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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



19. Atendimento Psicológico de Criança em Situação de Risco(2)

O caso relatado trata-se dos atendimentos realizados pelo Núcleo 19 - Psicoterapia Infantil em 2003, de março a dezembro.

1. Identificação

Nome: B. C. J. Sexo: Feminino. Data de Nascimento: 16/01/2000.
Idade: 3 anos e 11 meses.
Escolaridade: freqüentou uma creche, período diurno, de fevereiro 2003 até setembro. A partir de então, B. começou a freqüentar a creche onde a avó trabalhava como assistente de cozinha.
Posição na Família: possui uma irmã, C., de 1 ano e 9 meses.

B. mora com os avós maternos e com as tias de 19 e 22 anos em um cortiço. A mãe de B., 24 anos, não possui residência fixa e, na época dos atendimentos, estava morando com a filha mais nova, na casa de um tio. B. encontra sua mãe e sua irmã semanalmente, em visitas. Importante ressaltar que o pai de B., 40 anos, está ausente desde o nascimento da sua segunda filha, e são os avós que têm a guarda de B.

Quem compareceu as entrevistas iniciais foi a avó. Ao total foram realizadas 33 sessões, sendo que B. faltou 17 vezes. No início de 2004, tentou-se retomar os atendimentos, mas B. não compareceu às sessões.

2. Considerações sobre o sintoma

B. foi encaminhada para atendimento psicoterapêutico por solicitação da creche que estudava. A creche referiu-se a problemas na hora do banho ("pânico" de tomar banho) e, posteriormente, a masturbação compulsiva na hora de dormir, além da história de vida da menina.

Faz-se importante retomarmos a gestação, o parto e os primeiros meses de vida de B., a fim de relacionarmos com a queixa inicial e manifestações observadas no decorrer dos atendimentos.

Segundo informações obtidas pela avó, quando a mãe de B. engravidou, ela fugiu de casa por uns quatro meses, sendo vista pedindo esmolas e dormindo nos bancos de rua. Em entrevistas posteriores, a avó contou que quando estava grávida desta filha, ficou muito sozinha, sendo rejeitada pela família e tendo que morar no serviço. De acordo com Szejer (1997), estar grávida remete a mulher ao seu próprio nascimento; para o autor, a mulher grávida se vê remetida à sua própria origem e tomada por uma espécie de repetição de sua própria história. Esta repetição pode ser percebida no caso da mãe de B. com a própria mãe: ambas ficaram sozinhas e desamparadas durante a 1a gravidez.

É possível perceber também, que a mãe de B. sumiu de casa no primeiro trimestre da gravidez, período de intensa alteração física e psíquica, podendo revelar negação dessas alterações - da gravidez, assim como, medo inconsciente das ameaças e censura dos pais pela atividade sexual (Soifer, 1992).

Ainda sobre a gestação, a avó informou que a filha voltou para a casa quando estava com, aproximadamente, 5 para 6 meses. Para Soifer (1992), é este o período que se tem percepção dos movimentos fetais, podendo emergir fortes ansiedades relacionadas com o conflito edipiano, os impulsos incestuosos e masturbatórios infantis e o temor à morte. Talvez a vivência inconsciente de tais ansiedades tenha levado a mãe de B. voltar para casa, certificando-se dos ataques feitos aos pais (fantasias masturbatórias) e protegendo-se da vivência persecutória.

O parto foi normal e a avó descreveu que a filha ficou "horrorizada", dizendo que não teria mais bebês. Parece que a mãe de B., no momento do parto, vivenciou o conceito de morte - vida com limite e, por isso, ficou tão assustada. A mãe de B. teve leite por apenas dois dias, fato que pode ser entendido como repercussão da negação desta gravidez e parto tão assustadores.

A mãe de B. também não a alimentava com mamadeiras, negligenciando os cuidados necessários (banho, trocas); foi a avó quem cuidou da criança. B. foi registrada somente com 8 meses, antes disso, era chamada por todos de "nenê". Além disso, a mãe de B. apresentava comportamento violento com ela: quando era recém nascida tomou banho gelado tendo que ser retirada à força pelo avô; presenciou cenas de violência entre o pai alcoolista e a mãe; apanhou da mãe e do pai, ficando com os olhos roxos quando tinhas poucos meses. Devido a estas razões, os avós decidiram ficar com B.

A mãe de B. é negligente com a filha mais nova, alimentando-a apenas com o leite do seio. Soube-se pelos relatos da avó, que esta criança passa fome, frio e apanha da mãe. B. presencia a amamentação de sua irmã e mostra também o desejo de mamar; sua mãe, no entanto, a rejeita empurrando-a. Além disso, o avô de B. bebe, levando-a em bares até tarde da noite, e sua tia de 19 anos estava envolvida com drogas.

3. A criança e seu núcleo familiar

Através das informações obtidas, percebe-se que B. está inserida em um complexo núcleo familiar, vivenciando cenas de violência precocemente.

No decorrer dos atendimentos, os avós de B. solicitaram ajuda em relação à C. (irmã de B) e orientações para lidar com a filha envolvida com drogas. Soube-se também que os passes fornecidos pela clínica não estavam sendo utilizados para os atendimentos e, por isso, B. faltou tantas vezes. A avó também solicitou que eu conversasse com seu marido, devido às idas aos bares com B.

Além disso, a creche informou a não aceitação da avó pelas atitudes masturbatórias de B.

Diante de tal contexto, a avó foi encaminhada para "Orientação de Pais" (atividade curricular realizada pelos alunos do Núcleo 19 - Psicoterapia Infantil), uma vez que mostrava dificuldades em entender e aceitar as atitudes masturbatórias de B., assim como, perceber os limites do atendimento psicoterapêutico da neta (pedido de ajuda para a filha, o marido e a outra neta). Entretanto, nas entrevistas marcadas, a avó não compareceu e, semanas depois, arranjou um emprego.

Em relação as atitudes masturbatórias de B., tentou-se conversar com a avó, mas esta mostrou-se muito resistente, não querendo falar do assunto.

Nas últimas sessões realizadas, acompanhou-se os episódios de maus tratos, relatados pela avó, da mãe de B. com C. Encaminhamos o caso para o Conselho Tutelar, mas até o momento nenhuma intervenção foi tomada.

4. Transferência e Contratransferência

Segundo Klein, a transferência - o reviver de uma situação que foi vivida com as figuras primárias importantes e que são atualizadas com outras pessoas opera ao longo de toda a vida e influencia todas as relações humanas. No processo analítico, a manifestação da transferência ocorre na medida em que o paciente revive seu passado (consciente e inconscientemente), lidando com os conflitos e ansiedades que foram reativados e recorrendo aos mesmos mecanismos e mesmas defesas. Assim, ao trabalharmos com a transferência, estamos ajudando o paciente a resgatar o que vivenciou e que não conseguiu resolver, permitindo que ele reviva os seus conflitos com a pessoa do analista, deixando a situação menos perigosa.

Na análise com crianças, a transferência se dá imediatamente. Por exemplo, quando encontrei B. pela primeira vez para a hora lúdica, ela nem sequer olhou para mim e quando perguntei se ela gostaria de entrar ela perguntou se avó também iria. A fim de estabelecer uma transferência positiva para posteriormente trabalhar sozinha com ela, permiti que a avó entrasse. B. imediatamente se levantou, deu a mão para avó e se dirigiu para a porta. Durante a sessão, B. sentou-se de costas para a avó e construía alguns brinquedos, dando-os para mim e para sua avó. No final, quando estávamos a caminho da sala de espera, B. não quis dar a mão para sua avó, segurando somente a minha mão.

Também houve sessões em que B. precisou verificar se avó estava na sala de espera, deixou a avó sentada do lado de fora da sala e até mesmo teve a presença dela na sala durante a sessão; destacando o fato de que em todas as sessões B. trouxe para a sala de atendimento bolsa ou pasta ou sacola da avó, ou seja, todos caracterizados como objeto transicional, simbolizando a presença da avó. São atitudes que estavam relacionadas ao medo de ser abandonada pela avó assim como foi pela mãe.

O medo do abandono e a relação de B. com sua mãe foram aspectos percebidos no brincar de B. Para Klein, é através das brincadeiras que a criança tenta superar as experiências desagradáveis, transformando o desprazer em prazer. Através da análise do brincar, a criança supera a realidade penosa e controla seus medos pulsionais e perigos internos, projetando-os no mundo externo, dominando a ansiedade e tornando-se mais preparada para ela. Ao projetar o objeto mau internalizado, a criança sente-se aliviada e pode dominar este objeto mais facilmente, pois está "fora" dela.

Foram vários episódios que eu me transformava uma mãe má, a qual não forneceu o seio e alimentos, abandonou e rejeitou. Nesses momentos, B. se escondia de mim, ficando embaixo da mesa e falando que iria chover e me molhar. Ou seja, expressava o desejo de "estragar" esta mãe má. Também nestas ocasiões, B. pedia para ir ao banheiro evacuar, colocando para fora esta mamãe que poderia destruí-la e envenená-la, assim como, era uma forma de me atacar com suas fezes.

O ataque a esta mãe má pode ser exemplificado também quando B. bebia a água do tanque e cuspia (colocando esta mãe má para fora), pegava a espada e queria me bater, além dos momentos que me colocava de castigo, mandava eu ficar quieta, me deixava no escuro e me atribuía o papel de filha, bebê, aluna. Através da transferência, B. repassou sua raiva contra si própria por ser pequena e fraca, e projetou a mãe má poderosa, que não cuida, e a professora severa, a qual a privava de ficar com a avó.

B., em vários momentos, quis me bater com a espada e outros brinquedos, me chamando de professora, ou então, mostrando que estava batendo na mãe má. Era comum, nestes episódios em que B. expressava sua raiva (por exemplo, batia com muita satisfação em uma almofada), ela cair depois dos ataques. Ou seja, sentia-se culpada por ter atacado, medo que a raiva que sentiu atacasse ela mesma e, por isso, punia-se caindo.

A ambivalência em relação à mãe podia ser percebida quando B. me alimentava, me dava leite, sendo uma mãe boa, nutriente, que alimenta e me dava presentes feitos durante as sessões como forma de garantir meu amor e, portanto, minha presença.

Durante as sessões, B. também projetou o bebê bom e mau em uma boneca: reviveu o episódio de banho nas sessões, no qual B. era uma mãe cuidadosa; deu leite para a boneca; colocou-a para dormir. Segundo Klein, a menina ao "brincar de mamãe", está realizando desejos, está certificando-se de que não foi despojada de seus bebês pela mãe e não teve o corpo destruído. Além de poder projetar a mãe bondosa, diminuindo o medo de ser abandonada e podendo reparar os ataques imaginários feitos à mãe má.

Em outros momentos, B. agredia a boneca e a xingava. E é por causa desta ambivalência, que a criança precisa de um objeto real que não a ataque, para combater o medo que tem dos objetos introjetados assustadores. Ou seja, necessita da presença de uma mãe que sobreviva aos ataques; nas sessões, eu era a representante desta mãe.

A relação de violência também foi revivida nas sessões. B. me ameaçava bater, furar meu sapato, jogava água em mim, grudava massinha nas minhas roupas, como se estivesse pedindo para que eu fosse a mãe má que a agredisse. Para Klein, querer apanhar é identificar-se com o seu agressor (mãe má), obtendo satisfação das tendências sádicas, as quais são uma das fontes do masoquismo.

Em outros momentos, B. regredia, transformando-se em um bebê: queria mamar, tomar banho no tanque, saía da sala engatinhando e fazendo sons de bebê; nestes momentos, ela era o bebê e eu a mãe cuidadora.

Através das brincadeiras de B., foi possível inferir sobre as fantasias em relação à mãe introjetada. B. mostrou insatisfação de seus desejos orais, demonstrando voracidade nas sessões (queria mamar em mim; quando brincávamos que ela era um bebê, B. chupava a mamadeira com muita força; não queria ir embora das sessões; queria levar os brinquedos), mas que ao mesmo tempo, mostrou que introjetou uma mãe boa, nutriente e que cuida (brincadeiras em que me alimentava, por exemplo; quando mostrou desejo de levar a boneca para casa: a boneca representava, neste momento, a irmã maltratada pela mãe).

5. Masturbação compulsiva como resultado da frustração oral no início da vida

Klein descreve que uma das conquistas da Psicanálise foi a descoberta de que as crianças têm vida sexual que pode ser expressa tanto em atividades sexuais diretas quanto em fantasias sexuais. Pensando na sexualidade feminina, a autora explica que o resultado das frustrações orais faz com que a menina se afaste da mãe e se aproxime do pai, desejando o pênis como objeto de satisfação. Esta aproximação é intensificada pelas exigências do impulso de sugar, aumentadas pela frustração que a menina sofreu ao seio da mãe, criando na fantasia um quadro do pênis como provedor de todas a satisfações que o seio não lhe deu. Ressaltando que a atitude da menina para com o pênis introjetado é fortemente influenciada por sua atitude para com o seio da mãe, ou seja, seu desejo de devorar ou sugar o pênis é diretamente derivado do desejo de fazer o mesmo com o seio da mãe.

No caso de B., a qual sofreu intensa frustração oral, percebeu-se que houve um deslocamento da fase oral para genital, tendo sua genitalidade precocemente estimulada devido à falta de seio. Por isso, masturba-se compulsivamente (equivalente ao desejo voraz de obter o seio que não teve), ou seja, a masturbação alivia o sofrimento interior. Neste caso, a masturbação compulsiva pode ser entendida como defesa maníaca, pois nega a falta (seio=pênis=algo que a preencha), nega a dor e nega a culpa.

O sentimento de culpa que acompanha as atividades masturbatórias nas crianças refere-se as tendências destrutivas - ataque aos pais em coito - que encontram expressão nestas atividades. E a compulsão a repetição, diz respeito a um perigo irreal dirigido ao interior do corpo, e por isso, o indivíduo se vê impelido a transformar aquele perigo em um perigo real e externo.

Klein ressalta que a falta de satisfação oral, a condição de alimentação desfavorável e a frustração externa têm como conseqüência a frustração interna, derivando um sadismo oral aumentado. Este aspecto pôde ser percebido em B., quando mostrava desejo de devorar e destruir o seio da mãe, por exemplo, nas brincadeiras em que mordia intensamente a mamadeira e a cabeça da boneca, chupava chupeta e mastigava massinha.

As atividades masturbatórias de B. seriam a atualização da conseqüência de uma nutrição mal feita no início da vida. Em várias sessões B. expressou o desejo de ser preenchida, me atribuindo a função de objeto de desejo, como se eu o tivesse (seio=pênis).

Em uma das sessões realizadas, B. tentou me seduzir, tirando a própria blusa e mostrando os seios, depois "estufou" a barriga falando dos bebês que estavam lá dentro e foi para o banheiro, fazendo "gemidos" de dores como se os bebês estivessem nascendo. Ao voltar para a sala tirou a calça, querendo se aproximar de mim. Esta sessão ilustra como B. queria que eu a preenchesse, fosse o papai que tinha feito bebês nela, como fantasiou que eu tivesse um pênis bom que pudesse curá-la.

Em outros momentos, B. foi ao banheiro, querendo deixar papel molhado entre as pernas; enfiou massinha entre as pernas da boneca, simulando uma relação sexual - exemplos que demonstram o desejo de B. ser preenchida, algo que coloque na vagina para aliviá-la da dor da falta.

Importante ressaltar o ambiente em que B. está crescendo; B. trouxe conteúdos para a sessão que expressavam cenas de beijos entre a tia e o namorado; segundo a tia, B. pede para beijar a boca de seu namorado. Sabemos que B. mora em um cortiço e compartilha o quarto de dormir com todos os adultos da casa, ou seja, é provável que B. tenha presenciado cenas de relação sexual.

Na sessão em que a avó relatou as atitudes masturbatórias de B., esta passou a maior parte do tempo chorando, falando que o ouvido estava doendo. Percebe-se neste momento o deslocamento da dor psíquica para a dor física. Além disso, a desaprovação da avó intensifica o sofrimento de B. - é como se avó não gostasse dela quando ela se masturba.

Ressaltando que é através da análise do brincar, que podemos ter acesso às fixações e experiências mais profundamente reprimidas da criança. Para Klein, o inconsciente da criança ainda está em contato próximo com o consciente, a comunicação é mais fácil, pois o caminho de volta para o inconsciente é muito mais simples de ser encontrado e por isso a criança tem habilidade de representar seu inconsciente de um modo mais direto (B. expressou claramente sua frustração oral em diferentes brincadeiras, por exemplo). E essa representação, no setting analítico, deve ser interpretada de uma forma que a criança entenda, no momento exato, atingindo o conteúdo da representação, a ansiedade e sentimento de culpa a ele associados.

6. Considerações Finais

Percebe-se, através das informações descritas no decorrer deste relatório, a importância do atendimento psicoterapêutico para B. como possibilidade do fortalecimento do objeto bom/seio bom introjetado, assim como, diminuir a freqüência das atividades masturbatórias.

A continuação dos atendimentos também tem o propósito de ser medida profilática, já que há o caso da mãe de B. que apresenta surtos psicóticos e comportamento violento, segundo relatou a avó.

A orientação de pais também mostra sua importância diante deste complexo contexto familiar: envolvimento com álcool, drogas e ambiente violento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOIFER, R. Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

SZEJER, M. & STWARD, R. Nove meses na vida de uma mulher: uma abordagem psicanalítica da gravidez e do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

KLEIN, M. A Psicanálise de Crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.