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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


12. Quem sou eu neste corpo: Relato Clínico - Carla Junqueira Barros

Os primeiros atendimentos que fiz me colocaram desde o princípio em contato com uma dimensão da clínica da qual eu não tinha até então me dado conta. Deparei-me com questões sobre a técnica, de como ela se articulava à teoria e de como ela parecia ser única e ao mesmo tempo comum a todos e a cada relação terapeuta/paciente em particular. Vi-me frente a emoções contraditórias, sentimentos de raiva e frustração que me assustavam.

Descobri-me muitas vezes pensando até que ponto dava para falar sobre isto com o paciente. Caberia ou não incluir na interpretação o que eu sentia? Até que ponto isto dava para ser feito dentro da relação analítica? O que, quando e como interpretar?

Tudo isto tem me levado a querer entender melhor a postura do analista na clínica, talvez porque penso que uma das tarefas mais difíceis seja a de saber esperar e respeitar o tempo do outro. Digo isto porque muitas vezes nossa onipotência, ou quem sabe nossa raiva e frustração, se adiantem e nos façam querer conduzir um processo, que a meu ver, deveríamos tentar apenas acompanhar.

Poder esperar, abrir espaço para que a constelação de cada encontro possa se formar, nos remete à tarefa nada fácil de nos depararmos com o desconhecido, com o não-saber, o que às vezes pode ser muito assustador. Poder sustentar uma experiência e um aprendizado sem desligar-se do não saber, não é uma tarefa das mais fáceis, mas que penso é vital neste ofício nada fácil que é o exercício da psicanálise.

Penso que é muito importante poder manter junto com o paciente um estado de inquietude, um tempo onde as certezas não precisem existir, pois o sofrimento manifesto através do sintoma procura, além de um sentido, um alguém que possa contê-lo tempo suficiente para poder então ser compreendido e elaborado pelo paciente.

Clarice Lispector, em um poema, fala em sua complexa simplicidade de algo que, a meu ver, sintetiza o que a psicanálise tem de "melhor": um tipo especial de escuta.

"Diálogo do Desconhecido

Posso dizer tudo? Pode
Você compreenderia? Compreenderia.
Eu sei muito pouco. Mas tenho a meu
favor tudo o que não sei e - por ser um
campo virgem - está livre de preconceitos.
Tudo o que não sei é a minha parte maior
e melhor: é a minha largueza. É com ela
que eu compreenderia tudo. Tudo o que
não sei é que constitui a minha verdade."

É partindo deste lugar que vou tentar estabelecer um contato com o desconhecido e acompanhar Antônio nesta sua, ou melhor, nesta nossa corajosa viagem por terras tão estranhamente familiares.

RELATO DE UM CASO CLÍNICO

Antônio como decidi chamá-lo, tem 52 anos, nasceu no interior do estado de São Paulo, é casado e pai de um adolescente. A família mora em São Paulo para onde Antônio se mudou quando tinha aproximadamente 19 anos. Ele trabalha há muitos anos realizando uma função burocrática em uma firma multinacional.

Seu pai morreu muito cedo, quando ele tinha por volta de 10 anos e ele tem dúvidas sobre como tudo aconteceu. "Dizem que meu pai caiu do cavalo e morreu na queda, mas eu não acredito muito nesta história", diz ele. Recorda-se que andava neste mesmo cavalo, que era tão manso, que ele até podia ficar de pé na sela para apanhar frutas nas árvores.

Do pai, ficou sabendo que bebia muito e que às vezes era bastante violento. "Ele era um diabo ou um santo. Um dia tentou matar a minha mãe, que teve que fugir e pedir ajuda. Tinha dia que ele chegava em casa bêbado e jogava as panelas cheias de comida pela janela".

Em algumas sessões ele pôde trazer um pai que era muito alegre, que tocava violão nos bailes e organizava torneios de futebol. Mas, com o qual não tinha podido se relacionar. "Meu pai nunca me chamou para jogar com ele, acho que nunca me deu nada de presente, nem ao menos um uniforme de futebol".

Quando o pai morreu deixou sua mãe grávida, com 5 filhos para criar, sendo que Antônio era o mais velho. Ele emociona-se bastante quando fala sobre a mãe, que vê como sendo uma mulher muito forte, que lutou pelos filhos e conseguiu criá-los, apesar da família não ter ajudado em nada. Segundo ele, os tios queriam separá-los, para que cada um fosse criado separadamente, mas a mãe não deixou.

Sua mãe morreu há aproximadamente 5 anos, depois de uma longa e sofrida enfermidade. Conta, emocionado, que ela ficou inválida em cima de uma cama por quase 10 anos. Sente-se muito culpado por não ter podido dar mais conforto para a mãe.

No decorrer da análise vai ficando claro o sentimento de inferioridade e desconsideração que sente por parte de seus parentes de ambos os lados, tanto materno quanto paterno. Relata que seus tios paternos teriam espoliado a sua família da parte que lhes cabia na herança. "Eles disseram para a minha mãe que o meu pai tinha vendido a parte dele do sitio e que ela não tinha mais direito a nada".

Em relação à família da mãe ele trouxe em várias sessões que seus tios nunca ajudaram sua família, que sua avó tinha pedido a casa onde eles moraram, depois da morte do pai, porque queria alugar e eles tiveram que se mudar para um lugar onde entrava muita água, quando chovia. Contou também que na ocasião da morte de seu avô materno, um de seus tios tinha pedido para sua mãe assinar um documento dizendo que eram os papéis para o inventário, mas que no fundo era uma declaração passando tudo o que ela tinha direito para a avó. "Minha mãe ficou sem nada, a minha avó ficou com tudo para ela".

Aos 19 anos mudou-se para São Paulo com um tio, irmão de sua mãe. Mas, de acordo com ele, este tio não o orientou, deixando-o sozinho para cuidar de suas coisas. Reconhece no entanto que seu primeiro trabalho em um banco foi uma indicação de seu tio, que conhecia alguém lá dentro. Conta que foi este tio que, quando ele tinha por volta de 15 anos, o levou para ter sua primeira experiência sexual. "Nós fomos ao bordel da cidade onde eu morava e ele pagou uma mulher para ficar comigo". Conta que a mulher era "uma morena cheirosa" e que não tinha tido problemas para levar a relação até o final.

Na seqüência lembra de algumas ocasiões, quando já morava em São Paulo, em que o tio o incentivou a procurar mulheres para ter relações sexuais. Algumas vezes o tio falava que se ele não ganhasse uma mulher naquela noite, teria que voltar para casa a pé. Em uma ocasião ele e o tio trouxeram duas moças para casa, elas ficaram lá por uma semana. Nesta época não se lembra de ter tido problemas para manter relações sexuais e fica pensando que pode ter um filho no mundo e nem saber.

Conta que com quase 30 anos conheceu sua esposa. Ela já tinha sido casada antes, mas que ele nunca quis saber nada sobre o primeiro casamento da mulher, disse a ela que não se importava com o que tinha acontecido antes, que ela não tinha cometido nenhum crime então tudo bem. Explica que a mulher não tivera filhos no primeiro casamento porque tinha útero infantil e nessa perspectiva não evitaram filhos pensando que ela não engravidaria. Mas, para surpresa de ambos foi o que aconteceu alguns meses após o casamento.

De acordo com ele, todos os preparativos do casamento ficaram por sua conta. Foi ele quem arrumou a festa, a comida, a bebida, a música, etc. Na primeira noite ele tentou ter relações sexuais com a esposa, coisa que nunca haviam feito antes, porque ele pensava que se já tinham esperado tanto, então deviam esperar pelo casamento.

Na noite de núpcias, no entanto, ela não quis nada e disse que era para deixar "aquilo" para outro dia. "Depois a gente faz" diz ele, imitando o tom da esposa, "como se fosse uma coisa sem importância". Nesta noite, quando foi tomar banho, bateu a cabeça com toda força na torneira do chuveiro. Conta com uma expressão de muita dor que era como se sua cabeça tivesse se dividido em duas.

Relata que na lua de mel tinha ereção, conseguia finalizar a relação, mas que sentia muitas dores no pênis, que ardia muito, segundo ele, era como se estivesse queimando. Ele explica como se fosse uma ardência vaginal e, em algumas ocasiões, chega a usar este termo mesmo.

Para "complicar" ainda mais a situação, seu filho, aos 3 meses de idade, teve que se submeter a uma operação até certo ponto simples (hérnia) e, em decorrência de complicações pós-cirúrgicas, ficou muito doente, precisando ficar na UTI e levou quase 4 anos para se recuperar inteiramente.

Neste período, o casal viu-se na contingência de ter que 'desmontar' o quarto onde dormiam para montar uma UTI e a partir daí nunca mais tiveram qualquer contato sexual. Literalmente, o casal é desmontado e, no entanto, Antônio mantém este casamento até hoje.

Desde o início do atendimento, Antônio queixa-se muito da esposa. Segundo ele, ela não o compreende, não colabora com ele, não economiza, não faz uma poupança, não pergunta nem discute com ele as coisas que vai fazer. É comum ele usar frases como: "ela bem que podia fazer isso ou aquilo", ou "ela podia chegar em mim e dizer...". "Mas não, ela só faz o que ela quer, ela gasta o que não tem, quer presentear todo mundo, só que no meu aniversário ou no natal ela dá uma camisetinha qualquer, compra 10 iguais e distribui para todo mundo".

Em nossa primeira sessão, Antônio diz que veio procurar ajuda porque estava a ponto de explodir e que a "moça do psicodiagnóstico" havia dito isto para ele. Diz não saber se é homem ou mulher, demonstrando desde o princípio uma grande preocupação em relação à sua identidade sexual, sendo sua principal queixa: a necessidade que sente de vestir-se de "feminino".

Um fato interessante do ponto de vista da transferência, foi que no final desta primeira sessão, Antônio mostrou-se muito preocupado com a sala, se devia apagar a luz ao sair, fechar a porta, arrumar a cadeira no lugar, etc e eu disse que ele não se preocupasse, que eu cuidaria da sala. Na nossa segunda sessão, logo que o vi, notei que algo não estava bem, esperei por alguns minutos e falei sobre a minha impressão.

Ele então disse com muita raiva que quase não tinha vindo hoje, porque não tinha gostado nada da maneira como eu o havia tratado no outro dia. "Eu só quis ajudar e a...", hesita e pergunta muito bravo, "é senhora ou senhorita?", digo para ele falar como quisesse, ele então diz, muito bravo, "então é senhorita" e a partir daí é assim que ele tem se referido a mim.

Este desejo, de vestir-se de "feminino", o acompanha há muito tempo. Em nossas primeiras sessões ele disse que aos 14 anos havia colocado roupas femininas pela primeira vez. No entanto, com o decorrer do tempo, ele vai podendo se lembrar e trazer para a analise, em um relato acompanhado de muita emoção, outras ocasiões em que lembrava de ter sentido a mesma necessidade.

"Era de noite, nós morávamos em uma casa com portas tipo janela, que eram bem altas e finas, lembro de uma noite que estava fazendo muito calor dentro de casa e eu vesti uma camisola da minha irmã e fui passear na rua, o vento que vinha de fora era muito bom e me acalmou" (diz que tinha uns 14 anos).

"Eu acho que tinha uns 9 ou 10 anos, porque o meu pai já tinha morrido e nós morávamos perto da minha avó, eu lembro que ia tomar banho na sua casa porque lá tinha chave no banheiro e eu podia enrolar a toalha em volta do corpo e prendia como um vestido, era uma sensação muito boa".

Desta época (9/10 anos) ele lembra que tinha uma prima de sua mãe que morava lá, com a avó. Lembra-se que ela fazia teatro e que ele sempre queria fazer o personagem feminino.

Estas sessões, nas quais falava deste "impulso" que sentia para "vestir-se de feminino" foram, ao mesmo tempo muito difíceis e muito especiais para mim. Difíceis, pela maneira sofrida como ele trazia suas vivências e pela angústia que sentia por não conseguir explicá-las racionalmente e especiais pelo alívio visível que ia aparecendo em seu semblante por estar podendo, talvez pela primeira vez, compartilhar com alguém que o aceitava sem julgamentos morais, algo mantido em segredo por tanto tempo.

Quando seu filho tinha uns 4 anos, e já havia se recuperado completamente de sua enfermidade, Antônio teve o que conta como sendo um "surto". Nesta ocasião sua mulher e seu filho tinham ido viajar para outro estado, ele se depilou totalmente, vestiu roupas femininas, calçou sapatos de salto alto, se maquiou, ficou quase uma semana trancado em casa, praticamente sem comer e rezando muito.

Conta que, nesta ocasião, chegou a abrir a porta de seu apartamento várias vezes, indo até o corredor mas voltando rapidamente para dentro de casa. "Eu queria sair, mas tinha medo, acho que uma coisa me puxava para fora e outra me puxava para dentro". Explica que as luzes da casa ficavam apagadas, pois ele não queria que ninguém de fora visse o que estava acontecendo lá dentro. Finalmente, uma noite, ele saiu para a rua e caminhou em frente de sua casa. A mulher foi então chamada, ele foi medicado, freqüentou um psiquiatra por algum tempo. Mas logo parou de ir e de tomar os remédios.

Desta época, lembra-se que o psiquiatra não falava nada só ficava sentado olhando para ele. "Ele não dizia nada, não me explicava porque aquelas coisas aconteciam comigo, porque eu sinto esta necessidade de me vestir de feminino, então eu resolvi ir embora". Reclama que a esposa também não cuidou dele direito, que ela só o levou ao médico e depois não quis mais saber de nada.

Antônio "sente necessidade" de dormir com roupas femininas (calcinha, camisola) e conta que algumas vezes se assusta muito quando acorda. "Vou dormir me sentindo uma mulher e acordo como homem". Muitas vezes já saiu de casa usando calcinha e sutiã por baixo da roupa masculina. Diz que tem muito medo que descubram, mas que usa porque se sente muito bem, fica mais calmo. Conta de uma ocasião em que chegou mesmo a ir a uma festa da firma com sutiã e às vezes precisa se controlar para não andar e falar como uma mulher. Relata uma ocasião em que a esposa e o filho não estavam em casa e que ele falou no telefone com uma amiga de sua esposa por algum tempo, sem que esta descobrisse que estava falando com um homem.

Antônio falou também sobre alguns "sinais e avisos" que teve no passado, mas que, segundo ele, não conseguiu entender e nos que tem tido ultimamente. O primeiro aconteceu quando ainda morava com sua irmã. Nesta ocasião, ele foi até a cozinha enrolado em uma toalha e sentiu uma mão fria segurar a sua cintura. Conta que ficou paralisado sem poder se mover por alguns minutos e que sentiu muito medo.

Na seqüência faz uma ligação disto com ter usado a calcinha da irmã que estava pendurada no banheiro. Outro aviso que teve foi uma voz de mulher no telefone que disse "adeus" e duas semanas depois sua mãe faleceu. Fala também de uma mulher que viu ao lado da mesa de um colega do banco, ela ficou alguns minutos olhando fixamente para ele (Antônio) e depois foi embora. Mas quando ele perguntou para o amigo quem era aquela mulher, este disse surpreso: Que mulher? Não tinha ninguém aqui".

Antônio afirma que nunca teve atração por outro homem, que o único prazer que tem é em vestir-se de "feminino", colocando pelo menos uma peça íntima por baixo de suas roupas masculinas. Diz ainda que antes não se permitia fazer isto, ou quando fazia, ficava com muito medo. Foi possível falarmos sobre sua preocupação em relação à reprovação social e pôde aparecer a incompatibilidade de sentimentos que existia entre aquilo que ele sentia internamente e o que era necessário fazer para manter o papel social que lhe cabia desempenhar.

Neste dia, talvez por não agüentar mais o seu sofrimento, ou pressionada pelo sentimento de total impotência que estava sentindo, eu o interrompi e disse: "Antônio, estou vendo a tua aflição e preocupação em relação a usar, ou não, calcinha por baixo de suas roupas. Se, quer saber, não vejo qual é o problema em você fazer isto, só seja cuidadoso e preserve o seu ambiente de trabalho".

Para minha surpresa ele sorriu aliviado e disse: "É, eu preciso ter cuidado no trabalho, já tenho quase 30 anos de serviço e não posso estragar a minha aposentadoria".

Ao longo do ano passado, além de seu desejo imperioso de vestir-se de "feminino", apareceu nas sessões o desejo de possuir, à par de um órgão sexual masculino, um órgão feminino. Ele falava da sensação de ter uma vagina escondida por uma pele, algo que a encobria. Afirmava que podia sentir quando toma banho, colocava a mão, e que fica na região entre o pênis e o ânus.

Foram inúmeras consultas médicas com diversos urologistas, que ele trazia para as sessões e relatava minuciosamente. Fez muitos exames, que descrevia com precisão, ultra-sonografias, dosagens de hormônio, entre outros. Nesta ocasião, por indicação nossa, aceitou fazer uma consulta com o psiquiatra da clínica, na ocasião o Dr Máximo, que não viu necessidade de medicá-lo.

Foi um período de sessões muito cansativas e repetitivas, às vezes eu saia muito irritada e me questionando sobre o sentido daquele atendimento. No entanto, em algumas sessões, eu de fato sentia que estava me relacionando com alguém, uma pessoa inteira, que verdadeiramente podia escutar, refletir sobre suas questões e em alguns momentos até mesmo colocar em palavras os seus sentimentos. Antônio chorava muito, a angústia e o sofrimento que ele trazia eram imensos.

Em setembro do ano passado Antônio foi chamado para ser jurado. Foram muitas sessões nas quais ele falou do medo que sentiu ao ir até o Fórum pela primeira vez. Ansioso e muito aflito, tentava me explicar como tinha se sentido, ia entrando numa grande confusão, sua fala ficava truncada, não encontrava palavras para o que queria dizer, gaguejava e olhava para mim como que pedindo que eu fosse colocando em palavras o que ele estava sentindo.

Ele dizia que tinha ficado com muito medo, pensando que poderia ser reconhecido, que a família do réu poderia fazer alguma coisa contra ele. "Sei que não sou réu, mas tenho medo que descubram...". Aos poucos Antônio foi podendo perceber que a sensação que havia sentido ao ir ao Fórum era parecida com a que sentia quando se vestia de feminino e ficava preocupado que as outras pessoas descobrissem.

Depois de algumas sessões conseguiu dizer que gostaria que eu escrevesse uma carta para o juiz pedindo que este o dispensasse da tarefa de ser jurado. "A senhorita, a senhora, doutora, poderia dizer que eu estou em tratamento aqui na clínica e que não posso participar do julgamento". Digo que poderíamos ou não escrever a carta, o importante é que estávamos podendo conversar sobre isto, que ele estava podendo falar e perceber melhor sobre como se sentia e que tinha a possibilidade de fazer opções.

Mais para o final do ano duas questões foram aos poucos tomando conta das sessões. Uma referente ao trabalho, a firma ia mudar-se de São Paulo e outra que dizia respeito à sua mulher, ela tinha pedido a separação. Trabalhamos bastante o medo que ele tinha de ficar sozinho e de "surtar" novamente, do quanto à presença da esposa e do filho eram importantes para ele.

Neste sentido também pôde aparecer como eram suas relações com a família (quase nenhuma, praticamente não existe comunicação entre eles), com os colegas de trabalho (os colegas querem sempre levar vantagem, sente-se usado), com o filho (receio de que ele saiba algo sobre este impulso que sente para vestir-se de feminino e a certeza de que ele não iria entender).

No começo deste ano (2002), falamos bastante a respeito da eminente mudança de endereço da firma onde trabalha. As sessões foram preenchidas com descrições de possíveis caminhos para se chegar ao trabalho (a firma foi transferida para uma cidade próxima), nomes de ruas, horários de metrô, escolha do melhor ônibus, qual o trajeto que este faria, o horário dos trens, o cálculo do tempo que seria gasto por ele da estação de trem até o novo local de trabalho, etc.

Este ano ainda não apareceu nas sessões a sua necessidade de vestir-se de feminino, tampouco a sensação de possuir uma vagina que está recoberta ou mesmo a sensação de feminilidade que sente na pele, nos lábios e nos seios, que dão a impressão que vão crescer. Questões, muito presente ao longo de todo o ano de 2001.

Temos nos perguntado e refletido bastante, na supervisão, para onde foi tudo isto e a resposta é de que simplesmente não sabemos. Penso que com o tempo estas questões vão aparecer novamente, talvez de um outro jeito, com outros tons, enfim de outra maneira.

Por hora, Antônio tem falado sobre seu relacionamento com o filho. Está muito melhor, eles estão mais próximos, ambos gostam de música e o filho tem escutado na vitrola, seus antigos discos (LPs). Antônio está podendo até mesmo reivindicar que o filho também ouça Roberto Carlos com ele. "Se eu fico, e ouço o que ele gosta, então ele também pode fazer o mesmo e escutar o disco que eu gosto".

Sua mulher, da qual sempre se queixava muito e que era presença cativa em nossas sessões, tem estado mais afastada. Ele tem colocado que alguma coisa está diferente, não sabe o que é, parece que sua "cabeça abriu", associa esta mudança que percebe em si mesmo à mudança de seu local de trabalho.

Gostaria de terminar esta exposição com uma imagem que Antônio trouxe para a sessão na semana passada (março de 2002). Estávamos falando sobre seu novo local de trabalho. Na sua opinião, a cidade é bem gostosa e muito mais calma do que São Paulo e um dia ele poderá, andando na rua, encontrar uma casa velha em um terreno muito bom. Então talvez possa comprar, derrubar a casa e construir no terreno uma outra casa, a casa dos seus sonhos.

Quando pergunto como seria esta casa dos seus sonhos, ele a descreve, meio sem jeito, como se não pudesse ousar possui-los.

"A casa tem três andares, no primeiro tem a sala e a cozinha, no segundo os quartos cada qual com seu banheiro, no terceiro um terraço para eu tomar sol, e no subsolo, um estúdio de som para eu e o meu filho ouvirmos música. Ele pode usar o estúdio também para gravar CDs, alugar para outras bandas, etc. Ah! Diz ele animado, todas as janelas vão ter uma sacada, que é para o sol entrar".

Fico feliz por e com ele, afinal Antônio já está podendo sonhar e isto não é pouca coisa.

Este atendimento teve início em agosto de 2000, no curso de Aprimoramento da Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic", sob a supervisão da professora Maria Cecília Corrêa de Faria, numa linha de atendimento psicanalítica.

Carla Junqueira Barros é Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Aprimoranda da Clínica de Psicologia da PUC-SP - CRP 06/62353-9