aprimoramento - topo banner - clínica psicológica - puc-sp

BOLETIM CLÍNICO - NÚMERO 14 - MARÇO/2003

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


5. O Erro Damásio - Franklin Goldgrub (1)

O ponto de partida para pensar o fenômeno psicossomático do ângulo psicanalítico é o mesmo que fornece a base das hipóteses elaboradas em relação à ação dos psicotrópicos. Trata-se da suposição de que a todo estado discursivo corresponde uma determinada configuração orgânica.

A incidência do psicológico no orgânico dá-se através de ambas as divisões do sistema nervoso, tanto a autônoma (que traduz a afetividade associada ao estado discursivo para o código binário simpático/parassimpático), como a voluntária (que expressa o estado discursivo vigente em motricidade, por ação ou inibição). No caso dos fenômenos psicossomáticos, seria preciso considerar ainda o efeito discursivo sobre os sistemas imunológico e endocrinológico; tal questão, porém, por exigir conhecimentos mais específicos, que não temos, será apenas aflorada(2).

A referida hipótese mantem-se no âmbito do dualismo (pois o psíquico e o orgânico permanecem diferenciados). Contudo, ela supõe uma articulação necessária entre ambos, na forma da configuração do orgânico pelo psíquico, além de admitir a situação recíproca, isto é, a possibilidade de evocar estados discursivos latentes por intoxicação química, mas nesse caso intencionalmente, ou seja, através de um ato dotado de sentido(3). A ação dos psicotrópicos ilustra um caso particular (por inversão do vetor psique ® soma) da relação entre discurso e organismo.

Em sua manifestação comum, ou seja, fora dos estados de intoxicação, a relação entre discurso e organismo ocorre em silêncio, ininterruptamente, e prescinde de qualquer deliberação. Em contraste, as modificações de comportamento induzidas por via química são ruidosamente evidentes, na medida em que se destinam a evocar e freqüentemente evocam uma discursividade latente inibida.

Em suma, a hipótese de uma influência ininterrupta dos estados discursivos (ou seja, as crenças e a respectiva afetividade) sobre o sistema nervoso (autônomo e voluntário), bem como sobre os hormônios e as defesas do organismo, define a concepção que orientará a presente abordagem dos fenômenos psicossomáticos.

Não é improvável que De M'Uzan tenha chamado o sintoma psicossomático de "burro", apontando sua falta de sentido, em virtude da impossibilidade de relacioná-lo com as categorias nosográficas freudianas, meta perseguida em vão pela Escola de Chicago. Trata-se de uma solução que lembra a de Lacan com relação ao método interpretativo, e que poderia ser metaforizada pelo provérbio "jogar fora a criança junto com a água suja do banho".

Reagindo à crescente utilização da teoria na prática clínica, que motivou a irônica tirada sobre o divã de Procusto, o fundador da Escola Freudiana de Paris propôs substituir a interpretação pelos procedimentos da pontuação, da escansão e do anagrama, constitutivos do mi-dire oracular. Essa decisão não se ampara em qualquer comentário acerca das considerações sobre o ato interpretativo deixadas nos (poucos) textos em que Freud aborda o tema.

Na prática freudiana, pelo menos no que se refere ao sonho, a interpretação constitui um procedimento absolutamente incompatível com a aplicação da teoria ao discurso do analisando(4), mas a leitura d' A interpretação dos Sonhos feita por Lacan não toca a questão metodológica, privilegiando os aspectos teóricos e epistemológicos do livro. Aliás, não há qualquer consenso atualmente (se é que houve alguma vez) acerca do procedimento designado pelo termo interpretação. Essa é a explicação mais provável para a proliferação de práticas tão diferentes exercidas em nome de psicanálise.

Algo semelhante ocorreu na esteira da impossibilidade de relacionar diretamente a sintomatologia psicossomática com as neuroses de transferência. O impasse gerou uma reação simetricamente oposta. Os teóricos da Escola de Paris, constatando a falta de correspondência específica entre as sintomatologias histérica, obsessiva e fóbica e determinadas disfunções corporais, julgaram-se autorizados a impugnar qualquer relação entre somatização e representação, raciocínio que fundou a nova nosografia, caracterizada pela separação entre mentalização e somatização. O resultado foi a exacerbação da tendência nosográfica, que a lógica da teoria psicanalítica restringe à teoria do sujeito, e da qual a teoria do método deveria ser diferenciada. Estabelecida a categoria do somatizante, a ênfase incidiu sobre o diagnóstico, propiciando um enfoque genérico, com o que a singularidade caiu a segundo plano.

A secundarização do sentido enquanto objeto da intervenção psicanalítica revela que embora as teorias psicossomáticas contemporâneas se inspirem principalmente na psicanálise kleiniana, seu modelo não deixa de compartilhar, por uma via oblíqua, a mesma desconsideração em relação ao ato interpretativo preconizada por Lacan. Se desse ponto de vista a convergência é inegável, as respectivas posições teóricas são diametralmente opostas. De fato, existe uma distância considerável entre uma concepção de emoção divorciada da linguagem e a primazia conferida ao significante.

A retomada das elaborações de Selye e Alexander não significa aceitar a vinculação intrínseca entre o conceito darwiniano de adaptação e o stress (Selye), nem que as afecções psicossomáticas traduzam de maneira específica determinados conflitos psicológicos (Alexander). O retorno aos pioneiros é considerado imprescindível na medida em que permite recuperar a indagação sobre o papel desempenhado pelo sistema nervoso autônomo e seu substrato anátomo-fisiológico, via pela qual a psicossomática pode consolidar-se sem entrar em contradição com conceitos básicos da teoria psicanalítica.

Além disso, o desenvolvimento das contribuições de Selye e Alexander depende de uma precisão maior na definição de psíquico, somático e psicossomático. Este passo, por sua vez, só poderia ser dado mediante a elucidação do papel desempenhado pela subjetividade (discurso), tanto nas alterações comportamentais decorrentes da ingestão de psicotrópicos como nas modificações orgânicas ocasionadas por estados emocionais.

Diferentemente de Selye, cabe considerar que os determinantes do comportamento humano fogem ao escopo da problemática adaptativa, ressuscitada pelo neodarwinismo contemporâneo. De fato, as doenças psicossomáticas constituem uma excelente ilustração da diferença entre humanos e animais. Quanto à vinculação proposta por Alexander entre as exacerbações simpática e parassimpática do sistema nervoso autônomo e determinadas afecções, sua plausibilidade é prejudicada por não levar em conta dois aspectos importantes: a variabilidade discursiva (até mesmo no interior de determinada categoria nosográfica) e a homeostase. Tais fenômenos tornam a generalização e o diagnóstico, tão caros a Alexander, inexeqüíveis. A tentativa de estabelecer uma relação direta entre diagnósticos psicanalíticos e doenças psicossomáticas se apóia de praxe em pesquisas cujos critérios são questionáveis e cuja replicação raramente confirma os primeiros resultados.

Na perspectiva psicanalítica, não é necessário relacionar as disfunções psicossomáticas às neuroses de transferência ou a determinado traço de personalidade (agressividade, passividade, dependência, etc.). Basta reconhecer que o comprometimento das funções orgânicas pelo discurso é capaz de ocasionar desequilíbrios, sem que seja necessário predizer a forma que assumirão. Fatores ambientais e orgânicos (congênitos ou genéticos) poderão determinar que o desequilíbrio do autônomo se expresse por tal afecção de preferência a tal outra, e entender a "escolha" do sintoma é bem menos importante - além de representar provavelmente uma tarefa impossível - do que agir conseqüentemente em relação à sua determinação discursiva, abordando-a mediante o método interpretativo.

Conforme comentário anterior, a sintomatologia poderá traduzir tanto os efeitos da simpaticotonia como os da parassimpaticotonia, e não menos os da alternância brusca entre tais estados, quer mediante quadros agudos ou crônicos. Por outro lado, uma vez desencadeada, a doença será inevitavelmente interpretada pelo mesmo discurso que a propiciou, e é precisamente nessa qualidade que ela se oferecerá à abordagem psicanalítica. Enquanto o médico, (a menos que seja homeopata(5)), tratará da sintomatologia orgânica, o psicanalista se haverá com o sentido que a pessoa confere à sua doença.

Mas, independentemente das críticas anteriores, e no que se refere aos princípios reitores, ou seja, ao arcabouço lógico, tanto o mecanismo anatomofisiológico proposto por Selye e aprimorado nas décadas seguintes, bem como a implicação do sistema nervoso autônomo nas somatizações (Alexander), parecem resistir bem à passagem do tempo. O prosseguimento dessa linha de investigação exigiria a identificação do substrato anatomo-fisiológico referente ao discurso. Trata-se de uma operação extremamente delicada quando praticada no âmbito de uma concepção não organicista.

Como se sabe, a tentativa frustrada de subordinar o psicológico ao neurológico, feita por Freud no final do século XIX (através de seu Projeto para uma Psicologia Científica, publicado postumamente), levou o fundador da psicanálise a estabelecer uma divisão estanque entre o orgânico e o psíquico. Embora essa disposição fosse transitória, no sentido de que Freud augurava sua futura revogação, todo o desenvolvimento da teoria psicanalítica ocorreu sob proteção alfandegária. As duas teorias tópicas do aparelho psíquico contêm instruções explícitas no sentido de que as respectivas instâncias não devem ser referidas a qualquer localização neuroanatômica.

A percepção e a memória, que no projeto de 1895 constituíam a ponte entre o neurológico e o psicológico, têm uma pálida participação na descrição das relações entre consciência, pré-consciente e inconsciente, ou entre isso, eu e supereu (id, ego, superego). A partir d' A Interpretação dos Sonhos, a biologia foi confinada ao terreno metapsicológico e à argumentação especulativa. (Algumas analogias relativas à sexualidade, aos princípios do prazer e do nirvana e à teoria das pulsões podem exemplificar o papel resquicial concedido ao biológico nas etapas mais avançadas da teorização psicanalítica).

As afecções psicossomáticas obviamente problematizam a incomunicabilidade entre o fantasma e a máquina, mas as tentativas de solução continuam esbarrando nos impasses da articulação entre mente e corpo. É possível superá-los conceituando discurso de maneira a plausibilizar sua substratificação no sistema nervoso central. Trata-se de uma operação que se presta facilmente a mal-entendidos. Qualquer deslize acionará o alarme que denuncia mais uma tentativa de situar o psicológico nas circunvoluções cerebrais.

O que é, aliás, bastante compreensível. Essa modalidade de reducionismo tem sua história. O mapeamento do cérebro favoreceu hipóteses do gênero, desenvolvidas nos tempos heróicos do localizacionismo cerebral. A linguagem, em decorrência das síndromes afásicas, foi talvez a primeira função "espiritual" a obter cidadania neuronal (graças às autópsias que revelaram o papel desempenhado pela 3ª circunvolução do frontal, ou área de Broca). Posteriormente, as emoções foram domiciliadas no sistema límbico, área cuja estimulação por eletrodos resulta em manifestações que mimetizam o comportamento afetivo (expressões faciais, gestos, posturas), em animais e humanos. Psicanalistas ciosos em reatar com a biologia e conferir um lastro "científico" à psicanálise propuseram sediar no mesmo sistema límbico o "isso" (id) freudiano.

A respectiva argumentação isolava e priorizava os estados afetivos, desconectando-os da subjetividade. Suplementarmente, conferia ao substrato neurológico um papel causal ou pelo menos determinante em relação às emoções, que embora integradas ao "caráter" e à "personalidade", teriam nascido em berço neurológico. Do lado da neurologia, tais pesquisas trouxeram água para o moinho da indiferenciação entre as espécies e foram interpretadas como uma confirmação do enfoque organicista, na medida em que pareciam apoiar a famosa hipótese James-Lange.

A partir de outra perspectiva, é possível sugerir um campo de validade restrito para a hipótese James-Lange, cuja aplicabilidade é limitada ao efeito provocado pelos psicotrópicos. As alterações na fisiologia cerebral induzidas quimicamente conseguem via de regra evocar a modalidade discursiva (incluindo sentimentos) associada à configuração do sistema nervoso autônomo instaurada pelos remédios ou drogas. Isto porque, da mesma forma que não há discurso sem correspondência orgânica, reciprocamente tampouco há estado orgânico sem correspondência discursiva.

A hipótese de que os estados orgânicos internos precedem os sentimentos (discursividade) somente encontra confirmação no caso específico da intoxicação, e mesmo assim na medida em que a mesma evoca determinada modalidade discursiva pré-existente (latente). Caso contrário, e na contramão da suposição do psicólogo americano e do médico dinamarquês, choramos porque estamos tristes ao invés de ficarmos tristes porque choramos. De qualquer maneira, cabe reconhecer que a teoria James-Lange obrigou a levar em consideração o fator orgânico no estudo das emoções, embora lhe outorgasse um papel causal indevido.

Correspondentemente, não se trata de atribuir ao pré-frontal a origem do discurso mas sim uma participação em sua imprescindível substratificação, sem o que ficaria impossível entender como as modificações do estado cerebral (induzidas quimicamente ou decorrentes de lesões) se traduzem freqüentemente em modificações de "pensamento" e de comportamento, embora não de "personalidade". (Este último termo, como já foi dito, abrangeria os níveis manifesto e latente descritos por Freud em sua primeira tópica. O ponto de vista organicista não leva em conta esse conceito e entende como alteração de personalidade o que pode ser explicado muito mais parcimoniosamente pela alternância entre manifestação e latência).

Em suma, trata-se de abordar comparativamente a função do cérebro nas diferentes espécies bem como discutir a relação entre cérebro e linguagem. O córtex cerebral, que nos mamíferos superiores organiza as informações sensoriais relativas ao meio interno e ao ambiente(6), constitui no ser humano o substrato do que temos designado por "discurso". No homo sapiens, os estímulos externos e internos, exteroceptivos ou proprioceptivos, não atuam senão através da interpretação que lhes é dada por cada sujeito. O alto grau de uniformidade que caracteriza o comportamento das espécies contrasta com a singularidade típica da humanidade. O discurso, por sua vez, com sua respectiva tradução em sentimentos e emoções, não existe no éter. Encontra-se substratificado no sistema nervoso central e pode ser atingido por essa via. Resta saber como.

Agentes psicotrópicos agindo nos neurotransmissores e receptores dos circuitos neuronais, traumas cerebrais (internos ou externos), falta de irrigação sanguínea, eletrochoques, degeneração do tecido neuronal, déficits de origem genética, focos irritativos ou seqüelas de cirurgias, exemplificam condições em que o discurso é atingido por via orgânica. Essa incidência, porém, não altera a estrutura discursiva, ou seja, o que comumente se denomina "personalidade". A distinção entre os termos comportamento e personalidade permite compreender melhor a frase anterior.

De fato, é preciso levar em conta que além da conduta observável, expressa de maneira relativamente constante e padronizada, há outras possibilidades, que se manifestam com maior ou menor freqüência, provocando a surpresa própria e alheia. Postulamos que a ação dos agentes químicos e físicos se restringe a alterar a relação entre manifestação e latência. Quando uma pessoa bastante controlada quebra os móveis da casa ou contrai dívidas insaldáveis da noite para o dia, na esteira de alguma doença ou acidente cerebral, os observadores são tomados pela impressão de que sua personalidade sofreu uma mudança profunda. As mesmas alterações, se devidas ao álcool, por serem geralmente transitórias e menos acentuadas, além de que a embriaguez é um ato voluntário, são compreendidas habitualmente como efeito do "rebaixamento de censura".

Antonio Damásio retoma o célebre caso de Phineas Gage, o mestre de obras que sobreviveu a um acidente no qual perdeu parte do cérebro, para reafirmar o ponto de vista organicista segundo o qual a capacidade para tomar decisões, o convívio social e o controle da afetividade encontram-se entre as funções desempenhadas pelo córtex cerebral. Em momento algum ele considera a possibilidade de que o acidente tenha danificado estruturas cerebrais dotadas de função inibitória. Menos ainda cogita, sequer como hipótese a ser refutada, que a relação entre "pensamento" ou "personalidade" e cérebro seja inversa àquela prevista pelo organicismo. A idéia de que a máquina neuronal possa constituir a base material do fantasma do "eu" em vez de constituir sua causa não entra em conta para o neurólogo norte-americano. O comentário que Damásio reserva ao ponto de vista discordante do seu é o seguinte:

"Mesmo no reduzido mundo da ciência cerebral existente na época(7), duas perspectivas começavam a delinear-se. Uma defendia que as funções psicológicas, como a linguagem ou a memória, nunca poderiam ser imputadas a uma região cerebral particular. Se se tinha de aceitar, relutantemente, que o cérebro de fato produzia a mente, então esse fá-lo-ia como um todo e não como um conjunto de partes com funções específicas. A outra perspectiva defendia que, pelo contrário, o cérebro possuía partes especializadas que davam origem a funções mentais distintas(8)".

A descrição de Damásio dá a entender que a discordância se restringe ao embate entre as concepções localizacionistas e integracionistas acerca do funcionamento cerebral. Que o cérebro "produza" a mente, para ele, é ponto pacífico, mesmo que, lamentavelmente, nem todos compartilhem essa opinião. "O fosso entre as duas perspectivas não resultava apenas da imaturidade da pesquisa sobre o cérebro; o debate prolongou-se por mais um século e, em certa medida, subsiste ainda hoje em dia(9)". Contudo, o neurólogo pode estar consideravelmente enganado quando circunscreve a polêmica sobre a relação mente/corpo à questão da localização cerebral e mais ainda quando faz crer que a afirmação "o cérebro gera a mente" não é passível de discussão. A partir da perspectiva psicanalítica, esse seria o seu erro, enquanto o de Descartes consistiria em ter proclamado a primazia da consciência.

(Contudo, no caso de Descartes, "erro" é uma palavra pouco adequada. O filósofo francês, a partir dos conceitos disponíveis no século XVII, estabeleceu as bases epistemológicas do racionalismo, com a finalidade de defender a confiabilidade do conhecimento produzido pelo ser humano. A nenhum psicanalista conseqüente ocorreria exigir do pensador francês - sob pena de anacronismo - que antecipasse em dois séculos a noção de inconsciente).

As perguntas feitas por Damásio revelam que suas hipóteses repousam em pura petição de princípio:

"...por que meios a destruição de uma região do cérebro pode causar alterações na personalidade? Caso existam regiões específicas no lobo frontal, como são constituídas e como funcionam num cérebro intacto? Formam uma espécie de "centro" para o comportamento social?(10)"

A suposição em que se baseiam tais raciocínios também é expressa sem meias palavras e aponta para sua profissão de fé localizacionista: "Não restam dúvidas de que a alteração da personalidade de Gage foi provocada por uma lesão cerebral circunscrita a um local específico(11)".

Não obstante, da própria descrição feita em O erro de Descartes e do testemunho dos contemporâneos de Gage constam os elementos que respaldariam uma visão bem diferente. Após o acidente, e nas palavras do médico que o atendeu por um longo período, Gage passou a mostrar-se

"...caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles entravam em conflito com seus desejos, por vezes determinadamente obstinado, outras ainda caprichoso e vacilante, fazendo muitos planos para ações futuras que tão facilmente eram concebidos como abandonados(12)".

Damásio, por seu turno, afirma que as "...alterações na personalidade de Gage não foram sutis. Ele já não conseguia fazer escolhas acertadas, e as que fazia distavam de serem não eram simplesmente neutras. Não eram as decisões reservadas e apagadas de alguém cuja mente está prejudicada e que receia agir, mas decisões ativamente desvantajosas(13)".

Deixando de lado o aspecto valorativo dos comentários de Damásio, que padecem de uma falta de isenção pouco compatível com a descrição científica, e centrando a discussão na etiologia das alterações decorrentes da lesão, o padrão de comportamento descrito evoca imediatamente os conceitos neurológicos desinibição e liberação, bem como duas expressões comuns da terminologia psicológica: infantilização e rebaixamento de censura. A embriaguez provoca freqüentemente um descontrole similar, mas transitório, e o mesmo acontece de maneira crônica com certas doenças neurológicas associadas a deficiências circulatórias.

Conforme acima referido, a manifestação brusca de emoções e desejos habitualmente controlados e portanto invisíveis para o entorno, faz com que as testemunhas atribuam tais irrupções à "mudança de personalidade", principalmente quando as alterações se tornam duradouras. A mesma interpretação é oferecida para explicar situações simetricamente inversas, como as que decorrem da lobotomia e da leucotomia. Nesse caso, é a substituição da agressividade pela apatia que justificaria a idéia de uma suposta "mudança de personalidade".

Desde Hughlings Jackson a neurologia tem concebido o sistema nervoso central como uma organização hierárquica em que o comprometimento do nível superior libera o imediatamente inferior. Exigindo modificação em detalhes, essa concepção permanece válida em seus princípios. Os conceitos de inibição e liberação são parte integrante da história dos estudos sobre o cérebro. A menos que, como aconteceu com as contribuições de Cannon, Sherrington, Papez e outros, as neurociências considerem que a palavra tradição tenha se tornado sinônimo de ultrapassado, os conceitos acima referidos podem ser bastante úteis para entender o que aconteceu com o mestre de obras.

Portanto, não deixa de surpreender que um neurólogo como Damásio sequer se refira aos estudos de H. Jackson ao teorizar os efeitos da lesão cerebral de Gage. Em acréscimo, sua falta de familiaridade com as noções psicanalíticas de manifestação e latência é patente. Mais de uma vez foi observado que o reducionismo organicista é acompanhado de uma boa dose de arrogância. O abaixo assinado que pretendeu impedir a exposição comemorativa dos cem anos da publicação de A Interpretação dos Sonhos na Biblioteca do Congresso (Washington) é uma ilustração eloqüente de até onde pode chegar o preconceito revestido de verniz científico. Mais grave ainda, porém, é a desconsideração dos neurólogos em relação aos conhecimentos produzidos pela própria neurologia.

Pois não é preciso ir além da própria neurologia para encontrar os argumentos contrários às suposições de Damásio. Em Fundamentos de Farmacologia, Maurício Rocha e Silva descreve uma situação bem ilustrativa da vigência dos princípios jacksonianos:

"No caso da anestesia geral, por inalação de gases ou líquidos voláteis, a dor é abolida já na primeira fase da anestesia, quando apenas a consciência foi apagada ou diminuída pelo uso do anestésico. Os movimentos espásticos e o delírio que são típicos da segunda fase da anestesia, são atividades inconscientes e puramente reflexas. Liberados os núcleos automáticos, subcorticais, da crítica dos centros superiores, entram em hiperfunção aqueles centros motores subcorticais, sem que se possa atribuir tal atividade à ação direta do anestésico. De maneira esquemática, poderíamos apresentar, pelo diagrama seguinte, a progressão da anestesia, nas diferentes secções em que se divide o encéfalo: 1) Córtex; 2) tálamo sensorial, hipotálamo e núcleos motores subcorticais; 3) mesencéfalo; 4) ponte e centros bulbares superiores; 5) centros bulbares vasomotores e respiratórios.

O acidente que mutilou Gage só aparentemente favorece a concepção organicista, ao presenteá-la com o protótipo da relação causal em que o substrato neurológico se apresenta como determinante do psíquico. Na mesma perspectiva, as psicoses funcionais também são atribuídas pelo enfoque organicista a algum tipo de disfunção cerebral. (Alternativamente, os fatores sociais são igualmente levados em conta, mesmo por um organicista convicto como Damásio): "Outros, no entanto, não tiveram qualquer doença neurológica e comportam-se, ainda assim, como Gage, por razões que têm a ver com seus cérebros ou com a sociedade em que nasceram".

Abordar a agressividade humana através de estudos inseridos no quadro mais amplo de uma teoria da constituição da identidade, como propõe a psicanálise, é algo inimaginável para o organicismo. No limite extremo de suas convicções, os teóricos organicistas ainda conseguem admitir a participação dos fatores sociais mas permanecem absolutamente incapazes de pensar o que o termo subjetividade conota. Não há como propor um diálogo em relação ao conceito de identificação, que no enfoque psicanalítico responde pelo processo de constituição da identidade. O organicismo não dispõe dos meios para pensá-lo, tornando a interlocução inviável.

Para além do que nos parece um erro crasso (o erro de Damásio), e retomando a discussão no âmbito das relações entre fisiologia e psiquismo, cabe lembrar que o lobo frontal, sede, aliás, da lesão de Gage, já foi abundantemente implicado nas "alterações de personalidade". Uma fonte de dados particularmente significativa e chocante é fornecida pelas cirurgias que a partir de meados da década de 30 e até o final dos anos 50 foram infligidas a pessoas diagnosticadas como portadoras de agressividade incontrolável. Tanto a ablação do pré-frontal (lobotomia) como o seccionamento das suas vias de comunicação com o sistema límbico (leucotomia) ocasionam efeitos drásticos no comportamento voluntário. Não por acaso o estado pós-operatório foi metaforizado pela comparação com zumbis e robôs.

Mas, em vez de tomar esses dados como prova da localização neuroanatômica das funções psicológicas, faz-se preciso reabrir o caso e discutir cuidadosamente o efeito de tais intervenções. Em relação à lobotomia, entendemos que o substrato físico do discurso foi eliminado, o que tem por conseqüência um comportamento próximo ao autismo, em que não há manifestação de identidade própria. Damásio relata em seu livro um efeito semelhante produzido por "...danos extensos nas regiões dorsal e mediana do lobo frontal em ambos os hemisférios." Essa situação é ilustrada por uma paciente, cuja conduta é descrita como impassível. Durante o período imediatamente posterior à afecção, "...sua mente não estivera encarcerada na prisão de sua imobilidade.

Em vez disso, parecia não ter existido grande atividade mental, nenhum pensamento ou raciocínio". Da mesma forma, "... parecia não ter tido sentimentos. Na minha opinião, ela não tinha respondido aos estímulos externos apresentados, nem respondera internamente às representações deles ou de evocações correlacionadas. Eu diria que sua vontade tinha sido "esvaziada" e isso parece ser também o resultado de sua própria reflexão acerca do que se passou." No autismo e na esquizofrenia chamada negativa (sem delírios ou alucinações), um comportamento semelhante ocorre, sem que haja qualquer lesão.

De acordo com as hipóteses desenvolvidas anteriormente, diremos que a leucotomia impede a expressão corporal das emoções inerentes ao discurso, visto a interrupção das vias de comunicação entre o pré-frontal e o sistema límbico. Em decorrência, o discurso, que inclui as emoções correlatas, deixa de ser traduzido pelo sistema nervoso autônomo e, portanto não tem como se expressar através das modificações orgânicas induzidas pela ativação do simpático. Privado de expressão orgânica, o comportamento voluntário associado ao discurso não se manifesta. Trata-se da contrapartida exata do experimento com eletrodos colocados no hipotálamo, em que o sistema nervoso autônomo era acionado, mas sem que houvesse repercussão no nível discursivo (pré-frontal). Os sujeitos dos experimentos referiram-se na ocasião a um sentimento de "raiva fria".

O fenômeno da "sham rage" (falsa raiva) em seres humanos se explica pelo fato de que a distância entre o autônomo e a área discursiva não chega a ser transposta, visto a duração muito curta da estimulação elétrica. Nesse caso, a postura corporal e a expressão facial mimetizam uma emoção que não se faz representar discursivamente, porque a corrente elétrica é rapidamente desligada (o prolongamento do experimento poderia provocar lesões ou convulsões). O mesmo não sucede na intoxicação por psicotrópicos, visto que nesse caso a incidência sobre o sistema límbico é constante. Há, conseqüentemente, propagação ao pré-frontal, substrato do discurso. Mesmo assim, a medicação psiquiátrica demora aproximadamente três semanas a atuar sobre o psicológico, embora fisiologicamente seus efeitos ocorram num espaço de poucas horas. Essa defasagem é interpretável como conseqüência da discrepância entre a nova configuração do sistema nervoso autônomo instaurada pela medicação e o discurso responsável pelo delírio ou pela polarização afetiva (mania-depressão).

Segundo nossa hipótese, quando a medicação produz efeito é porque pôde inverter a configuração do autônomo produzida pelo delírio ou pela polarização afetiva; caso contrário, não há modificação psicológica. (Em absoluto contraste, a droga consumida voluntariamente faz efeito imediato porque não se opõe, muito pelo contrário, às crenças da pessoa. A ingestão deliberada do psicotrópico visa levar até as últimas conseqüências determinada posição discursiva).

Se de fato o discurso se materializa no lobo frontal, segue-se que os circuitos neuronais ligando o lobo frontal ao sistema límbico podem ser considerados o substrato neural do vetor discurso/sistema nervoso autônomo. As conseqüências comportamentais decorrentes da lobotomia e da leucotomia são satisfatoriamente explicadas pela suposição de que o discurso e a expressão emocional orgânica, esta comandada pelo sistema nervoso autônomo, foram desconectados neurologicamente, impossibilitando a tradução corporal do estado mental. No primeiro caso (lobotomia), mediante a destruição do substrato discursivo, no segundo pela interrupção da ligação entre pré-frontal e sistema límbico. Não podendo aceder à noção de discurso e relegando a personalidade à condição de epifenômeno, o organicismo postula algo semelhante à idéia de que as vozes ouvidas ao telefone são criadas pelos fios e cabos; a prova é que a comunicação se interrompe quando a rede é danificada.

Mas dependendo do tipo de comprometimento do frontal (ou seja, da função exercida pelos circuitos atingidos), o resultado pode ser exatamente o oposto daquele que ocorre em decorrência da lobotomia e da leucotomia. O exemplo de Gage é particularmente eloqüente; o mesmo acontece em quadros de arteriosclerose nos quais o paciente parece perder o controle de suas emoções. Segundo nossa hipótese, tais comprometimentos impedem a inibição do comportamento motor voluntário, transformando o circuito pré-frontal/límbico numa via em cujos semáforos só o sinal verde funciona. Com a inibição da inibição, o lobo frontal veicula sem restrições os aspectos volitivos do discurso, que são assim traduzidos diretamente pelo sistema nervoso autônomo e pela musculatura estriada.

Portanto, certas disfunções (arteriosclerose, doença de Alzheimer), bem como determinados tipos de intoxicação (por drogas pró-simpáticas como as anfetaminas), resultam em desinibição, nesse caso decorrente de alterações anatômicas ou fisiológicas sofridas pelo substrato neural. Em relação ao comportamento espontâneo ou à conduta impulsiva (pessoas de "pavio curto"), um resultado semelhante ocorre sem que haja qualquer problema neurológico; é o "modo de ser" da pessoa, sua "personalidade", caracterizado pela facilidade de contato ou pela precariedade de limites e auto-restrições, que se manifesta dessa maneira. Ou seja, o próprio discurso explica satisfatoriamente o maior ou menor grau de inibição e liberação (tematizados por Freud através do par conceitual latente/manifesto), que podem ser mimetizados por lesões, disfunções ou alterações devidas a intoxicação.

Estaríamos com isso localizando o super-ego nos mecanismos de inibição porventura presentes no lobo frontal, como outrora os "biopsicanalistas" quiseram ver o id no sistema límbico? A primeira diferença refere-se a que no caso do reducionismo organicista (praticado também por psicanalistas...), o cérebro é situado em posição causal, enquanto a hipótese psicogênica ora desenvolvida reconhece sua importância na qualidade de substrato, cuja função é instrumental e secundária. Trata-se de condição necessária mas não suficiente. A segunda diferença, mais importante, é que a definição de superego por parte da psicanálise repousa inteiramente no fator lingüístico.

O estabelecimento de ideais, a auto-observação, o autojulgamento e a censura, bem como a possibilidade de dirigir o advérbio de negação para si mesmo, são processos intrinsecamente discursivos e, portanto regidos pela identificação. (Habitualmente as críticas psicanalíticas ao organicismo enfatizam o papel da subjetividade; pode-se dar mais um passo nessa direção lembrando que o sujeito não é senão um efeito da linguagem). Cabe formular esse raciocínio de forma mais abrangente afirmando que não apenas o superego, mas também o ego e o id constituem conceitos cuja teorização depende inteiramente da noção de identificação. Esta, por sua vez, situa-se inteiramente na esfera da linguagem e tem por referência única o discurso (inconsciente/consciente) dos desejantes, responsável pelo nascimento e pela (eventual) trajetória do infans em direção à posição de sujeito.

BIBLIOGRAFIA

CANNON, Walter B. Bodily changes in pain, hunger, fear and rage. Nova York: D. Appleton and Company, 1929._____. A sabedoria do corpo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946._____. The James-Lange theory of emotions: a critical examination and an alternative theory. American Journal of Psycology, n. 39, p. 106-124, 1927.

DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.DESJOURS, Christophe. Repressão e subversão em Psicossomática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

GOLDGRUB, Franklin. Um método sobre o discurso ou A metáfora opaca. Revista Impulso, Piracicaba, n. 26, Editora Unimep, 2000.

ROCHA E SILVA, Maurício. Fundamentos da farmacologia e suas aplicações à terapêutica. São Paulo: Edart/ Brasília: Instituto Nacional do Livro (MEC), 1973.

ROSSI, E. L. A psicobiologia da cura mente/corpo. Campinas: Psy, 1997.

SEGUIN, C. Alberto. Introduction a la médicine psychosomatique. Paris: L'Arche Editeur, 1950.

Notas:

(1) Professor da Faculdade de Psicologia da PUC. Este texto foi extraído do 5º capítulo do livro O neurônio Tagarela, cuja publicação está prevista para outubro deste ano, pela Editora Olho d´Água.
(2) Independentemente de eventuais divergências, principalmente em relação à questão da terapêutica, caberia recomendar, com relação a esse ponto, a leitura de Psicobiologia da Cura Mente-Corpo, de Ernest Lawrence ROSSI, indicação de Bayard Velloso Galvão, a quem agradeço.
(3) (Por parte do psiquiatra ou do "drogadito"). O mesmo raciocínio é aplicado ao efeito de outras alterações fisiológicas (como as provocadas por patologia cerebral e intervenções cirúrgicas) sobre o discurso (psiquismo). Ou seja, em nossa hipótese, os estados discursivos obedecem a uma clivagem (manifestação/latência) e não são criados pelas alterações anatomo-fisio-patológicas, embora estas possam agir por inibição ou liberação, alterando a relação manifestação/latência vigente. Com referência a essa questão, cabe perguntar ainda se a patologia cerebral pode ser inserida no campo da psicossomática. Christophe Desjours responde afirmativamente no livro Repressão e Subversão em Psicossomática.
(4) Ver Franklin GOLDGRUB. Um método sobre o discurso ou A metáfora opaca.
(5) A homeopatia propõe uma leitura diagnóstica que procura integrar aspectos somáticos e psicológicos.
(6) Os termos habitat e nicho ecológico designam em ecologia os aspectos do ambiente que são relevantes para cada espécie.
(7) (Nota do autor: meados do século XIX; o acidente que mutilou Gage ocorreu em 1848).
(8) António DAMÁSIO, O erro de Descartes, pp.32/33.
(9) Idem, p. 33.
(10) Idem, pp. 39/40.
(11) Idem, p. 38.
(12) Idem, p. 28.
(13) Idem, p. 31.