MORFOLOGIA SOCIAL OU GEOGRAFIA HUMANA?

Lucien Febvre

 A primeira acusação dos sociólogos contra a geografia humana é clara. Pode traduzir-se por uma palavra. Acusam-na de ambição. Nada de mais estreito — dizem — e, ao mesmo tempo, nada de mais ambicioso do que as suas concepções. Logo que estão em face de um grupo de homens, de uma sociedade humana, pensam no solo sobre o qual assenta materialmente esse grupo, essa sociedade. Para eles, esse suporte material, esse substrato das sociedades não é de modo algum uma matéria inerte e sem ação. Atua sobre os homens que suporta. «Influencia-os» tísica e moralmente. «Explica-os» no conjunto e em pormenor. Explica-os, e até os explica por si só. Só ele atua sobre eles. Só ele os influencia. Exclusivismo e preconceito normal: a deformação profissional do especialista explica-o perfeitamente.

O geógrafo parte do solo, e não da sociedade. Sem dúvida que não chega ao ponto de pretender que esse solo é a ‘causa’ da sociedade. RATZEL contenta-se com dizer que o solo é «o único laço de coesão essencial de cada povo» (1). Mas é, antes de tudo, para o solo que se dirige a sua atenção. A ação e a eficácia do fator geográfico é o que RATZEL pretende esclarecer, precisar, mostrar bem claramente. «Em lugar de estudar o substrato material das sociedades em todos os seus elementos e em todos os seus aspectos», censura-lhe Mauss, «é sobretudo sobre o solo que a sua atenção se concentra. E o solo que está no primeiro plano da sua investigação». A morfologia social seria muito diferente. Certamente que trataria também do substrato das sociedades, mas enquanto um só dos elementos que ajudam a compreender a vida e os destinos dessas sociedades. Não começaria por divinizar, por assim dizer, esse elemento privilegiado, por lhe atribuir uma espécie de poder criador, por fazer dele o produtor e animador das formas sociais. Tendo por objeto a «massa dos indivíduos que compõem os diversos grupos, a maneira como são dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração dos fatores de toda a espécie que afetam as relações coletivas (3), esta disciplina tomaria lugar entre as ciências especiais de que a sociologia, na opinião de DURKHEIM e FAUG0NNE-r(), constitui, por assim dizer, o Corpus. Ora aquilo que o sociólogo, ao contrário do geógrafo, põe no primeiro plano das suas preocupações não é a terra»—é a «sociedade». Noutros termos, o problema não é o mesmo, conforme sejamos, nos consideremos, nos proclamemos geógrafos ou morfólogos. E, em conseqüência disso, Mauss é levado a dizer (1): «Se preferimos o termo morfologia social ao de antropogeografia para designar a disciplina à qual se refere esse estudo, não é por um vão gosto de neologismo; é que esta diferença de etiqueta traduz uma diferença de orientação». Com efeito, assim o pensamos. Diríamos mesmo de bom grado: uma diferença tal que, na realidade, morfologia social e geografia humana não podem, sem perigo, substituir-se uma à outra. Mas o estudo «em ação>> das duas disciplinas rivais no-lo mostrará melhor que qualquer discussão teórica.

 

1 - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA SOCIAL: OS AGRUPAMENTOS HUMANOS SEM RAIZES GEOGRAFÍCAS

Não há grupo humano, não há sociedade humana sem suporte territorial. Tal é o ponto de partida normal dos geógrafos nas suas especulações. Fórmula equivoca até certo ponto. Na verdade, há muitos ‘grupos» e muitas sOc1edades» — e precisamente entre aqueles que os sociólogos estudam, por vezes, com tanta predileção— sobre os quais, ao fim e ao cabo, a influência do «substrato geográfico», tão caro a Ratzel, se faz sentir pouquíssimo. Apesar de uma insuficiência de preocupações geográficas bastante acentuada, os múltiplos inquéritos dos antropólogos e etnólogos alemães, ingleses e americanos sobre as sociedades selvagens do Novo Mundo, ou do mundo do Pacífico, provaram-nos claramente que os primitivos só conhecem modos de agrupamento especificamente territoriais. O totemismo, em particular, está na raiz de uma multiplicidade de formações sociais sem raízes geográficas aparentes.

Vejamos, para exemplificar, os Aruntas, esse povo do Centro da Austrália que trabalhos precisos e rigorosos nos deram a conhecer em todos os pormenores de uma organização muito complexa — tão complexa que entre os observadores se encontram por vezes, neste como noutros casos, divergências bastante graves. Reportemo-nos aos trabalhos mais bem documentados, e em particular aos de B. SPENCER e L.J. GILLEN, esses clássicos da sociologia. Em 1899 fazem a copiosa descrição das sociedades indígenas do Centro australiano: The native tribes of Central Austrália, e em 9O4 das do Norte deste mesmo continente The northern tribes of Central Austrália. São observadores rigorosos e bem fornecidos de fatos, se bem que incorram — como J. Sion já o notou — no grave de (eito de fazerem a descrição dos fenômenos religiosos e sociais de populações cuja vida material não estudam. Ora os seus trabalhos revelam nos Aruntas três espécies de grupos elementares distintos, que se entrecruzam, se misturam literalmente da forma mais complexa. Primeiro encontram-se agrupamentos propriamente territoriais, distintos uns dos outros pelos nomes das localidades e possuindo cada um deles um pedaço de solo, de limites conhecidos e definidos. Mas logo ao lado deste vamos encontrar um certo número dessas classes matrimoniais que E. Durkheim nos descreveu e, depois destas, temos os grupos totêmicos, que englobam os indígenas sem qualquer preocupação, desta vez, de localização ou distribuição geográfica. Não são, aliás, os grupos não territoriais que representam o papel mais apagado na organização coletiva dos Aruntas muito pelo contrário; e, por sua parte, Durkheim insistiu muitas vezes (em especial na sua interessante referência ao livro de Howr sobre as tribos indígenas do Sudeste australiano) (3) na extrema indeterminação da organização propriamente territorial dessas sociedades australianas — pelo menos, tais como as vêem e descrevem os nossos observadores, brancos e nossos contemporâneos.

A mesma observação se poderá fazer no que se refere a todo o resto do imenso continente australiano, em que as tribos são geralmente dotadas de duas organizações: uma, baseada nas divisões geográficas, e a outra, solidária da regulamentação matrimonial, O mesmo quanto às ilhas de Salomão, estudadas por alemães e em que os agrupamentos totêmicos, distintos das aldeias, e os agrupamentos territoriais, abrangendo por vezes portadores de totens diferentes, se misturam e cruzam de forma semelhante aos exemplos anteriores. A mesma circunstância em inúmeros povos primitivos do Brasil (4), que vivem na floresta e nunca ultrapassaram o estádio de barbárie. De resto, é curioso ver, pouco a pouco, esbater-se neles o princípio totêmico em face do princípio territorial, representado pela comunidade de aldeia. Mas para quê multiplicar exemplos (5) de fatos hoje bem conhecidos?

Vê-se sem dificuldade o partido que daqui se pode tirar contra as "pretensões geográficas". Façamos, contudo, algumas observações.

Primeiro que tudo, é com freqüência que se compreende claramente a passagem dos agrupamentos não territoriais a agrupamentos territoriais. Os primeiros tendem, pouco a pouco, a localizar-se geogràficamente. Fala-se de organizações totêmicas sem bases geográficas. Ora há povos por exemplo, os Índios Pueblos do Arizona e do Novo México - que moldaram sobre uma organização totêmica conservada, excepcionalmente, numa vida quase urbana a estrutura e a construção das suas casas e aldeias. E mesmo na Austrália, nessa Austrália em que vive um grande número de populações muito parecidas com os Aruntas, as tribos situadas mais perto do golfo de Carpentária não apresentam as já referidas anomalias. Aí confundem-se os agrupamentos territoriais com, os agrupamentos totêmicos. Cada localidade possui o seu próprio totem; não se encontram aí portadores de totens diferentes; e o chefe administrativo da localidade é igualmente o seu chefe religioso. Nada de surpreendente, aliás, nesta confusão. Durkheim explica-a quando observa que ela se verifica sempre que o totem se transmite pela linha paterna. Nestas condições, o casamento não introduz em cada geração totens de origem e importação estrangeiras.

Por outro lado, não se podem conceber <<no ar>> os membros desses agrupamentos não territoriais tais como essas personagens chinesas de que nos fala MICHELET num texto célebre. DURKHEIM observa algures, e precisamente a propósito de estudos sobre as tribos indígenas do Sudeste australiano, que é impossível a um grupo social não estar, de qualquer forma, ligado efetivamente ao território que ocupa e não ter de qualquer forma a sua marca. Uma análise atenta não teria dificuldade em descobrir nas associações menos (territoriais) um fator geográfico - mesmo que seja necessário chegar a ele por intermédio do clima. Não há, por exemplo, na costa do Pacífico da América do Norte, sociedades humanas como a dos Kwakiutls, estudados pelo investigador americano F. Boas que possuem uma organização social dupla: uma, para a vida profana e laica, caracterizada por uma divisão dos homens em - famílias, clãs e tribos; a outra, para a vida religiosa, à base de grupos protegidos, cada um deles, por uma divindade ou um espírito diferente dos outros? Ora a organização laica atua durante o Verão e a organização religiosa durante o Inverno; e com isso retomaria a geografia os seus direitos, se não fosse já evidente, por outro lado, que com a estação fria não desaparecem todas as conseqüências (geográficas) do regime de Verão. Mas, independentemente destes fatos particulares, teria havido toda a vantagem em desenvolver e precisar a observação de DURKHEIM.

RATZEL, dominado, ao mesmo tempo, pelo seu preconceito de antropogeógrafo e por preocupações de ordem mais política que científica, que, por momentos, nos fazem comparar a mais recente e menos fecunda das suas grandes obras, a Politische Geographie, a uma espécie de manual do imperialismo alemão, escreve: Se os mais simples tipos de Estado são irrepresentáveis sem um solo que lhes pertença, o mesmo deve ocorrer com os mais simples tipos de sociedade: esta conclusão impõe-se). E continua: «Família, tribo, comuna só são possíveis sobre um solo e o seu desenvolvimento só pode ser compreendido em relação a esse solo. Em primeiro lugar, tais agrupamentos não são os únicos que representam os tipos mais simples de sociedade. Acabamos de chamar a atenção para outros tipos em cuja gênese, desenvolvimento e expressão o solo representa um papel muito restrito. Mas, sobretudo, de que se trata exatamente? (Os tipos mais simples de Estado são irrepresentáveis sem um solo que lhes pertença). Estes três últimos termos não foram certamente escritos por acaso. «Família, tribo, comuna só são possíveis sobre um solo e o seu desenvolvimento só pode ser compreendido em relação a esse solo). Há, sem dúvida, mais que uma pequena diferença entre a primeira e a segunda fórmula. Poder-se-ia exprimir essa diferença dizendo que a primeira fórmula depende da morfologia social e a segunda da geografia humana. Ora é curioso, e até um tanto picante, verificar que DURKHEIM, ao afirmar que é «impossível a um grupo social não se encontrar de qualquer forma ligado ao território que ocupa e não revelar a sua influência), admite (se bem que o seu termo ocupar seja bastante equívoco) a segunda fórmula — essa mesma que noutros lugares critica—, enquanto RATZEL, em contrapartida, parece ligar-se de preferência à primeira. E os textos não são perfeitamente claros nem de um lado nem de outro. Ora é precisamente essa ambigüidade que mostra até que ponto continua insuficiente o trabalho de análise.

Evidentemente, haveria que distinguir. Por um lado, as povoações sociais de base territorial: aquelas que tomam posse, de forma mais ou menos estrita, de um pedaço de terra, o reservam para si, considerando-o como seu domínio particular; esse pedaço de terra é, de qualquer forma, a sua projeção sobre o solo; é a sua própria forma, no sentido estrito do termo: aquele solo que BOUGLÉ visa quando, ao analisar, por sua vez, o conceito de morfologia social, escreve no Année sociologique de 1900, resumindo as idéias expressas por DURKHEIM: «O termo forma é tomado então num sentido preciso. Trata-se de formas materiais susceptíveis de representações gráficas». E o sociólogo acrescenta que essas formas (constituem o domínio próprio da morfologia social). Eis o que é claro. Restam outros grupos sociais, que, por sua vez, não têm domínio reservado, território próprio, circunscrição definida. Os seres humanos que compõem esses grupos vivem sobre um território, numa região, sob um céu comuns a todos, os mesmos para todos. Na medida em que assentam sobre um solo, participam dele: têm a sua marca, afirma Durkheim; mas o seu grupo, enquanto grupo, não tem forma gràficamente representável. Não há pedaço de solo que seja propriamente o território do grupo’.

Mas, dito isto, foi muito grande o progresso? A distinção apresenta valor real? Permite apoiar as objeções dos sociólogos contra os geógrafos? Pensamo-lo tanto menos quanto é certo que há os fatos intermediários a que anteriormente nos referimos e que é preciso reter. Nas sociedades australianas sobre cujo conhecimento todo este debate assenta Durkheim que a organização começou, sem dúvida, por ser totêmica e só em seguida se tornou territorial. Ou, mais precisamente, no tempo em que ainda só existia organização totêmica, o que havia de territorial na organização social era muito secundário, muito apagado — se acaso se aceita a análise do sociólogo; não lidamos aqui, mais uma vez o dizemos, com dados simples e fáceis de interpretar. O que marcava os limites da sociedade não era uma determinada barreira material; o que lhe determinava a forma não era a configuração do solo. A tribo era essencialmente um agregado, não de distritos, mas de clãs, e o que fazia a unidade do clã era o totem e as idéias de que era objeto». Em última análise, de toda esta discussão o que permanece é o seguinte: um dos mais importantes objetos de estudo do sociólogo — ou seja, todos esses grupos que não são essencialmente territoriais — oferece, no fim de contas, pouca matéria para os geógrafos. Ainda se poderá dizer que lhes oferece campo mais vasto, apesar de tudo, do que aos morfólogos? Estes últimos, num caso semelhante, só têm que levantar um auto de carência à sua ciência: onde não há (formas) a estudar não pode haver morfologia. Com a geografia, pelo contrário, é possível que o grupo, enquanto grupo, lhe escape. Mas resta-lhe o solo sobre o qual vivem os homens—e o clima, as produções e todas as condições de existência próprias dos lugares que freqüentam e que também ocupam, enquanto membros de grupos de outra natureza: os grupos territoriais. Deste modo já ganhamos consciência, sem dúvida com um pouco mais de clareza, daquilo que realmente torna opostas as duas concepções rivais: morfologia ou geografia.

 

II - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA SOCIAL: A AMBIÇÂO GEOGRÁFICA

Outras objeções dos sociólogos têm, evidentemente, mais cabimento e definem com mais nitidez o alcance da acusação de ambição. Um exemplo vai nos mostrar, e tanto mais típico quanto é verdade que o vamos buscar num espírito mais seguro dos seus caminhos.

Que a cultura do arroz, quer pela abundância de alimento que fornece num pequeno espaço, quer pelos assíduos cuidados que exige, exerce uma profunda influência sobre as sociedades do Extremo Oriente, eis um ponto de vista caro a VIDAL DE LA BLACHE. Em rigor, uma família de cultivadores de arroz do Camboja pode viver com um hectare, notava ele; mas, por outro lado, para a própria cultura da planta alimentícia é necessária uma mão-de-obra numerosa e constante. A conseqüência disto? VIDAL DE LA BLACHE, arrastado, sem dúvida, pelo meio, pelo auditório e pelo próprio título da sua conferência (as condições geográficas dos fatos sociais), extraiu-a um dia, na Escola dos Altos Estudos Sociais, da seguinte forma: (Terei o cuidado de não generalizar demasiado; mas se é exato que a forte constituição da família e da aldeia é a pedra angular nas sociedades do Extremo Oriente que gravitam à volta da China.., vê-se assim a relação de causa a efeito entre o modo de cultura, inspirado pelas condições geográficas, e a única forma verdadeiramente popular de organização social que aí se encontra). Por maior que seja o engenho da observação e a finura feita de cambiantes da análise, há aqui, manifestamente, abuso e (ambição). Na verdade, existem muitas outras civilizações, caracterizadas por outros gêneros de vida e sob outros céus, em que a família fortemente constituída se apresenta, verdadeiramente, como a «pedra angular) da sociedade. E, de resto, em semelhante matéria, convém ter cuidado com o velho preconceito de que a organização social se elaborou de baixo para cima, por aglomeração progressiva de grupos, primeiro muito simples, conjugais ou familiares, no sentido estrito do termo, e em seguida mais vastos, se não mais complexos: clãs, aldeias, tribos e nações. A organização familiar não é inicial. Em todos os climas, em todas as civilizações, recebeu ela do exterior as suas regras imperativas. Recebeu-as, não das condições geográficas, mas do poder dominante, superior, do Estado — da sociedade política no seu conjunto(5). Uma vez dada a organização familiar, nada mais provável que a cultura do arroz nos países do Extremo Oriente, onde é predominante, tenha contribuído para manter e aumentar o seu poder e a sua influência; mas não devemos ir mais longe e repitamos com DURKHEIM — desta vez sem reservas nem limitações: não há dúvida de que as influências geográficas estão longe de ser desprovidas de importância; «mas não parece que tenham o tipo de preponderância que se lhes atribui... Entre todos os traços constitutivos dos tipos sociais não há nenhum, que nós saibamos, que elas possam explicar). E acrescenta: aliás, como seria isso possível. «uma vez que as condições geográficas variam de lugar para lugar, enquanto se encontram tipos sociais idênticos (abstração feita das alterações individuais) nos mais diversos pontos do globo?

Ainda um exemplo. Em tal matéria não se deve recear multiplicar os exemplos. A habitação humana, a casa, é, evidentemente, um dos traços mais notáveis destas «paisagens humanizadas’ que se nos apresentam e que precisamente o geógrafo deve estudar: é tão familiar a nossa vista nas regiões ocidentais que a sua ausência prolongada nos faz verdadeiramente sofrer: numa solidão selvagem e desolada, nos cabos extremos dessa Armórica que um mar feroz assalta infatigavelmente, um moinho estendendo as suas duas asas em cruz na linha do horizonte rígido e nu faz sentir não se sabe que sentimento de confiança e de paz: um pouco daquela emoção que, nos altos planaltos do Tibet, sentiu um Perceval Landon, em marcha sobre Lhassa, ao contemplar, por acaso, a frágil silhueta de um salgueiro de verdes folhas. Ora diremos nós (e já foi dito) que esta casa, esta habitação do homem, por muito adaptada que esteja, quer pelo seu aspecto, quer pelas suas disposições e materiais, ao solo em que assenta e ao clima em que se encontra, é um fato geográfico? Claro que não! Um fato humano, se assim se quiser—o que não é a mesma coisa.

Há geografia num campo de trigo. Um campo de trigo não é um fato geográfico. Pelo menos, só o é para um geógrafo. Este não tem de estudar a "casa",mas somente o que nela há de geográfico — e nem tudo é geográfico numa casal e competirá porventura à geografia determinar qual é a idéia essencial dessa mesma casa. Seria certamente demasiado fácil alinhar aqui uma série de citações que revelariam em alguns geógrafos uma preocupação medíocre com tudo o que lhes não diz respeito, uma espécie de desprezo jovem, cândido e um tanto irritante de vizinho— nada menos que uma propensão um tanto incômoda para usar palavras e fórmulas simultaneamente cortantes e sumárias. Munidos de duas ou três grandes chaves para todo o serviço, quantos não vão estouvadamente pelo mundo, experimentando-as sucessivamente em todas as portas que encontram Ficam felicíssimos quando se lhes depara uma que o instrumento abre o melhor que pode. «A primeira necessidade do homem é a água. Quando a água superficial é rara, como em Beauce, na penuriosa Champanha, e nas regiões calcárias, em geral, as aldeias agrupam-se em grandes aglomerados á volta de alguns pontos de água existentes, ou então escalonam-se muitas vezes por vários quilômetros ao longo dos cursos de água. Quando a água é abundante e surge por toda a parte, como na Ille-de-France, Limousin, Bretanha, País de Gales, etc., as habitações disseminam-se ...". Depois vêm dois extratos de um mapa em grande escala para comprovar o texto; e eis formulada uma lei geral, uma lei geográfica constante, de que nada vem limitar a aplicação ou precisar o alcance. Ora é evidente que, «se a água surge à menor perfuração, as casas poderão distribuir-se pelo campo e que semelhante isolamento será menos fácil no caso contrário». Poderão ... de fato, só se trata de possibilidades. E se é indiscutível a influência do meio físico local, quer isso dizer que se exclua qualquer outra Porventura não se poderá dar o caso. por exemplo, de pormenores de construção e de disposição, e às vezes a própria estrutura da aldeia, terem sido concebidos num outro solo, num outro clima, por uma população de emigrantes; Não pode porventura suceder que os recém vindos tenham edificado e disposto as suas habitações segundo a forma consagrada na sua região de origem? Não se poderá verificar o fato de esse tipo se ter modificado, dado que a experiência não permitiu que se conservasse intacto, embora sem se obliterar por completo ? De fato, vejamos a região de Caux: população disseminada a oeste e concentrada a leste: as condições físicas num lado e noutro são, contudo. quase idênticas e nada impediria que a leste se estabelecessem albufeiras e que a oeste se perfurassem poços de água. A herdade cauchesa. de tipo tão constante, está sem dúvida adaptada ás necessidades da exploração local. Mas outras herdades, construídas segundo um plano diferente, também se adaptariam perfeitamente. Observações de geógrafo, dir-se-á. Elas provam à evidência que o seu autor não está, por seu turno, disposto a contentar-se com as grandes chaves de que falávamos atrás. Provam simplesmente que, ainda em muitos. casos, investigadores seduzidos a seguirem só a sua pista nem sempre ignoram a arte dos corretivos nem a necessidade de, por vezes, olhar para o lado do vizinho. Nesta questão da casa há uma tendência espontânea para desprezar, se não para negar, as influências étnicas que um MEITZEN tinha apresentado sem análise critica, mas que não deixam por isso de existir, ou as influências históricas, que não são todas forçosamente (étnicas» e cuja ação é necessário definir quando a análise geográfica é incapaz de satisfazer; desconhecimento inconsciente ou propositado do jogo das tradições. da ação persistente das causas sociais não terão os sociólogos razão em censurar aos geógrafos estes defeitos tão conhecidos? Defeitos de uma ciência jovem, exuberante e que não sabe, ao limitar o seu próprio domínio, respeitar por via indireta o domínio do vizinho.

Recapitulemos. Agora compreende-se melhor aquilo que os partidários da morfologia social querem dizer quando denunciam «essa disciplina de grandes ambições que a si própria se designa por geografia humana». Na sua pena, a censura de ambição implica duas acusações diferentes. Os geógrafos querem explicar pela geografia, ou, pelo menos, reivindicam como seu campo de investigação as sociedades humanas, das menores às mais vastas, das mais rudimentares às mais complexas; ao ouvi-los dir-se-ia que todos os grupos sociais são justificáveis por meio da sua ciência, quando, de fato, não é isso que sucede: na realidade, em boa lógica escapam á sua influência todos os agrupamentos não territoriais. Por outro lado, no que se refere aos próprios grupos sociais que estão incontestàvelmente relacionados com os seus métodos, pretendem explicar um número demasiado grande das suas manifestações por meio da geografia e só pela geografia. Abusos manifestos, que, por seu turno, serão ignorados por uma ciência sociológica de perspectivas modestas e marcha prudente — porque essa tem objetivos limitados e antecipadamente definidos...

Quanto ao primeiro ponto, já nos explicamos. Nada há de decisivo nas acusações que se fazem ou podem fazer ã geografia. Há grupos humanos em cuja gênese o solo, enquanto solo bruto, solo puro, se assim se pode dizer, representa um papel insignificante, uma vez que esses grupos não têm solo seu, ou, mais exatamente, uma vez que não talharam o seu bocado particular no tecido universal. Mas há outros fatores geográficos além do «solo» influir na vida das sociedades. E à influência destes últimos fatores não escapam, de modo algum, os homens componentes de grupos não territoriais de que se está falando — e que, aliás, se intercalam igualmente noutros grupos, esses então de base territorial. E acaso escaparão realmente esses primeiros grupos não territoriais à própria influência do solo? Se não escapam, não é a morfologia social que nos poderá informar sobre as modalidades da influência exercida nem sobre as suas conseqüências, uma vez que se proíbe a si própria de se ocupar de outra coisa que não sejam formas. Haverá necessidade de escolher? Não se concebe por que razão se terá de escolher. Na verdade verifica-se, afinal, que não há equivalência entre os dois termos cuja escolha nos é proposta.

Quanto ao segundo ponto: «Quando se passa em revista», escreve Durkheim a propósito de Ratzel. «tal multiplicidade de fatos com o único objetivo de investigar que papel representa, na sua gênese, o fator geográfico, é se necessàriamente levado a exagerar-lhe a importância, precisamente porque se perdem de vista os outros fatores que também intervêm na produção desses fenômenos». Objeção muito sensata. Mas o «necessariamente» é, sem dúvida, um pouco forte. Que se aplique a Ratzel, é muito possível. Em todo o caso, conviria não generalizar nem pretender atribuí-lo funcionalmente a todos os geógrafos. (Na feição atual dos nossos velhos países históricos cruzam-se e interferem causas de toda a ordem. O seu estudo é delicado. Determinam-se ai grupos de causas e efeitos, nas nada que se assemelhe a uma impressão total de necessidade. E patente que, em dado momento, as coisas teriam podido tomar outro curso e que o curso tomado dependeu de um acidente histórico. Não há motivos para considerarmos a existência de um determinismo geográfico: o que não significa que a geografia seja por isso urna chave que possa ser dispensada». E mais adiante: na explicação de fatos bastante complexos submetidos a circunstâncias diversas de tempo e de lugar, a análise geográfica, tanto como a das influências étnicas e históricas, deve desempenhar o seu papel: o emprego exclusivo de um modo de interpretação não poderia satisfazer uma inteligência ansiosa de realidade, e não de sistema). Onde encontrar, nestas linhas comedidas ou no livro a que elogiosamente se referem e que recomendam ao leitor, vestígios desse preconceito de <<necessidade>> de que Durkheim falava, desse exclusivismo de que fala algures MAuss? Ora essas linhas são da autoria de um geógrafo bem qualificado como tal: Vidal de La Blache.

 

III - O ERRO DE RATZEL. EM COMO ELE NÃO É TODA A GEOGRAFIA HUMANA

Depara-se-nos aqui um vicio freqüente nos metodologistas não especializados nas ciências sobre as quais dissertam. Nem mesmo os mais avisados e escrupulosos lhe escapam. Precisam documentar-se depressa, em pouco tempo e tão abreviadamente quanto possível: portanto, apóiam-se num homem, numa obra. Mas, para avaliar todo um esforço científico, para apreciar e criticar uma ciência em via de criação e que tateia ainda o seu caminho, o pegar num livro, num só livro, assinalar-lhe as tendências e os defeitos e depois generalizar não é tarefa que não implique os seus riscos. E, não obstante, é bem isso o que, em grande parte, fazem os sociólogos.

Por certo que nos parece bem escolhido o livro de que partiram. A Antropogeografia é a obra-prima de Ratzel, e quando Mauss, depois de Durkheim, chama ao seu autor o (fundador da antropogeografia), exagera—mas que é (um dos fundadores, é verdade. Não obstante, não se deve considerar a geografia humana sinônima de Ratzel e seus discípulos. Evidentemente a escola francesa não ignora quem foi o padrinho da antropogeografia. Quando, em 1891, foram criados os Anais de Geographie, um dos primeiros fascículos da nova revista continha um longo, preciso e copioso resumo das idéias mestras, dos temas favoritos do geógrafo alemão: resumo, aliás, nitidamente crítico, notemo-lo, da autoria de L. Ravenau e com o título de "O elemento humano na geografia". Mais tarde, quando apareceu a Politische Geographie, Vidal de La Blache assinalou pessoalmente o seu valor e aproveitou a ocasião para, por sua vez, definir a Geografia Política. Finalmente, depois disso, M. G. HUCKEL resumiu, sempre nos Anais, e dirigindo-se aos leitores franceses, as linhas fundamentais da Geografia da Circulação segundo Ratzel. Contudo, apesar destes repetidos testemunhos, seria bastante inexato fazer depender de RATZEL todo o esforço, tão vivo, tão curioso, tão interessante, dos geógrafos franceses. Muitos estranhariam semelhante influência e talvez confessassem conhecê-lo muito vagamente. De fato, o que antes de mais nada lhes interessa é a monografia regional. As obras teóricas, os livros de conjunto sobre o objeto, intenções e método da geografia humana são muito raros em França. Somente podemos citar os artigos tão sugestivos, vivos e originais, de VIDAL DE LA BLACHE; o grande livro, de valor desigual e débil contextura, mas abundante em referências, de J. Brunhes e, finalmente, revelando de forma muito sensível a influência de Ratzel, mas não sem que lhe faça as suas reservas, quer dizer, não sem crítica ou atualização, os dois livros de Camile Vallaux: La Mer e Le Sol et l’Êtat, dois volumes recentes (1908 e 1911) da pequena Encyclopedie scientifique Doin. É tudo e é pouco. Mas no conceito dos geógrafos franceses é bastante. Na sua opinião, a geografia humana é demasiado jovem, tem muito que trabalhar, muito que adquirir, muito que tentear, para poder, desde já, pensar em definições ou em delimitações eficazes. Pretendendo-se precipitadamente delimitar o seu campo, não se correria o risco de deixar fora dele o melhor, o mais puro da geografia humana? Em qualquer caso, é um ponto de vista, e é preciso ainda acrescentar que em Inglaterra, nos Estados Unidos, na Itália, ou ainda noutros pontos, há "geógrafos humanos" cuja obra ou tendências nada têm de ratzeliano. Em França o raizelianismo foi talvez um estado de prestígio—mas não uma realidade.

Outra coisa ainda: mesmo no tempo em que DURKHEIM denunciava a Antropogeografia, do mestre alemão, como um esforço, sem dúvida quimérico, para «estudar todas as influências que o solo pode exercer sobre a vida social em geral, já VIDAL DE LA BLACHE escrevia, nos Anais de Geographie: (Restabelecer na geografia o elemento humano, cujos títulos parecem esquecidos, reconstituir a unidade da ciência geográfica na base da natureza e da vida: tal é, sumariamente, o plano da obra de um RATZEL. Os dois juízos diferem muito sensivelmente. Será falso um deles?

De fato, no próprio momento em que RATZEL parecia preocupado, antes de mais, em definir a influência dessas condições geográficas sobre os destinos, e particularmente sobre a história dos homens, esforçava-se afinal, rico e seguro dos seus conhecimentos infinitamente variados, por mostrar no homem um dos mais poderosos fatores da geografia: quer dizer, procurava fundar, criar realmente a geografia humana. A obra do professor de Leipsig não é das que se deixam encerrar numa fórmula única. DURKHEIM assim o viu e referiu. Na Antropogeografia de RATZEL há três espécies de questões diferentes — escreve Durkheim nessa referência crítica a que frequentemente temos aludido(’). Em primeiro lugar, RATZEL preocupa-se em estabelecer, com o auxilio de mapas - e, neste aspecto, fiel às diretrizes de Humboldt, que em 1836 orientava a publicação do Atlas físico de BERGHAUS —, qual a forma como os homens se encontram distribuídos e agrupados sobre a Terra. Em seguida procura explicar essa distribuição, essa repartição, enquanto resultante dos incessantes movimentos de toda a natureza e origem que se sucederam no decurso da história. Finalmente — e só finalmente —, entende dever estudar os diversos efeitos que o meio físico pode produzir nos indivíduos e, por seu intermédio, no conjunto da sociedade. Ora esta última ordem de problemas é muito diferente das duas outras; aliás, no seu livro, ocupa somente uma parte restrita; quase só os dois últimos capítulos lhe são particularmente consagrados; segundo a confissão do próprio autor, estas questões estão somente no limiar da antropogeografia) (2. Por nossa conta, acrescentaremos que esta terceira parte da Antropogeografia, dominada por preconceitos de ordem pessoal, políticos ou outros. não é certamente a mais fecunda. E não é menos verdade que é só sobre essa parte, ou quase só sobre ela, que incide a critica de DURKHEIM e que, apontada antecipadamente à atenção do leitor pelo subtítulo do primeiro volume: «Princípios da aplicação da geografia à história), ela parecia atrair e provocar essa censura geral de ambição que, através de RATZEL, DURKHEIM havia de dirigir a toda a jovem geografia.

Estaria um pouco fora do nosso tema presente averiguar como é que Ratzel se pôde expor, plena e conscientemente, a tais criticas. Investigador com uma formação de ciências naturais, tinha mais que qualquer outro essa idéia mestra da unidade terrestre, cuja concepção, em 16õ0, por BERNARD VARENIUS bastou para que este seja hoje saudado como o verdadeiro fundador da geografia científica. Geógrafo, no decurso da sua vida e em todo o desenvolvimento da sua obra procurou manter a geografia humana em contato estreito, em permanente solidariedade com a geografia física. Qual a razão por que RATZEL parece desviar-se assim da sua habitual prudência, perder de vista os próprios princípios da sua investigação e dar apoio a esses ambiciosos, que de bom grado sonhariam com uma filosofia da geografia, tal como outros, em tempos passados, já tinham concebido uma filosofia da história, ou então a esses outros espíritos resignados que colocam a geografia no nível de uma humilde serva, ou, como se disse(5), como gata borralheira da história. Se é verdade — e é — que no primeiro volume da Antropogeografia a idéia central sofre grandes eclipses; se é verdade que a dialética de Ratzel não tem receio das mais flagrantes contradições: terá interesse explicar tudo por meio destes enfraquecimentos de doutrina? Não pensamos que assim seja. Na nossa opinião, o erro de RATZEL foi ter aceitado com demasiada facilidade certos problemas na própria forma como eram postos pela tradição. O seu vício foi o de não pensar em rever com seriedade os seus termos e o seu enunciado. Ele e os seus discípulos, assim como os geógrafos de outras escolas, na medida em que merecem e justificam as críticas acima reproduzidas, são talvez, e antes de mais, somente vítimas: vítimas de circunstâncias de ordem cronológica independentes da sua vontade; mais claramente, vitimas da história.

 
IV - A GEOGRAFIA HUMANA, HERDEIRA DA HISTÓRIA

Certamente que, se hoje está em vias de constituição uma geografia humana, seria erro grosseiro reivindicar para os historiadores a sua paternidade. Na verdade, na sua gênese, desempenharam papel de primeiro plano, por um lado, os homens de ciência — naturalistas e viajantes — e, por outro, os políticos. Não é menos verdade que, numa época decisiva, e em virtude da própria carência de uma ciência geográfica organizada, foram os historiadores, como- acima o indicamos, que tiveram de tomar, e tomaram, dessas iniciativas voltadas para o futuro.

No tempo de Michelet, e até no tempo de DUBUY, geógrafos só alguns sábios sedentários, grandes amadores de viagens em torno da sua biblioteca e que praticavam conscienciosamente aquilo que BERS0T, no dizer de Vidal de La Blache, designava como "geografia difícil, a dos textos". Quanto à geografia "fácil" reduzia-se, no fim de contas, às nomenclaturas. Era um conhecimento de utilidade prática, desprovido de qualquer substância e de qualquer interesse. Nada havia nos trabalhos dos seus adeptos — nem, de resto, nas memórias dos continuadores de D'Anville — que pudesse fornecer aos historiadores a noção precisa da finalidade, do método, do alcance exato de uma ciência geográfica que não se confundisse com uma descrição.

Mas, por outro lado, quando MICHELET proclamava, no seu prefácio de 1869, a necessidade de fazer assentar a história, antes de mais, sobre a terra, que era ainda a história? Que era efetivamente a história, apesar dos esforços do próprio M1CHELET para lhe alargar, enriquecer, modificar a concepção tradicional? Esboçar o passado da França consistia sempre em expor, num duplo quadro, a longa luta dos reis, no interior, para estabelecer um regime de centralização monárquica e de absolutismo e, no exterior, o seu longo esforço para agrupar pouco a pouco as províncias à volta do (domínio» real e acabar por preencher com território francês o quadro predeterminado: esse privilegiado compartimento da Europa delimitado por fronteiras naturais». Longa luta política; longo esforço político; a história continuava a ser, acima de tudo, uma disciplina política. E se Michelet, que tudo pressentiu e adivinhou, não é de forma alguma suspeito de lhe ter limitado arbitrária- mente a concepção; se pretendia, como gostava de afirmar, a ressurreição da vida integral do passado, do solo e dos homens, do povo e dos chefes, dos acontecimentos, das instituições, das crenças; se sentiu como uma necessidade que a «história política seja esclarecida pela história interior, a da filosofia e da religião, do direito e da literatura» — aqui também só pôde pressentir, adivinhar, desejar, pois, na verdade, a história econômica e a história social não se improvisam.

História política, geografia política: a segunda, tal como o registram quase todos os dicionários dos meados do século, não era mais do que (um ramo da primeira»; por vezes acrescentava-se: «e da estatística». A forma dos Estados, a sua extensão espacial, as variações desta forma e desta extensão—por desmembramento ou acréscimo—, eis o que o historiador pedia ao geógrafo que lhe apresentasse e o ajudasse a compreender. Naturalmente que, nas suas investigações, partia sempre do mapa político do globo, tal como séculos de história e 35 sucessivas gerações dos homens o tinham elaborado. Para o geógrafo tratava-se, não de o explicar, mas de o justificar. Efetivamente, presidia às suas investigações um ingênuo finalismo, assim como a idéia, mais ou menos consciente, de que uma espécie de necessidade prévia impunha aos Estados a forma que tinham...

Assim, no quadro tradicional das cinco panes do mundo inscreviam-se com normalidade remos e repúblicas. Compartimentos estanques, rígidos e providencialmente pré-formados, feitos para os receber e bem dotados de «fronteiras naturais», recebiam-nos na realidade. De resto, notemos que as primeiras tentativas daqueles que, no inicio do século, se esforçaram por instaurar, com o nome de geografia comparada, uma disciplina mais verdadeiramente cientifica não eram de molde a desviar os historiadores das suas concepções.

Quando KARL RITTER procurava pôr as formas geográficas em contraste umas com as outras, fazia-o com os continentes, as velhas «partes do mundo», essas criações da mais antiga história que ele enfrentava. Via complacentemente nos continentes outros tantos (indivíduos terrestres». E à África maciça, de civilizações rudimentares, opunha ele a Europa recortada, precoce e requintada, velho tema tantas vezes retomado desde então; tomava-se o todo, como se a Europa. a Ásia, a África, a América, «unidades’ desconhecidas dos modernos geólogos. botânicos ou zoólogos, tivessem sido, na verdade, outra coisa mais do que coleções de fragmentos heterogêneos — agregados díspares de peças e bocados.

De pura forma parecerá esta questão das divisões. Mas, na realidade, é primordial. Ela entra em relação, como já foi excelentemente demonstrado, com a própria concepção que se faz da geografia — e é preciso reler, a este respeito, o notável artigo de Vidal de La Blache «As divisões fundamentais do solo francês, publicado em 1888 numa revista pedagógica e mais tarde reproduzido, a guisa de introdução, no início de um manual de ensino secundário. Mas no tempo de Ratzel, e mesmo mais tarde, ninguém se apercebia do problema.

Foi em vão que, a partir do final do século XVIII, um Gettard, um MONNET, um Giraud-Soulavir entreviram a preciosa noção de região natural: Gallois, no seu livro decisivo, estabelece-a de uma forma incontestável. Foi em vão que, mais tarde, um COQUEBERT de MONTBRET, um Omalius d'Hallot procuraram dividir as regiões "combinando a natureza e o espírito do terreno com as posições geográficas"; foi em vão mesmo que Caumont, Antoine Passy, Dufrenoy e Elie de Beaumont (estes últimos em 1841, na sua célebre Explication de la carte géologique) proclamaram, com singular audácia e previsão, a ligação da geografia tísica com a geografia propriamente dita, por um lado, e da geografia com a geologia, por outro, e justificaram a absoluta necessidade para o geógrafo de tomar como objeto de estudo as verdadeiras regiões naturais: conceitos de geólogos, que os geógrafos do tempo de forma alguma pareciam entender.

A todos parecia mais simples instalarem-se — à maneira de bernardos-eremitas — nas velhas conchas da história política e administrativa. Depois de terem descrito a França nas suas províncias, dissecaram-na nos seus departamentos. E mesmo quando se esforçavam por ir buscar à natureza algum princípio de divisão mais racional, a idéia puramente política de uma fronteira linear, de uma linha rígida de demarcação, absorvia as suas preocupações. Já no princípio deste século o redator geográfico de Statistique genérale et particuliêre de la France, escrevia o seguinte: Consideramos a França dividida em dez partes principais, a que se deu o nome de regiões. Este método pareceu-nos tanto mais vantajoso quanto é independente de todas as divisões que a política ou a administração poderiam considerar úteis. Muito bem; mas acrescenta logo a seguir: «Cada uma destas dez regiões é composta de um número de departamentos pouco mais ou menos igual>>.

De resto, para que remontar tão atrás? Não vimos nós ainda os discípulos atrasados de Buache repartirem também, melhor ou pior, os departamentos pelo leito de Procusta das bacias fluviais, rigorosamente rodeadas pelas "linhas de divisão das águas", essas cadeias montanhosas que, nos mapas, atravessavam os (pântanos do Pripet» ou corriam alegremente de uma ponta à outra da Europa, «desde o cabo Vaigatz até ao cabo Tarifa>>?

Historiadores ou geógrafos: tanto nuns como noutros, a mesma preocupação exclusiva das formas, no seu sentido mais superficial, no sentido gráfico do termo — naquele sentido que, na mesma época, lhe era dado por um INGRE5, nas suas controvérsias estéticas com um DeLACR0IX —, mas nem a história nem a geografia tinham então os seus DeLACROIX».

Falava-se das relações entre o solo e a história. O solo era, por assim dizer, o solo vazio, o solo puro, o solo independente da sua cobertura viva de animais, plantas, árvores, seres humanos. Era o solo-chão, o solo-suporte, o solo, grande tecido rígido no qual os Estados tinham talhado os seus domínios. E segundo que contornos? Eis aquilo que se estudava, o único fato que preocupava os investigadores.

 

V - AS SOBREVIVÊNCIAS DO PASSADO: VELHOS PROBLEMAS, VELHOS PRECONCEITOS

Como parece, estaremos nós muito longe, quer de RATZEL, quer do debate entre a morfologia social e a geografia humana e, afinal, do próprio objeto deste livro? Não o pensamos.

Por certo, as nossas concepções de história e de geografia estão hoje muito modificadas.

Já não nos esforçamos pacientemente por reconstituir somente a armadura política, jurídica e constitucional dos povos antigos ou as suas vicissitudes militares ou diplomáticas. E toda a sua vida, toda a sua civilização material e moral, é toda a evolução das suas ciências, das suas artes, das suas religiões, das suas técnicas, das suas trocas, das suas classes e dos seus agrupamentos sociais. Bastará encarar a história da agricultura e das classes rurais, nos seus esforços de adaptação ao solo, no seu longo trabalho descontínuo de desbravamento, de abatimento de florestas, de drenagens, de povoamento: quantos problemas não levanta cuja solução depende, em parte, de estudos geográficos? Alargamento da história, desenvolvimento da geografia: combinem-se os efeitos desta dupla revolução, tal como aqui indicamos; e compreender-se-á que o velho problema das relações do solo e da história já se não pode pôr para nós como se punha para os homens de 1830 ou de 1860.

Assim se compreenderá — mas nem todos o compreenderam tão depressa nem tão completamente quanto seria necessário. A tal ponto o homem é um ser de tradições!

Quando, pouco a pouco a geografia humana se criava e organizava como ciência, os historiadores puderam pensar em solicitar colaboração aos representantes da nova ciência, que, interpelados diretamente sobre questões, ao que parecia, de ordem geográfica por homens de quem muitas vezes sofriam o prestígio, não se deram imediatamente conta de que corriam o risco, ao desertar do seu domínio próprio, de se deixarem conduzir como reféns ou como prisioneiros para um terreno que não tinham escolhido e que não era o seu. O erro tem explicação, mas era pesado.

Com efeito, onde não há plena iniciativa para o sábio não há ciência. Não se faz uma ciência respondendo simplesmente a um questionário formulado do exterior, em nome e no interesse estrito de uma outra ciência. Colaborar assiduamente no iritermédiaire des chercheurs eI des curieux, responder aí, em consciência, ás perguntas de outrem, não é constituir uma ciência. Os historiadores podem à vontade perguntar, em seu nome pessoal e sob a sua responsabilidade qual foi o papel das condições geográficas no desenvolvimento deste ou daquele povo, supondo antecipadamente essas condições como dadas de uma vez para sempre e formando uma espécie de bloco de efeitos, permanentes e sempre semelhantes: os geógrafos não deviam, não deveriam ter limitado as suas ambições a satisfazer ingenuamente semelhantes curiosidades. E como se pode pretender que não o fizeram?

Fizemos atrás referência à confusão, inicialmente tão vulgar e, aliás, tão natural, entre as divisões políticas e as divisões propriamente geográficas. Mas acaso não considerava um geógrafo, ainda há pouco, como quadro de um estudo «de geografia física e de civilizações indígenas (era o subtítulo da obra), os limites políticos, ou, antes, administrativos, de um fragmento de uma seção de colônia francesa, sem qualquer preocupação em procurar. para sua delimitação e caracterização, o que poderia haver de «regiões naturais>> no vasto território que assim se submetia á observação?

Já fizemos também referência ao preconceito gráfico», se assim se pode dizer, de um Ritter quando compara contornos sem se preocupar nada com a sua gênese, «da mesma forma que, em etnografia, se falaria dum negro ou, em botânica, de uma palmeira. Mas nos nossos dias, e regularmente — ainda há pouco tempo um geógrafo chamava a atenção para o processo e o denunciava, não vimos nós comparar entre si regiões tão diferentes como, por exemplo, a Itália e a Coréia ? Encantado da vida, o amador de formas segue nos mapas de pequena escala, nos Atlas escolares, os contornos dessas duas penínsulas; vê-as, descreve-as como igualmente alongadas, orientadas de modo semelhante, cortadas da mesma forma por uma cadeia de montanhas, e, para completar o paralelo, compara, pela sua posição, Seul e Roma, os dois centros políticos.

Havíamos feito, para terminar, referência ao preconceito de predestinação. Mas quantos livros não há ainda em França, Inglaterra, Itália, Espanha onde se descrevem estes países como outros tantos seres geográficos. onde se faz salientar a sua homogeneidade verdadeiramente providencial, enquanto a Lorena, Borgonha, Franco-Condado, Provença representam, por sua vez, regiões naturais, quadros fabricados por toda a eternidade para alojar as províncias? Como se nós não devêssemos examinar com a mais minuciosa atenção crítica a lista dos próprios países, essas unidades de base, velhíssimas unidades terrestres, designadas, por vezes, por remotíssimos nomes!

Assim se perpetuam velhos preconceitos. Assim se continuam a formular, na forma tradicional, problemas que o tempo renova sempre. E precisamente o erro de Ratzel —na medida em que há erro — reside aí. O autor da Antropogeografia não se libertou inteiramente de uma tradição bastarda; ou, mais exatamente, depois de lhe ter dado, na parte mais fecunda e propriamente geográfica da sua obra, o golpe mais importante, não a soube repelir por completo.

Há na Antropogeografia —dizia Durkheim— três ordens distintas de questões — a terceira das quais muito diferente das duas primeiras. Isto é exato, e a própria observação, a verificação desta diferença, talvez pudesse ter levado o seu autor a uma longa reflexão. Da mesma forma, Vidal de La Blache, ao estudar o lugar do homem na geografia, diz que (estudar no homem um dos poderosos agentes que trabalham na modificação das superfícies é uma questão propriamente, puramente geográfica», questão essa, acrescentaremos nós, que, como precursor, BUFFON viu com clareza e pos com grande vigor. Outra questão completamente diferente é «saber que influência exerceram as condições geográficas sobre os destinos humanos, e particularmente sobre a sua história». No dizer de RATZEL, era procurar os princípios da aplicação da geografia à história. Num e noutro lado a distinção é a mesma. O erro do professor de Leipsig foi bem o de não ter escolhido entre as duas questões — de as ter recolhido, examinado e apresentado ao mesmo tempo no seu livro.

E receamos bem que não suceda assim só na Antropogeografia, mas talvez mesmo na Politische Geographie. Não é este, evidentemente, o lugar próprio para renovar uma crítica muitas vezes feita — e bem feita — às idéias ramalhudas e por vezes contraditórias de Ratzel sobre o papel predominante que na vida dos organismos políticos representaria o espaço puro, o espaço tomado em si mesmo e independentemente dos caracteres geográficos que nós julgávamos serem inseparáveis desses mesmos organismos. Mas se RATZEL elaborou esta teoria, a tal ponto criticável que ele mesmo, no seu próprio livro, por outra via, a destruiu, fe-lo levado por uma idéia política; é que se lhe impunha uma concepção tradicional; é que, abrangendo numa visão global todos os Estados dispersos à superfície do globo, reduzia-lhes a sua vida múltipla, rica e variada a uma única manifestação; ao desejo, à esperança, à permanente avidez de extensão—termo científico para designar simplesmente a ambição conquistadora, esse sinal essencial, segundo RATZEL, esse critério infalível da vitalidade e grandeza dos Estados. Mas quem não reconhece aqui, apesar de uma transposição sábia e muito filosófica, a velha atitude que há pouco caracterizamos, a preocupação predominante e simplista das formas exteriores, dos limites graficamente definidos, dos <<contornos>> — a docilidade, numa palavra, às sugestões da história política e territorial?

Ao fazer referência a um livro de ARNOLO GUY0T, J.J.Ampere escrevia que GUYOT tentou explicar a história pela geografia. Vigorosamente, VIDAL DE LA BLACHE, que cita a frase, declara que essa pretensão, se fosse desenvolvida, não seria mais razoável do que a de dispensar a geografia na explicação da história. Nada mais exato. Fatos históricos e fatos geográficos são hoje, para nós, duas ordens distintas de fatos. É impossível, é absurdo querer intercalar uns na série dos outros, como outros tantos elos de anéis intermutáveis. Há dois encadeamentos; que permaneçam separados; porque, de contrário, que necessidade há de os distinguir?

Apreender e revelar, em cada momento da sucessão, as complexas relações que os homens, autores e criadores da história, mantêm com a natureza orgânica e inorgânica, com os múltiplos fatores do meio físico e biológico. é o papel característico do geógrafo quando se aplica aos problemas e às investigações humanas; vamos tentar mostrá-lo de urna forma mais ampla. E mesmo essa a tarefa do geógrafo. Só terá outras por usurpação e capitulação. No início, em plenos meados do século, os historiadores não viam com nitidez que assim era. E onde o poderiam ter apercebido? A geografia — que só existia como ciência descritiva, como nomenclatura — punham somente questões no exclusivo interesse dos seus trabalhos. E eles mesmos respondiam, a maior parte das vezes, como historiadores: aliás, os geógrafos do seu tempo não teriam respondido de outra forma. Mas quando hoje há geógrafos que, esquecidos dos progressos realizados pelo seu próprio esforço, se demoram ainda em semelhantes problemas, sempre postos de maneira tradicional — e quando há sociólogos (com reserva de algumas restrições e delimitações "razoáveis") que se tornam, no fundo, pura e simplesmente candidatos à sua sucessão —, é, sem dúvida, fácil de apreender simultânea- mente a origem e o vício de semelhante situação. Assim como claramente se vê que o debate sobre o método e a própria historização dos fatos tem mais valor do que uma simples curiosidade.

 
VI—UMA GEOGRAFIA HUMANA MODESTA

De fato, da mesma forma que a nossa história contemporânea já não caminha na pegada de AUGU5TIN THIERRY, a geografia do nosso tempo também já não é a da Restauração de 1815. Qual é a sua tarefa e como é que a concebe? E como a concebem aqueles nossos geógrafos que já não calçam à vontade pela forma ratzeliana e que, tendo chegado, a pouco e pouco (anteriormente não sem tateamentos: já tivemos ocasião de o referir, aliás), a uma concepção sólida de geografia, do seu fim e dos seus métodos não são susceptíveis de embriaguez metafísica? Indicar ràpidamente a sua concepção de geografia será — atacando o problema nos seus próprios fundamentos — o melhor meio de por a claro a acusação de «ambição» que tentamos discutir.

Em 1913 —quer dizer, no fim da sua vida e numa época em que estava em plena posse do seu método— o chefe da escola geográfica francesa, Vidal de La Blache, escrevia que a geografia, inspirando-se, tal como as outras ciências vizinhas (ou seja, notêmo-lo bem, tal como tas outras ciências naturais)), na idéia da unidade terrestre, tem por missão especial investigar como é que as leis físicas e biológicas que regem o mundo se combinam e se modificam ao aplicarem-se às diversas partes da superfície do globo. Ela tem por tarefa especial estudar as expressões mutáveis que a fisionomia da Terra toma, conforme os lugares).

A definição teria seduzido ALEXANDRE DE HUMBOLOT, fundador da geografia botânica, sempre tão preocupado, nas suas viagens e nos seus escritos, com a análise das paisagens. E bem sabido como Vidal de La Blache era pessoalmente excelente nessa análise e também como tinha meditado longamente a obra de Humboldt, tal como a de RITTER. Notável coincidência: lia-se, na mesma data, numa tese geográfica interessante e original, a afirmação seguinte: De bom grado diríamos que na análise da paisagem está toda a geografia>>; e mais adiante: <As idéias de um biogeógrafo nascem todas da contemplação da paisagem>>. Fórmulas interessantes, embora se lhes possam pôr algumas reservas; mas acaso não excluirão, não porão fora do domínio geográfico todo o conjunto de problemas que o ligam ao homem e às sociedades humanas? De modo nenhum, e o próprio geógrafo de quem acabamos de citar duas frases reveladoras da influência de um geobotanista —Ch. FLAHAULT— faz uma confissão implícita: <<Os outros meios de conhecimento: exame de estatísticas, análise histórica da evolução dos agrupamentos humanos, segundo os documentos de arquivos, servem somente para precisar, para completar, para retificar as idéias que extraímos do estudo direto da natureza». Evolução dos agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos? Mas que vêm fazer os arquivos na paisagem? E que o homem, pelo mesmo título que a árvore —e ainda melhor, e ainda mais, e de outra forma—, é um dos fatores essenciais da paisagem.

O homem é um agente geográfico, e não o menos importante. Contribui para revestir, conforme os lugares, a fisionomia da Terra com essas «expressões mutáveis» que a geografia (tem por tarefa especial» estudar. Desde há séculos e séculos, pelo seu labor acumulado, pela audácia e decisão das suas iniciativas, -o homem apresenta-se-nos como um dos mais poderosos artífices da modificação das superfícies terrestres. Não há força que não utilize, que não submeta à sua vontade; não há região, como se tem dito, que não apresente os estigmas da sua intervenção. Atua sobre o solo isoladamente; atua mais ainda coletivamente — por intermédio de todos os seus agrupamentos, dos mais restritos aos mais vastos, desde os agrupamentos familiares aos políticos. E tal ação do homem sobre o meio é precisamente o que de humano entra no âmbito da geografia.

A geografia é, repete incisivamente Vidal de La Blache no artigo que citamos anteriormente, (a ciência dos lugares, e não a ciência dos homens». Análises históricas da evolução dos agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos... Sim, o geógrafo deve recorrer a tais análises, a tais documentos; mas aquilo que lhes deve pedir não é que o informem sobre o papel do solo nessa evolução, nem sobre a influência que as condições geográficas puderam ter exercido no decurso dos tempos sobre os destinos e sobre a própria história dos povos; deve procurar ser por eles ajudado a determinar qual a ação que os povos, os agrupamentos, as sociedades dos homens puderam exercer e exerceram de fato sobre o meio. (Para explicar os fenômenos geográficos de que o homem foi testemunha ou artífice é necessário estudar a sua evolução no passado, com a ajuda da documentação dos arquivos. A declaração é de A. Demangeon. Vê-se que, também ele, para tomar a sua perspectiva não abandona o terreno geográfico.

"A geografia", continua Vidal de La Blache, «interessa-se pelos acontecimentos da história na medida em que estes põem em ação e revelam, nas regiões em que se produzem, propriedades, virtualidades que, sem eles, teriam ficado latentes. Definição nítida, estrita e egoistamente - geográfica, como se vê. E desta vez o ponto de vista é perfeitamente claro. «A geografia é a ciência dos lugares, não a dos homens>>. Eis aqui, na verdade, a tábua de salvação.

Retomemos agora a críticas que acima expusemos. Depois destes comentários terão ainda algum alcance? Evidentemente que não.

Certamente que já o verificamos: quem estuda a ação das condições geográficas sobre a estrutura dos grupos sociais corre o risco de se perder ao atribuir valor primordial, e não só decisivo, mas único, a essas condições geográficas. Corre o risco de ver aí a causa de certa estrutura social cuja ubiqüidade parece ignorar. Mas quem altera os termos da questão e põe o problema de saber, não já qual é a ação dos grupos sociais sobre o meio geográfico, mas antes, com mais escrúpulo e precisão — a geografia é a ciência dos lugares —, quais os traços de uma dada paisagem, de um dado conjunto geográfico diretamente determinado ou historicamente reconstituído, que se explicam ou podem explicar-se pela ação continua, positiva ou negativa, de um certo grupo ou de uma certa forma de organização social; quem, por exemplo; ao verificar antigamente a extensão antinatural de certas culturas em regiões que parecem excluí-las, relaciona este fato com o regime de isolamento, em que todos os grupos humanos procuram, acima de tudo, bastar-se a si próprios, sem nada comprar a outros: se acaso for prudente, não corre o risco de erro, confusão ou generalização abusiva. Digo eu: se for prudente; mais valeria dizer: se não for exclusivista. Na verdade, na região de Morvan, a vinha —que era tão corrente na Idade Média que uma comuna do cantão de Toulon-sur Arrouz, Sanvignes (Sint l’inea, como diz um manuscrito do século xiv), ia buscar o nome à sua total, radical, absoluta e quase única incapacidade em alimentar esta planta quente — resulta bem de um regime de isolamento, tal como sucede na Normandia ou na Flandres; mas é necessário ainda destacar, quando se fala em tal, a influência exercida sobre esta cultura paradoxal pelo hábito de misturar mel, canela e coentros com o vinho, o que o transformava numa mézinha e enfraquecia a rudeza nativa dos mais ingratos sumos de uva.

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 Na realidade, quando se pretende encarar a geografia do ponto de vista do homem — e entenda-se que se trata apenas de um entre muitos outros pontos de vista —, aquilo que ela estuda, aquilo que nos dá a conhecer é o meio- em que se desenrola a vida humana. Em primeiro lugar descreve o; em seguida analisa-o; posteriormente tenta explicá-lo com a permanente preocupação das repercussões e interferências. O próprio homem, mediante as suas obras, é alcançado pela geografia: obras de destruição e de criação, obras pessoais, obras indiretas. E alcança-o precisamente na medida em que o homem atua sobre o meio, em que lhe imprime a sua marca em que o modifica adaptando-se-lhe.

A geografia não diz, não deve dizer: (A casa do homem explica-se pelo solo). Verifica, deve simplesmente verificar: (Esta casa, construção ora humilde, ora orgulhosa e complicada, de uma feição simultaneamente inovadora e tradicionalista, que escapa, como tal, à ação do geógrafo, pertence, não obstante, à paisagem, depende do meio -geográfico e adapta-se-lhe através de tais ou tais elementos, disposições, caracteres secundários ou fundamentais: e por isso, mas somente por isso, a casa está no campo das minhas atribuições..

Da mesma forma, a geografia não diz, não deve dizer: <<O crescimento, a extensão, a evolução de determinado Estado explica-se pelo solo que ocupa, por estas ou aquelas vantagens de posição ou de situação. Não pode dizê-lo, pois, na verdade (e não sem razão), os sociólogos levantar-se-iam e diriam: Quem, senão o sociólogo, poderá tomar conhecimento de tudo quanto diz respeito à estrutura material dos grupos e à forma como os elementos se distribuem no espaço? É esse efetivamente o objeto de uma ciência sociológica especial: a morfologia social.

O solo, não o Estado: eis o que deve preocupar o geógrafo. E, assim como ele apreende, como pode chegar às instituições, a essas coisas imateriais, por intermédio dos objetos que as exprimem e que o etnógrafo recolhe e classifica nos seus museus, também não é direta mente que o geógrafo apreende as sociedades humanas, as sociedades políticas; apreende-as sim pelos vestígios que deixam à superfície do globo, peia marca que aí imprimem; consegue-as, por assim dizer, através da sua projeção sobre o solo>>. E quanto ao resto?

Quanto ao resto, todos podem livremente ir buscar aos trabalhos dos geógrafos, os tratados de conjunto ou às monografias regionais, os elementos para elaborações pessoais. O investigador que se propõe explicar pelo solo e pelo clima a formação dos instintos que observa e os traços — tal como um Boutmy, por exemplo — com que reconstitui a fisionomia coletiva do povo inglês ou do povo americano tem inteira
liberdade para ir buscar aos estudos geográficos sobre a Inglaterra os fatos e elementos, que combinará à sua vontade e para os seus próprios objetivos. Mas o que desse modo efetua é etologia coletiva, e não geografia. Sem dúvida que maneja noções geográficas, mas maneja-as como etólogo e para fins não geográficos.

E, do mesmo modo, o sociólogo que apenas concebe as sociedades como grupos de homens organizados em determinados pontos do globo, e não comete o erro de os considerar como se fossem independentes da sua base territorial, tem inteira liberdade para investigar em que medida a configuração do solo, a sua riqueza mineral, a fauna e
a flora afetam a sua organização. Também o sociólogo poderá manejar noções geográficas, que irá colher, inteiramente elaboradas, aos livros dos geógrafos; mas utilizá-las-á como morfologista e para fins que não serão geográficos.

Por outras palavras, a morfologia social não pode pretender suprimir, em seu benefício, a geografia humana, porque as duas disciplinas não têm nem o mesmo método, nem a mesma tendência, nem o mesmo objeto.

 

Capítulo 1 do livro "A Terra e a Evolução Humana", Ed. Cosmos, Lisboa, 1955