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BOLETIM CLÍNICO - NÚMERO 15 - JUNHO/2003

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


4. O MANEJO DA TRANSFERÊNCIA EM PACIENTE COM DISTÚRBIO BIPOLAR - Renata de Carvalho Duarte (1)

A psicanálise entende que a estrutura do sujeito está situada a partir de seu discurso.

O discurso do paciente com distúrbio bipolar aponta para a estrutura psicótica, mas com uma peculiaridade, a plasticidade de comportamento e discurso, às vezes, muito coerentes, que enganam nossos ouvidos e em alguns momentos nos fazem colocar em dúvida a questão estrutural de seu discurso.

Entretanto, é necessário que o analista esteja atento a presença metafórica e a possibilidade de localização do significante Nome do Pai.

Um autor espanhol aborda a questão da estrutura da seguinte forma:

"A estrutura está situada no discurso do sujeito, se revela nos efeitos que a combinação pura e simples que o significante determina na realidade de onde ela se produz; constitui a máquina original que põe em cena o sujeito no campo de nossa experiência". (Maleval, 1987, p. 18)

Para a psicanálise só haveria, portanto, uma forma de resolver esta confusão que o discurso do paciente bipolar suscita, considerar que os fundamentos inconscientes proporcionariam o diagnóstico diferencial entre psicose e neurose. Considerar de que lugar este indivíduo fala.

Sobre o diagnóstico diferencial este mesmo autor fala:

"Para estabelecer um diagnóstico diferencial em relação às neuroses é absolutamente necessário que se pondere com toda precisão a constelação psíquica. A psicose só é precisa se verificada a forclusão do nome do pai. Na ausência deste conceito, nada permite distinguir os quadros psiquiátricos às vezes tão próximos da loucura histérica e da esquizofrenia, ainda mais que a plasticidade do sintoma histérico assume com maior freqüência a forma dominante da loucura que se encontra em sua cultura". (Maleval, 1987, p.295)

Para Lacan a clínica da psicose é a clínica do real, pois a cadeia de significantes que movimenta todo o inconsciente deste indivíduo está posta no real. É a partir deste entendimento e desta escuta que o terapeuta/analista irá conduzir seu trabalho.

O Nome do Pai na teoria lacaniana é o significante que marca a função simbólica fundamental e constitutiva do aparelho psíquico. É considerado o pilar do simbólico, porque barra o gozo materno que é avassalador.

Contudo, quando temos o fracasso da metáfora paterna, ocorre diretamente o fracasso no acesso ao simbólico, isto porque a não emergência do recalque originário comprometeria a castração simbólica, e desta forma, a pulsão estaria toda no real contando apenas com a tela imaginária produzida no delírio.

A plasticidade e o tom do discurso a que me referi e que considero ser um difícil exercício de escuta ao jovem terapeuta como eu, é que o que, muitas vezes, acreditamos ser uma construção metafórica própria de um discurso neurótico em franco sofrimento, seria na verdade uma metáfora delirante - que é construída apenas para fazer suplência, como tentativa de minimamente dar conta deste "furo": a falta do significante do Nome do pai.

Há que se considerar, porém, que há também no psicótico um grande sofrimento, mas que via metáfora delirante ele cria um caminho para tentar suportar a falta deste significante que o inscreveria no registro simbólico.

A transferência nestes casos também nos serve de grande analisador e é de extrema importância, pois diz de que lugar este analista conduz o trabalho com este paciente. O manejo da transferência na relação terapêutica faz tela simbólica ao real puro apresentado pelo paciente.

Se buscarmos os primeiros escritos de Freud, encontraremos "Nos Estudos sobre Histeria" a necessidade de entender a transferência como a possibilidade que o paciente tem de transferir ao terapeuta conteúdos inconscientes. Mais à frente, em 1920, Freud vai conceber a transferência em "Além do Princípio do Prazer", como o primeiro plano de repetição, no qual o paciente repetiria no tratamento, situações, emoções que exprimem verdadeiramente seu conflito inconsciente. A transferência daria ao analista, então, a possibilidade de entender a partir de que realidade psíquica este sujeito fala de si.

A seguir, vou relatar um fragmento de sessão que nos permite pensar sobre o manejo da transferência, ou melhor, a dificuldade deste manejo, quando somos tentados a perder de vista de que posição este sujeito fala de si.

Essa sessão irá mostrar um pouco da entrada de um paciente que foi atendido na Clínica da PUC, durante cinco meses, por uma estagiária do quinto ano.

O paciente chega ao consultório, já tendo feito uma breve passagem com outra estagiária, com uma história de recorrentes internações psiquiatras devido ao uso de drogas, principalmente, cocaína.

No decorrer de poucos atendimentos, começa a apresentar a entrada no quadro de mania, no qual a cadeia de significantes se impõe a ele no real: ele é o playboy, o drogado, o palhaço - todos esses significantes apontam para o modo como ele é gozado pelo Grande Outro.

"Você tá vendo alguma coisa diferente na minha cara?

Por quê? - responde a estagiária

Porque eu tô há uma semana sem cheirar, então, eu queria saber se dá pra perceber na minha cara que eu não cheirei.

Ah, então você está a uma semana sem cheirar? O que aconteceu?

Falta de dinheiro mesmo. Quando eu tava vindo pra cá, tinha um cara que quando eu cheirava ficava lá, meio de avião. Aí, às vezes, eu pedia pra ele me acompanhar até a boca que tem na Barra Funda pra comprar droga. Aí, eu sempre pagava uma pedra de crack pra ele em recompensa. Aí, quando eu tava vindo hoje pra cá, ele tava sentado e ficou me olhando. Aí, eu disse: " tá olhando o que, meu irmão?" Aí, ele falou: "você não é aquele playboy do carro preto, que pagava pedra pra mim?", "Sou eu mesmo" - respondi. "Nossa, você tá acabado". Aí, eu queria saber se eu tô mesmo acabado? Se dá pra ver na minha cara que eu tô na fissura". Nesta passagem percebe-se claramente como para ele o "acabado" está no sentido literal, está no real, está "na cara". Ou seja, para ele não há metáfora, são significantes puros, no real.

"O que você acha? - pergunto

Tô te perguntando! - responde irritado com a falta de respostas da terapeuta.

Para mim, o que tá diferente é o fato de você não ter cheirado esta semana. E isso é positivo.

Eu não cheirei, mas tomei doze remédios de uma vez.

Como assim? O que aconteceu?

Minha mãe mandou eu ir buscar remédio na casa da minha tia, eu fui e tinha duas cartelas e eu tomei doze.

Por que doze e não dez ou oito?

Porque em cada cartela vem dez, aí, eu tomei uma cartela. Chegando em casa pedi mais dois pra minha mãe, porque ela não sabia que eu já tinha tomado dez.

Por que você fez isso?

Tava de saco cheio. Aliás, se por acaso terça feira que vem eu não vier, é porque eu fui internado.

Como assim?

Ontem, eu fiquei puto e quase quebrei tudo em casa."

A todo o momento parecia que ele estava para fazer uma passagem ao ato, sentia que estávamos entrando num período de crise e isto se confirma semanas depois quando ele atua dentro da sessão: levanta dá um chute no divã, grita com as vozes que estão fora do consultório e etc.

"Você acha que eu sou louco? Porque eu acho importante que você fale o que eu sou.

Se você é louco?

Você nunca diz nada. Eu sei que você disse que não está aqui pra me julgar, mas acho que você tinha que me falar se eu sou louco, se tenho aquele distúrbio de humor".

Em uma de suas internações passadas, ele recebeu este diagnóstico de um psiquiatra. Eu sabia que confirmar ou não este diagnóstico seria apenas repetir sua dinâmica com a mãe.

"No que isso te beneficiaria? - pergunto.

Não sei. Pelo menos, você falaria alguma coisa, se eu tô certo, se eu tô errado. O que eu devo e o que eu não devo fazer. E não ficar perguntando como foi, quando foi, como eu era na infância. Porque eu acho que isso não é o importante agora, o importante é daqui pra frente. O que passou, passou. Quando eu fui internado pela primeira vez, falaram que eu era débil mental. Sabe o que é isso, você ser chamado de débil mental? Por isso, que eu quero saber o que eu sou.

Com certeza você não é débil mental.

Então o que eu sou? Você tem que falar.

Por que você quer que eu faça o que sempre fizeram com você?

Porque eu sou assim. Eu quero saber o que eu sou por causa daquilo que eu te falei, que me aconteceu quando me operaram. Depois que me abriram, não sei o que eles fizeram comigo, porque eu fiquei assim, sem saber o que sou. Eu achei que aquela conversa com a psiquiatra ia me ajudar, mas acho que não adiantou nada, assim como ficar vindo aqui duas vezes por semana.

Ah, então você está frustrado porque a psiquiatra não te deu um rótulo e agora você quer que eu faça isso? Só que eu não estou aqui pra isso, estou aqui pra te ajudar de uma outra forma".

Em nenhum momento eu faço uma grande interpretação, essa pergunta o que eu sou é uma pergunta no real, pois quando diz: "- porque eu sou assim", ele sabe! Neste momento não cabe ao analista fazer nenhuma interpretação que o tire deste suposto saber de si, isto seria neste momento, muito desorganizador. O importante neste manejo é não entrar num lugar de saber, pois este "saber" para o psicótico é extremamente persecutório. A função do terapeuta é apenas ir desmembrando a fala do paciente para que ele possa ir construindo, mas sem interpretações.

"É, mas eu tava pensando que eu não tenho mais que vir aqui de terça.

Por que novamente você acha isso?

Porque você não ganha nada pra me atender, não é? Então, acho f. você ter que vir duas vezes aqui pra me atender.

Olha, quem decide se isto é oneroso pra mim sou eu. Mas, o que isso tem a ver com você?

Acho que a clínica também pode não querer um paciente que não paga".

O tempo todo este paciente joga para o analista se ele deve vir ou não, no inicio isso parecia uma demanda de amor, depois foi possível ir esclarecendo que como a transferência se dá no real, o único lugar possível que ele teria para o analista seria ou de objeto erótico ou de dejeto, repetindo assim sua relação com o Grande Outro.

"Tem um vizinho, são todos os vizinhos, todo mundo na verdade, que fica me provocando, gritando um monte de merda pra mim. Aí, eu ia lá, bater nele pra ele parar de me xingar, mas aí a minha mãe começou a gritar "você é louco, não é com você. Se você for lá, eu vou chamar o resgate". Meu irmão já falou que se eu fizer alguma coisa contra algum vizinho, ele me interna.

O que o vizinho tava gritando?

Louco, drogado, débil mental."

Estes são os significantes em que ele se reconhece e que o marca na relação com o Grande Outro.

É importante perceber que a um analista que não entende a estrutura situada no discurso do sujeito, este paciente poderia ser analisado como um neurótico, apenas com problemas relacionados a drogadição, ou mesmo, se preferir o discurso da psiquiatria, um transtorno de personalidade decorrente do uso de drogas. Contudo, ser drogado, pelo que pude perceber durante os cinco meses de trabalho, está relacionado a forma de atuar no real, o significante que lhe é imposto, mantendo assim o Grande Outro em gozo, mesmo que para isso tenha que sacrificar-se. No manejo da transferência, então, cabe ao analista desmembrar a fala do paciente para que a cadeia de significantes possa se movimentar e assim, o paciente poderá continuar construindo suplências à falta do significante - Nome do Pai.

Notas:

(1) Psicóloga formada pela PUC-SP - 2002, aprimoranda do curso de especialização em psicologia hospitalar do Hospital das Clínicas.