo, quando Simone o compara com o primo dele, um pouco mais novo, e no entanto, mais desenvolvido intelectualmente. Assim, a mãe do paciente demonstra ambivalência acentuada em relação às suas funções maternas e aos sentimentos dirigidos ao filho.

Por fim, outro ponto importante abordado no atendimento à mãe foram as brincadeiras sexuais que ocorriam entre Artur e seu primo acima citado. Percebeu-se durante as sessões com a criança que meu paciente era quase que coagido a participar de tais jogos e não sabia como se defender da influência de seu primo e assim se esquivar da situação que ao mesmo tempo desejava e temia. Conversando a respeito com a estagiária responsável pelo atendimento da mãe, soube que Simone sabia que ocorriam brincadeiras sexuais, no entanto, não sabia da intensidade e tampouco da gravidade delas. Sendo que o assunto já havia sido abordado no atendimento de minha colega, pedi que, em oportunidade futura, ocorresse o aprofundamento do assunto e se sugerisse que Simone ficasse atenta aos dois meninos e não os deixasse sozinhos.

Transferência e Contratransferência

Entre os diversas considerações que podem ser aqui delineadas, exporei aqui as que se remetem às sessões 41 e 42, explicitadas com mais cuidado no próximo item. Em tais sessões ficam nítidos aspectos da sexualidade do meu paciente, pois ele se dirige a mim de forma bastante erotizada. Em sessão (não imediatamente) anterior, tive notícia de relações de felação de Artur com seu primo, beijos e carícias íntimas. Assim, aqui aparece a transferência, pois a criança realizou comigo o mesmo que sente em relação ao primo: relação erotizada.

Além dessa característica, pude notar através da contra-identificação projetiva que Artur se sente coagido a fazer coisas que não quer, e ameaçado pelas brincadeiras que fez com seu primo. Ele, inconscientemente, colocou-me em seu lugar em relação ao seu primo e tomou o lugar deste para que eu pudesse sentir o que sente.

Tema do atendimento: expressão da sexualidade do paciente e suas possíveis implicações e motivos.

Em decorrência das dificuldades escolares enfrentadas por Artur, no mês de outubro tiveram início discussões entre professores e orientadora pedagógica do colégio e os pais da criança sobre quais caminhos educativos seguir: Artur continuar com sua turma ou se manter na mesma série em que esteve durante o ano corrente.

A essa época, Artur fazia brincadeiras agressivas como interpretar o papel de um professor que pune a aluna por não saber escrever na lousa com letra "cursiva". Além disso, ocorreu no início de algumas sessões de ele entrar na sala de atendimento antes de mim e me trancar para fora. Quando eu, por fim, dizia que ou ele me deixava entrar ou eu pediria para que sua mãe o viesse buscar, ele abria a porta. Toda vez que tentava dizer-lhe alguma coisa, gritava estridentemente, cuspia na sala - eu não o deixava que ele cuspisse em mim e o orientava para fazê-lo no tanque, o que na maioria das vezes ocorria -, derrubava cadeiras com força. Algumas sessões decorreram, em termos gerais, dessa forma, no entanto, duas em especial - 41ª e 42ª - tiveram um desfecho nunca antes tão erotizado, a que me refiro nas próximas linhas:

Na primeira das sessões escolhidas para ilustrar a expressão da sexualidade do paciente, em certa altura, Artur afirmou querer ir ao banheiro, pois estava com vontade de fazer xixi. Respondi-lhe que ele poderia ir após o término do atendimento. Artur começou a passar a mão em seu pênis e disse "é gostoso" (sic) e então, mostrou-me seu pênis "ereto", cobrindo-o em seguida e repetindo a exibição diversas vezes e disse que queria me beijar. Respondi que ele não pode me beijar porque sou sua terapeuta e muito mais velha do que ele. Ele disse que não tinha importância. Então reiterei o primeiro motivo, e disse que ele queria me beijar e mostrar seu pênis para mim para não ter que pensar nas coisas difíceis que estão acontecendo com ele.

Artur, durante a sessão seguinte, sugeriu que jogássemos futebol com um bonequinho da família - prática usual do paciente. Em dado momento, virou-se de costas para mim e soltou flatos, dizendo "assim está bem melhor" (sic). Raquel: Você está querendo... [fui interrompida].

Artur: É, te beijar [disse, aproximando-se].

Ele continuou tentando me beijar, beijar minhas mãos, minha boca e meus seios. Isso era demonstrado pela proximidade física que Artur tentava me impor e por verbalizações a respeito do que queria fazer comigo. Eu lhe disse que não podia fazer aquilo e que caso continuasse, a sessão estaria encerrada. Artur, então, concordou em parar e disse para continuarmos jogando futebol.

Durante a partida, Artur atirava o boneco nos meus seios e mostrava-se feliz com isso. Apontei isso para ele, que concordou e pediu para eu jogar o boneco no seu pênis. Ele apagou a luz e tentou me agarrar, e me beijar, dizendo que me amava. Contive-o fisicamente e em um momento, Artur me pediu para largá-lo para que ele pudesse tirar sua blusa, pois estava muito quente, respondi que "não" e ele disse que queria tirar sua roupa para poder esfregar seu corpo no meu.

... ...

Raquel: Eu vejo que vc está muito excitado, mas eu sou sua terapeuta e vc é mais novo do que eu.

Artur: Eu te amo, te amo, te amo.

Nos trechos das duas sessões acima expostos, pode-se inferir alguns aspectos sobre o comportamento de Artur. Houve a instauração da transferência negativa, pois o paciente dá mostrar de querer mudar meu papel de terapeuta para o de namorada; tentativa de deslocar sua angústia de se sentir ameaçado pelas brincadeiras com seu primo, pela repetência, pelo medo de ser impotente e burro; e a criança me mostra como fica acuado quando seu primo o assedia. Tal abuso, por parte do primo, baseia-se na hostilidade e na dominação, e Artur é invadido pelo primo por conta da forte influência que o coloca como forte e inteligente. O paciente desenvolveu fantasias sádicas em relação a mim e isso é observado pelo fato de ele querer entrar dentro de mim à força, tentando me obrigar a fazer algo que não posso: em ambas relações transferenciais estabelecidas pelo meu paciente - com seu primo e comigo -, há a tentativa de penetração em duas dimensões, mente para mente e pênis para vagina/ânus.