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BOLETIM CLÍNICO - número 9 - outubro/2000

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

8. Psicodinâmica da Fé - Efraim Rojas Boccalandro

INTRODUÇÃO
Antes de entrarmos no assunto próprio deste ensaio, consideramos oportuno e necessário colocar nossa posição filosófica, pois ela está intimamente ligada a nossa concepção da fé.

No início do século XX Albert Einstein enunciou sua teoria da relatividade revolucionando a física pela modificação radical, da concepção do espaço e do tempo aceitas no século XIX.

A equação fundamental da teoria de Einstein E = mc2, energia igual a massa multiplicada pela velocidade ao quadrado, velocidade da luz 3.000.000 Km seg., 300.000 elevado ao quadrado, igual a 90 bilhões, isto quer dizer que uma massa, por pequena que fosse, acelerada na velocidade de 90 bilhões iria se transformar toda em uma enorme quantidade de energia.

Na equação acima podemos por a massa em evidência M = E /C2 podemos entender essa equação afirmando que, se uma quantidade de energia desacelera seu movimento na ordem de 90 bilhões, ela se transforma toda em massa. Disto se conclui a equivalência de massa e energia e o diferencial é a velocidade da luz.

Uma massa altamente acelerada se transforma em energia, uma energia altamente desacelerada se transforma em massa; ZUKOU no seu livro a Dança dos Elementos relata uma experiência feita com um acelerador de massa, na qual se fez bater uma partícula altamente acelerada contra outra, com movimento muito menor, depois da colisão apareceu uma outra partícula, ou seja a desaceleração da partícula projetil determinou o aparecimento de uma nova partícula.

Devemos entender a relação energia/massa como processo contínuo de aceleração e desaceleração, aceleração vai no sentido da energia e a desaceleração no sentido da massa e isto nos leva afirmar que energia e massa são resultantes da quantidade de movimento. Para nós energia, massa e movimento são uma única realidade. Infelizmente nossa maneira de perceber os fatos com o instrumental dos conceitos lógicos nos leva a cristalizar os fatos que são sempre colocados nas prateleiras do gênero próximo e da diferença específica; conceitos desse tipo conseguem paralisar a dinâmica em qualquer nível.

De outro lado, a nossa linguagem dá uma enorme ênfase aos substantivos, que desde a antigüidade no Ocidente está relacionado a substância (sub-estare) ou seja o que está por baixo. O entendimento implícito no conceito de substância é que a substância é o “cerne” do que existe. Na idade média se falava em substância como aquilo que existe em si e por si, e não precisa de outra coisa para existir: naturalmente que esta definição hoje em dia está totalmente superada. A física atual desmontou essa visão estática, trazendo para a ciência a nova conceituação da equivalência entre massa e energia.

O “cerne”, mesmo que seja extremamente duro, está sujeito a um processo de transformação, passando de massa para energia, é quando os vegetais verdes estão vivos, pela fotossíntese eles transformam a energia solar mais água e dióxido de carbono em massa.

Partindo-se do pré-suposto de que tudo que existe é energia/massa e movimento a concepção cartesiano de “Res-extensa” e “Res-cogitans” como aspectos diferentes e separados não tem mais sustentação. “Tudo é fogo” “Tudo é movimento”, como muito bem afirmou o velho Heráclito alguns séculos AC. Ele disse que o fogo se transforma em água e a água em terra e da terra emana o ar que por sua vez volta ao fogo.

Esse ciclo de transformações está mais próximo da física do século XX do que a física de Descartes e Newton.

Consideramos que a “res-extensa” no ser humano ou seja seu corpo biológico e recogitans (seu psiquismo) não são “coisas” diferentes mas dimensões que se entrelaçam e, portanto, qualquer modificação no corpo biológico vai ocasionar conseqüências no psiquismo, sendo a recíproca verdadeira, qualquer modificação no psiquismo vai ocasionar conseqüência no biológico. Esta afirmação está totalmente de acordo com a psicossomática atual e com a posição de David Bohn.

Se tudo que existe em energia/massa, movimento, consideramos que fica compreensível que a modificação de energia psíquica vai levar a modificações funcionais no corpo físico e até alterações estruturais.

Isto posto, entendemos por fé um processo psico-energético no qual concomitantemente a convicção íntima (psíquica) acontece em um processo de agudização pontual de energia psíquica. A agudização pontual da energia psíquica interage com a convicção íntima, por este motivo não podemos dizer que a causa, qual efeito.

Quando os espiritualistas recomendam a concentração, começam pelo lado da agudização de energia psíquica que levará a mudanças na consciência da pessoa e que terá efeito sobre sua convicção íntima (reforço da fé).

A visualização mental proposta por Symonton, na qual pessoas portadoras de câncer realizam imaginariamente a destruição das células cancerosas. Isto se transforma em convicção íntima que em muitos casos leva à detenção do crescimento de tumores e em alguns casos a cura do câncer. É este processo de visualização e suas positivas conseqüências que nos mostram que a fé precisa de uma mobilização energética para que se chegue a obter os resultados desejados.

A analogia da luz do sol quando passa por um prisma se concentra num ponto no qual aparece uma alta energia que pode ocasionar fogo ou um grande aquecimento. Antes de se concentrar pelo prisma, a luz solar não tinha condições de produzir esses efeitos, dada a dispersão de sua energia: Se a fé tem um aspecto de agudização pontual da energia psíquica poderemos nos perguntar qual a maneira de se conseguir numa pessoa qualquer, essa alta concentração de energia. Não é mera coincidência que em vários caminhos de desenvolvimento espiritual se começa pelo processo de adquirir a concentração psíquica.

Nosso psiquismo é uma dimensão de agitação permanente, memórias, emoções que vão “pulando” de umas para outras. Isto fica claro na Etmologia Grega, Psique, que significa pneuma, alma e também borboleta. Como a borboleta, nosso psiquismo passa rapidamente de um assunto para outro.

No processo de concentração psíquica aprende-se a diminuir a “velocidade” da borboleta até que ela consiga ficar pousada numa única flor. A partir desse momento a pessoa que aprendeu a diminuir a dispersão de sua imaginação inicia uma nova fase de desenvolvimento espiritual, podendo usar sua energia psíquica para obter “efeitos físicos”.

Para compreender o processo da fé que pode ser obtido por um trabalho individual, ou pela ação de uma outra pessoa, vamos apresentar o trabalho terapêutico em Epidauro, a Fé de Jó, a cura de dois cegos por Jesus o Cristo e a conversão de Saulo no caminho de Damasco.

O TEMPLO DE EPIDAURO
Na Grécia antiga, talvez por volta do século 12 AC, já existia Epidauro como lugar de cura. Seu fundador Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corones herdou do pai a vocação médica. Sua educação foi confiada ao Centauro Chirão, o famoso médico ferido.

Ferido pela seta envenenada de Eracles, que lhe deixou uma ferida incurável, este ferimento fez com que Chirão compreendesse melhor o sofrimento dos enfermos, e que chegasse a ser um médico mais completo ainda; Asclépio introduziu a cura no Templo em cujo subterrâneo ficava Píton, a serpente. Os pacientes dormiam no Templo e sonhavam sonhos induzidos pelos deuses. Os sacerdotes interpretavam os sonhos para encontrar o tratamento que levasse à cura.

Percebemos neste processo a participação básica da fé, tanto do lado dos pacientes como dos sacerdotes.

Asclépio chegou a ser o médico mais completo que se conheceu, pois chegou a ressuscitar mortos, só que por fazer disso uma prática médica, Zeus percebendo que Asclépio estava alterando o equilíbrio entre o mundo invisível e o visível, pois deste jeito o Ades ficaria despovoado, o fulminou com um de seus raios.

Epidauro ficou como um marco na medicina assim como também na música, teatro, na dança, em suma como um marco da cultura grega no seu tempo.

A FÉ DE JÓ
Jó é um exemplo de vida na qual a fé total no criador norteia existência.

No prólogo do livro relata-se que Jó, homem piedoso e rico, é atingido por calamidades inexplicáveis, e apesar disso conserva toda a confiança em Deus.

Essas calamidades foram permitidas pelo criador porque Satã afirmou que Jó só era piedoso por que tinha tudo de bom na vida.

“E o adversário Satã, deixando a presença do Senhor, feriu Jó com uma lepra maligna, da planta dos pés ao alto da cabeça. Então Jó pegou um caco do pote para raspar e sentou-se sobre as cinzas”.

Sua mulher lhe disse: “Vais persistir na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre!”

Ele lhe disse: “Falas como uma tola. Sempre aceitamos a felicidade como um dom de Deus. E a desgraça? Porque não a aceitamos?”

Em tudo isso Jó não pecou com seus lábios.

Apesar de sua grande fé, Jó durante o diálogo com seus amigos coloca sua revolta contra a injustiça que sofre.

ARBITRARIEDADE DIVINA
“Sei que as coisas são assim.

Pode o homem obter justiça contra Deus?

Quando contra ele e quer argüir de mil palavras, nenhuma responde!

Rico em sabedoria ou trabalho em força, quem o enfrentou e ficou imune?

E remove as montanhas, sem que o saibam, em seu furor as faz cambalhotar.

Sacode a terra de seu lugar, abalando-lhes os pilares.

A sua ordem, o sol nem se levanta, ele guarda sob lacre as estrelas.

Sozinho, ele estende os céus e caminha sobre as alturas dos mares.

Ele faz a Ursa, Orion, as Pleiades e as Celas do Sul.

Ele faz grandezas insondáveis, suas maravilhas esgotam os números.

Passa perto de mim, não vejo, vai embora, nada compreendo.

Se quer pegar algo, quem há de retê-lo?

Quem lhe perguntará: ”Que estás fazendo?”

Deus retém a sua ira: submetendo-se a ele os aliados de Rahab.

Apesar de sua fé percebe a injustiça que está acontecendo com ele:

“Ele não é humano como eu, para eu replicar.

E juntos compareceremos em justiça.

Ah, se houvesse entre nós algum juiz, para por sua mão sobre nós dois!

Apartaria de mim o chicote de Deus, e sue terror não me assolaria mais.

Sem o temer, então, eu falaria.

Mas tal não acontece, estou só.

Apesar da fé aparece a revolta de Jó.

“Só por Ele sua carne sofre, só por seu coração se enluta.”

ESCÂRNIO DOS POVOS
“Tornei-me o escárnio dos povos.

Serei o lugar comum do espanto.

De tristeza apaga-se o meu olho, meus membros tornaram-se sombra.”

EXCOMUNHÃO
“Afastou de mim o meus irmãos, meus conhecidos fazem-se de estranhos.

Desapareceram os meus próximos, meus familiares de mim se esqueceram.”

Jó recebe do Senhor a restauração:

“E o Senhor restabeleceu os negócios de Jó, enquanto ele intercedia pelo seu próximo. O Senhor elevou ao dobro todos os bens de Jó.”

Seus irmãos e suas irmãs e seus conhecidos de antes vieram todos visitá-lo.

Comeram com ele o pão, na sua casa.

Condoeram-se com ele e o consolaram por toda a desgraça que o Senhor lhe enviara.

E cada um lhe fez presente de uma moeda de prata e de um anel de ouro.

O Senhor abençoou os anos de Jó a seguir, mais ainda que os anteriores. Ele possuía quatorze mil ovelhas e seis mil camelos, mil juntos de bois e mil jumentas.

Teve ainda sete filhos e três filhas.

A primeira deu o nome de Pomba Rola, á segunda de Flor de Canela, e à terceira, de Lápis de Pálpebra. E toda aquela terra não se viam mulheres mais lindas que as filhas de Jó e seu pai deu-lhes uma parte da herança ao lado de seus irmãos.

Jó viveu ainda, depois disto cento e quarenta anos e viu os filhos e os filhos de seus filhos até a quarta geração. Depois Jó morreu idoso e saciado de dias.

No livro de Jó nós encontramos um exemplo da fé vivenciada pelo indivíduo, mesmo quando o criador face ao apelo de Satã o faz passar por provações terríveis sem que a fé se quebrasse. A fé de Jó brota da dimensão psíquica inconsciente sem necessidade de provas e sem que os sofrimentos a abalassem.

Vejamos agora a fé de dois cegos de Jericó.

OS DOIS CEGOS
Como saíssem de Jericó, uma grande multidão o seguia. E eis que dois cegos, sentados à beira do caminho, ao saberem que era Jesus quem passava, puseram-se a gritar: “Senhor Filho de David, tem compaixão de nós!”

A multidão os repreendia para que se calassem. Mas eles gritavam com mais força ainda: “Senhor Filho de David, tem força ainda. Senhor Filho de David, tem compaixão de nós!” Jesus deteve-se, chamou-os e lhes disse: “Que quereis que eu faça por vós?” Eles lhe dizem: “Senhor, que nossos olhos se abram!”

Tomado por compaixão, Jesus lhes tocou os olhos imediatamente recuperaram a vista. E eles o seguiram.

Neste caso, os dois cegos de Jericó, vivem um processo de fé diferente da fé de Jó. Eles têm fé, mas não conseguem por si mesmos desencadear o processo de cura, quando Jesus chega, eles pedem a cura e Jesus, taumaturgo os faz ver, neste caso, Jesus é agente de cura que realiza o “milagre”, apoiado na fé dos dois cegos.

Vejamos a conversão de Saulo.

A VOCAÇÃO DE SAULO
Saulo, que respirava contínuas ameaças e morticídios contra os discípulos do Senhor, foi pedir ao Sumo Sacerdote cartas para as Sinagogas de Damasco. Se encontrasse lá adeptos do caminho, homens ou mulheres, ele os traria presos a Jerusalém.

Seguindo o seu caminho, ele se aproximava de Damasco, quando, de repente, uma luz vinda do céu o envolveu com seu brilho. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ”Saul, Saul, porque me persegues?”

- Quem é tu, Senhor? Perguntou ele.

- Eu sou Jesus, é a mim que persegues. Mas levanta-te, entre na cidade e te dirão o que deves fazer”.

Os seus companheiros de viagem tinham parado, mudos de espanto: eles ouviam a voz, mas não viam ninguém. Saulo se levantou do chão, mas embora tivesse os olhos abertos, não enxergava mais nada, e foi conduzido pela mão; que os seus companheiros o fizeram entrar em Damasco, onde permaneceu privado da vista durante três dias, sem comer, nem beber.

Havia, em Damasco, um discípulo chamado Ananias; o Senhor o chamou em uma visão: “Ananias! – Eis me aqui Senhor,” respondeu ele. O Senhor acrescentou: vá à rua chamada “rua Direita” e na casa de Judas, perguntarás por alguém chamado Saulo de Tarso; ele está lá rezando.

Entra e impõe as mãos para restituir-lhe a vista” Ananias respondeu: ”Senhor, eu ouvi muita gente falar deste homem, e contar todo o mal que ele fez aos teus santos em Jerusalém. E aqui, ele dispõe de plenos poderes recebidos dos sumos sacerdotes para aprisionar todos os que invocam o teu nome. Mas o Senhor lhe disse: “Vá, pois este homem é um instrumento por mim escolhido para dar testemunho do meu nome perante as nações pagãs, os reis e os israelitas. Eu mesmo lhe mostrarei quanto precisará sofrer em meu nome.”

Ananias partiu, entrou na casa e lhe impôs as mãos, dizendo: “ Saulo, meu irmão, é o Senhor que me envia – este Jesus, que te apareceu no caminho que seguias – a fim de que recuperes a vista e fiques repleto de Espírito Santo.

Imediatamente, uma espécie de membranas lhe caíram dos olhos, ele recupera a vista, e recebeu então o batismo e, depois de alimentar-se recuperou as forças.

Saulo não acreditava em Jesus como Messias, e o que era mais grave perseguia os cristãos. No caminho de Damasco no entanto, sofre o impacto terrível da presença de Jesus, fica cego e precisa de Ananias, enviado por Jesus para recuperar-lhe a visão.

Esses fatos o levaram à conversão, a converter-se, a girar sua visão de mundo em sentido totalmente contrário.

A fé em Cristo despertada nele pela revelação apresenta abertamente o que é velado. Esta fé de Saulo, é uma fé que vem de Cristo para ele; ele passa a enxergar o que antes era invisível.

Este tipo de fé é semelhante a um processo de cura no qual a pessoa é paciente ou seja é passivo e a cura se opera com um mínimo de participação dele.

Esperamos que com estes exemplo extraídos da bíblia ter podido apresentar três maneiras diferentes desse processo psicoenergético no qual simultaneamente com a convicção (psíquica) acontece uma agudização pontual da energia psíquica.

Os três processos têm dinâmicas diferentes, mas as conseqüências para os indivíduos são semelhantes.

A fé desencadeia uma poderosa vivência, convicção que muda a consciência, o físico e o social.

BIBLIOGRAFIA
Bíblia – Edições Loyola, São Paulo, 1995.

Livro de Jó, p. 780

Evangelho segundo João, p. 1306.

Atos dos Apóstolos, p. 1352.

Sonhos de Einstein. A Lightman, Alan. Ed. Companhia das Letras, 2000.

RESNICK, Robert. Conceptos de Relatividad y Teoria Cuántica. Limusa, Editorial, México, 1976.

ZUKAV, Gary. La danse Des Éléments. Ed. Robert Laffont, 1982.

FERNANDES, Milton. O sistema de crenças e as habilidades de enfrentamento da doença pelo paciente oncológico: uma proposta de abordagem pela hipnoterapia erckisoniana; Doutoramento em 04/08/1999, PUC/SP.

Notas:
(1) Conferência pronunciada como prof. Convidado do núcleo de psicossomática e Psicologia Hospitalar, Coordenada pelas Profas. Dras. Mathilde Neder e Denise Ramos

(2) Psicólogo CRP-0028 – Psicoterapeuta. Especialista e doutor em Psicologia Clínica. Doutor associado da PUC–SP.