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BOLETIM CLÍNICO - número 4 - agosto/1998

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

8. Estratégias Terapêuticas Corporais e Grupais na Perspectiva do Método Organísmico de Pethö Sándor(1) - Sandra Maria Greger Tavares(2)

Introdução

É evidente a existência de uma lacuna na formação e no modelo de atuação do psicólogo no Brasil. Refiro-me ao vazio cristalizado e encoberto ao longo da história da psicologia brasileira no que diz respeito, principalmente, às formas de intervenção psicológica para além das paredes de um consultório particular.

Não pretendo afirmar que esse vazio seja exclusividade de nosso país, tampouco que não se configure também no interior da prática clínica em âmbito privado. Afinal, o psicólogo é um profissional em busca dos contornos de sua identidade, entendendo identidade como um processo em permanente construção.

Abordei recentemente esse tema (DURAN, 1997), destacando a necessidade de construir modalidades substitutivas de atendimento em psicoterapia no contexto da rede pública de saúde, movida pela preocupação com a pertinência das formas de intervenção tradicionalmente propostas diante da demanda em saúde mental da população atendida em nível primário.

Os desafios envolvidos na construção dessas práticas inovadoras despertaram minha atenção para a necessidade da pesquisa e experimentação contínuas de atitudes e estratégias terapêuticas também desafiadoras, capazes de fornecer subsídios que fertilizem a intervenção psicológica. Isso se faz necessário, principalmente nos contextos institucional e comunitário que transcendem a clínica particular, e, em especial, ao nos defrontarmos com populações mais desfavorecidas sócio-economicamente.

Não podemos negar que o encontro do psicólogo com seu suposto "paciente" no âmbito dos mais diversos serviços públicos e gratuitos de saúde mental, bem como no campo de comunidades tipicamente marcadas pela opressão sócio-econômica, configura, na maioria das vezes, uma aproximação que propõe intimidade entre membros de diferentes classes sociais.

Boltanski refere-se à distância social existente entre o usuário de um serviço de saúde e o profissional que o atende, em particular entre o paciente e o médico, enfatizando que: "....(os membros das classes populares) estão afastados dele (médico) pela distância social que em qualquer eventualidade, separa um membro das classes superiores altamente escolarizado e detentor de um saber específico, de um membro das classes populares." (BOLTANSKI, 1989, pp.134-135)

Construir um vínculo de confiança no vácuo dessa distância social e cultural que atinge tanto o usuário quanto o profissional de saúde e desenvolver estratégias terapêuticas que façam sentido na vida quotidiana do primeiro é tarefa das mais árduas. Exige, antes de tudo, tolerância para conhecer o outro em suas especificidades de forma que não haja precipitação e imposição de valores e, principalmente, que não se configure uma situação de "humilhação social".

GONÇALVES FILHO (1995) descreve o fenômeno da humilhação social como uma modalidade de angústia que emerge a partir da desigualdade de classes, modalidade esta que os pobres conhecem bem e que se inscreve no cerne de sua submissão. Segundo ele, os pobres sofrem o impacto de maus tratos e de mensagens implícitas quanto a sua inferioridade. Para eles, a experiência da humilhação, seja em ato ou como realidade iminente, sempre se faz presente mediante o sentimento de não possuírem direitos, de parecerem desprezíveis e repugnantes, de se moverem e falarem como seres que ninguém vê.

As diferenças sociais e culturais, então, constituem um fato que, ao invés de ser negado na prática psicológica, precisa ser enfrentado e explicitado junto ao outro. Isso pode se dar a partir da abertura de canais de comunicação que possibilitem transcender e não justificar relações de poder, também frequentes, no vínculo estabelecido entre psicólogo e paciente pertencentes ao mesmo universo sócio-cultural.

Na trajetória como psicóloga atuando em instituições de saúde, tive oportunidade de experimentar diversas modalidades no atendimento a populações desprivilegiadas sócio-economicamente em busca de uma "afinação" na comunicação e no vínculo estabelecidos.

O Método Organísmico de Pethö Sándor
Dentre as várias estratégias que utilizei neste contexto até o momento, considero de particular importância aquelas derivadas do "Método Organísmico" desenvolvido por Pethö Sándor(3). Refiro-me ao método de trabalho proposto por SÁNDOR (1982) cuja matriz foi o procedimento por ele designado como Calatonia.

A Calatonia consiste, no que se refere à sequência básica original, numa forma de condicionamento sutil e monótono que utiliza a sensibilidade cutânea iniciando por meio de toques leves nos dedos dos pés, no calcanhar, na convergência tendinosa do tríceps sural na região posterior da perna e finalizando com um toque na região da nuca.

Os efeitos do método calatônico, de acordo com seu idealizador, não devem ser esperados a priori, mas podem consistir na obtenção de um tônus corporal mais solto e descontraído de um modo peculiar a cada indivíduo e em consonância com o meio circundante.

No método calatônico, acredita-se na ocorrência de um "ajuste" espontâneo do organismo, de uma "regulação do tônus"(4) no sentido de maior flacidez ou rigidez muscular e de maior ou menor ampliação da consciência pelo aflorar de conteúdos inconscientes de acordo com a necessidade e com a possibilidade de cada indivíduo.

Fica claro, portanto, que a calatonia e suas ampliações não são simplesmente técnicas e muito menos técnicas de relaxamento, mas compõem um método de regulação de tônus em seu sentido mais amplo. Estou me referindo à repercussão desse método sobre o modo de ser e de estar no mundo de um organismo que não apenas tem um corpo, mas é corpo. Então, tal repercussão nem sempre vai coincidir com efeitos agradáveis e relaxantes, visto que tal método incide sobre a complexidade e as contradições que têm lugar nesse organismo.

Assim é que, ao invés de nomear a proposta de Sándor simplesmente como método calatônico, estou designando-a como método organísmico, uma vez que tal método norteia-se pelos princípios da orientação organísmica assumida pelo referido autor que resultaram, entre outros aspectos, na constituição do corpo teórico por ele batizado como Psicologia Organísmica(5).

A Psicologia Organísmica concebe o ser humano enquanto totalidade bio-psico-social, ou numa só palavra, enquanto organismo. Dessa perspectiva, qualquer forma de abordagem ao ser humano atingi-lo-á em sua totalidade, mobilizando reações globais e multidimensionais no organismo e promovendo novos condicionamentos ou recondicionamentos fisio-psíquicos e sociais.

Quando tal abordagem envolve o contato direto entre seres humanos, como no caso de um relacionamento psicoterapêutico, torna-se evidente o processo de ressonância bipessoal, de transformação mútua que se concretiza nesse encontro, particularmente ao se estabelecer uma interação física diferenciada no campo terapêutico, como acontece, por exemplo numa psicoterapia conduzida pelo método organísmico.

A composição de um método repousa sobre três vertentes principais: uma metodologia de investigação, um corpo teórico e um conjunto de técnicas. O Método Organísmico de Sándor reúne as seguintes proposições:

1) Metodologia de Investigação: Metodologia fenomenológica de observação e análise qualitativas em que o conhecimento e a intervenção se constroem no campo da intersubjetividade, da interação corporal e da interdisciplinaridade;

2) Corpo Teórico: Psicologia Organísmica;

3) Conjunto de Técnicas: Técnicas Organísmicas, de Regulação de Tônus que podem ser divididas em:

-Técnicas Organísmicas Corporais: Técnicas densas ou sutis, ativas ou passivas, individuais ou grupais que se referenciam diretamente ao corpo, incluindo ou não a realização de toques;

-Técnicas Organísmicas Expressivas ou Imaginativas: Técnicas que permitem expressar a partir e por meio do corpo com a intermediação de variadas estratégias expressivas ou imaginativas, individuais ou grupais - desenhos, modelagem, dramatizações, imaginações dirigidas, etc. - as experiências vividas, ampliando imagens que emergiram espontaneamente em sonhos ou em estado de vigília, vinculadas ou não à realização de técnicas organísmicas corporais.

A complexidade e a abrangência do Método Organísmico permitem que nele se fundamentem diversas estratégias terapêuticas - reconstrutivas, suportivas, de promoção de saúde, pedagógicas e outras - cuja utilização não se restringe ao campo da psicologia, abrangendo diversas áreas do conhecimento, tais como: medicina, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e outras. Por outro lado, tal método abarca contribuições de diversas disciplinas e orientações teóricas, tais como: a Cinesiologia Psicológica, a Psicologia Analítica de Jung, a Psicologia de W. Reich e outras.

Essa amplitude proporciona uma liberdade teórica e metodológica que não deve ser confundida com um ecletismo descompromissado, uma vez que toda proposta inserida no Método Organísmico será reconstruída e conduzida a partir dos princípios da orientação organísmica.

SÁNDOR (1982) aponta para o risco envolvido quando o terapeuta tende a assumir uma atitude unilateral diante do paciente e restringe de forma inconsciente sua intervenção à determinada teoria, ou a uma técnica específica ou à determinada esfera da existência humana. Ainda que inevitavelmente tenhamos de realizar recortes no campo em que pretendemos intervir, temos que fazê-lo de forma consciente e atentando para a mobilização multidimensional inevitável e espontânea dos organismos envolvidos.

A Construção de uma Proposta Substitutiva de Atendimento em Saúde Mental
Ao longo de minha atuação no campo da saúde pública em Unidades Básicas de Saúde, percebi que, ao conduzir as estratégias terapêuticas pelo Método Organísmico, deu-se uma transformação qualitativa nos processos desenvolvidos e nos resultados obtidos. Os instrumentos teóricos e técnicos vinculados ao referido método, bem como a atitude assumida diante da pessoa a ser atendida afinaram-se de forma exemplar à demanda apresentada pela população usuária deste tipo de instituição.

O discurso e a demanda exibidos pelos usuários no contexto de uma Unidade Básica de Saúde (U.B.S.) é permeado por um dinamismo institucional no qual a figura do médico e a vivência do processo saúde-doença consistem no referencial básico para a vinculação dos pacientes a qualquer proposta de atendimento. Impera, nesse local, uma linguagem, verbal ou não, em que predominam descrições e explicações sobre aspectos, patológicos ou não, dos corpos dessas pessoas.

O médico é o profissional mais procurado por essa população na U.B.S., sendo as vagas oferecidas muito disputadas e sendo esse o profissional que consultam em primeiro lugar quando "algo não está bem".

Diante do profissional, entretanto, freqüentemente se calam, ou pouco falam, não se sentindo livres para desenvolver um discurso sobre as manifestações de seu corpo. Restringem-se àquilo que lhes é perguntado pelo "doutor", até porque "o tempo é curto". Nas entrelinhas de seu silêncio, entretanto, revelam sofrimentos que são registrados, mas na maioria das vezes, não devidamente acolhidos pelo médico.

São justamente esses pacientes que manifestam "algo" que não pode ser diagnosticado e muito menos tratado pelo médico; que tendem a ser encaminhados por esse profissional para o Serviço de Saúde Mental da U.B.S.; pessoas que vêm nos procurar "porque não tem nada", nada que pudesse ser manipulado pelo saber médico.

O psicólogo entra no processo de atendimento a esses usuários numa lacuna deixada pela legitimidade do conhecimento médico para dar conta do "nada", do que não é dito por palavras, mas que se concretiza de algum modo no corpo.

Essa não é a única forma pela qual chegam os usuários ao Serviço de Saúde Mental da U.B.S., mas talvez seja uma das mais comuns. Há pessoas que são encaminhadas por outros profissionais ou por conhecidos e ainda há aquelas que procuram espontaneamente o serviço, seja para si ou para seus familiares.

De qualquer forma, ao se oferecer ao usuário da U.B.S. uma oportunidade de ser ouvido, como na entrevista psicológica, surge, com maior freqüência do que se poderia imaginar, o tema do corpo e suas manifestações. Expressa-se esse tema, em inúmeras queixas trazidas por essas pessoas que ainda são designadas, na prática clínica, como "psicossomáticas", embora esse termo indique a dualidade e a dissociação que pretendemos aos poucos transcender.

Na verdade, todas as manifestações humanas são a um só tempo físicas e psíquicas, diferenciando-se apenas quanto à área em que as reações associadas às mesmas tornam-se mais evidentes; sendo assim todas elas seriam "psicossomáticas" e não somente aquelas que se manifestam predominantemente no corpo.

Essas pessoas falam sobre inúmeras formas de dores que "andam pelo corpo", de "batedeiras no coração", de "enrolações e fermentações nas carnes", de "zonzeiras e parafusos soltos na cabeça", entre outras "manifestações corporais".

Relatam também, freqüentemente, a vivência de situações que denominei (DURAN, 1997) como episódios de "exploração corporal", ou seja, experiências que inscrevem "marcas" no corpo a partir de uma história de exploração e alienação social: doenças ocupacionais, acidentes de trabalho, fome, espancamento, violência sexual e outros.

Gostaria de salientar que toda e qualquer experiência humana "é" social e não é apenas "determinada socialmente"; o corpo é sempre construído e reconstruído socialmente e sendo assim, os corpos de todos os indivíduos são sociais e, portanto, são marcados socialmente de alguma forma. Mas qual seria a forma pela qual os referidos usuários, tendo vivido episódios de empobrecimento em algum momento de sua trajetória social, apresentam "manifestações corporais", psíquicas e sociais, ao se inserirem no contexto da Unidade Básica de Saúde ?

Tal população traz o corpo como uma área de manifestação maciça de aspectos em evidência em sua dinâmica psíquica e em sua forma de inserção social. A maioria dos usuários que utiliza a U.B.S. traz de forma mais clara no corpo, a expressão de suas condições de vida e de seu sofrimento psíquico, mesmo que essa relação não seja por eles percebida.

Isso quer dizer que, ao chegar ao Serviço de Saúde Mental, essa população dificilmente fala sobre conflitos e complexos psicológicos, como talvez esperássemos ouvir, enquanto especialistas que somos. No caso desses usuários, podemos notar até um certo distanciamento da dimensão psicológica, ao menos na forma pela qual nos habituamos a representá-la, segundo nossas concepções "científicas" acerca do sofrimento psíquico. Quando eles reconhecem esse tipo de sofrimento - o psíquico, buscam geralmente explicações "neuro-fisiológicas" (problemas no cérebro ou nos nervos), ou "espirituais" (possessão, obsessão), para o mesmo.

Encontram-se ainda aqueles usuários que assimilando conteúdos, representações e códigos de interpretação mais próximos aos nossos, apropriaram-se de forma diferenciada dos mesmos, tendendo, então, a psicologizar suas experiências pessoais e sociais, utilizando termos que fazem parte de uma "linguagem psicológica". Mas, ao longo da minha experiência, estes têm sido minoria.

Diante desse distanciamento, ou dessa reconstrução do conceito que temos sobre a dimensão psicológica, ousamos ainda considerar essas atitudes peculiares a uma determinada população como mecanismos defensivos, ou seja, como resistência exibida por essas pessoas frente a conteúdos psíquicos que não podem ser assimilados por sua consciência.

Fico pensando se, da mesma forma que foi acima descrito com relação ao saber médico, o saber psicológico que queremos impor aos nossos pacientes, não funciona também como um "cala boca", de maneira que estes não conseguem mais se expressar de forma autêntica sobre o sofrimento que lhes moveu a procurar o atendimento em saúde mental, restando aos mesmos, o revelar-se por meio do corpo, campo que ficou de certa maneira protegido desse dinamismo neutralizador.

A proposição de qualquer intervenção em saúde mental a um determinado usuário deve passar, portanto, por uma análise bastante ampla das questões acima levantadas e, muitas vezes, não fará sentido para determinada pessoa, não apenas por uma questão de resistência psicológica, mas antes por uma disparidade ideológica entre o profissional e o usuário.

Pude constatar, muitas vezes, a configuração de um verdadeiro "abismo" entre minhas concepções sobre o processo saúde-doença e minha forma de expressão e os conceitos e estilos expressivos exibidos pela população que eu atendia nas referidas instituições.

Foi a partir daí que resolvi iniciar o desenvolvimento de uma prática, regida pelo Método Organísmico que pudesse vir a substituir a ênfase na elaboração verbal que até então havia caracterizado as estratégias terapêuticas por mim conduzidas.

O Método Organísmico concretiza e transforma a "linguagem corporal" comumente utilizada pelos usuários de um serviço de saúde mental, ao enfatizar a dimensão corporal como via privilegiada de acesso ao inconsciente.

As evidências apontam para a possibilidade de se obter a partir do Método Organísmico, o fortalecimento do vínculo de confiança entre profissional de saúde e usuário, a promoção de um recondicionamento físio-psíquico vinculado à maior conscientização e ampliação da imagem corporal e da auto-estima dos usuários, além de maior abertura ao contato social. Evidenciam-se, também, sutis modificações no modo desses indivíduos refletirem sobre o contexto sócio-econômico e cultural em que estão inseridos e de agirem nesse contexto, destacando-se o despertar ou o resgate da capacidade laborativa e do potencial criativo dos mesmos.

Tenho constatado a configuração de indícios das referidas transformações em períodos breves de atendimento, correspondendo em média, ao decorrer de um ano. Observo também, uma tendência à redução considerável dos índices de evasão aos atendimentos regidos pelo Método Organísmico.

Uma Proposta de Integração entre O Método Organísmico de Sándor e a Modalidade Grupal de Atendimento

A combinação do Método Organísmico com a modalidade grupal de atenção, particularmente no campo da psicoterapia, reveste-se de um caráter especial para os usuários da UBS.

Ao propor que essas pessoas se reúnam em grupo para o desenvolvimento de alguma intervenção terapêutica que envolva o Método Organísmico, apesar do "susto" inicial e da configuração de mecanismos defensivos típicos ao se inserir um indivíduo em contexto grupal, constela-se uma situação complexa e inexplicável, porém, de particular riqueza em que se efetuam trocas afetivas intensas entre os envolvidos.

A modalidade grupal de terapia não deve ser aplicada simplesmente para satisfazer exigências de determinada instituição; só se justifica sua utilização como alternativa terapêutica no atendimento à determinada população, se puder atender às necessidades da mesma em alguma medida.

Ponderando sobre as peculiaridades da modalidade terapêutica grupal frente às particularidades culturais e psicológicas da população a ser atendida nas instituições públicas, BEZERRA JR. (1994) refere que:

... colocado entre pares, o paciente poderá exprimir os sentimentos e cotejar sua experiência com um conjunto de pessoas que compartilham com ele do mesmo universo sócio-cultural. A palavra do parceiro do grupo, talvez contenha maior plausibilidade, isto é, talvez possa veicular modelos de identificação mais próximos, mais apreensíveis, do que o oferecido pelo terapeuta. (p.167).

Segundo esse autor, no encontro entre um terapeuta e seus pacientes numa instituição pública, tende a se configurar uma relação assimétrica, calcada principalmente nas diferenças quanto à inserção social dos mesmos, sendo o primeiro inevitavelmente percebido não só como representante da ciência, mas também como membro de uma classe social hierarquicamente superior.

Considera o autor que a inserção desse tipo de pacientes em grupos tende a dissipar essa assimetria na medida em que pode conduzir os integrantes do grupo, inclusive o terapeuta, a buscarem outras referências além daquelas justificadas pela ciência e veiculadas pelo mesmo ao grupo. A principal responsabilidade do terapeuta, desse ponto de vista, seria a manutenção das regras do enquadre terapêutico.

Parece, entretanto, que essa suposta democratização do saber e do poder no campo terapêutico grupal não são suficientes para garantir uma vinculação consistente desses pacientes a qualquer grupo. Existe também formas de interdição na comunicação entre membros que pertencem supostamente a uma mesma classe social.

Dentro de um mesmo grupo, há indivíduos que correspondem aos hábitos e expressões lingüísticas mais comuns naquele universo sóciocultural e outros que se afastam em diferentes graus dos mesmos, situando-se nas zonas mais fronteiriças daquele campo de acordo com as trajetórias psicossociais que percorreram, eles e seus ascendentes, até aquele momento.

Esse pode ser um dos muitos fatores a explicar o porquê de tantas desistências, mesmo quando se realizam as tão louvadas intervenções grupais com essa população. O estabelecimento de vínculos de confiança entre indivíduos é questão bastante complexa em qualquer situação, particularmente num campo permeado por tanta ambigüidade como o terapêutico.

BEZERRA JR. (1994) fala sobre a necessidade de aprimorar também as formas de atendimento grupais, tentando adequá-las às necessidades e peculiaridades desse tipo de população, ou seja, não é possível considerar que a modalidade grupal em si, ou qualquer outra, seja sempre e de qualquer forma suficiente para dar conta da demanda de determinada população.

Ao acoplar a modalidade grupal de atendimento ao Método Organísmico na condução das estratégias terapêuticas, algo se modificou. A modalidade grupal e o referido método, juntos, amplificam o gérmen de transformação inerente ao campo terapêutico, enriquecendo-se mutuamente e sendo ambos sensíveis às peculiaridades dessa população.

A dimensão corporal parece ser uma vertente extremamente fértil no processo de simbolização dessas pessoas, trazendo ao campo terapêutico grupal a possibilidade de transcender as interdições que ainda restam no estabelecimento de uma comunicação entre esses indivíduos nesse contexto tão intrincado.

O modelo básico de intervenção grupal que adotei correponde, em linhas gerais, ao descrito por BEZERRA JR. (1994), segundo o qual o terapeuta seria essencialmente o elemento aglutinador, o fornecedor e mantenedor das regras de comunicação no grupo.

Segundo o autor:

O terapeuta não lidará sempre com o grupo enquanto indivíduo coletivo, como uma entidade autônoma com relação a seus membros; pelo contrário, procurará de modo geral, recortar cada indivíduo dentro do grupo com sua história, seu movimento na sessão, o conteúdo que apresenta e permitir, com sua atuação, que esse material seja confrontado, com aquele que é trazido pelos parceiros e seja objeto de elaboração por parte deles, a partir de seus códigos de interpretação, os quais, como já se observou, nem sempre se coadunam com os do terapeuta. (p. 168).

Nesse sentido, conduzo a modalidade grupal de atenção, de forma a lidar com os indivíduos no grupo, realizando concomitantemente o processo de psicoterapia do grupo como um todo quando for possível e necessário. Isso significa dizer que faço vários recortes no processo grupal, desde aqueles que se dirigem da experiência individual para a grupal ou, ao contrário, do grupo para o indivíduo.

A forma de organização do grupo para a realização das experiências corporais depende da dinâmica emergente em cada grupo em determinado momento, sendo possível propor que as pessoas se reúnam em duplas, trios, ou todas ao mesmo tempo. Pode ainda ocorrer, a proposição de experiências corporais que permaneçam centradas em um único paciente, ou ainda de vivências corporais a serem realizadas individualmente no grupo.

Muitas outras formas de experiência corporal podem ser construídas ao longo do processo grupal, seja a partir das proposições do terapeuta, ou daquelas provenientes de outros membros do grupo que têm ampla liberdade quanto à participação ou não nas mesmas.

Quanto à dinâmica de realização das técnicas de regulação de tônus no contexto grupal, parto de experiências corporais mais autocentradas e individualizadas, como as que envolvem experiências de observação do próprio corpo, ou de auto toques, para outras voltadas ao corpo do outro e envolvendo mais o grupo como um todo. É interessante que o ato de tocar seja experimentado aos poucos e não introduzido de forma abrupta no campo grupal, sendo que as técnicas mais sutis devem ser introduzidas depois de uma certa vivência com técnicas mais ativas e "densas", como os exercícios de respiração e movimento, ou ainda, as manobras básicas de massagem.

São raros os terapeutas corporais de orientação organísmica que trabalham com grupos e muito mais raros aqueles que escrevem sobre essa questão quer na perspectiva da Psicologia Organísmica, ou mesmo da Psicologia Junguiana - uma das principais matrizes teóricas do Método Organísmico.

No que concerne ao campo da Psicologia Analítica, HALL (1986) refere que a terapia de grupo ainda é controversa em muitos círculos junguianos. Jung, ao que parece, jamais experimentou uma terapia de grupo processual, mas parecia achar, segundo o autor, que a modalidade grupal de análise não poderia substituir a individual. De acordo com Hall, Jung tomava por base para tecer essa concepção acerca da modalidade grupal de atendimento, sua experiência em grupos sociais não estruturados, nos quais, segundo ele, as pessoas agiam com menos consciência do que revelavam individualmente.

JUNG (1961), ao discutir a condição do indivíduo na sociedade moderna, refere que:

A sociedade tem, naturalmente o direito incontestável de precaver-se contra os subjetivismos notórios, porém, desde que a própria sociedade é composta de pessoas desindividualizadas, está completamente à mercê dos individualistas implacáveis. Deixai-a juntar-se em grupos e organizações a seu gosto - e é exatamente esse agrupamento com a resultante extinção da personalidade individual que a faz sucumbir tão depressa a um ditador. (p.66).

Vemos nessa colocação, o quanto Jung se preocupava em proteger a integridade do indivíduo diante da pressão social para que este se conformasse ao grupo.

HALL (1986) considera que a psicoterapia grupal não é de forma alguma um substituto da análise individual, mas, segundo ele uma combinação entre psicoterapia grupal e individual parece fazer algumas pessoas avançarem com maior rapidez ao longo do processo de crescimento e compreensão do que qualquer modalidade sozinha.

O autor também coloca que o trabalho de grupo pode se converter num poderoso instrumento de modificação do autojulgamento negativo excessivamente rígido, ao mesmo tempo em que pode ajudar a pessoa a desenvolver uma auto-estima realista.

MINDELL (1991) trabalha com terapia de famílias e casais e considera que o relacionamento é um dos canais, mas não o único, pelo qual o indivíduo se realiza, assim como este último é somente um dos canais para a expressão da mensagem grupal. Ele refere que assim como cada grupo tem tantos tipos de expressão quantos forem seus membros, cada pessoa tem seus vários modos de percepção e expressão.

No campo da Psicologia Organísmica, a integração da modalidade grupal de atendimento às técnicas organísmicas corporais e expressivas-imaginativas é um processo em construção ao qual pretendo fornecer algumas contribuições a partir da experiência vivida no acompanhamento de grupos de psicoterapia no contexto institucional.

O Corpo no Grupo e o Corpo do Grupo

O grupo é também um organismo; é encarnado, ou seja, é corpo e psique ao mesmo tempo. Porém, o grupo não pode ser entendido como mera projeção do dinamismo físio-psíquico individual ao campo grupal, uma vez que o contexto grupal compõe uma forma particular de ser e estar que transcende a soma ou a ampliação das configurações individuais.

O grupo é o terceiro ponto entre o eu e o outro, aquela zona limítrofe em que as percepções, as imagens, as sensações se interpenetram e ao mesmo tempo se diferenciam, criando novas composições. O grupo é um estado contínuo de arte - de criação e de destruição, de integração e desintegração de diferentes formas de existir e de se expressar. É o campo de ensaio cotidiano das relações humanas.

O grupo é um corpo que se movimenta em espiral, retornando sempre ao ponto de origem, porém, sendo outro a cada volta completada. Oscila desesperadamente entre pólos de um mesmo fenômeno, confrontando-se e fugindo, fundindo-se e se discriminando, destruindo-se e se transformando, sombreando e iluminando.

O grupo é um corpo que pode se configurar como um continente propício para a vivência e elaboração das mais diversas dores e delícias humanas, como um "caldeirão" em que essas experiências serão "cozidas ao ponto". Portanto, é um corpo ao qual, muitas vezes, serão atribuídos "poderes mágicos", como se nele pudessem se "exorcizar todos os demônios".

O grupo é um corpo social que traz as marcas das condições sócio-econômicas e culturais que engendraram o encontro e a história de vida das pessoas que o constituem e que na mesma medida pode revelar essas marcas e propor transformações nessas condições, dando sentido e reconstruindo histórias.

O grupo é um corpo que sonha; traz símbolos oníricos a seu campo, seja por meio da expressão corporal, de sonhos ou de imagens individuais, ou de seu próprio fluir corporal e onírico.

O grupo é um corpo que dança, mas essa história(6) não sei contar, só sei dançar.

Sei contar a história de grupos formados por pessoas que lutam para sobreviver, pessoas que tem seus corpos marcados pela exploração no trabalho, pela violência doméstica, pela invisibilidade social, pela não garantia dos cuidados básicos de saúde, entre outros aspectos. Porém, aprendi com essas pessoas que é possível "renascer das cinzas", principalmente quando encarnamos num corpo grupal acolhedor que faz emergir nossas potencialidades, sombrias e criativas.

Conheci pessoas que só se permitiam sentir o corpo quando adoeciam ou sentiam dores, experiências que as impossibilitavam de trabalhar fazendo assim com que prestassem atenção em si e fossem buscar ajuda.

Ao dar oportunidade a essas pessoas de resignificarem suas experiências no grupo terapêutico por meio das vivências corporais promovidas pelo Método Organísmico, tive oportunidade de observar transformações multidimensionais e significativas na vida das mesmas.

Refiro-me à possibilidade de perceberem que o corpo também é fonte de prazer, prazer de gostar de si mesmo, de cuidar de sua beleza, de sua saúde, de trocar carinhos e de superar dores.

O corpo inserido num grupo acolhedor e tocado com respeito e amor pode despertar o terapeuta interno que há em cada pessoa, acolhendo suas limitações e deficiências e mostrando, pelo próprio padecimento, o caminho da cura quando for possível.

O corpo no grupo é pele; é mãe que acolhe e toca a pele; é vida em transformação; é o corpo do grupo.

Continuação...