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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


7. O Édipo Revisitado - Franklin Goldgrub(1)

Pelo menos um mérito não pode ser negado ao artigo de Jacob Bettoni publicado pela Folha na terça-feira 14/11/00: o de reabrir a polêmica sobre o conceito mais polêmico da psicanálise. Acontece que depois de décadas de guerra sem quartel, sobreveio a trégua e em sua esteira uma paz talvez mais nefasta para a ciência dos sonhos do que os anátemas geralmente tendenciosos proferidos pelos credos ofendidos com as exalações das catacumbas freudianas.

Distante dos tempos heróicos em que arqueologia do divã exumava os altares remotos das nossas crenças, a psicanálise hoje dorme em berço esplêndido o sono do repouso do guerreiro. Quase sem sobressaltos: o espaço antes destinado à pesquisa, aos estudos e à interrogação foi ocupado pela disputa entre as instituições nas quais se dividiu o movimento psicanalítico, cuja principal atividade teórica tem sido a proclamação enfática dos respectivos dogmas.

O Édipo, entretanto, que ao olhar externo passa por unanimidade psicanalítica, permanece uma noção problemática, e sua conceituação se ressente de maior precisão e rigor. Além das divergências entre Klein e Lacan, cabe admitir que mesmo os autodenominados freudianos ortodoxos estão longe de entendê-lo consensualmente, pela simples razão de que o próprio Freud jamais ofereceu uma formulação sistemática e muito menos definitiva da matriz responsável pela estruturação da identidade.

Fora da psicanálise, o conceito tem uma longa tradição de debates e questionamentos, que contribuíram para o seu desenvolvimento tanto como a própria produção psicanalítica. As críticas que suscitaram as controvérsias mais fecundas foram elaboradas por Malinowski, Lévi-Strauss, alguns helenistas (como Vernant) e pelo movimento feminista, que identificou na inveja do pênis a maior evidência da contaminação preconceituosa sofrida pelo pensamento freudiano.

Quer os psicanalistas concordem ou não com tais críticas, parcial ou totalmente, as mesmas são inegavelmente sérias, o que dificilmente poderia ser dito de Bettoni/Masson, cujas alegações estão mais próximas do grand-guignol ou da paródia involuntária. Mesmo que diatribes do gênero ofereçam um aspecto cuja cor não evoca propriamente algo originado na matéria cinzenta, vale a pena tentar esclarecer alguns pontos na medida em que, abordados com isenção, poderiam dar lugar a uma discussão pertinente.

1. Se de fato a intenção de Freud era escapar à condenação do establishment, não poderia haver uma ilustração mais eloqüente da expressão tiro pela culatra do que a formulação do conceito Complexo de Édipo. Os adultos pedófilos da teoria do trauma eram antes a exceção do que a regra, enquanto a noção de sexualidade infantil reivindica universalidade. A transformação da criança angelical, cujo modelo é o querubim renascentista, no perverso polimorfo dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, atinge no coração a crença acerca da pureza e da inocência infantis, professada com devoção pela Europa finissecular.

Os contemporâneos de Freud reagiram a essa hipótese com a mesma indignação de Bettoni, e talvez por motivos semelhantes. Em todo caso, eles não pediram a volta da teoria do trauma, mas antes que seu autor se calasse. Não é improvável que as fogueiras do Anschluss, alimentadas com os volumes freudianos, expressassem um anseio presente há muito tempo.

2. A hipótese acerca da sexualidade infantil se originou, pelo menos em parte, das crescentes contradições presentes nos relatos acerca do trauma sexual. Na medida em que o tempo requerido pela análise se estendia além das poucas semanas que caracterizavam os primeiros tratamentos, os pacientes passaram a apresentar novas versões das recordações traumáticas, freqüentemente inconciliáveis com as primeiras, e às vezes admitiam ter-se apoiado no testemunho de outras pessoas e não em lembranças pessoais.

A interpretação dos próprios sonhos, empreendida por Freud, a análise do pequeno Hans, com a conseqüente aferição das fantasias originárias e das teorias sexuais infantis, bem como a progressiva constatação dos efeitos da transferência, foram igualmente decisivos para o abandono definitivo da teoria do trauma.

3. Por outro lado, do ponto de vista metodológico, o abandono da teoria do trauma provocou uma guinada crucial. Durante a sua vigência, a fala do paciente era considerada como fonte de informações, concepção que foi substituída pela escuta interpretativa, apoiada na suposição de que o discurso proveniente do divã contem um sentido a ser distinguido do seu aspecto referencial ou factual, independentemente da respectiva verossimilhança.

A pergunta pela significação substituiu o interesse em saber se os fatos relatados são verdadeiros ou não, na medida em que a fantasia, e não o acontecimento, passa a ser responsabilizada pelo conflito. Portanto, tanto no âmbito metodológico como no teórico o trauma perdeu seu papel causal em relação ao sintoma. (Fazendo uma leitura "realista" da etiologia, Freud constatou que há sintomas sem traumas prévios e traumas que não provocam sintomas. Progressivamente, o conceito de identificação substituiu tanto os fatores ambientais - trauma, educação - como os orgânicos, na explicação dos conflitos).

4. Em suma, não cabe ao analista (de adultos) aferir se houve ou não prática de pedofilia por parte dos pais ou educadores do paciente. Entretanto, no que se refere à análise de crianças, tal discussão é realmente pertinente e coloca questões éticas bastante sérias, que exigiriam um espaço maior para serem abordadas. Também aí o ponto crucial se refere à identificação da criança com o adulto sedutor e com o lugar que ele lhe adscreve em seu desejo. O trauma em si seria a manifestação observável de conflitos graves, que podem ocorrer igualmente em decorrência de relações nas quais os traumas sexuais estão ausentes.

A ausência de um consenso em relação ao famoso complexo não implica que o relativismo domine a cena de maneira inconteste. Há hipóteses e elaborações teóricas tendentes a confirmar a universalidade do Édipo, a partir das quais é possível hipotetizar determinantes que se sobreporiam tanto às variações culturais como à peculiaridade das vivências que marcam cada história de vida. Apresentaremos, sucintamente, uma concepção desse gênero.

Os argumentos desenvolvidos a seguir se apoiam no pressuposto de que o complexo de Édipo se integra a um âmbito mais vasto, denominado processo de constituição do sujeito. A respectiva teorização parte da suposição de que o bebê permanece indiferenciado de seus desejantes até o momento em que se identifica à imagem refletida no espelho (ou seja, no olhar do adulto). O artigo lacaniano de 1949 assinala um momento estrutural em que é possível aferir a passagem do estado de indiferenciação à identidade de objeto. O não acesso à identificação com a imagem (ou seja, com a posição de objeto do desejante), tem como decorrência o autismo.

À identidade de objeto produzido pela identificação com a imagem especular segue-se à passagem para a posição de sujeito, alcançada em conseqüência da aquisição da linguagem (entre dois e três anos). A não aquisição de linguagem indica impossibilidade de separação em relação aos desejantes e a conseqüente construção de um quadro de esquizofrenia infantil. Havendo aquisição, a criança se deslocará para o lugar de sujeito, cuja primeira manifestação é a exigência de possuir exclusivamente o amor dos desejantes.

É nesse momento que se pode situar o início da fase fálica. Se confrontada com limites à sua pretensão de exclusividade amorosa, a criança (tanto a menina como o menino) descobrirá a existência da função normativa, ao perceber inevitavelmente (e independentemente das peculiaridades de sua vida familiar) a relação entre mulheres e homens, ou melhor, ainda, a existência do desejo entre adultos (conotada pelos termos mãe, pai, mulher, homem, filha, filho, irmã, irmão, avó, avô, tia, tio, casal, casamento - enfim, todos os signos vinculados à existência dos gêneros, a cujo efeito ela não poderá subtrair-se uma vez que tenha adquirido linguagem).

Falo, nesse momento, não significa pênis, mas o signo que, de acordo com a crença infantil, retrata o poder limitativo à sua pretensão de exclusividade amorosa, na medida em que alguém parece ter o que ela julga ter perdido. A conseqüência desse estado de coisas é a emergência de uma situação triangular, em que a criança se vê às voltas simultaneamente com manifestações de amor incondicional (ausência de limite) e de amor condicional. Os agentes dessas duas modalidades de tratamento podem ser os mesmos. Ou seja, tanto a "mãe" como o "pai" ou seus substitutos pode protagonizar simultaneamente tanto o primeiro como o segundo tipo de relação. Tais atitudes, mais do que as pessoas que exercem as funções parentais, e cujo grau de ambigüidade, contradição e/ou coerência pode ser maior ou menor, é que são relevantes.

Por outro lado, certos dados empíricos fazem supor que a nostalgia feminina do infans, agora em posição de sujeito, seja mais freqüente e/ou mais intensa do que a masculina. Essa constatação, cuja explicação talvez resida na fantasia de correspondência entre pênis/bebê (restrita à heterossexualidade feminina), fantasia cujas bases se situam no primeiro momento do complexo de Édipo(2) , talvez explique a tendência a atribuir à figura masculina a imposição de limites (associada ao poder), enquanto o amor incondicional é comumente associado à feminilidade, embora, como assinalado acima, ambos os pais (ou figuras substitutas) desempenhem tais funções.

Na primeira fase do Édipo, a criança (menino ou menina), agora na posição de sujeito (ou seja, discursiva), se empenhará em fazer prevalecer à função desejante e revogar a função normativa recém descoberta. Essa luta contra a imposição de limites nada mais é do que a expressão da identificação com a nostalgia dos desejantes pelo bebê que o pequeno Édipo deixou de ser. Trata-se do conflito fundamental, que retrata a bifurcação do desejo, dividida entre as posições de objeto e de sujeito.

Caberá à linguagem limitar o desejo de amor incondicional. Os próprios termos relativos às relações de parentesco - concebidos enquanto elementos de um sistema e não como meras designações (próprias da palavra especular) - criam a nova realidade, na qual o pequeno Édipo (menina ou menino) passará a ocupar um dos lugares possíveis (filha/ filho, irmã/irmão, prima/primo, sobrinha/sobrinho, neta/neto), e não mais o lugar do objeto único de desejo.

Se de fato os limites forem colocados (processo cujo insucesso constituirá a condição de possibilidade para futuros quadros maníaco-depressivos), a criança deixará a dualidade, ingressando na condição desejante, não tanto em conseqüência dos limites propriamente ditos, mas sim por identificar-se com modelos que transmitem a existência da regra, na medida em que se mostram igualmente submetidos a ela. Tal identificação, por sua vez, incluirá privilegiadamente a construção da identidade sexual. A sexuação é uma das principais conseqüências da existência do limite e sua implicação é a passagem da condição de sujeito absoluto assexuado (relação criança/figuras parentais) para a de sujeito desejante (menina ou menino, inaugurando um futuro marcado pela identidade feminina e/ou masculina, nas modalidades da heterossexualidade, da homossexualidade ou da bissexualidade).

A situação pode ser metaforizada por um triângulo cujos vértices, além da própria criança, são, de um lado, o modelo do objeto de desejo, e de outro, o rival doublé de modelo de identificação. (Ressalve-se que as figuras parentais de ambos os sexos transitarão entre esses dois lugares, com predominância de um dos gêneros enquanto modelo de identidade e do outro enquanto modelo do objeto).

O processo de sexuação (construção da identidade sexual) caracteriza o que poderia ser considerado como segundo momento do Édipo. A sexuação não é um fato de percepção, mas de linguagem. A distinção de gêneros, intrínseca a qualquer idioma, impõe a existência do feminino e do masculino, ou seja, da condição desejante.

Freud não distinguiu o primeiro momento do Édipo (caracterizado pela passagem da posição de objeto para a posição de sujeito absoluto) do segundo (caracterizado pela passagem da posição de sujeito absoluto para a posição de sujeito desejante). A referida justaposição dá lugar a uma indistinção, e faz com que o criador da psicanálise pague tributo aos preconceitos vigentes na época(3) com relação ao feminino.

Na medida em que ele entende a fantasia de castração de forma literal, a virilidade fica valorizada a expensas da feminilidade. Freud sucumbe assim à mesma concepção que havia identificado e criticado(4) nas fantasias infantis do primeiro momento do Édipo, caracterizadas pela sinonimização entre ter, posição de sujeito e masculinidade, de um lado, não ter, posição de objeto e feminilidade, de outro. Daí conceitos como inveja do pênis e medo à castração. A permanência das referidas fantasias no adulto constitui a explicação mais provável dos preconceitos face ao feminino, tão presentes em homens como em mulheres.

Mas, por outro lado, tal preconceito, por comum que seja, não pode ser entendido como "universal", a menos que nesse caso o termo universal se refira ao fato de que, em algum grau, todo sujeito está cindido pelo conflito. Portanto, o "universal" da inveja do pênis e do medo à castração diz respeito ao universal da estrutura "neurótico/ perversa" à qual ninguém, homem ou mulher, escaparia totalmente (a menos que "fosse" psicótico). Desse ponto de vista, tais preconceitos expressariam o conflito com o próprio sexo, interpretável por sua vez como recusa da condição desejante.

Cabe-se afirmar que algum grau de conflito com a própria identidade (ou seja, com a condição desejante) é inevitável, e nesse sentido universal, faz-se preciso acrescentar que (também em termos de grau), a aceitação da condição desejante (ou seja, o oposto à inveja do pênis e ao medo à castração) é igualmente universal. Que a sublimação seja tão universal como o conflito significa que a recusa da condição desejante se confronta permanentemente com a tendência oposta.

Efetivamente, a atribuição de universalidade absoluta à inveja do pênis e ao medo à castração colide com a existência de certas modalidades de homossexualidade e com a própria heterossexualidade. A atribuição da universalidade absoluta a essas duas fantasias é notoriamente incompatível com o par homossexual em que a identidade de ambas as parceiras permanece feminina, bem como com a transsexualidade masculina (em que se chega a demandar a extirpação do pênis) e, afinal de contas, com a própria heterossexualidade, que tem por implicação a valorização do feminino, tanto por parte do homem como da mulher. De fato, os preconceitos em questão estão vinculados eletivamente à construção da identidade sexual pela via do conflito neurótico/perverso.

Em outros termos, a inveja do pênis e o medo à castração denotam a dificuldade em abandonar o ideal de completude, na medida em que retratam a crença de que seria possível "possuir" o objeto máximo de desejo, representante do amor incondicional.

Caberá ao advérbio de negação autodirigidos o papel de retirar a criança da crença na posição de sujeito absoluto. Em outras palavras, na medida em que os modelos sustentarem perante o pequeno Édipo a valorização do limite (dirigido em primeiro lugar ao seu próprio desejo de manter os filhos na posição de objetos fálicos), será possível a identificação da criança com a posição desejante (abandonando assim a pretensão de ocupar o lugar de sujeito absoluto).

Portanto, se as fantasias infantis acerca da posse do falo valem para o primeiro momento do Édipo, elas são necessariamente alteradas no segundo, sem o que não haveria como entender as várias possibilidades de construção da identidade sexual (heterossexualidade, homossexualidade, neurose, perversão(5)). Esquematicamente, caberia dizer que as possibilidades de identificação sexual se colocam para a criança no segundo momento do Édipo, a partir de quatro situações estruturais: valorização do masculino a expensas do feminino, valorização do feminino a expensas do masculino, mútua valorização ou mútua desvalorização dos gêneros.

Admitimos que se trata de uma descrição inespecífica, pois não aborda a questão do grau e dos diferentes aspectos sobre os quais incide a valorização e/ou a desvalorização. Como se tal complexidade não bastasse, é preciso não esquecer que a identidade sexual também está sujeita à gangorra do manifesto e do latente. Ou seja, nenhuma identidade é necessariamente absoluta ou definitiva, como tampouco as modalidades de conflito (neurose, perversão, psicose) o são. As outras possibilidades permanecem presentes.

Finalmente, caberia ressaltar que se o processo de constituição do sujeito é regido por identificações determinadas pela linguagem, pode-se hipotetizar que tal processo, do qual o Complexo de Édipo faz parte, seja universal - tão universal como a própria linguagem. Em outras palavras, o processo de constituição do sujeito, assim concebido, independeria tanto de variações históricas e da diversidade cultural como de fatores orgânicos, e igualmente não poderia ser subordinado à peculiaridade das experiências individuais (história de vida). Entre seus principais efeitos se contam a clivagem do discurso (inconsciente/consciência) e a singularidade.

Pode-se descrever esquematicamente o processo de constituição do sujeito através de quatro momentos estruturais, regidos pelo discurso, mecanismo da identificação.

1. Indiferenciação em relação ao desejante (inexistência da divisão ou separação sujeito/objeto, cuja persistência acarretaria o autismo);

2. Posição de objeto (decorrente da identificação à imagem de objeto (do desejo) - estágio do espelho, palavra especular - cuja persistência acarretaria a esquizofrenia);

3. Posição de sujeito absoluto (decorrente da aquisição de linguagem, mas sem que o "não" tenha limitado o desejo de não desejar. Sua persistência está associada aos quadros de mania e depressão que se manifestam após a puberdade);

4. Posição de sujeito desejante (decorrente da possibilidade de dirigir o "não" para o desejo de não desejar ("internalização do superego"). O grau de conflito entre a aceitação e a não aceitação da condição desejante se expressaria pela predominância dos conflitos ditos neuróticos/perversos ou a predominância da superação do conflito representada pela sublimação).

Caberia ainda acrescentar que a paranóia situa-se no espaço intermediário entre dois e três.

Notas:

(1) Professor da Faculdade de Psicologia da PUC, autor de "O complexo de Édipo" (Ática), "Mito e Fantasia" (Ática) e "Freud, Marlowe & Cia" (Nova Alexandria/Educ), entre outros livros. Próximo livro (no prelo): "A máquina do fantasma" (Unimep).

(2) Caracterizado pelo ideal de completude.

(3) Preconceitos localizados no social, já que em cada discurso familiar a valorização/desvalorização dos gêneros é sempre singular.

(4) Ver Feminilidade (1933), artigo cujo início é dedicado a problematização da idéia de que feminino e masculino poderiam ser definidos mediante conceitos biológicos ou psicológicos (passividade/atividade).

(5) A inclusão da homossexualidade na categoria da perversão permanece uma questão em aberto.