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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



18. Atendimento Psicológico de Criança em Situação de Risco(1)

Segundo a psicanálise, a infância não é um período paradisíaco na vida das pessoas, ausente de conflitos. Pelo contrário, a criança sofre de angústias, desilusões e conflitos internos. A forma das crianças expressarem todo seu sofrimento psíquico é individual, podendo ser observados através de distúrbios de comportamento, dificuldades escolares, ou ainda através de transtornos somáticos.

A psicoterapia infantil tem como objetivo auxiliar a criança na sua adaptação à realidade e desenvolvimento emocional. A técnica utiliza brinquedos e procura compreender e trabalhar com o psiquismo da criança (seus conflitos, desejos e angústias) através de atividades lúdicas. "A criança, ao brincar expressa seu mundo interno e tenta elaborar situações vivenciadas de maneira dolorosa" (Melanie Klein, 1970).

Consideramos uma criança em situação de risco aquela que passa por situações que possam influenciar de maneira negativa seu desenvolvimento psíquico. Tais situações podem ser constituídas por violência, exploração, baixas condições financeiras, negligencia familiar ou governamental.

Gui, 04 anos, foi atendido na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" em psicoterapia individual no período de março de 2003 a fevereiro de 2004. Chegou à Clínica encaminhado pela coordenadora da creche que freqüentava com a queixa de agressividade e dificuldade de adaptação. Segundo a coordenadora, em alguns momentos Gui ficava agressivo com os funcionários da creche e com seus colegas, em outros momentos ficava chorando e não participava das atividades propostas. Foi relatado também que Gui não dormia na creche no horário destinado ao descanso das crianças.

A creche que Gui freqüentava consistia numa instituição assistencial a crianças filhas dos moradores de rua, localizada no centro da cidade de São Paulo. Lá Gui passava o dia, recebia roupas, brinquedos e três refeições diárias. À sua mãe também eram servidas as refeições principais.

Durante as entrevistas com a mãe, uma pessoa muito carente, tanto financeiramente quanto de informação, ela relatou a difícil situação sócio-econômica em que vive com Gui. Ambos moram em uma ocupação irregular no centro da cidade, onde correm o risco de despejo o tempo todo. O andar onde vivem é dividido com mais dezesseis famílias e existe apenas um banheiro. Para sobreviverem utilizam um auxílio que recebem da prefeitura e o que a mãe consegue através da reciclagem de lixo. O pai está preso.

Sua principal queixa com relação a Gui. referia-se a enurese noturna, porém não sabia como a psicoterapia poderia ajudá-lo. Concordou em trazer Gui à Clínica após a insistência da coordenadora da creche. Sua história de vida, mesmo antes do nascimento de Gui sempre foi muito sofrida. Muito cedo teve que aprender a se sustentar sem o apoio de familiares e amigos. O contato que mantém com seus familiares e pequeno, e, como também passam por sérias dificuldades não podem ajudá-la muito.

Nos atendimentos Gui expressava seus conflitos com relação às figuras parentais e à instabilidade em que vivia. Respondia rapidamente às interpretações. Por exemplo, em uma sessão em que foi interpretada à Gui a raiva que sentia do pai e a vontade de ficar em seu lugar Gui jogou-se ao chão dizendo que havia morrido. Entendemos essa atitude como representando uma fantasia de mutilação decorrente de sentimento de culpa por desejar o lugar do pai.

Consideramos que Gui pôde aproveitar de maneira significativa o processo terapêutico, principalmente durante o primeiro semestre, mostrando melhoras significativas em seu comportamento tanto em casa, com a mãe, quanto na creche. A partir de outubro Gui começou a faltar muito aos atendimentos: de vinte sessões compareceu em apenas oito.

Durante esse período aconteceu mais uma mudança na vida de Gui e sua mãe, o que certamente desorganizou a rotina da família dificultando o comparecimento à Clínica. Sua mãe resolveu assumir na justiça os cuidados de um menino de três anos, que acreditava ser filho de seu marido com outra mulher. A mãe dessa criança dizia que não queria mais o menino, e que se a mãe de Gui não o assumisse ela o abandonaria. Gui presenciou as conversas de sua mãe com a outra mulher, e também a audiência na qual o juiz entregou a guarda da criança para sua mãe.

A nova situação familiar e as contínuas faltas à psicoterapia contribuíram para que Gui voltasse a apresentar os comportamentos de agressividade na creche e enurese noturna. Isso aconteceu, provavelmente pelo fato de Gui sentir-se novamente vivendo em grande instabilidade, perdendo novamente algo importante para ele: a psicoterapia, que era uma das poucas experiências estáveis e organizadoras que tinha em sua vida. Nas sessões Gui podia sentir-se seguro, pois sabia que na próxima semana voltaria e tudo estaria como antes, ele poderia dar continuidade e conseqüentemente significados às suas vivências.

Quando as faltas começaram a ficar freqüentes, Gui apresentava muita dificuldade em encerrar a sessão, e suas brincadeiras mostravam o quanto sentia que sua terapia estava ameaçada. Brincava de andar de ônibus, mas o ônibus que o levaria à PUC nunca chegava ao ponto de ônibus, e quando chegava passava direto, o motorista não respondia ao seu sinal de parar.

Mesmo após novo contato com a mãe, na qual foi reforçada a importância da terapia para Gui e a dificuldade que as faltas estavam trazendo ao atendimento, Gui continuou faltando. Após as férias da Clínica em janeiro de 2004, Gui não retornou aos atendimentos, então o mesmo foi encerrado por faltas.

O atendimento psicológico de crianças como Gui é muito importante como uma experiência organizadora, contribuindo para um desenvolvimento psíquico saudável. No entanto, sentimos a necessidade de pensarmos como o atendimento poderia ser feito, como poderíamos envolver a família no tratamento e diminuir a probabilidade de abandono.

BIBLIOGRAFIA

KLEIN, Melanie (1970) Contribuições a Psicanálise, Mestre Jou, São Paulo.