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BOLETIM CLÍNICO - número 16 - Outubro/2003

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


9. Direito de Resposta - Construtivismo - Ida Kublikowski (1)

Gostaria em primeiro lugar de agradecer a oportunidade de participar desse Direito de Resposta. Sempre me interessei por Desenvolvimento, especialmente pelas questões de gênero. Quando decidi fazer o doutorado, entrei em contato com a teoria sistêmica, que acabou por significar uma abertura de horizontes em minha vida pessoal e profissional.

Vou então tentar, através das questões levantadas, dialogar com vocês sobre o significado do construtivismo. A Prof. Rosa Tosta e o Prof. Ary Rehfeld perguntaram sobre a visão de homem que fundamenta a psicologia sistêmica; também o que seria especifico ou diferencial desta abordagem para a elaboração de uma pesquisa e como é desenvolvida sua prática clínica. Recebi questões da equipe de sócio-histórica, referentes ao desenvolvimento humano. Pensei então em iniciar com uma introdução sobre o que é o construtivismo e simultaneamente, ir respondendo às questões.

O construtivismo se constitui em função de uma mudança de paradigma na ciência. Nos anos 50 ocorreram grandes mudanças econômicas e sociais, que tornaram a sociedade mais flexível e plural. Uma postura científica que postulava uma verdade absoluta, começou a ser criticada. Os pilares nos quais as ciências se baseavam começaram a desmoronar, pois os fatos observados acabavam por contrariar as verdades estabelecidas, exigindo outras formas de pensar o mundo.

Nesse contexto surge a teoria sistêmica, base do construtivismo, cujo pai, Jean-Batista Vico (1668 – 1744), afirmava que os seres humanos criam uma ordem em sua experiência, projetando categorias familiares sobre particularidades não familiares. Acreditava também que saber é fazer, antecipando Piaget, quando dizia que a criança tem que agir sobre o objeto para conhece-lo. Depois de Vico, podemos citar Kant, para quem a mente não é uma cera mole, na qual as impressões vão ser calcadas, mas que toda a experiência é mediada por categorias a priori, o que descarta a idéia positivista da mente como espelho da realidade. A mente é então considerada um filtro, que não recebe informação direta, mas a interpreta. A subjetividade constitui-se ao mesmo tempo em que constitui o mundo, através da interpretação.

Vou aqui responder à pergunta referente a Piaget, que veio em nome do PET. Piaget afirma que não existe conhecimento a priori; já Chomsky considera que os próprios mecanismos de adaptação e assimilação supõem uma estrutura cognitiva a priori. Como Piaget se defende desta crítica?

Colocaria aqui que Piaget parte do esquema biológico reflexo como uma estrutura que permite o conhecimento, articulando biológico e psicológico. A criança nasce com o reflexo de sucção, mas precisa assimilar a esse esquema o seio da mãe. Se vocês já tiveram oportunidade de acompanhar um bebezinho aprendendo a mamar, a primeira mamada é difícil; depois o processo é mais rápido, porque ele assimila o seio ao esquema reflexo de sucção. Neste sentido, o conhecimento não existe a priori, mas é construído na ação. E o que ocorre com a colher?. Quando colocamos a colher em sua boca, ele vai chupando como se fosse mamadeira. O que ele fez? Ele assimilou a colher ao esquema de sucção e não funcionou bem; é necessário acomodar a colher. Assim, em um processo de adaptação, que envolve assimilação e acomodação, o conhecimento se constitui pela atividade da criança no mundo. Nesse sentido, concordo com Piaget ao afirmar que não existe conhecimento a priori, mas que a adaptação pressupõe um organismo vivo, capaz de conhecer.

Piaget vem a ser o grande pai contemporâneo, digamos assim, do construtivismo, que considera sermos participantes ativos no processo de aprendizado; somos construtores das realidades pessoais para as quais e a partir das quais respondemos.

O que significa construção? Existe uma realidade lá fora, ninguém está falando em niilismo, ou seja, nada existe; ninguém está falando em solipsismo, de um conhecimento só meu. Estamos falando de um conhecimento que se constitui e pode ser comunicado. A realidade está aí e o problema é o acesso a ela, sempre filtrado pelo sistema nervoso. Se pensarmos bem, recebemos as informações e estas são imediatamente transmitidas e interpretadas. Partimos daí para falar de uma realidade construída. É uma realidade que está aí fora, que eu recebo pelos meus sentidos e a qual atribuo significado pela interpretação. Assim a realidade não pode ser apreendida de forma direta. Por exemplo, o que significa para vocês o hibisco?

Platéia: Flor amarela, cor de rosa. Mas o que ela significa para vocês?

Platéia: Praia!

A flor assume para cada um de vocês um significado bem diferente do meu. Quando me perguntaram se eu gostaria de uma cerca viva de hibisco, eu respondi que não.

Porque? Eu fui voltando e me encontrei na infância, com uma furunculose, sem poder ir a praia, sozinha em casa e cercada por hibiscos.

Essa é uma realidade construída, com valor de verdade, que deu uma explicação satisfatória para minha experiência com os hibiscos. A realidade é construída de formas diferentes, pois os significados que atribuímos à nossas experiências originam-se na cultura, mas são socialmente negociados na comunicação além de individualmente cunhados em nossas histórias pessoais. Em relação ao hibisco, os significados aqui atribuídos a ele puderam ser comunicados e compreendidos; mas que diferença de praia! Assim a realidade é também co-construída. O outro é de fundamental importância nesse processo, assim como o contexto e a linguagem, o que implica cultura, sociedade, tempo e espaço.

Algumas idéias básicas, quando nos referimos ao construtivismo, são oriundas da teoria da informação, da cibernética, com o conceito de retroação e da teoria dos sistemas. A retroação é um conceito muito importante, que permitiu superar a idéia de causalidade linear, e pensar em termos de causalidade circular. Assim, “Tostines vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?”. Aqui se estabelece uma causalidade circular, na qual o efeito é necessário para recomeçar e manter o circuito, deixando de ser uma causa que gera um efeito.

Então passamos a pensar em termos de causalidade circular, recursiva. Essa causalidade pode manter um sistema funcionando em equilíbrio. Enquanto o bebê está só usando a sucção, para mamar, chupar chupeta, o dedo, ou seja, os objetos assimiláveis ao esquema, as mudanças são de primeira ordem. Agora, o que acontece quando aparece a colher? Ele tem que modificar um esquema para a acomodar a novidade. Temos então uma mudança de segunda ordem. A de primeira ordem mantém o equilíbrio e a de segunda ordem desorganiza e acaba levando a uma reorganização. Aqui, temos ou o risco do sistema se dissolver, morrer, mas também a oportunidade de uma nova organização, de mudança.

A teoria dos sistemas lança as bases para pensarmos os fenômenos, não mais como objetos, mas como sistemas organizados, inter-relacionados e contextualizados. Nessa organização o todo é muito mais que a soma das partes; não adianta juntar tijolinhos para construir o edifício do conhecimento porque na hora em que as partes se organizam, emergem qualidades antes inexistentes; não podemos mais ignorar o acaso. Além disso, existem muitas propriedades que podem ficar constritas ao se organizarem no todo. Portanto, o todo é menos que a soma das partes. Contraditório? Sim. Bem vindos ao pensamento complexo, que concebe a organização se mantendo recursivamente, de forma complementar, concorrente e antagônica, sem que os opostos se anulem.

Lembrem-se também que qualquer definição de sistema implica o observador, que o está recortando e conceituando. O meu trabalho sobre a meia idade feminina foi um recorte pessoal, uma maneira própria de justificar escolhas e caminhos. Então, o pensamento sistêmico pode ser aplicado em diferentes níveis, dependendo do recorte do observador.

E por último, o conceito de auto-organização. Se pensarmos numa máquina, esta é concebida para funcionar. Se alguma coisa se quebra, pode ser consertada. Já os seres vivos se auto-organizam para funcionar. Também se auto-produzem, retirando energia do meio, corrigem rumos, integram e se reorganizam face ao novo. A auto-organização ao mesmo tempo em que mantém a homeostase, permite a mudança. Se a novidade impede a auto-organização de funcionar, ocorre a morte do ser vivo. Mas por outro lado, essa autonomia relativa do sistema é um grande trunfo para a psicologia, pois nos permite pensar o processo de desenvolvimento do ser humano, que além de produzido se torna produtor de si.

Vou aproveitar o momento e responder a uma questão enviada pela equipe de sócio-histórica: qual o papel da cultura no desenvolvimento humano? Eu acredito que os seres humanos produzem a sociedade por sua interação. Mas a sociedade produz a humanidade destes indivíduos ao lhe oferecer a linguagem e a cultura. Então, em uma causalidade recursiva, cultura e indivíduo estão totalmente imbricados, sem que se possa afirmar serem essas influências fiftty/fifty ou qual é a mais importante. Estou partindo de uma noção de desenvolvimento na qual não privilegio nenhum dos fatores, nem o cultural, nem o biológico, mas considero a pessoa como produto de todos esses fatores, dentro de uma história particular e em determinado contexto. Por que não fazer isso é manter uma disputa pouco saudável entre aqueles que defendem ser a biologia ou a cultura o fator mais importante na determinação do desenvolvimento humano. Nesse processo, a cultura nos oferece uma autonomia relativa em relação à determinação biológica. A organização biológica nos oferece os meios de subverter os determinismos culturais; os sistemas sociais não são onipresentes, pois existem brechas no processo de imprinting cultural. Assim, apesar de, em geral, sermos máquinas triviais obedecendo aos padrões culturais, somos capazes de uma autonomia relativa, em certos momentos cruciais. E esses momentos são aqueles de criatividade e crescimento.

--- O que vocês acham desta posição em psicologia?

Platéia: É válida.

É válida e acaba validando outra base epistemológica que acabou por revolucionar a ciência e a forma de fazer psicologia. Considero que a modernidade falhou na conceituação da subjetividade, ao tornar as pessoas objetos passivos de conhecimento e intervenção. Compartilhar regularidades biológicas e expectativas sociais faz com que vivamos experiências semelhantes, mas não acredito ser possível prever o rumo do desenvolvimento. Pensem na pluralidade de modos de vida na atualidade. Há uma grande abertura de possibilidades que pedem outras abordagens. Faz-se então um desvio de foco do intra-psíquico para a comunicação humana, para a negociação de significados.

Buscamos significados, não fatos. Quando recebo um indivíduo, um casal, um grupo de pessoas, tento compreender como se estabelece a comunicação que acabou gerando aquele tipo de significado que atrapalha a vida. Crises e problemas só podem ser compreendidos em determinado contexto, como parte de uma rede complexa, que liga as pessoas pela comunicação, considerada além da palavra.

E a objetividade científica? Como fica?

Passa a ser abordada como uma coalizão de subjetividades. Nós acreditamos que a própria teoria científica usada é sempre um consenso, aberto a outras verdades. Passa-se da noção de uma verdade, para inúmeras possibilidades e inúmeros horizontes. Não existe uma resposta correta para o problema colocado. Existe uma ampla gama de possibilidades de respostas que são co-construídas nas relações e têm como horizonte os ideais culturais.

Platéia: Esta coalizão de respostas seria a verdade científica?

Não a verdade, mas as verdades, que se constituem como consensos, negociados de forma dialogal. Pensando nas ciências humanas, é muito difícil atingir uma verdade. Recortar em uma pesquisa um fenômeno da perspectiva do nível sócio-econômico é diferente de uma aborda-lo por uma leitura de gênero, idade ou geração.

Dependendo do recorte, do foco no fenômeno, a experiência relatada pelas pessoas se modifica. Em diferentes contextos também. Assim há um relativismo que não é absoluto, ou seja, que só atenta para as diferenças. Fazer dialogar igualdades e diferenças permite pensar no que nos é comum, ao mesmo tempo em que consideramos e respeitamos aquilo que nos diferencia. Esquecer que fazemos parte de uma humanidade, é dar espaço para o fundamentalismo; esquecer as diferenças é alimentar o preconceito.

Desta postura, nós como psicólogos, acabamos nos colocando como agentes de transformação social. O que implica a ética das relações. Cabe lembrar que eu, da mesma forma que meu cliente, sou histórica e socialmente situada. Portanto não existe teoria ou método que seja ideologicamente neutro. Daqui a pouco nós veremos a visão de homem e a questão ética.

Deixo assinalados alguns aspectos do construtivismo:

A realidade se constrói na interdependência entre observador e observado;

Saber não é buscar verdades; quando falo em conhecimento, estou falando de uma função adaptativa. A função do conhecimento científico ou cotidiano é organizar o mundo da experiência. Considerado não como um reflexo ou uma representação do real, é um fit, um ajuste à realidade. Quando a criança percebe que não dá para mamar na colherinha, ela fez um ajuste para que sua experiência seja viável. Quando a criança diz “au-au” e aponta um cabrito, ela continua a dizer “au-au” até o cabrito fazer “mé”, ou até alguém dizer para ela que cabrito não é cachorro; ela terá então que mudar seu comportamento, para se ajustar a essa nova informação. Construímos conhecimento como mapas, para que a nossas ações sejam efetivas e encaixem com o mundo.O problema surge quando há um obstáculo para atingir uma meta que queremos alcançar.

Toda informação recebida é interpretada e não temos como saber o que é verdadeiro. Portanto o conhecimento sempre implica consenso e um grau de incerteza. Outra coisa que é importante lembrar, é que quando estou refletindo sobre a realidade, estou constituindo idéias que me permitem compreender o real; mas essas idéias não são o real. A idéia de sistema permite pensar a família, mas não é a família.

Falei do construtivismo de forma geral, mas existem diferentes posições na área. Se alguém tiver curiosidade, pode consultar a tese “Sobre a reconstrução do significado” de Marilene Grandesso dos Santos, na qual ela discute as aproximações e as diferenças. Fiz uma introdução sobre o construtivismo que tem uma séria de “gaps” porque o assunto é muito extenso.

Eu queria ouvir de vocês algumas perguntas.

Platéia: Há aproximação entre o construtivismo e outras abordagens?

Se a abordagem a qual você se refere estiver pautada paradigma moderno, não é possível a aproximação, pois há conflito de crenças relativas aos paradigmas, que fornecem as bases sobre as quais se constituem as teorias.

Platéia: O que é crença?

As crenças são consideradas aspectos fundamentais na nossa vida cotidiana, pois estão presentes na compreensão e definição de nossa experiência e ações. No pensamento científico, os paradigmas não podem ser “provados”. Assim nos baseamos em uma crença, uma visão de mundo, para construir formas de pensar o real e produzir conhecimento. Nesse sentido, teorias são crenças.

Prof ª Rosa Tosta: O problema é quando uma teoria vira fé, porque daí você não tem condição de olhar a realidade de outro jeito, abordar todos os outros fenômenos.

Concordo, pois empobrece e impede de perceber a novidade. Ficamos com uma visão muito restrita dos fenômenos, na posição de especialistas, o que implica relações de poder hierárquicas.

Dirijo o foco agora para as questões sobre a pesquisa e a prática clínica em sistêmica. A ciência tradicional se mostrou inadequada para explicar um mundo em mudança. Faz-se uma crítica ao paradigma da ciência tradicional; emerge o paradigma pós-moderno, que tira o homem do centro do mundo, acaba com a divisão entre sujeito e objeto, estabelece a causalidade circular e desafia a noção de verdade, ao afirmar ser a realidade é construída.

É então concebida e desenvolvida a terapia familiar e emergem questões referentes à pesquisa nessa linha. O método se modifica porque, não há um discurso privilegiado ou qualquer teoria que tenha uma abrangência universal. Em pesquisa, parto de uma pergunta sem estabelecer categorias à priori, para compreender a experiência das pessoas no processo de vive-la. Lanço mão da pesquisa qualitativa, um multimétodo, uma bricolagem. Assim por exemplo, para abordar a meia idade feminina, voltei-me às questões de gênero, contextualização histórica, a medicina, a sociologia, a psicologia, além da teoria da complexidade e da teoria narrativa.

As estratégias que vem sendo utilizadas continuam sendo a entrevista, estudo de caso, grupo focal. A novidade é o ponto de partida e a interpretação. Como não existe “olhar de Deus”, olhar objetivo, eu como pesquisadora sou co-autora das narrativas resultantes de pesquisa. Na hora em que pergunto, descrevo, interpreto, também estou formatando a dimensão dessas narrativas, desafiando a idéia da “neutralidade” do cientista. A experiência formatada em linguagem, é compreendida em seus significados e se abre para a compreensão do outro; daí a ênfase das teorias da pós-modernidade na linguagem, pois a única forma de eu conhecer a experiência do outro é através da comunicação.

A interpretação, do meu ponto de vista, é uma conjetura, que não tem a ver com uma verificação empírica. Interpretar é compreender a subjetividade, explicitando os significados atribuídos à experiência pelas pessoas. Nessa realidade construída a ética assume papel fundamental, exigindo um auto-escrutínio constante, tanto na pesquisa, quanto na prática clínica, pela perda da garantia de uma verdade que reflete o real e é passível de ser capturada pelo pensamento, de forma objetiva e neutra. Porque se eu funcionar no automático, posso atribuir ao outro os meus valores, a minha visão de mundo, pela fé cega em alguma teoria.

Platéia: Não é possível suspender os valores?

Nós não acreditamos que seja possível suspender os valores, o que é uma diferença em relação à fenomenologia. Daí a necessidade de auto-escrutínio e auto-crítica, que têm que estar presentes o tempo todo.

As histórias que eu conto sobre mim, a identidade narrativa, é a forma que o psicólogo tem de abordar a experiência. Então o que se faz em terapia? Significados são co-construídos com a pessoa e compreendidos em novas extensões de sentido, que retificam histórias anteriores e permitem re-significar a própria experiência. Eu me constituo como sujeito através da minha experiência e de um horizonte que fornece os ideais culturais. Posso receber essas normas e funcionar de forma canônica. Mas por outro lado, o espaço entre a experiência e os ideais culturais, é para Ricoeur o espaço narrativo, que me dá graus de liberdade. Nesse sentido, o terapeuta e o pesquisador têm que manter um olhar crítico, para que fatores como gênero, nível sócio econômico, ou os seus próprios valores, não mantenham a narrativa em um círculo vicioso.

Platéia: A linha sistêmica é especialmente adequada ao trabalho com famílias?

A terapia sistêmica se desenvolveu em torno da família. Como a abordagem intra-psíquica foi considerada insuficiente, a visão sistêmica permitiu ampliar o olhar para abranger a família e mais recentemente, as redes sociais. A terapia comunitária, desenvolvida para grandes grupos em instituição, e um exemplo.

Platéia: Como funciona?

É uma terapia com objetivos preventivos e curativos, desenvolvida por Adalberto Barreto, que enfatiza o trabalho grupal na busca de soluções para os problemas cotidianos e a criação de consciência social. O objetivo do terapeuta não é resolver problemas, mas através de experiências partilhadas, tecer redes de apoio para minorar o sofrimento. É trabalhada a competência das pessoas por meio de perguntas e da qualidade da escuta, que resgata e valoriza o saber de cada um. Assim alternativas e soluções vem da comunidade e se necessário, há encaminhamento para o especialista. Coloca-se o seguinte: eu não quero saber da sua doença, eu quero saber do seu sofrimento. Algumas pessoas colocam suas histórias e o grupo decide quem será o protagonista. Todos podem perguntar e contar o que fizeram em situações semelhantes. As soluções emergem do próprio grupo, orquestrado pelo terapeuta. Assim por exemplo, para uma queixa de insônia foi sugerido banho quente, andar antes de dormir, uma série de meios para lidar com o problema, co-construídos na comunidade, dentro de seus parâmetros culturais.

Podemos agora levantar algumas características da prática clínica sistêmica:

Desvia o foco do intra-psíquico para comunicação.

Desvia o foco do individual, para uma abordagem na qual se considera o contexto, não só familiar, mas cultural, social e histórico; faz-se a passagem de um modelo de especialista, para um modelo em que o terapeuta e o cliente têm áreas específicas de conhecimento, que são levadas em conta, de forma colaborativa. O terapeuta se torna um membro do sistema e portanto, as relações de poder passam de hierárquicas para móveis e reversíveis.

Nenhum terapeuta sabe melhor da vida do cliente do que ele mesmo. O cliente é então respeitado como protagonista do seu vivido.

De um modelo de déficit, passa-se para uma idéia do cliente influenciado, mas não determinado pela causa, que possui uma capacidade ou potencial de se recuperar, ou seja, os recursos pessoais são muito valorizados. O terapeuta tem seus próprios recursos, mas deve permitir que a pessoa desenvolva os dela.

Os objetivos são individualizados na terapia e a interpretação co-constrói possibilidades.

A terapia é mais orientada para o presente e para o futuro, para a abertura e construção de possibilidades; não é orientada para o problema e sim para a construção. Por exemplo, em uma terapia comunitária, pergunta-se: “O que você tem feito para melhorar?” e não “Como você está?”. Assim estimula-se a ação e a responsabilidade e não a culpa e a invalidação, que fazem a pessoa se sentir desqualificada.

Outro aspecto é o cuidado com o uso da linguagem. Se pergunto numa sessão terapêutica: “Você é deprimido?” a pessoa vai dizer “sou” e eu fecho o diálogo; apesar eu achar que deprimido é uma coisa, a pessoa pode achar outra completamente diferente. Então eu poderia perguntar: “Como é que você se sente?” Se ela diz “deprimido, você entendeu?” Eu respondo “não, me explica melhor”; com isso a pessoa vai ter que descrever o máximo possível a experiência que ela está chamando de depressão. Evitamos a etiqueta que pode gerar um ciclo incapacitante de desqualificação.

Acredito que as características marcantes da terapia são essas e na importância das metáforas para co-construir uma compreensão daquilo que está atrapalhando a vida das pessoas.

Assim por exemplo, o caso de um menino de 7 anos, que ia muito mal na escola e foi trazido para terapia. De forma breve, tratava-se de uma família patriarcal, na qual ele era o último descendente homem. Percebeu-se que os homens da família morriam de problemas circulatórios. O pai estava muito gordo, com diabetes, pressão alta, uma série de problemas de saúde. A interpretação do caso veio no sentido de que aquela criança não queria crescer para não receber uma herança tão trágica. Foi então dado um significado positivo para o próprio sintoma, e ao final do processo ele pediu para a mãe trocar seu nome, para diferencia-lo do pai, do avô e da identidade familiar prescrita.

Colocada à perspectiva sistêmica sobre pesquisa e a prática clínica, vamos para visão de homem. Que visão de homem fica pra vocês a partir do que falamos? Que visão de homem eu transmiti para vocês?

Platéia: Mutável, ativo, responsável...

Citando Paul Watzlavick, diria que esse homem seria tolerante, pois se o mundo é co-construído, devemos consentir a mesma coisa para o mundo dos semelhantes.

Mas esse homem tem direito de não tolerar a intolerância, que impede de enxergar as verdades que podem existir nas posições dos outros. Esse homem se sentiria responsável em um sentido ético, pois em um mundo construído não há o cômodo recurso de projetar as próprias responsabilidades nas circunstâncias e nos outros homens.

O problema da responsabilidade e da ética se impõe. A auto-crítica tem que estar presente, porque não existe nenhuma verdade exterior que possa validar aquilo que eu estou falando. Essa visão dá um espaço de liberdade pra pessoa. Por que? Porque se sou determinado pelos meus genes, tenho uma cultura que permite atenuar esse determinismo. Se sou determinado pela cultura, meu desenvolvimento cognitivo me dá condições de refletir para re- significar essa cultura. Então, o homem concebido de uma forma sistêmica, é um homem que se constrói nas relações e tem a possibilidade de desenvolver aquilo que eu chamo de espaços dialógicos, nos quais experiências podem ser re-significadas, em busca do melhor para a própria vida.

Acredito então haver respondido as questões que foram colocadas e estou a disposição, se alguém lembrou de alguma pergunta.

Platéia: “Eu não entendi uma coisa, assim bem básica. Eu nunca tinha ouvido falar do construtivismo e eu nem sabia o que era; na hora que você falou que a realidade podia ser construída, você disse que o organismo não está passivo diante do meio... eu não entendi muito bem.

A nossa ciência coloca o homem passivo, ou seja, sujeito a tudo aquilo que acontece no meio ou na sua biologia. Colocar que o organismo é pró-ativo, significa que ele está construindo conhecimento, porque ele depende desse conhecimento para a sua adaptação ao mundo. É uma questão de visão de homem, que não tem espaços de liberdade, pois é totalmente produzido. Para o construtivismo ele é produzido, mas simultaneamente, por sua atividade, produtor de si.

Profª Rosa Tosta: “Eu acho interessante essa noção de que o próprio organismo é construído. Numa visão antiga, biológico e social eram separados. Pensar o homem nessa visão faz com que o próprio biológico , o organismo, seja construído pelo indivíduo. Hoje o nosso corpo é muito diferente do que era no século passado. Essa contextualização do próprio organismo é diferente da visão puramente social que usa essa dicotomia biológico-social.

É verdade. Hoje acreditamos na possibilidade de reconstruir o nosso próprio corpo, cabendo-nos a responsabilidade por sua integridade. Eu tive uma experiência interessante no serviço de fibrose cística da Santa Casa. A fibrose é uma doença genética recessiva. A médica da equipe desenvolveu uma tese na qual tentou associar o tipo de mutação do gene com o quadro clínico da doença, mas não houve correlação, ou seja, o tipo de mutação não determinava a intensidade do quadro clínico. Às vezes, uma coisinha pequena no cromossomo resultava num quadro clínico terrível e mutações maiores, geravam um quadro clínico mais leve. Como se explica isso? Não sabemos o que está envolvido nessa causalidade, o porquê dela se estabelecer desse ou daquele jeito. O que podemos ver é o produto final, que se constitui por uma confluência de fatores causais, organizando-se de forma imprevisível.

Deixo a indicação de alguns livros, para quem quiser se aprofundar no assunto. As Mudanças no Ciclo de Vida familiar, de Betty Carter e Monica McGoldrick, aborda a terapia e os estágios de desenvolvimento da família através do ciclo vital. Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade, organizado por Dora Schnitman, trás capítulos de diferentes autores, que discutem aspectos teóricos do paradigma pós-moderno. Ciência com Consciência, de Edgar Morin, oferece uma rica discussão crítica sobre a ciência e seus paradigmas. Para quem estiver interessado em terapia, indico A Terapia como Construção Sócia,l de Sheila McNamee e Kenneth Gergen. Esses livros estão em português e são de fácil acesso.

Notas:

(1) Profa. Assistente Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Departamento de Psicologia do Desenvolvimento