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BOLETIM CLÍNICO - número 10 - maio/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

5. A Importância da Utilização da Música como Recurso em Contextos Psicoterapêuticos(1) - Gabriela Malavazi(2)

"A música é uma linguagem,
mas uma linguagem do intangível,
uma espécie de linguagem da alma.


Edward Macdowell

Pouco se ouve na graduação em Psicologia a respeito da utilização da música como recurso em contextos psicoterápicos.

Por ter estudado música (piano) por diversos anos e sempre tê-la como companheira em vários momentos da minha vida, e por sentir os enormes benefícios que ela pode trazer, interessei-me por aprofundar sobre os benefícios que ela pode trazer empregada em contextos psicoterapêuticos, visto ser a Psicologia outra grande paixão na minha vida.

Iniciei pensando no emprego dela na psicologia clínica; porém, durante a pesquisa fui percebendo que os resultados podiam ser estendidos para qualquer modalidade de trabalho em psicologia.

Encontrei mais material na Musicoterapia do que na Psicologia a respeito do emprego da música como alternativa à linguagem verbal, tanto para ampliar este tipo de linguagem, quanto para substituí-la em situações onde não é possível que a mesma aconteça (como numa terapia de uma pessoa muda por exemplo, ou em momentos nos quais é difícil a verbalização de determinados conteúdos afetivos).

Para tal, entrevistei cinco psicólogos que empregavam de alguma maneira a música nas suas práticas, procurando apreender a forma como esta era utilizada, como este recurso era concebido nas abordagens teóricas de cada profissional, o que achavam e se contribuíam para a divulgação de trabalhos do tipo nos meios acadêmicos da psicologia.

PERCURSO TEÓRICO

A música, como meio de expressão e de comunicação entre os homens numa determinada cultura, sempre foi utilizada desde os povos mais primitivos aos mais civilizados. Como Schurmann (1989) nos aponta, as produções musicais de cada época refletem o seu momento sócio-histórico e estão intrinsecamente ligadas às motivações destas épocas. Uma das facetas de emprego da música na história da humanidade é como meio de cura para males do corpo e da alma. De acordo com as concepções de saúde/doença de cada época, a música foi considerada de diversas formas como instrumento auxiliar na cura das pessoas.

O capítulo sobre A música como cura ao longo da história(3) procurou explorar um pouco esta trajetória, desembocando nos diferentes usos que se faz deste instrumento atualmente, e entre eles a Musicoterapia que é uma área teórico-metodológica recente, melhor estabelecida na segunda metade do século XX e que busca explorar os diversos usos da música e de seus efeitos para fins terapêuticos.

Mas, o que é música?

Cada vez que tentamos afirmar algo a respeito da música, ou do próprio mundo em que vivemos “... estamos construindo o mundo através da representação de nossas sensações dentro de nosso sistema de linguagem culturalmente obtido. Isso significa que não temos nenhum meio de saber ‘o que realmente é a música’. Tudo o que possuímos são diferentes perspectivas estéticas que são, na verdade, dados acerca de visões diferentes sobre música.” (Ruud, 1990, p.19) Por isso existem várias definições sobre música.

Há as que enfatizam o caráter ‘mágico’ dos seus efeitos produzindo explicações do tipo “música é uma força vibrante, curativa, uma energia” e assim por diante; há as que se atém mais aos aspectos cientificamente comprovados de seus componentes e em teorias musicais com definições mais racionais e objetivas; e há ainda as afirmações que consideram todos os tipos de sons, improvisações livres e produções estruturadas como música. Esta última, mais ampla por englobar todas as produções sonoras e até sons da natureza e do nosso próprio corpo como música, é a mais aceita entre os profissionais que a utilizam em contextos terapêuticos.

A música constitui-se também numa importante forma de expressão, de interação entre as pessoas, e canal de comunicação alternativo à linguagem verbal. Este quesito alternativo é o que traz a importância do emprego da música em contextos psicoterapêuticos, ou seja, como via alternativa à fala, muito utilizada nas psicoterapias, vem a música com todo o seu potencial de meio de comunicação de afetos e conteúdos às vezes difíceis de serem traduzidos numa linguagem verbal, e que expressados podem constituir material para a terapia e processo do indivíduo. Ruud (1990) considera a música uma espécie de linguagem emocional, “... capaz de atingir áreas de nossa psique que processam informação e que nós, por vários motivos, não comunicamos com clareza a nós mesmos.”

Isto é, constitui-se num meio de acesso privilegiado às emoções, mas permitindo, como Costa (1989) nos aponta, a expressão de uma riqueza de conteúdos com muito mais fluidez e liberdade do que a linguagem falada. Porque os significantes da música dão abertura para uma ampla gama de significados; fato que não ocorre na comunicação verbal, que privilegia o logos, o racional.

Tentando aproximar a música da psicologia, encontrei alguns trabalhos de psicólogos, a maioria na área clínica, que empregavam de maneiras diversas este recurso nas suas práticas. Para exemplificar citarei o trabalho de Skar (1995), musicista e analista junguiana, que procurou unir a música à psicoterapia. Primeiro ela se perguntou o que os processos da análise e da música teriam em comum, chegando à resposta de que ambos conseguiriam estabelecer conexões entre o consciente e o inconsciente; sendo que a música remeteria-nos ainda aos arquétipos mais profundos da psique. Skar (idem) relacionou a concepção de individuação de Jung com a música.

O primeiro como um processo de fazer um todo coerente em contraste com as partes da nossa personalidade, semelhantemente à música na qual também há uma tentativa de síntese, de ordenação do processo e das estruturas e partes da música. E o Todo seria sempre uma organização diferente da soma das partes, num conjunto cujo produto é maior, produto de relações dinâmicas entre as partes.

Pensando na música como criadora de um laço entre consciente e inconsciente, a autora foi pesquisar o que Jung dizia sobre esta forma de expressão. Jung achava a música e a musicoterapia muito sentimentais e superficiais. Depois de experienciar um trabalho com música, através de Margaret Tilly em 1947, Jung acabou gostando muito da vivência e dizendo que a música deveria fazer parte de qualquer análise porque ela alcança o material arquetípico mais profundo que raramente é alcançado nas terapias.

E este desconhecimento em relação ao potencial da música na análise foi constatado pela autora pela escassez de artigos encontrados sobre o assunto e pela importância desigual dada à música em contrapartida à pintura, desenho, etc nos materiais de Psicologia Analítica. Por isto a autora percorreu os caminhos da Musicoterapia e da psicoterapia, como eu o fiz nesta pesquisa, visando relacionar a música à psicoterapia.

Segundo a autora haveriam duas possibilidades de uso deste instrumento no contexto terapêutico: a música ouvida ou improvisada. A técnica sobre música ouvida mais utilizada na Musicoterapia é a “Guided Affective Imagery with Music” (GIM), desenvolvida por Helen Bonny em 1973 nos Estados Unidos, na qual uma pessoa escuta a música num estado relaxado com o propósito de que imagens, símbolos e sentimentos surjam e sejam utilizados para o auto-conhecimento. Isto está muito próximo, segundo Skar (1995), da idéia de Jung de imaginação ativa(4), portanto um modelo potencial de terapia com música ouvida poderia ser chamado de AIM (“Active Imagination through Music”).

Em ambos, GIM e AIM, a função transcendental, conceito junguiano, estaria fazendo a ponte entre consciente e inconsciente. No AIM ainda, a música poderia ser escolhida pelo analista ou pelo analisando para facilitar a investigação de um humor, figura, evento, ou sonho. Poderia ser usada para ajudar também na liberação de material reprimido ou como catalisadora para insights mais profundos.

A segunda possibilidade de uso da música na psicoterapia seria a música improvisada. Mary Priestley e co. (in Skar, 1995) em 1975, desenvolveram o “Analytical Music Therapy” que emprega palavras e música improvisada para expressar a vida simbólica interna do paciente. Isto envolveria o uso de instrumentos de percussão afinados e desafinados, como bateria, xilofone, tamborim, etc, para improvisar as músicas. Desta idéia de Mary Priestley a própria autora adotou alguns desses instrumentos de percussão no seu consultório. Priestley (in Skar, 1995) realça ainda que a improvisação musical pode refletir o processo de desenvolvimento.

A autora diz que um aspecto muito importante da música improvisada é que ela pode facilitar o acting out das emoções, isto é, a música poderia ajudar na liberação de energia contida nas memórias reprimidas, nas imagens, nos modelos de comportamento destrutivos ou nos sintomas físicos de aspectos psíquicos ainda não integrados.

Skar (1995) conclui o seu trabalho indagando se a música teria o seu lugar na análise; afirmando que acredita no potencial musical para os processos psicoterápicos (como descrito acima), e falando na necessidade de uma divulgação destes aspectos, e de se haver um treinamento de técnicas de Musicoterapia para os analistas. A música seria para a autora a melhor válvula de escape e o melhor caminho para se entender a vida.

METODOLOGIA
Foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com o objetivo principal de apreensão de como os sujeitos (psicólogos) utilizavam a música nas suas práticas. Cinco foram os entrevistados, todos nos seus locais de trabalho.

Instrumento (Roteiro das Entrevistas) :

1) Identificação:

Nome:___________________________________________________

Idade:__________

Tempo de atuação em Psicologia:_____________________________

Faculdade de graduação:____________________________________

Abordagem teórica principal:_________________________________

2) Desde quando você está na prática clínica da Psicologia? Conte-me um pouco da sua trajetória profissional.

3) E a música, desde quando você a utiliza nas suas práticas, em quais contextos e como?

4) O que é música para você?

5) No que o uso da música contribui para o processo diferente de outras técnicas?

6) Na sua opinião, quais os requisitos que um psicoterapeuta deveria ter para estar trabalhando com música?

7) Qual a sua sugestão para os psicólogos que estão iniciando e desejam empregar a música nas suas práticas?

8) Você sistematiza suas experiências com música em termos teóricos? Pensa em fazê-lo?

9) E a questão do que se aprende nas faculdades a respeito; você acha que a formação acadêmica engloba esta possibilidade de trabalho com música?

10) Você conhece outros psicólogos que também utilizam a música nas suas práticas?

ANÁLISE E REFLEXÃO FINAL
O objetivo principal desta pesquisa foi salientar a possibilidade de uso da música como recurso em contextos psicoterápicos, através de exemplos de experiências de alguns psicólogos (entrevistados) que inserem este instrumento nas suas práticas. Os contextos que mais apareceram foram os da área clínica da psicologia (como o consultório por exemplo), mas como dito anteriormente, penso que poderia ser aplicada em outros campos de atuação dos psicólogos, e que esta pesquisa oferece algumas bases a respeito dos benefícios de trabalho com música.

Quanto aos modos de utilização, percebemos que variadas foram as formas encontradas pelos psicólogos, tanto os entrevistados, quanto os da bibliografia, em atividades grupais ou individuais com seus pacientes. Ouvida ou improvisada, sozinha ou conjugada a alguma outra técnica da psicologia, ela apareceu sempre como um recurso a mais disponível pelos profissionais para facilitar o processo de tratamento de seus pacientes.

As formas de emprego variaram também segundo as abordagens teórico-metodológicas principais de cada terapeuta, a partir das quais foram delineados alguns parâmetros sobre o contexto e a maneira de inserção da música. A este respeito percebemos que ela pôde entrar mais facilmente em teorias da psicologia que aceitavam e validavam o uso de recursos não verbais em contextos terapêuticos, desde que empregados criteriosamente. Estas não corresponderam, segundo os entrevistados, à linhas mais tradicionais da psicologia, priorizadas no ensino nas faculdades.

Ou seja, na realidade nenhum profissional tinha sido apresentado à possibilidade de trabalho com este instrumento, o que consideraram uma falha nos cursos de psicologia. A maioria acabou encontrando a música em outros cursos da área, mas fora da graduação. Todos disseram haver um privilégio na profissão, e na nossa própria sociedade ocidental à linguagem e maneiras de expressão verbais, em detrimento de outras formas de contato que podemos ter com o mundo – através dos cheiros ou do tato por exemplo – tão importantes quanto a fala.

Nossas vivências realmente não se restringem à nossa comunicação verbal com o mundo, mesmo que não percebamos, e isto nos leva a pensar que um trabalho psicoterapêutico, para ser mais completo deve incluir outras possibilidades de expressão ao sujeito, o que conduz também a outras formas de interação paciente-terapeuta. Como Byington (apud Costa, 1989) aponta: “Nossa vivência de mundo é sempre simbólica, e a partir dela é que separamos, ou seja, discriminamos os fatores subjetivos e objetivos que determinam nossa conduta... Os símbolos são o oxigênio da mente. Querer reduzi-los a seus componentes objetivos asfixia o ser...” Se nossas vivências não se restringem aos aspectos racionais, como a linguagem falada, por que a não exploração de recursos menos racionais como a música?

Sob este aspecto, só pode ser positiva a inclusão de recursos não-verbais, além do verbal, numa terapia. Ou seja, a música pode ser utilizada para ampliar os limites da fala, ou substituí-la em situações onde não é possível que esta aconteça, atuando como um recurso alternativo à comunicação verbal. Exemplos de terapia com pacientes psiquiátricos, ou com pessoas com dificuldades na fala podem ilustrar esta última alternativa.

Como via alternativa ao verbal e por envolver mais o não racional das pessoas, a música tem uma capacidade de ‘tocar’ mais rápido e mais profundamente as emoções das pessoas. E numa terapia os conteúdos conflitivos são os mais carregados de afetos, sobre os quais a música pode servir de acesso, inclusive às partes mais profundas e primitivas de nossa psique muito ligadas a este não racional.

Isto não significa que devamos enfocar ou nos fixar em aspectos mais conflitivos e menos amadurecidos, mas ao contrário, como vários entrevistados colocaram, trabalhar num sentido de fortalecimento de áreas saudáveis de nossa psique, para que daí outras partes possam ser acessadas e integradas. Neste contexto, a música possui ainda a característica de ser algo lúdico, que gera prazer e estimula a capacidade criativa das pessoas. Ora, é a partir desta que nossas potencialidades podem ser desenvolvidas e nossas relações saudáveis com o mundo e com nós mesmos, ampliadas.

Outro aspecto muito importante da música é que, por possibilitar esta esfera de comunicação ao nível das emoções e da subjetividade, pode ‘abrir’ outros canais de comunicação conosco e com o mundo, como por exemplo com nossa espiritualidade. Pode resgatar nossa comunicação com o que sentimos como sagrado, transcendental e maior do que nós. E esta é outra dimensão do nosso ser que não deve ser ignorada numa terapia que se propõe a considerar o indivíduo como um todo, com todas as suas dimensões.

E apesar da música constituir uma possibilidade bastante interessante de trabalho, como pudemos perceber, parece ser pouco divulgada ainda entre os psicólogos, fato que pude constatar através da escassez de materiais bibliográficos encontrados dentro da psicologia, e pelos próprios entrevistados que na sua maioria não sistematizavam suas experiências com o instrumento em termos teóricos.

Como requisitos para os psicólogos estarem empregando este recurso nas suas práticas, os entrevistados apontaram a importância deles estarem estudando sobre os efeitos psicofisiológicos básicos das músicas sobre o nosso organismo, para que os objetivos propostos pudessem ser alcançados, estarem atualizando-se sobre o que está sendo produzido a respeito através de leituras e participação em cursos e eventos, além da supervisão e terapia individuais indispensáveis para qualquer psicoterapeuta.

Este trabalho constitui a abertura de mais uma fresta na exploração de recursos diversos disponíveis aos psicólogos. Ampliações e idéias novas a respeito são sempre bem-vindas!

BIBLIOGRAFIA:
COSTA, C.M. (1989) – O despertar para o outro, São Paulo: Summus.

RUUD, E. (1990) – Caminhos da Musicoterapia, São Paulo: Summus.

SCHURMANN, E.F. (1989) – A música como linguagem – uma abordagem histórica, São Paulo: Brasiliense.

SKAR, P. (1995) – Music and analysis – contrapunctal reflections, Zürich 95 – Open Questions in Analytical Psychology – 389 – 403.

Notas:
(1) Este artigo é um resumo de um trabalho de conclusão de curso de 2000.

(2) Psicóloga formada na faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

(3) No trabalho original – Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia, realizado em 2000, pela PUC-SP.

(4) Imaginação Ativa – técnica criada por Jung na qual, em linhas gerais, é sugerido ao paciente que imagine uma série de situações com detalhes, através da condução do terapeuta verbalmente. Ela possibilita que a pessoa entre em contato e explore melhor áreas de sua psique. É uma técnica, dentre outras, que auxilia no processo psicoterapêutico realizado com o indivíduo.