Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia
Política
Karl Marx - 1859
Produção, Consumo, Distribuição, Troca
(Circulação)
1. Produção
a) O objeto a considerar em primeiro lugar é
a produção material.
Indivíduos que produzem em sociedade, ou seja
a produção de indivíduos socialmente determinada: eis naturalmente o ponto de
partida. O caçador e o pescador individuais e isolados, com que começam Smith e
Ricardo, fazem parte das ficções pobremente imaginadas do século XVIII; são
robinsonadas que, pese embora aos historiadores da civilização, não exprimem de
modo nenhum uma simples reacção contra um refinamento excessivo e um regresso
aquilo que muito erradamente se entende como vida natural. O "contrato
social" de Rousseau, que estabelece ligações e laços entre sujeitos
independentes por natureza, tampouco se baseia em tal naturalismo. Este
naturalismo não é senão a aparência, e aparência puramente estética, das
grandes e pequenas robinsonadas. Na realidade, trata-se antes de uma
antecipação da "sociedade civil", que se preparava desde o século XVI
e que no século XVIII marchava a passos de gigante para a maturidade. Nesta
sociedade de livre concorrência, cada indivíduo aparece desligado dos laços
naturais, etc., que, em épocas históricas anteriores, faziam dele parte
integrante de um conglomerado humano determinado e circunscrito. Este indivíduo
do século XVIII é produto, por um lado, da decomposiçâo das formas de sociedade
feudais, e por outro, das novas forças produtivas desenvolvidas a partir do
século XVI. E, aos profetas do século XVIII, (sobre cujos ombros se apoiam
ainda totalmente Smith e Ricardo), este indivíduo aparece como um ideal cuja
existência situavam no passado; não o vêem como um resultado histórico, mas sim
como ponto de partida da história. E que, segundo a concepção que tinham da
natureza humana, o indivíduo nao aparece como produto histórico, mas sim como
um dado da natureza pois, assim, está de acordo com a sua concepção da natureza
humana. Até hoje, esta mistificaçâo tem sido própria de todas as épocas novas.
Stuart, que se opôs em muitos aspectos ao século XVIII e que, dada a sua
condição de aristocrata, se ateve mais ao terreno histórico, evitou esta
puerilidade.
Quanto mais recuamos na história, mais o
indivíduo - e portanto o produtor individual - nos aparece como elemento que
depende e faz parte de um todo mais vasto; faz parte, em primeiro lugar, e de
maneira ainda inteiramente natural, da família e dessa família ampliada que é a
tribo; mais tarde, faz parte das diferentes formas de comunidades provenientes
do antagonismo entre as tribos e da fusão destas. Só no século XVIII, na
"sociedade civil", as diversas formas de conexão social aparecem face
ao indivíduo como simples meios para alcançar os seus fins privados, como uma
necessidade exterior a ele. Contudo, a época que gera este ponto de vista, esta
idéia do indivíduo isolado, éexatamente a época em que as relações sociais
(universais, segundo esse ponto de vista) alcançaram o seu mais alto grau de
desenvolvimento.
O homem é, no sentido mais literal, um zoon
politikon (animal político); não é simplesmente um animal social, é também um
animal que só na sociedade se pode individualizar. A produção realizada por um
individuo isolado, fora do âmbito da sociedade - fato excepcional, mas que pode
acontecer, por exemplo, quando um indivíduo civilizado, que potencialmente
possui já em si as forças próprias da sociedade, se extravia num lugar deserto
- é um absurdo tão grande como a idéia de que a linguagem se pode desenvolver
sem a presença de individuos que vivam juntos e falem uns com os outros. Não
vale a pena determo-nos mais neste ponto. Nem seria sequer de abordar a
questão, se esta tolice - que tinha sentido e razão de ser para os homens do
século XVIII -não tivesse sido novamente introduzida, com a maior das
seriedades, na economia política moderna por Bastiat, Carey, Proudhon, etc.
claro que, para Proudhon, entre outros, se torna bastante cômodo explicar a
origem de uma relação econômica cuja gênese histórica desconhece em termos de filosofia
da história; e, assim, recorre aos mitos: essa relação foi uma idéia súbita e
acabada que ocorreu a Adão ou Prometeu, os quais, em seguida a introduziram,
etc. Não há nada mais enfadonho e árido do que o locus communus em dei irio.
Por conseguinte, quando falamos de produção,
trata-se da produção num determinado nível de desenvolvimento social, trata-se
da produção de indivíduos que vivem
Se não existe produção em geral, também não
há uma produção geral. A produção é sempre um ramo particular da produção - por
exemplo, a agricultura, a criação de gado, a manufatura - ou uma totalidade.
Porém, a economia política não é a tecnologia. Analisaremos mais tarde a
relação entre as determinações gerais da produção, num dado estágio social, e
as formas particulares da produção.
Por fim, a produção não é apenas uma produção
particular: constitui sempre um corpo social, um sujeito social, que atua num
conjunto - mais ou menos vasto, mais ou menos rico - de ramos de produção. Não
éeste o lugar mais adequado para estudar a relação entre o resultado da análise
científica e o movimento da realidade. LDevemos, por conseguinte, estabelecer
uma distinção entre]*a produção em geral, os ramos particulares da produção e a
totalidade da produção.
1) As condições sem as quais não é possível a
produção. Não passa, contudo, de uma simples enumeração dos momentos essenciais
de qualquer produção; e, com efeito, limita-se, como veremos, ao enunciado de
algumas determinações elementares que, à força de serem repisadas, se convertem
em vulgares tautologias.
2) As condições que favorecem em maior ou
menor grau a produção; por exemplo: a análise de Adam Smith sobre o estado de
progresso ou de estagnação das sociedades. Para dar um caráter científico a
esta análise da sua obra, que, nele, tem o valor de conspecto geral, seria
necessário investigar os diversos níveis de produtividade atingidos por cada um
dos povos em diferentes períodos do seu desenvolvimento. Essa investigação
ultrapassa os limites do nosso estudo, mas inclui-la-emos nas partes referentes
à análise da concorrência, da acumulação, etc., na medida em que ela aí se
enquadrar. Em termos gerais, a resposta é a seguinte: um povo industrial atinge
o seu apogeu produtivo no momento em que atinge o seu apogeu histórico geral.
ln fact , um povo encontra-se no seu apogeu industrial quando, para ele, o
essencial não é o lucro, mas sim a busca do lucro (é essa a superioridade dos
americanos sobre os ingleses). A resposta também pode ser a seguinte: certas
raças, certas aptidões, certos climas, certas condições naturais (proximidade
do mar, fertilidade do solo, etc.) são mais favoráveis à produção do que
outras; isto conduz mais uma vez a uma tautologia: a riqueza gera-se com tanto
mais facilidade quanto maior for o número dos seus elementos subjetivos e
objetivos disponíveis.
Mas não é apenas isto que os economistas
visam nessa parte introdutória geral. Pretendem prioritariamente (cf. MilI)
apresentar a produção -contrariamente à distribuição, etc. - como sujeita a
leis eternas da natureza, independentes da história; o que é uma boa ocasião
para insinuar que as relações burguesas são leis naturais e indestrutíveis da
sociedade in abstracto. esta a finalidade, mais ou menos consciente, de toda a
manobra. Já na distribuição, segundo eles, os homens se podem permitir toda a
espécie de arbitrariedades. Não falando já da separação brutal entre a produção
e a distribuição que isto constitui - e põe de parte a sua ligação real - uma
coisa é imediatamente evidente: por mais diferente que seja a distribuição nos
diversos estágios da sociedade, é possível fazer ressaltar - tal como no caso
da produção - as características comuns, assim como épossível confundir ou
dissolver todas as diferenças históricas em leis que se apliquem ao homem
Os dois pontos que todos os economistas
incluem nesta rubrica, são: 1) a propriedade; 2) a proteção da propriedade pela
justiça, pela policia, etc.
A isto responderemos em duas palavras:
1) A produção é sempre apropriação da
natureza pelo indivíduo no seio e por intermédio de uma forma de sociedade
determinada. Neste sentido, éuma tautologia afirmar que a propriedade
(apropriação) constitui uma condição da produção. Mas é ridículo saltar daqui
para uma forma determinada de propriedade, para a propriedade privada, por
exemplo (tanto mais que esta implica, como condição, uma forma sua antagónica;
a não-propriedade). Bem pelo contrário, a história mostra-nos que a propriedade
comum (por exemplo nos índios, nos Eslavos, nos antigos Celtas, etc.)
representa a forma primitiva, forma essa que, durante muito tempo, continuou a
desempenhar um papel muito importante, como propriedade comunal. Não está em
causa por agora o saber-se se a riqueza se desenvolve melhor sob esta ou aquela
forma de propriedade. Mas é uma pura tautologia afirmar que não pode haver
produção, nem tão pouco sociedade, quando não existe nenhuma forma de
propriedade. Uma apropriação que não se apropria de nada é uma contradictio in
subjecto (contradição nos termos).
2) (Proteção da propriedade, etc.). Quando se
reduzem estas trivialidades ao seu conteúdo real, elas exprimem muito mais do
que aquilo que sabem os seus pregadores; a saber: cada forma de produção gera
as suas próprias relações jurídicas, a sua própria forma de governo, etc. Muita
ignorância e muita incompreensão se revelam no fato de se relacionar apenas
fortuitamente fenômenos que constituem um todo orgânico, de se apresentar as
suas ligações como nexos puramente reflexivos. Aos economistas burgueses
parece-lhes que a produção funciona melhor com a polícia moderna do que, por
exemplo, com a aplicação da lei do mais forte. Esquecem-se apenas de que a
"lei do mais forte" também constitui um direito e que é esse direito
que sobrevive, com outra forma, naquilo a que chamam "Estado de
direito".
E claro que, quando as condições sociais
correspondentes a uma determinada forma da produção se encontram ainda em
desenvolvimento - ou quando já entraram em declínio - se manifestam certas
perturbaçõesna produção, embora a sua intensidade e os seus efeitos sejam
variáveis.
Em resumo: todas as épocas da produção têm
determinados elementos comuns que o pensamento generaliza: porém, as chamadas
condições gerais de toda a produção são elementos abstratos que não permitem
compreender nenhuma das faces históricas reais da produção.
2. As Relações Gerais entre a Produção e a Distribuição, a Troca e o
Consumo
Antes de prosseguir com a análise da
produção, énecessário examinar as diversas rubricas com que os economistas a
associam.
A primeira idéia que de imediato se
apresenta, é a seguinte: na produção, os membros da sociedade fazem com que os
produtos da natureza tomem formas adequadas às necessidades humanas.
A distribuição determina a proporção (o
quantum) de produtos que cabem ao indivíduo; a troca determina a produção, da
qual o indivíduo reclama a parte que lhe foi atribui'da pela distribuição.
Segundo os economistas, produção,
distribuiçâo, troca e consumo constituem assim um silogismo com todas as regras:
a produção é o termo universal, a distribuição e a troca são o termo
particular, o consumo é o termo singular com o qual o todo se completa. Há
aqui, sem dúvida, um nexo, mas bastante superficial. A produção é determinada
por leis gerais da natureza; a distribuição resulta da contingência social e,
por isso, pode exercer urna ação mais ou menos estimulante sobre a produção; a
troca situa-se entre ambas, como um movimento formalmente social; o ato final
do consumo, que é concebido não apenas como resultado, mas também como objetivo
finai, situa-se, a bem dizer, fora da economia (a não ser quando, por sua vez,
reage sobre o ponto de partida para iniciar um novo processo).
Os adversários dos economistas - tanto os que
provêm da Economia Política como os que lhe são estranhos ) acusam-nos de
dissociarem grosseiramente coisas que constituem um todo, mas colocam-se no
mesmo terreno, ou até muito mais abaixo. Com efeito, não há nada mais trivial
do que acusar os economistas de considerarem a produção exclusivamente como um
fim em si, e alegar que a distribuição é igualmente importante. Esta acusação
baseia-se exatamente na concepção dos economistas segundo a qual a distribuição
existe à margem da produção, como esfera autônoma e independente. Acusam-nos
também de não considerarem os diversos momentos na sua unidade; como se esta
dissociação não tivesse passado da realidade para os livros, como se ela
tivesse vindo dos livros para a realidade! Como se se tratasse de equilibrar
dialeticamente os conceitos, e não de analisar as reações reais!
A produção é também imediatamente consumo.
Duplo consumo, subjetivo e objetivo: o indivíduo que, ao produzir, está
desenvolvendo as suas capacidades, está também dispendendo-as, isto é,
consome-as no ato da produção, tal como na procriação natural se consomem
forças vitais. Em segundo lugar: consumo dos meios de produção utilizados, os
quais se desgastam e se dissolvem em parte (como na combustão, por exemplo) nos
seus elementos naturais; do mesmo modo, as matérias-primas utilizadas perdem a
sua forma e a sua constituição naturais: são consumidas. Portanto, em todos os
seus momentos, o próprio ato da produção é também um ato de consumo. Aliás, os
economistas admitem-no. Chamam consumo produtivo à produção que corresponde
diretamente ao consumo e ao consumo que coincide imediatamente com a produção.
Esta identidade da produção e do consumo remete para a proposição de Espinoza:
determina tio est nega tio.
No entanto, os economistas apenas estabelecem
esta definição de consumo produtivo para dissociarem o consumo correspondente à
produção, do consumo propriamente dito - o qual tomam como antítese e
destruição da produção. Analisemos, pois, o consumo propriamente dito.
O consumo é também imediatamente produção do mesmo
modo que, na natureza, o consumo dos elementos e substâncias químicas é a
produção das plantas. E claro que na nutrição, por exemplo - que é uma forma
particular do consumo - o homem produz o seu próprio corpo. Isto é válido para
toda a espécie de consumo que, por qualquer forma, produza o homem. Produção
consumidora. Porém - objetam os economistas -esta produção equivalente ao
consumo é uma segunda produção, surgida da destruição do produto da primeira.
Na primeira, o produto objetiva-se; na segunda, é o objeto criado por ele que
se personifica. Por isso, a produção consumidora - embora constitua a unidade
imediata da produção e do consumo - é essencia/mente diferente da produção
propriamente dita. Esta unidade imediata, na qual a produção coincide com o
consumo e o consumo coincide com a produção, deixa subsistir a dualidade
intrínseca de cada um.
Portanto, a produção é imediatamente consumo,
e o consumo é imediatamente produção; cada termo éimediatamente o seu
contrário. Mas, simultaneamente, há um movimento mediador entre ambos; a
produção éintermediária do consumo, cuja matéria cria; sem esta, aquele ficaria
privado do seu objeto; por sua vez, o consumo é intermediário da produção, pois
proporciona aos seus produtos o sujeito para o qual eles o são (produtos). O
produto só atinge o seu finish final no consumo. Uma via férrea onde não
circulam trens, que não é usada, que não é consum ida, pode dizer-se que é
imaginária, que não existe. Sem produção não há consumo; mas sem consumo,
também não há produção, pois, nesse caso, a produção seria inútil.
O consumo produz a produção de duas maneiras:
1) na medida em que só no consumo o produto
se torna produto. Por exemplo: um terno só se torna realmente um terno quando é
vestido; uma casa desabitada não é realmente uma casa. Contrariamente ao
simples objeto da natureza, o produto só se afirma como produto, só se torna
produto, no consumo. Ao absorver o produto, o consumo dá-lhe o toque final
[finish strok e, no ms. de Marx], pois o [resultado] da produção é produto, não
como atividade objetivada, mas só como um objeto para o sujeito atuante.
2) na medida em que o consumo cria a
necessidade de uma nova produção e, por conseguinte, a condição subjetiva e o
móbil interno da produção, a qual é o seu pressuposto. O consumo motiva a
produção e cria também o objeto que, ao atuar sobre ela, vai determinar a sua
finalidade. verdade que a produção fornece, no seu aspecto manifesto, o objeto
do consumo; mas também é evidente que o consumo fornece, na sua forma ideal, o
objeto da produção; este surge na forma de imagem interior, de necessidade, de
impulso e finalidade. O consumo cria os objetos da produção, mas sob uma forma
ainda subjetiva. Sem necessidade não há produção; ora, o consumo reproduz as
necessidades.
Pelo lado da produção, o problema
caracteriza-se assim:
1) A produção fornece ao consumo a sua
matéria, o seu objeto. Consumo sem objeto não é consumo; neste sentido, a
produção cria, produz o consumo.
2) Porém, a produção não fornece apenas um
objeto de consumo; dá-lhe também o seu caráter específico e determinado, dá-lhe
o toque final - tal como o consumo dá ao produto o toque final que converte uma
vez por todas
3) A produção proporciona não só um objeto
material à necessidade, mas também uma necessidade ao objeto material. Quando o
consumo emerge do seu primitivo caráter natural, imediato e tosco - e o
permanecer nesta estágio resultaria do fato de a produção não ter também
ultrapassado o seu estágio natural, primitivo e tosco - passa a ser mediado
como impulso pelo objeto: a necessidade que o consumo sente deste último é
criada pela percepção do objeto. O objeto de arte - e analogamente, qualquer
outro produto - cria um público sensível à arte e capaz de fruição estética.
Deste modo, a produção não cria só um objeto para o sujeito; cria também um
sujeito para o objeto.
A produção engendra, portanto, o consumo, a)
fornecendo-lhe a sua matéria; b) determinando o modo de consumo; c) provocando
no consumidor a necessidade de produtos que ela criou originariamente como
objetos. Por conseguinte, produz o objeto de consumo, o modo de consumo e o
impulso para consumir. Pelo seu lado, o consumo [cria] a disposição do
produtor, solicitando-o como necessidade animada duma finalidade (a produção).
A identidade entre o consumo e a produção
reveste-se pois, de um triplo aspecto:
1) Identidade imediata. A produção é consumo,
o consumo é produção. Produção consumidora. Consumo produtivo. Os economistas
designam ambos por consumo produtivo; estabelecem, no entanto, uma distinção -
consideram a primeira como reprodução, e o segundo como consumo produtivo;
todas as investigações sobre a primeira referem-se ao trabalho produtivo e ao
trabalho improdutivo; as investigações sobre o segundo tem como objeto o consumo
produtivo ou não produtivo.
2) Cada um dos termos surge como mediação do
outro e mediado pelo outro. Isto exprime-se como uma dependência recíproca,
como um movimento através do que se relacionam entre si e se mostram
reciprocamente indispensáveis, embora permaneçam exteriores um ao outro. A
produção cria a matéria para o consumo, enquanto objeto exterior a este; o
consumo cria a necessidade enquanto objeto interno, enquanto finalidade da
produção. Sem produção não há consumo; sem consumo não há produção. [Isto] é
repetido de inúmeras formas na economia poítica.
3) A produção não é apenas imediatamente
consumo, nem o consumo é apenas imediatamente produção; mais: a produção não é
simplesmente um meio para o consumo, nem o consumo, simplesmente um fim para a
produção - o mesmo é dizer, tão pouco é suficiente o fato de cada um
proporcionar ao outro o seu objeto: a produção, o objeto exterior, material, do
consumo; o consumo, o objeto ideal da produção. Cada um dos termos não se
limita a ser imediatamente o outro, nem o mediador do outro: mais do que isso,
ao realizar-se, cria o outro, realiza-se sob a forma do outro. O consumo
consuma o ato de produção, dando ao produto o seu caráter acabado de produto,
dissolvendo-o, absorvendo a sua forma autônoma e material, e desenvolvendo -
através da necessidade da repetição - a aptidão para produzir surgida no
primeiro ato da produção. O consumo não é pois, apenas, o ato final pelo qual o
produto se torna realmente produto: é também o ato pelo qual o produtor se torna
realmente produtor. A produção, pelo seu lado, gera o consumo, criando um modo
determinado de consumo, originando - sob a forma de necessidade - o desejo e a
capacidade de consumo.
Esta identidade mencionada no ponto 3) é
particularmente discutida pela economia política, a propósito da relação entre
a oferta e a procura, entre os objetos e as necessidades, entre as necessidades
criadas pela sociedade e as necessidades naturais.
Para um hegeliano não é agora mais fácil do
que identificar a produção com o consumo. E isso foi feito não só por
escritores socialistas, mas até por economistas vulgares (como, por exemplo,
Say, quando pensam que, se considerarmos um povo - ou a humanidade in abstracto
- a sua produção é igual ao seu consumo. Storch denunciou o erro de Say,
notando que um povo, por exemplo, não consome simplesmente a sua produção, que
também cria meios de produção, etc., capital fixo, etc. Além do mais, encarar a
sociedade como um sujeito único é encará-la de forma falsa, especulativa; para
um dado sujeito, produção e consumo surgem como momentos de um mesmo ato.
Importa realçar sobretudo que, se se considerar a produção e o consumo como
atividades quer dum indivíduo, quer de um grande número de indivíduos
[isolados], tanto uma como outro seguem, em qualquer caso, como elementos de um
processo no qual a produção é o verdadeiro ponto de partida, sendo, por
conseguinte, o fator preponderante. O consumo, enquanto necessidade, é o
próprio momento interno da atividade produtiva; mas esta última é o ponto de
partida da realização, e portanto também o seu elemento preponderante, isto é:
atá pelo qual todo o processo se renova. O indivíduo produz um objeto e, ao
consumir o seu produto, regressa ao ponto de partida, procedendo como indivíduo
que produz e que se reproduz. Deste modo, o consumo representa um momento da
produção.
Em contrapartida, na sociedade, a relação
entre o produtor e o produto, uma vez acabado este último, éuma relação
exterior; o regresso do objeto ao sujeito depende da contingência das relações
que mantêm com os outros indivíduos; ele não se apropria diretamente do
produto; - além do mais, quando produz em sociedade, a finalidade do sujeito
não é a apropriação imediata do produto. Entre o produtor e os produtos
interpõe-se a distribuição, a qual, mediante leis sociais, determina a parte do
mundo dos produtos que cabe aquele; inter-põe-se, portanto, entre a produção e
o consumo.
Ora bem: Constituirá a distribuição uma
esfera autônoma e independente, exterior à produção?
Há um fato que não pode deixar de nos
impressionar ao examinarmos os tratados correntes de economia política: neles
todas as categorias são apresentadas de duas maneiras; por exemplo, na
distribuição figuram a renda imobiliária, o salário, o juro, o lucro, ao
passado que a terra, o trabalho e o capital figuram como agentes da produção.
No tocante ao capital, vemos à evidência que aparece sob duas formas: 1) como
agente da produção; 2) como fonte de rendimento, isto é: como elemento
determinante de certas formas de distribuição. por isso que o juro e o lucro
figuram também na produção, pois são formas de que se reveste o crescimento do
capital, quer dizer, são momentos da sua própria produção. Na qualidade de
formas da distribuição, juro e lucro pressupõem o capital como agente da
produção.
São igualmente modos de reprodução do
capital.
De modo análogo, o salário é o trabalho
assalariado considerado noutra rubrica: o caráter determinado que o trabalho
possui aqui como agente da produção surge além como determinação da
distribuição. Se não estivesse determinado como trabalho assalariado, o modo
como o trabalho participa na repartição dos produtos não adquiriria a forma de
salário; veja-se o caso da escravatura. Finalmente, - se considerarmos a renda
imobiliária - que é a forma mais desenvolvida sob a qual a propriedade da terra
participa na distribuição dos produtos - vemos que ela pressupõe a grande
propriedade agrária (ou melhor a grande agricultura) como agentes de produção e
não a terra pura e simples, tal como o salário não pressupõe o puro e simples
trabalho.
Por conseguinte, as relações e os modos de
distribuição aparecem muito simplesmente como o reverso dos agentes de
produção: um indivíduo que contribui para a produção com o seu trabalho
assalariado participa, sob a forma de salário, na repartição dos produtos
criados pela produção. A estrutura da distribuição écompletamente determinada
pela estrutura da produção. A própria distribuição é um produto da produção,
tanto no que se refere ao seu objeto (pois só se podem distribuir os resultados
da produção) como no que se refere à sua forma (posto que o modo determinado de
participação na produção determina as formas particulares da distribuição, isto
é: a forma sob a qual se participa na distribuição). Por conseguinte, é uma
rematada iIusão circunscrever a terra à produção, a renda imobiliária
àdistribuição, etc.
Economistas como Ricardo, a quem se reprova
com frequência o fato de apenas terem em vista a produção definem a
distribuição como o único objeto da economia. Na verdade, consideravam
instintivamente que são as formas de distribuição que melhor exprimem as
relaçôes dos agentes de produção numa dada sociedade.
Para o indivíduo isolado, a distribuição
aparece naturaImente como uma lei social que determina a sua posição no seio da
produção, isto é: no quadro em que produz e que, portanto, precede a produção.
Ao nascer, o indivíduo não tem capital nem propriedade agrária; logo que nasce
é condenado, pela distribuição social, ao trabalho assalariado. Na realidade, o
próprio fato de a tal ser condenado, resulta do fato de o capital e a
propriedade agrária serem agentes autônomos da produção.
Mesmo à escala das sociedades na sua
globalidade, a distribuição parece preceder e determinar, até certo ponto, a produção
- surge, de certo modo, como um fato pré-econômico. Um povo conquistador
reparte a terra entre os conquistadores; deste modo impõe uma certa repartição
e uma forma dada de propriedade agrária: determina, desse modo, a produção. Ou
então reduz os conquistados à escravatura, e baseia a sua produção no trabalho
escravo. Ou então, um povo revolucionário pode parcelarizar a grande
propriedade territorial e, mediante esta nova distribuição, dar um caráter novo
à produção. Ou então, a legislação pode perpetuar a propriedade agrária nas
mãos de certas famílias; ou faz do trabalho um privilégio hereditário para
fixar num regime de castas. Em todos estes exemplos, extraídos da história, a
estrutura da distribuição não parece ser determinada pela produção; pelo
contrário, é a produção que parece ser estruturada e determinada pela
distribuição.
Segundo a concepção mais simplista, a
distribuição apresenta-se como distribuição dos produtos, como se estivesse
afastada da produção e, por assim dizer, quase independente dela. Porém, antes
de ser distribuição de produtos, é: 1) distribuição de instrumentos de
produção; 2) distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes ramos da
produção - e esta é uma definição mais ampla da relação anterior (consideração
dos indivíduos em determinadas relações de produção). Manifestamente, a
distribuição dos produtos não é mais do que resultado desta distribuição, que
está incluída no próprio processo de produção e determina a estrutura da
produção. Se não se tiver em conta a última distribuição, englobada na
produção, esta aparece, evidentemente, como uma abstração oca; na verdade, a
distribuição dos produtos é determinada por esta distribuição, a qual, na sua
origem, é um fator de produção. Ricardo, que se esforçou por analizar a
produção moderna na sua estrutura social determinada e que é o economista da
produção por excelência, declara, precisamente por ssa razão, que o verdadeiro
tema da economia moderna não é a produção, mas sim a distribuição. Eis mais uma
evidência da inépcia dos economistas que encaram a produção como uma verdade
eterna e relegam a história para o domínio da distribuição.
Sem dúvida que a relação entre esta
distribuição determinante da produção e a própria produção constitui um
problema situado também no quadro da produção. Poder-se-ia replicar: posto que
a produção parte necessariamente de uma dada distribuição de meios de produção,
pelo menos a distribuição assim entendida precede a produção e constitui a sua
condição prévia. Responder-se-ia então que a produção tem efetivamente as suas
róprias condições e premissas que constituem os seus próprios momentos. À
primeira vista, pode parecer que estas condições são fatos naturais, mas o
próprio processo da produção transforma-os de naturais em históricos: e, para
um dado período, aparecem como condições naturais da produção, para outro
período aparecem como o seu esultado histórico. Estes momentos são
constantemente modificados no interior da própria produção; a introdução das
máquinas, por exemplo, modificou tanto a distribuição dos instrumentos de
produção como a dos produtos; a grande propriedade latifundiária moderna é o
resultado, tanto do comércio e da indústria modernos, como da aplicação desta
última à agricultura.
Em última análise, as questões formuladas
reduzem-se a uma só: qual é o efeito das condições históricas sobre a produção,
e qual a relação entre esta e o movimento histórico em geral? Manifestamente,
este problema depende da discussão e da análise desenvolvida da própria
produção. Não obstante, dada a forma trivial sob que acima foram postas as
questões, podemos resolvê-lo expeditamente. Todas as conquistas supõem três
possibilidades: ou o povo conqu istador impõe ao conquistado o seu próprio modo
de produção (é o que os ingleses fazem atualmente na Irlanda e parcialmente na
índia); ou então deixa subsistir o antigo e contenta-se com um tributo (por
exemplo, os Turcos e os Romanos); ou, por fim, produz-se uma ação recíproca, de
que resulta uma forma nova, uma síntese (em parte, nas conquistas germânicas).
Em qualquer dos casos o modo de produção - seja ele o do povo conquistador, o
do povo conquistado ou o resultado da fusão de ambos - é determinante para a
nova distribuição que se estabelece. Mesmo que esta se apresente como condição
prévia para o novo período de produção, ela é já de si um produto da produção -
não só da produção histórica em geral, mas de uma produção histórica
determinada. Por exemplo, ao devastarem a Rússia, os mongóis agiram de acordo
com a sua produção - a criação de gado - que apenas exigia grandes pastagens,
para as quais os grandes espaços desabitados são uma condição fundamental. Os
bárbaros germanos, que viviam isolados nos campos e cuja produção tradicional
se baseava no trabalho agrícola realizado por servos, puderam submeter as
províncias romanas às suas condições tanto mais facilmente quanto a
concentração da propriedade da terra por que essas províncias tinham passado
alterara já completamente as antigas condições agrárias.
E verdade que em certas épocas se viveu unicamente
da pilhagem; no entanto, para haver pilhagem é necessário que haja qualquer
coisa para pilhar, quer dizer, produção. E o modo de pilhagem é, também ele
determinado pelo modo de produção; não se pode pilhar uma nação de
especuladores de Bolsa da mesma maneira que se pilha uma nação de criadores de
gado.
Quando se rouba um escravo, rouba-se
diretamente um instrumento de produção; porém, é necessário que a estrutura
produtiva do país a que se destina o escravo roubado admita o trabalho dos
escravos, caso contrário (como na América do Sul, etc.) terá que se criar um
modo de produção que corresponda à escravatura.
As leis podem perpetuar nas mãos de algumas
famílias a propriedade de um instrumento de produção, por exemplo, a terra.
Estas leis só adquirem significado econômico quando a grande propriedade
agrária se encontra em harmonia com a produção social, como na Inglaterra, por
exemplo. Em França praticava-se a pequena agricultura; apesar da existência da
grande propriedade: por isso, esta última fase foi destruída pela Revolução.
Mas - e a perpetuação, por meio de leis, do parcelamento das terras, por
exemplo? A propriedade concentra-se de novo, apesar das leis. Determinar mais
em particular a influência das leis na manutenção das relações de distribuição,
e a sua influência, por conseguinte, na produção.
A circulação propriamente dita ou não é mais
do que um momento determinado da troca, ou é a troca considerada na sua
totalidade.
Na medida em que a troca não é mais do que um
momento mediador entre, por um lado, a produção e a distribuição que aquela
determina e, por outro lado, o consumo - e dado que o próprio consumo aparece
também como um momento da produção - é evidente que a troca se inclui na
produção, e é também um seu momento.
Em primeiro lugar, é evidente que a permuta
de atividades e capacidades que ocorre no interior da produção faz diretamente
parte desta última - é até um dos seus elementos essenciais. Em segundo lugar,
o mesmo se aplica à troca de produtos, pois esta é um meio que permite fornecer
o produto acabado, destinado ao consumo imediato. No que até agora vimos, a
troca é um ato incluído na produção. Em terceiro lugar, a chamada exchange
entre dealers é, dada a sua organização, completamente determinada pela produção;
representa uma atividade produtiva.
Somente na sua última fase - no momento em
que o produto é trocado para ser consumido imediatamente - é que a troca se
apresenta independente e exterior à produção e, por assim dizer, indiferente a
esta. Porém observamos que: 1) não existe troca sem divisão do trabalho, quer
esta seja natural, quer seja um resultado histórico; 2) a troca privada
pressupõe a produção privada; 3) a intensidade da troca, assim como a sua
extensão e a sua estrutura, são determinadas pelo desenvolvimento e pela
estrutura da produção. Por exemplo, a troca entre a cidade e o campo, a troca
no campo, na cidade, etc. Portanto, a produção compreende e determina
diretamente a troca em todas as suas formas.
A conclusão a que chegamos não é de que a
produção, a distribuição, a troca e o consumo são idênticos; concluímos, sim,
que cada um deles é um elemento de um todo, e representa diversidade no seio da
unidade. Visto que se determina contraditoriamente a si própria, a produção
predomina não apenas sobre o setor produtivo, mas também sobre os demais
elementos; é a partir dela que o processo sempre se reinicia. E evidente que
nem a troca nem o consumo podiam ser os elementos predominantes. O mesmo se
verifica em relação à distribuição tomada como distribuição dos produtos; e se
a :omarmos como distribuição dos agentes de produção, ela é um momento da
produção. Por conseguinte, uma dada produção determina um dado consumo, uma
dada distribuição e uma dada troca; determina ainda as relações recíprocas e
bem determinadas entre esses diversos elementos. Sem dúvida que a produção em
sentido estrito é também determinada pelos outros elementos. Assim, quando o
mercado - esfera da troca - se expande, a produção aumenta de volume e
divide-se ainda nais. Quando o capital se concentra, ou quando se nodifica a
distribuição dos habitantes entre a cidade e o ampo, etc., a produção
modifica-se devido a essas nodificações de distribuição. Por último, as
necessidales de consumo influem na produção.
Existe uma interação de todos estes elementos: isto é próprio de um todo
orgânico.
3. O Método da Economia Política
Ao estudarmos um determinado país do ponto de
vista da sua economia política, começamos por analisar a sua população, a
divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos da
produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços
das mercadorias, etc.
Parece correto começar pelo real e o
concreto, pelo que se supõe efetivo; por exemplo, na economia, partir da
população, que constitui a base e o sujeito do ato social da produção no seu
conjunto. Contudo, a um exame mais atento, tal revela-se falso. A população é
uma abstração quando, por exemplo, deixamos de lado as classes de que se
compõe. Por sua vez, estas classes serão uma palavra oca se ignorarmos os
elementos em que se baseiam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital,
etc. Estes últimos supõem a troca, a divisao do trabalho, os preços, etc. O
capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o
dinheiro, sem os preços, etc.
Por conseguinte, se começássemos simplesmente
pela população, teríamos uma visão caótica do conjunto. Por uma análise cada
vez mais precisa chegaríamos a representações cada vez mais simples; do
concreto inicialmente representado passaríamos a abstrações progressivamente
mais sutis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados,
teríamos que empreender a viagem de regresso até encontrarmos de novo a
população - desta vez não teríamos uma idéia caótica de todo, mas uma rica
totalidade com múltiplas determinações e relações.
Tal foi historicamente, a primeira via
adotada pela economia política ao surgir. Os economistas do século XVII, por
exemplo, partem sempre do todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários
Estados, etc.,; no entanto, acabam sempre por descobrir, mediante a análise, um
certo número de relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do
trabalho, o dinheiro, o valor, etc. Uma vez fixados e mais ou menos elaborados
estes fatores começam a surgir os sistemas econômicos que, partindo de noções
simples - trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca - se
elevam até ao Estado, à troca entre nações, ao mercado universal. Eis,
manifestamente, o método científico correto.
O concreto é concreto porque é a síntese de
múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no
pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de
partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o
ponto de partida da intuição e da representação. No primeiro caso, a
representação plena é volatilizada numa determinação abstrata; no segundo caso,
as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do
pensamento. Eis por que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado
do pensamento que, partindo de si mesmo se concentra em si mesmo, se aprofunda
em si mesmo e se movimenta por si mesmo; ao passo que o método que consiste em
elevar-se do abstrato ao concreto é, para o pensamento, apenas a maneira de se
apropriar do concreto, de o reproduzir na forma de concreto pensado; porém, não
é este de modo nenhum o processo de gênese do concreto
Assim, para a consistência filosófica - que
considera que o pensamento que concebe é o homem real, e que, portanto, o mundo
só é real quando concebido -para esta consciência, é o movimento das categorias
que lhe aparece com um verdadeiro ato de produção (o qual recebe do exterior um
pequeno impulso, coisa que esta consciência só muito a contra gosto admite>
que produz o mundo. Isto é exato (embora aqui nos vamos encontrar com uma nova
tautologia>, na medida em que a totalidade concreta, enquanto totalidade do
pensamento, enquanto concreto do pensamento é in fact um produto do pensamento,
do ato de conceber; não é de modo nenhum, porém, produto do conceito que pensa
e se gera a si próprio e que atua fora e acima da intuição e da representação;
pelo contrário, é um produto do trabalho de elaboração, que transforma a
intuição e a representação
Mas não terão também estas categorias simples
uma existência histórica ou natural autônoma anterior às categorias concretas?
Ça dépend; Hegel, por exemplo, tem razão em começar a sua Filosofia do Direito
pela posse, a mais simples das relações jurídicas entre individuos; ora não
existe posse antes da família ou das relações de servidão e dominação, que são
relações muito mais concretas; em contrapartida, seria correto dizer que
existem famílias e tribos que se limitam a possuir, mas que não têm
propriedade. A categoria mais simples relativa à posse aparece, portanto, como
uma relação de simples comunidades familiares ou de tribos; numa sociedade mais
avançada, aparece como a relação mais simples de uma organização mais
desenvolvida; porém, está sempre implícito o sujeito concreto cuja relação é a
posse. Podemos imaginar um selvagem isolado que seja possuidor, mas, neste
caso, a posse não é uma relação jurídica. Não é exato que, historicamente, a
posse evolua até à família; pelo contrário, a posse pressupõe sempre a
existência dessa "categoria jurídica mais concreta".
Seja como for, não deixa de ser verdade que
as categorias simples são expressão de relações nas quais o concreto menos
desenvolvido pode já ter-se realizado sem estabelecer ainda a relação ou o
vínculo mais multilateral expresso teoricamente na categoria mais correta; esta
categoria simples pode substituir como relação secundária quando a entidade
concreta se encontra mais desenvolvida. O dinheiro pode existir, e de fato
existiu historicamente, antes do capital, dos bancos, do trabalho assalariado,
etc.; deste ponto de vista pode afirmar-se que a categoria mais simples pode
exprimir relações dominantes de um todo não desenvolvido, ou relações
secundárias de um todo mais desenvolvido, relações essas que já existiam
historicamente antes de o todo se ter desenvolvido no sentido expresso por uma
categoria _mais concreta. Só então o percurso do pensamento abstrato, que se
eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real.
Por outro lado, podemos afirmar que existem
formas de sociedade muito desenvolvidas, embora historicamente imaturas; nelas
encontramos as formas mais elevadas da economia, tais como a cooperação, uma
desenvolvida divisão do trabalho, etc., sem que exista qualquer espécie de
dinheiro; tal é o caso do Peru. Assim também, nas comunidades eslavas, o
dinheiro e a troca que o condiciona não aparecem, ou aparecem muito raramente
no seio de cada comunidade, mas já surgem nos seus confins, no tráfico com
outras comunidades. De aqui que seja em geral errado situar a troca interna
àcomunidade como o elemento constitutivo originário. A princípio, a troca surge
de preferência nas relações entre comunidades, mais do que nas relações entre
indivíduos no interior de uma única comunidade.
Além disso, se bem que o dinheiro tenha
desempenhado desde muito cedo um papel múltiplo, na Antiguidade só pertence,
como elemento dominante, a certas nações unilateralmente determinadas, a nações
comerciais; e até na própria antiguidade mais evoluída, na Grécia e em Roma, o
dinheiro só vem a alcançar o seu pleno desenvolvimento - um dos pressupostos da
sociedade burguesa moderna - no período da dissolução.
Por conseguinte, esta categoria inteiramente
simples, só aparece historicamente em toda a sua intensidade nas condições mais
desenvolvidas da sociedade. Mas não impregna de maneira nenhuma todas as
relações econômicas; no apogeu do Império Romano, por exempio, o tributo e as
prestações em gêneros continuavam a ser fundamentais; o dinheiro propriamente
dito só estava completamente desenvolvido no exército. Nunca chegou a dominar
na totalidade da esfera do trabalho.
De modo que - embora historicamente a
categoria mais simples possa ter existido antes da categoria mais concreta - ela
só pode pertencer, no seu pleno desenvolvimento intensivo e extensivo, a uma
forma de sociedade complexa, ao passo que a categoria mais concreta se
encontrava mais desenvolvida numa forma de sociedade mais atrasada.
O trabalho parece ser uma categoria muito
simples; e a idéia de trabalho nesse sentido - isto é trabalho, sem mais - é
muito antiga. No entanto, tomando esta sua simplicidade do ponto de vista
econômico, o "trabalho" é uma categoria tão moderna como as relações
que originam esta mesma abstração simples. O monetarismo, por exemplo - de
forma perfeitamente objetiva situava ainda a riqueza no dinheiro,
considerando-a como algo de exterior. Relativamente a isto, operou-se um grande
progresso quando o sistema manufatureiro ou comercial passou a situar a fonte
de riqueza, não no objeto, mas na atividade subjetiva - o trabalho,
manufatureiro ou comercial - embora continuasse a conceber esta atividade
apenas como atividade limitada produtora de dinheiro. Com relação a este
sistema, o dos fisiocratas [realiza novo progresso e] situa a fonte de riqueza
numa forma determinada de trabalho - o trabalho agrícola; além disso, concebia
o objeto não como a forma exterior do dinheiro, mas como produto enquanto tal,
como resultado geral do trabalho. Mesmo assim, dado o caráter limitado da
atividade, este produto continua a ser um produto determinado da natureza, quer
dizer, um produto agrícola, produto da terra par excellence, Progrediu-se
imenso quando Adam Smith rejeitou toda e qualquer especificação acerca das formas
particulares da atividade criadora de riqueza, considerando-a como trabalho
puro e simples, isto é, nem trabalho manufatureiro, nem trabalho comercial, nem
trabalho agrícola, mas qualquer deles, indiferentemente; a esta universalidade
da atividade criadora de riqueza corresponde a universalidade do objeto
enquanto riqueza -produto em geral, quer dizer trabalho em geral, embora [neste
caso] se trate de trabalho passado, objetivado. A dificuldade e a importância
desta transição para a nova concepção, está patente no fato de o próprio Adam
Smith, aqui e ali, pender para o sistema fisiocrático.
Poderia agora parecer que se encontrou muito
simplesmente a expressão abstrata da mais antiga e mais simples relação que, na
sua qualidade de produtores, os homens estabeleceram entre si - e isto
independentemente da forma da sociedade. Isto é verdadeiro num sentido, e falso
noutro. Com efeito, a indiferença em relação a toda a forma particular de
trabalho supõe a existência de um conjunto muito diversificado de gêneros reais
de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os outros. Assim as abstrações
mais gerais apenas podem surgir quando surge o desenvolvimento mais rico do
concreto, quando um elemento aparece como o que écomum a muitos, como comum a
todos. Então, já não pode ser pensado unicamente como forma particular. Por
outro lado, esta abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado
intelectual de um todo concreto de trabalhos: a indiferença em relação a uma
forma determinada de trabalho corresponde a uma forma de sociedade na qual os
individuos podem passar facilmente de um trabalho para outro, sendo para eles
fortuito - e portanto indiferente - o gênero determinado do trabalho. Nestas
condições, o trabalho transformou-se - não só como categoria, mas na própria
realidade - num meio de produzir riqueza em geral e, como determinação já não
está adstrito ao individuo como sua particularidade. Este estado de coisas
atingiu o seu maior desenvolvimento na forma mais moderna das sociedades
burguesas - os Estados Unidos; consequentemente, só nos Estados Unidos a
categoria abstrata "trabalho", "trabalho em geral",
trabalho sans phrase - ponto de partida da economia moderna - se tornou uma
verdade prática. Deste modo, a abstração mais simples - que a economia moderna
põe em primeiro plano, como expressão de uma relação antiquíssima e válida para
todas as formas de sociedade - só vem a aparecer como verdade prática- e com
este grau de abstração - enquanto categoria da sociedade moderna.
Poder-se-ia dizer que a indiferença em
relação a toda a forma determinada de trabalho, que nos Estados Unidos é um
produto histórico, se manifesta entre os russos, por exemplo, como uma
disposição natural. Contudo, há uma diferença considerável entre bárbaros aptos
para qualquer trabalho e civilizados que por si próprios se dedicam a tudo;
além disso, esta indiferença em relação a qualquer forma determinada de
trabalho corresponde na prática, entre os russos, à sua sujeição tradicional a
um trabalho bem determinado, a que só podem arrancá-los influências exteriores.
Este exemplo do trabalho mostra com clareza
que as categorias mais abstratas, embora sejam válidas para todas as épocas
(devido à sua natureza abstrata, precisamente), são também - no que a sua
abstração tem de determinado - o produto de condições históricas e só são
plenamente válidas para estas condições e dentro dos seus limites.
A sociedade burguesa é a mais complexa e
desenvolvida organização histórica da produção. As categorias que exprimem as
relações desta sociedade, e que permitem compreender a sua estrutura,
permitem-nos ao mesmo tempo entender a estrutura e as relações de produção das
sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se ergueu, cujos
vestígios ainda não superados continua a arrastar consigo, ao mesmo tempo que
desenvolve em si a significação plena de alguns indícios prévios, etc. A
anatomia do homem dá-nos uma chave para compreender a anatomia do macaco. Por
outro lado as virtualidades que anunciam uma forma superior nas espécies
animais inferiores só pode ser compreendidas quando a própria forma superior é
já conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa dá-nos a chave da economia da
Antiguidade, etc., - embora nunca à maneira dos economistas, que
suprimem todas as diferenças históricas e vêm a forma burguesa em todas as
formas de sociedade. Podemos compreender o tributo, a dízima, etc., quando
conhecemos a renda fundiária; mas não há razão para identificar uns com a
outra. Além disso, como a sociedade burguesa não é em si mais do que uma forma
antagônica do desenvolvimento histórico, certas relações pertencentes a
sociedades anteriores só aparecem nesta sociedade de maneira atrofiada, ou
mesmo disfarçada. Por exemplo, a propriedade comunal.
Por conseguinte, sendo embora verdade que as
categorias da economia burguesa são até certo ponto válidas para todas as
outras formas de sociedade, tal deve ser admitido cum grano salis; podem conter
essas formas de um modo desenvolvido, ou atrofiado, ou caricaturado, etc.;
porém, existirá sempre uma diferença essencial. A invocação da chamada evolução
histórica repousa geralmente no fato de que a última forma de sociedade
considera as outras como simples etapas que a ela conduzem e, dado que só em
raras ocasiões, só em condições bem determinadas, é capaz de fazer a sua
própria crítica - não falamos, claro, dos períodos históricos que se consideram
a si próprios como uma época de decadência - concebe sempre essas etapas de um
modo unilateral. A religião cristã só pode contribuir para que se
compreendessem de um modo objetivo as mitologias anteriores, quando se
prontificou até certo ponto, por assim dizer virtualmente, a fazer a sua
própria auto-crítica. Do msmo modo, a economia burguesa só ascendeu à
compreensão das sociedades feudal, clássica e oriental, quando começou a
criticar-se a si própria. A crítica a que a economia burguesa submeteu as
sociedades anteriores - especialmente o feudalismo, contra o qual a burguesia
teve de lutar diretamente - assemelha-se à critica do paganismo pelo
cristianismo, ou até à do catolicismo pelo protestantismo - isto quando não se
identificou pura e simplesmente com o passado, fabricando a sua própria
mitologia.
Como, em geral, em toda a ciência histórica,
social, ao observar o desenvolvimento das categorias econômicas há que ter
sempre presente que o sujeito - neste caso a sociedade burguesa moderna - é
algo dado tanto na realidade como na mente; e que, por conseguinte, essas
categorias exprimem formas e modos de existência, amiudadamente simples
aspectos desta sociedade, deste sujeito; e que, portanto, mesmo do ponto de
vista científico, esta sociedade não começa a existir de maneira nenhuma apenas
a partir do momento em que se começa a falar dela como tal. uma regra a fixar,
pois dá-nos elementos decisivos para o [nosso] plano [de estudo]. Por exemplo,
parecia naturalíssimo começar [a nossa análise] pela renda imobiliária, pela
propriedade agrária, pois estão ligadas à terra, fonte de toda a produção e de
toda a existência, e também àquela que foi a primeira forma de produção de
todas as sociedades mais ou menos estabilizadas - a agricultura; ora, nada
seria mais errado do que isto; em todas as formações sociais, existe uma
produção determinada que estabelece os limites e a importância de todas as
outras e cujas relações determinam, portanto, os limites e importância das
outras todas. E a iluminação geral que banha todas as cores e modifica as suas
tonalidades particulares. como um éter particular que determina o peso
específico de todas as formas de existência que nele se salientam.
Consideremos por exemplo os povos de pastores
(os povos de simples caçadores e scadores não atingiram ainda o ponto em que
começa o verdadeiro desenvolvimento). Encontramos nestes povos uma forma
esporádica de agricultura. Desse modo se determina a propriedade agrária. Esta
propriedade é comum e conserva mais ou menos esta forma, consoante estes povos
estão mais ou menos ligados às suas tradições: é o caso da propriedade comunal
entre os Eslavos.
Nos povos que praticam a agricultura
sedentária - e a sedentarização é já um progresso importante - e em que
predomina essa atividade, como na Antiguidade e na sociedade feudal, a própria
indústria, bem como a sua organização e as formas de propriedade que lhe
correspondem, reveste-se - em maior ou menor grau -do caráter da propriedade
agrária; a indústria, ou depende completamente da agricultura, como na Roma
Antiga ou reproduz, na cidade, a organização e as relações do campo, como na
Idade Média; o próprio capital - à exceção do puro e simples capital monetário
- reveste-se na Idade Média, na forma de instrumentos de trabalho artesanal,
etc., desse caráter de propriedade agrária. Na sociedade burguesa sucede o
contrário: a agricultura transforma-se cada vez mais num simples ramo
industrial, e é completamente dominada pelo capital. O mesmo se passa com a
renda agrária. Em todas as formas de sociedade em que domina a propriedade
agrária, a relação com a natureza é ainda preponderante. Em contrapartida,
naqueles em que domina o capital, são [preponderantes] os elementos
socialmente, historicamente criados. Não se pode compreender a renda
imobiliária sem o capital, mas pode-se compreender o capital sem a renda
imobiliária. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa, potência
que domina tudo; constitui necessariamente o ponto de partida e o ponto de
chegada, e deve, portanto, ser analisado antes da propriedade agrária; uma vez
analisado cada um em particular devem ser estudadas as suas relações
recíprocas.
Por conseguinte, seria impraticável e errado
apresentar a sucessão das categorias econômicas pela ordem que foram
historicamente determinantes; a sua ordem, pelo contrário, é determinada pelas
relações que mantêm entre si na moderna sociedade burguesa, ordem essa que é
exatamente a inversa da que parece ser a sua ordem natural ou a do seu
desenvolvimento histórico. Não está em causa a posição que as relações
econômicas ocupam historicamente na sucessão das diferentes formas de
sociedade; nem tampouco a sua ordem de sucessão "na idéia" (Proudhon),
(uma representação nebulosa do movimento histórico). O que nos interessa é a
sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa.
Os povos comerciantes - Fenícios,
Cartagineses -surgiram em toda a sua pureza no mundo antigo; esta pureza
(caráter determinado abstrato) deve-se precisamente à própria predominância dos
povos agricultores; o capital, comercial ou monetário, aparece justamente sob
esta forma abstrata sempre que o capital não é ainda o elemento dominante das
sociedades. Lombardos e Judeus ocupam uma posição semelhante relativamente às
sociedades medievais que praticam a agricultura.
Outro exemplo [ilustrativo] das posições
diferentes que as mesmas categorias ocupam em diferentes estágios da sociedade:
as sociedades por ações (joint - stock - companies), uma das mais recentes
instituições da sociedade burguesa, apareciam já no dealbar da era burguesa,
nas grandes companhias mercantis que gozavam de privilégios e monopólios.
O próprio conceito da riqueza nacional
insinua-se nos economistas do século XVII - e subsiste em parte nos do século
XVIII - sob um aspecto tal que a riqueza aparece como criada exclusivamente
para o Estado, cujo poder é proporcional a essa riqueza. Esta era uma forma,
ainda inconscientemente hipócrita, sob a qual se anunciava a riqueza e a sua
produção como o objetivo dos Estados modernos, considerados unicamente como
meios de produzir riqueza.
Baixado (com algumas correções)
de: http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm