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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



10. O Sonho em Deficiêntes visuais

Antes de entrar no tema central deste artigo, consideramos necessário conceituar o sonho em geral.

A dimensão onírica é uma realidade virtual subjetiva, pois o que acontece no sonho durante a manifestação dele, é considerado realidade pelo sonhador. No caso dos pesadelos, isso é mais fácil de perceber, pois o terror, a angústia que o sonhador sente durante o pesadelo, são vividos como totalmente reais.

A virtualidade do sonho é devido às sutis energias que compõem imagens, situações complexas, que no entanto não são materiais, ou seja, o corpo de uma pessoa que aparece no sonho é completamente diferente do corpo material. Durante o sonho, o corpo da pessoa que aparece nele pode mergulhar e permanecer sem respirar em baixo d'água durante muito tempo, pode atravessar paredes e voar sem asa-delta ou qualquer tipo de equipamento mecânico.

Como todos os fenômenos psíquicos enquanto não comunicados, o sonho é exclusivo do sonhador, e só vamos saber o que ele sonhou quando ele estiver acordado, se quiser conta-lo. É real, é virtual e é subjetivo, isso é o sonho.

Os sonhos tem chamado o interesse da humanidade desde tempos antigos, por exemplo Asclépio em Epidauro na Grécia, tinha um templo que também era lugar de cura. Os doentes permaneciam no templo durante a noite, dormindo. O sacerdote-médico recebia o relato do sonho, e interpretando-o conduzia o tratamento necessário.

A oniromancia é também muito antiga, trata-se de desvendar o sentido de um sonho premonitório.

O melhor exemplo que conhecemos é o sonho do Faraó interpretado por José; o sonho do Faraó:

"Parecia-lhe que estava na margem do rio, do qual saíam sete vacas muito formosas e gordas, as quais pastavam nos lugares palustres. Saíam também outras sete do rio, desfiguradas e consumidas de magreza, as quais pastavam na mesma margem do rio, em lugares cheios de uvas; e (estas) devoravam aquelas que eram belas de aspecto e gordas de corpo. Tendo o Faraó despertado, adormeceu novamente e teve outro sonho: sete espigas saíam do mesmo caule, cheias de grãos e formosas; e nasciam também outras tantas espigas delgadas e queimadas, as quais devoravam todas as primeiras que eram tão belas. Despertando o Faraó do sono e tendo amanhecido, cheio de pavor, mandou chamar todos os adivinhos do Egito, e todos os sábios; e, estando reunidos, contou-lhes o sonho e não havia quem lho explicasse."

O Copeiro-mor do Faraó lembrou-se do Judeu José que já lhe havia decifrado um sonho e avisou seu rei, que mandou chamar José, que decifrou o sonho da seguinte maneira:

"As sete vacas formosas e as sete espigas cheias de grãos são sete anos de abundância e no sonho tem a mesma significação. As sete vacas magras e macilentas que subiram (do rio) após as primeiras, e as sete espigas delgadas e queimadas, são sete anos de fome que estão para vir. E isto cumprir-se-ia por esta ordem. Eis que virão sete anos de grande fertilidade por toda a terra do Egito; depois, sete anos de tanta esterilidade, que será esquecida toda a abundância passada; porque a fome há de absorver a grandeza da abundância. E, quanto ao segundo sonho que tivestes, que se refere a mesma coisa, é um sinal certo de que se há de executar a palavra de Deus, e prontamente se cumprirá."

Como a interpretação de José foi confirmada pelos fatos do futuro, podemos considerar o sonho do Faraó como um sonho premonitório simbólico e a interpretação de José correta.

Sigmund Freud no início do século XX considerou o sonho como a "via real" para chegar ao inconsciente. O enredo do sonho é chamado por Freud conteúdo manifesto, e aos motivos psíquicos, que estão por trás do conteúdo manifesto, dá-se o nome de conteúdo latente.

Embora diversos psicoterapeutas possam apresentar interpretações diferentes sobre o mesmo sonho, na prática todos concordam que há uma narrativa que nem sempre significam o que aparece, e por isso é necessário fazer a interpretação simbólica do sonho. Quando o sonho significa exatamente o que aparece na narrativa, se é que se refere ao futuro e no futuro se realiza essa narrativa, então temos, como no sonho do Faraó, um sonho premonitório.

A narrativa do sonho pode ser difícil de entender, pois acontecem distorções, uma pessoa é ao mesmo tempo duas; o sonhador é ao mesmo tempo criança e adulto, ou ao mesmo tempo vilão e mocinha.

Feita esta introdução, podemos passar a caracterizar o sonho nos deficientes visuais.

Há uma diferença muito importante entre deficiente congênito, que já nasceu com a deficiência ou que perdeu a visão até um ano de idade, o deficiente visual que perdeu a visão depois de ter tido possibilidade de enxergar durante alguns anos, sonha da mesma forma que as pessoas que tem visão normal durante toda a vida: o eixo principal do sonho são imagens visuais que podem ser complementadas com diálogos, mas quando se trata de sonhos que apresentam paisagens abertas, o sonho é praticamente só imagem.

O deficiente visual congênito tem sonhos muito diferentes, o relacionamento com pessoas se baseia praticamente no diálogo, contato com pessoas se traduzem em proximidade corpórea de volumes e formas, apreendidas pelo tato.

Para ter uma idéia mais real do sonho de deficientes visuais congênitos, fizemos uma pesquisa no CADEVI (Centro de Apoio ao Deficiente Visual) realizada pelo psicólogo Guilherme Teixeira Ohl de Souza, que entrevistou alguns deficientes visuais congênitos que pertencem ao CADEVI.

Os sonhos dos deficientes visuais, daqueles que não enxergam desde o nascimento e/ou desde muito pequenos (a ponto de não terem conseguido formar imagens visuais na memória), acontecem no escuro, ou seja, não existem imagens. Eles apreendem o ambiente através dos outros sentidos, do mesmo modo que acontece quando estão acordados. Os deficientes comentam que a situação do sonho é paralela à vida em vigília: "é como se estivesse aqui"; "é como se fosse verdade". Há uma compreensão do que está se passando e dos elementos existentes no sonho. Sabem, por exemplo, que estão subindo no ônibus, sentem o vento no rosto ao andar de bicicleta e têm a sensação de queda ao cair dentro do elevador. Semelhantemente ao sonho dos videntes, as emoções são vividas mais intensamente, mas mesmo com apenas 4 exemplos, os conteúdos da história do sonho ficaram sugeridos como menos extraordinários do que nos videntes e também aparenta ser mais carregado de sentimentos considerados negativos, como tristeza e raiva (isto se deve às dificuldades e experiências ruins que têm na vida cotidiana).

Relato de entrevista

Entrevistado: J.C., homem
Idade: 25 anos
Escolaridade: Ensino Médio
Origem da Deficiência: Glaucoma, perdeu a visão aos 4 meses de idade.

Ent.: "Como são seus sonhos?"

J.C.: "São as coisas que eu tenho na vida, a vida como eu imagino. Se eu entro num ônibus, é como se eu entrasse de verdade."

Ent.: "Você imagina formas ou cores?"

J.C.: "Não, eu sinto as coisas, como se fosse de verdade."

Ent.: "Você ouve também? Conversa com as pessoas?"

J.C.: "Quando eu sonho que estou conversando com outras pessoas, eu consigo escutar."

Ent.: "E consegue perceber a distância dos objetos e das pessoas?"

J.C.: "Consigo, dá pra ouvir a voz da pessoa, se ela está perto ou longe."

Ent.: "Tem outras sensações, como sentir sabor ou cheiro?"

J.C.: "Sabe, eu acho que nunca prestei atenção nisso, mas já sonhei uma vez que comia um sanduíche e senti o gosto dele, mas não lembro se eu já senti cheiro."

Ent.: "E sentimentos, você percebe no sonho?"

J.C.: "Tenho, sentimento eu tenho bastante, às vezes eu tenho sonhos que fico medo, às vezes sinto tristeza, raiva..."

Entevistado: A.Y.H., mulher
Idade: 32 anos
Escolaridade: 3º grau incompleto
Origem da deficiência: Retinoblastoma, perdei a visão direita no primeiro mês de vida e o esquerdo por volta do oitavo mês

Ent.: "Como são seus sonhos?"

A.Y.H.: "É como se estivesse aqui, do jeito que eu vivo no dia-a-dia. Eu tenho um sonho que acontece direto - eu estou dirigindo um carro, sentada no volante, eu não consigo ver, mas sei que estou no caminho certo. Quando eu era mais nova meu pai me colocava no carro e me 'ensinava' a dirigir. Era com o carro desligado, mas eu aprendi onde eram os pedais, a marcha, então eu tenho essa noção. Eu tenho todas as sensações de dirigir, de pisar nos pedais, sinto minha mão no volante..."

Ent.: "E você escuta?"

A.Y.H.: "Eu escuto normalmente, como se fosse de verdade. Ouço o barulho do motor, aquele barulho de carro ligado...Eu dirijo numa estrada sempre reta, que numa cidade tem farol e tem que parar, fazer curva, o carro sempre está andando."

Ent.: "E você consegue identificar se a pessoa está perto ou longe?"

A.Y.H.: "Ah, sim, pela voz dela eu percebo se ela está longe ou não, como se fosse aqui."

A.Y.H.: "Às vezes eu tenho sonhos confusos, quando eu sonho com muitas coisas, eu fico confusa, não sei o que estou sonhando..."

A.Y.H.: "Já sonhei que eu lia, que ficava estudando. Mas é completamente sem sensação de ver. O olho é um órgão que não faz parte da vida do deficiente, então é como se não existisse."

Ent.: "Você disse que sente as mãos no volante, como é o seu tato nos sonhos?"

A.Y.H.: "Tem um outro sonho que eu estou andando numa bicicleta em alta velocidade e fico sentindo o vento no rosto. Tem um outro sonho que eu vou pegar elevador e aí ele cai e eu fico com a sensação de estar caindo, assim, no corpo."