"Fé em Deus está nos genes", diz cientista americano.
Entrevista à CLAUDIO ANGELO da Folha de S.Paulo.
O geneticista norte-americano Dean Hamer, 54, parece ter uma predisposição
inata à polêmica.
Em 1993, afirmou ter descoberto um trecho do DNA, que batizou Xq28,
supostamente responsável pela homossexualidade masculina. A descoberta
lançou à fama e depois ao escárnio - quando outros
cientistas falharam em replicá-la-- o campo da genética
comportamental, do qual é pioneiro.
Agora Hamer volta à carga, metendo a mão numa cumbuca
literalmente sagrada. Seu último livro, recém-lançado
no Brasil, se chama "O Gene de Deus" (Ed. Mercuryo). E, sim,
tenta sustentar que a crença no criador também é
geneticamente determinada.
Antecipando as críticas - que vieram assim mesmo, quando o livro
saiu nos EUA, no ano passado, Hamer diz logo que não se trata
de "o" gene, mas de "um gene entre vários".
E, ah, não é exatamente deus, mas uma predisposição
à crença, que ele chama de "espiritualidade".
O tal gene, isolado por Hamer e sua equipe no Instituto Nacional do
Câncer, nos EUA, é identificado pela sigla vmat2. Ele estaria
envolvido no transporte de uma classe de mensageiros químicos
do cérebro conhecidos como monoaminas, do qual o mais famoso
é a serotonina, a molécula do bem-estar. O ecstasy, o
Prozac e outras drogas influenciam o humor alterando os níveis
de serotonina no sistema nervoso.
As evidências de seu envolvimento com a espiritualidade vêm
de análises genéticas conduzidas pelo grupo de Hamer em
vários conjuntos de pacientes, mas que começaram com um
grupo de tabagistas. A associação foi feita com o auxílio
de um teste psicométrico, baseado em um questionário,
elaborado pelo também americano Robert Cloninger para aferir
a chamada "autotranscendência", ou a tendência
ao pensamento místico. Não confundir, no entanto, espiritualidade
com religião, que o geneticista diz ver como um dos maiores "perigos"
para a humanidade.
Hamer admite que as evidências são incipientes, mas, em
entrevista à Folha, defende a teoria do gene divino. Leia a entrevista.
Folha - O biólogo Richard Dawkins disse dos
genes: "eles nos criaram, corpo e mente". Eles criaram deus
também?
Dean Hamer - Eu não posso determinar se deus
é uma criação dos nossos genes ou se deus criou
nossos genes para que ele pudesse ser
reconhecido. Porque a biologia não pode determinar causalidade.
O que podemos dizer é que nós temos genes que facilitam
que pensemos em deus ou que imaginemos que exista um deus.
Folha - No seu livro "O Gene de Deus" o sr.
tenta fazer uma distinção entre religião e espiritualidade.
Pode explicar isso?
Hamer - É uma distinção muito
importante. A espiritualidade diz respeito aos sentimentos interiores
das pessoas. E a religião é um conjunto organizado de
regras e regulações. A espiritualidade é como as
pessoas se sentem sobre deus ou qualquer que seja o criador,
enquanto a religião é especificamente sobre quem é
esse deus e como ele age.
Folha - Então um título mais adequado
para o livro seria "o gene da fé", não "o
gene de deus"?
Hamer - Um título mais apropriado seria "um
gene entre vários que está envolvido na fé".
Mas isso não dá um título muito bom (risos).
Folha - Há casos em que pessoas que têm
pontuação alta na escala de autotranscendência se
tornam mais tarde céticas linha-dura?
Hamer - Provavelmente (risos). De fato, é uma
boa questão, porque a escala é multifacetada, e você
pode ter alta pontuação em alguns aspectos e baixa pontuação
em outros. Eu, por exemplo, tenho altapontuação no item
do auto-esquecimento, em me perder em algo que estou fazendo e me desligar
do resto, mas baixa pontuação em aspectos mais tradicionalmente
associados à religiosidade. Por exemplo, não acho que
existam coisas que a ciência não possa explicar.
Folha - E o que controla a freqüência desse
gene na população?
Hamer - Ai, meu deus (risos)...
Folha - Porque, se estamos falando de monoaminas, seria
de esperar que o "alelo de deus" fosse se espalhar rapidamente.
Hamer - Sim, talvez ele esteja se espalhando muito
rapidamente, mas nós não sabemos muito sobre a evolução
desse gene. Não posso dizer muita coisa a respeito.
Folha - E o vmat2 não é específico
de humanos, certo? Ele tem equivalentes em outros mamíferos.
Hamer - Não, não é. Sabe, eu não
acho que seja "o" gene que torna as pessoas espirituais, só
acho que seja parte da via bioquímica no cérebro das pessoas
que é usada para esse tipo de sentimento ou resposta emocional.
E essa questão é a mesma com outros genes: temos os mesmos
genes que todos os outros mamíferos e podemos falar e eles não;
podemos ter um nível de consciência mais elevado e eles
não.
Folha - Por que as pessoas reagem tão fortemente
contra a idéia de que comportamentos possam ser determinados
ou influenciados geneticamente? Existe um gene que as predispõe
a essa reação também?
Hamer - (Risos) Não. É porque todo mundo
acredita que tem livre-arbítrio e controla o próprio destino,
porque, de outra forma, nós seríamos só marionetes.
Ninguém quer ouvir que é o que é não porque
decidiu assim, mas por algo que estava fora do seu controle. Eu acho
que há uma negação automática do papel dos
genes. E repare: nós temos livre-arbítrio e tomamos decisões.
Só que algumas pessoas são mais canalizadas em uma direção
que em outra.
Folha - O sr. não teme que o vmat2 tenha o mesmo
destino do Xq28, o "gene gay" identificado pelo sr. que não
pôde ser replicado em estudos independentes?
Hamer - O Xq28 foi replicado por três estudos
independentes. Só um não o replicou. Mas uma meta-análise
mostrou depois que, quando todos os dados eram incluídos, a ligação
era significativa. Em 1996, nós publicamos um estudo muito parecido
na revista "Science" sobre o gene transportador de serotonina.
Descobrimos uma relação forte com a ansiedade. Outros
dois estudos não viram associação; a amostra era
muito pequena. Desde então, houve 800 outros estudos experimentais
e 14 meta-análises. Os resultados validam completamente o achado
riginal. Este agora é o resultado mais amplamente aceito da genética
comportamental. Jornalistas tendem a interpretar uma não-replicação
de uma característica controversa como a homossexualidade como
sendo uma invalidação.
Folha - Seguindo o seu raciocínio, haveria pessoas
sem capacidade bioquímica para a crença, ou "ateus
inatos", por assim dizer?
Hamer - Todo mundo tem essa capacidade. Só que
algumas pessoas têm um pouco mais, assim como todo mundo tem a
capacidade de chutar uma bola de futebol, mas algumas pessoas têm
mais talento.
Folha - Os psicólogos evolutivos, como Steven
Pinker, da Universidade de Harvard (Estados Unidos), recusam-se a enxergar
a evolução da religião como uma característica
adaptativa, encarando-a como um subproduto de alguma outra adaptação.
O sr. concorda?
Hamer - O problema com a biologia evolutiva é
que não há teste experimental conclusivo de nada. Então,
a única maneira de ter certeza é montar um experimento
no qual eu controlo as variáveis e depois ver o resultado. Não
posso fazer isso com evolução porque não posso
rebobinar a fita, criar um novo Universo e testar as coisas. Então,
eu acho que a religião é muito disseminada e muito conservada
para ser simplesmente um subproduto. Mas não posso ter certeza
absoluta. Ele [Pinker] também não (risos). Há um
preconceito da ciência contra a religião, especialmente
forte nos EUA, e às vezes ele aparece nas opiniões das
pessoas.
Folha - O sr. menciona no seu livro que milagres e
curas religiosas estão ficando raros porque as pessoas tendem
a confiar mais em médicos do que em padres. Ao mesmo tempo, a
religião está cada vez mais forte, como atesta o fundamentalismo
cristão nos EUA e o islâmico no Oriente Médio. Não
há uma contradição aí?
Hamer - Sim. O que acontece é que a religião,
como é algo memético [que se propaga por idéias,
não por genes], não tem as limitações de
ser boa para os seres humanos como a espiritualidade. Os memes [religiosos]
têm vida própria, e agora eles estão em seu momento
de florescimento máximo na história humana. E isso é
muito perigoso para o mundo. As pessoas se preocupam muito com bombas
atômicas e poluição... eu acho que religião
é um perigo muito maior para as pessoas --a religião que
não é delimitada pela espiritualidade. E dou um exemplo:
a Igreja Católica declarou que as pessoas não devem usar
preservativos. O problema é que, com a disseminação
do HIV, isso se torna uma sentença de morte para algumas pessoas.
Para mim, não é muito espiritual dizer às pessoas
que elas não podem fazer algo para proteger sua vida.