A reinvenção do mundo moderno e a nova forma da geografia

A recriação do capitalismo e as relações homem-espaço-meio ambiente do mundo globalizado

 

Ruy Moreira

 

1. O espaço globalizado

O contínuo do desenvolvimento dos meios de transferência (meios de transporte, meios de comunicação e redes de transmissão de energia elétrica) que tem lugar a partir dos fins da segunda grande guerra, difundindo infraestrutura e liberando para a localização da indústria por todos os cantos da superfície terrestre, modifica, uniformiza e integra a organização dos espaços do mundo.

A aceleração desse desenvolvimento com o advento da informatização intensificando a circulação e tornando instantâneas as transferências dos bens sons e imagens acaba por unificar os mercados do dinheiro elevando a especulação financeira à posição de centro do processo da acumulação capitalista e levando o mundo ao atual estado de globalização

O efeito geográfico imediato dessas transformações e o rápido entre cruzamento dos bens, sons e imagens de todos os cantos entre todos os cantos dos continentes, que vai alterar rapidamente as suas respectivas paisagens. Um novo conteúdo vai pedir uma nova forma de paisagem nesses lugares.

Até os anos cinqüenta era comum poder ver-se as grandes paisagens das culturas que formavam o regime alimentar das populações em cada porção de espaço dos continentes. Podia falar-se da paisagem do arroz, do trigo, dos tubérculos, do milho, para referir-se à relação entre culturas e regimes alimentares do sudeste asiático, do centro e noroeste europeus, das regiões tropicais africanas, dos hinterlands americano. Junto a elas, podia-se ver a paisagem das culturas de plantas e animais transmigrados entre os continentes por conta da colonização européia do mundo, começado desde as grandes navegações. É assim que descrevem as paisagens do mundo todos os manuais de geografia escritos até aquela década, numa tradição que se estendia desde CarI Ritter e Alexander von Humboldt nos meados do século XIX, e La Blache e Brunhes nos começos do século XX, até Max Sorre e Pierre George nos meados do século xx, por todo o correr de um século de literatura.

A urbanização e os costumes do consumo urbano, vinham já desde o começo do século xx modificando a correlação entre culturas e regimes alimentares das regiões dos continentes, sem contudo alterar e dissolver os quadros de suas seculares paisagens. A globalização das trocas, a industrialização generalizada e a urbanização mundial que a acompanham vão isto justamente produzir.

O que se vê para as culturas e regimes alimentares, vê-se igualmente acontecer com as habitações e vestuário, mercê da desvinculação dos materiais de construção e fabrico dos entornos do meio ambiente, entrecruzando e disponibilizando nas cidades materiais vindos dos mais diferentes lugares e entre eles os sintéticos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico da indústria mundializada.

Acrescente-se a dissolução progressiva, agora acelerada, das fronteiras que separam e diferenciam campo e cidade, dado a migração das indústrias da cidade para o campo, levada pelo congestionamento e poluição do espaço urbano, com efeitos negativos para os custos industriais, proporcionada pelo desenvolvimento e difusão dos meios de transferência referidos. Uma certa uniformidade de paisagem tem lugar assim nas cidades e nos campos, o campo assim se urbanizando, numa indistinção do campo e da cidade também do ponto de vista dos modos de vida e dos hábitos e meios de consumo.

 

2. As relações homem—espaço— meio ambiente do mundo globalizado

O hibridismo do espaço vai se traduzir na geração de um meio ambiente no geral altamente alterado e degradado. A degradação do meio ambiente urbano, já registrada pela literatura de ficção, através da obra romanesca de escritores como D. H. Lawrence para as cidades industriais inglesas do meado do século XIX, generaliza-se para o campo e todos os espaços, leva da pelo aumento do consumo de matérias-primas por uma indústria cada vez mais mundializada. Até que a degradação se completa com perda do contato com os bens, sons e imagens dos meios locais, trazida pelo meio ambiente urbano fortemente hibridizado, levando a um desenraizamento cultural do homem em escala planetária.

A velha relação homem-meio, descartada pelo hibridismo e degradação do meio ambiente num espaço globalizado, deve ser assim recriada.

A percepção do problema tem lugar de início no campo da reflexão ética e teórica, relacionada a uma condenação radical de uma economia comandada pelos interesses de consumo da indústria, até que por fim se traduz num conjunto de medidas de reconstrução das paisagens nos espaços de meio ambiente mais degradados. Entre um momento e outro, vive-se uma fase de resgate das diferentes práticas experimentadas pelos países onde os problemas da degradação foram fisicamente sentidos, via atitudes de conservação e preservação das paisagens alteradas.

Um choque está assim se dando entre o desenvolvimento desnorteado das forças produtivas da indústria e as relações de produção capitalistas criadas para regularizá-las. E uma pressão conseqüente pela substituição dessas relações por outras que reorientem e dêem novo direcionamento ao desenvolvimento das forças produtivas em suas relações com a sociedade capitalista e o meio ambiente, consideradas as possibilidades criadas pela ciência e tecnologia da nova revolução industrial em curso (a terceira revolução industrial) e os interesses da globalização financeira.

 

II - Política e técnica no final do século XX

O longo processo de constituição da nova forma de sociedade, na qual a desterritorialização que desenraiza os camponeses para amontoá-los no território da cidade assenta como realidade econômico-social e nova cultura a cosmologia cartesiano-newtoniana, ganha escala planetária neste final de século XX.

Avançando sobre as tensões criadas pela dissolução de antigas estruturas e pela contra-restação da crítica socialista, o capitalismo penetrou e impôs-se como nova ordem a todo o mundo. Todavia, uma vez globalizado empreende uma forte mudança na própria forma histórica com que nasce, se desenvolve e se consolida através do desenvolvimento centrado no comando da indústria. Alterando a forma e o conteúdo de organização da sua geografia.

Para realizar este triunfo, o capitalismo necessitou reinventar-se sempre, até chegar à forma atual. Todavia, no momento mesmo em que se mundíaliza, a forma do Estado e da cultura técnico-científica sob as quais se mundializou entram em crise. Contemporâneas, as crises do Estado e da Cultura diferem entre si.

Este alto grau de esgotamento das formas históricas do Estado e da Cultura está revelando que um longo ciclo se fechou e então um novo se abre. Quais são os seus indícios?

 

1. A Crise do Estado do Welfare State e a reforma neoliberal

A forma do Estado capitalista atual, o Estado do Bem-Estar-Social (Welfare State), é a que este adquire quando nos finais do século XIX e começos do século xx a forma liberal entra em crise. É assim o fruto de uma reforma realizada para reestruturar o modo como então se relacionavam política e economia, provocada por três importantes transformações em curso: (1) o nascimento da ação classístamente organizada dos trabalhadores urbanos; (2) a passagem do capitalismo da fase competitiva para a dos monopólios; e (3) a conseqüente crise da auto-regulação mercantil.

E esta forma historicamente determinada de Estado que por sua vez hoje entra em crise para ceder lugar a uma forma nova, O neoliberalismo com sua voracidade privatizante é a ideologia dessa nova reforma.

A ação operária exerce papel importante nessa redefinição do Estado liberal. Emergindo nos ambientes pontuais dos locais de trabalho, a movimentação dos trabalhadores cresce com o movimento das contestações que se acumulam no campo democrático contra os limites do direito político que são próprios do Estado Liberal. Mas ao mesmo tempo o movimento operário se soma a este movimento geral organizado por intelectuais, classe média e burgueses menores pelo sufrágio universal e dele se mantém nitidamente diferenciado por conceber que a simples conquista do direito de igual cidadania política não bastará para garantir aos trabalhadores o que estes reivindicam: a mais ampla cidadania econômica e social. Isto o leva a orientar suas lutas para além das reivindicações puramente políticas, para conduzi-las também no campo das condições gerais de vida. Para tanto, a ação operária precisou criar seus próprios organismos.

A história dessa criação começa com as entidades mutualistas, surgidas entre os trabalhadores para organizarem suas lutas no plano das questões mais prementes do cotidiano, como saúde, alimentação, escolaridade, seguridade. Através dessas entidades, os trabalhadores reúnem fundos financeiros com recursos recolhidos entre eles mesmos, para ajudarem-se em momentos urgentes como desemprego, doença, morte. Embora tenha nível simples, esta solidariedade mutualista leva-os a formar uma concepção de mundo alicerçada na consciência comum de desassistidos e de que eles mesmos têm que tomarem suas mãos as rédeas do seu destino, resolvendo seus problemas sociais cotidianos. Isto não deixa de afrontar a ordem social burguesa, por se constituir numa ordem paralela. Mas para os trabalhadores cedo o mutualismo se mostra uma forma incipiente de organização, requerendo a criação do sindicato operário. Já existente embrionariamente na forma das Ligas Operárias em simultâneo às entidades mutualistas, os sindicatos ganham agora corpo mais definido, logo se mostrando um organismo de maior poder de intervenção porquanto ao tempo que reforçam o alcance da ajuda mútua, dilatam os horizontes da ação operária aliando às questões do cotidiano as lutas mais amplas por melhores salários e condições de trabalho. Mas logo este mesmo aperfeiçoamento leva o movimento ao alcance de um estágio mais avançado, quando a fusão da ação dos trabalhadores com a dos intelectuais críticos socialistas do capitalismo desemboca na criação dos partidos operários. Com estes partidos os trabalhadores elevam suas lutas ao plano mais geral do próprio Estado burguês, ao qual vão reivindicar diretamente por meio de seus representantes no Parlamento leis de defesa de direitos do trabalho, de observância obrigatória pelo Estado como pelo patronato. A classe trabalhadora impõe assim mudanças nas suas relações com o capital que terão efeito direto nas formas gerais da organização da oi existente, a começar pela organização do Estado burguês.

No campo do capital também ocorre em paralelo ao do trabalho urna sucessão de mudanças. Por força da própria competição, as diversas em presas pequenas e médias que compunham a estrutura do capitalismo concorrencial estão falindo ou simplesmente se fundindo para originarem uma nova estrutura composta de um número pequeno mas poderoso de grandes empresas. Requerendo meios infra-estruturais e de mercado de maior escala, os novos interesses monopolistas começam a conflitar com o uni verso acanhado da infra-estrutura e de mercado que servira ao empresariado de até então, levando-os a se voltarem para o Estado. Interessa-lhes uma nova base territorial de transportes, produção, circulação de produtos e consumo, que só vem com investimentos em grande escala. Olhando ao redor, localizam num Estado ampliado a fonte geradora dessa nova base. Passam assim a requerer uma nova forma para o Estado, que tome para si essa tarefa do arranjo dos grandes espaços, que organize as demandas de infra-estrutura e de livre movimento do capital desde a base local até a mundial.

Tanto do lado dos trabalhadores como do lado do capital partem os sinais que evidenciam a necessidade da transformação do Estado. Mas a nova forma que este deve assumir é entendida de modo diverso, antagonicamente até.

Ao atingir seu nível da organização partidária o movimento operário adquire um poder inusitado de ação, mas paradoxalmente divide-se neste momento em duas grandes correntes. Uma que vê na sucessão de reformas legalmente aprovadas pelo Parlamento o modo de realizar-se a construção de uma forma justa de sociedade. Outra que vê na desmontagem do Estado burguês e sua substituição pelo poder dos organismos dos trabalhadores o caminho concreto de efetuar-se esta construção. O socialismo é a ideologia reclamada por ambas, mas estas duas correntes se posicionarão opostamente diante do problema do Estado burguês: a primeira corrente deságua como os monopólios na reforma que converte o Estado liberal no Welfare State e a segunda na revolução russa de 1917. Assim, no século xx surgem duas distintas formas de Estado: a do Welfare State e a soviética.

O Welfare State é portanto a resultante da união de duas forças sociais que colidem mas acabam por se encontras num ponto comum. Interessa a uma fração do movimento dos trabalhadores um Estado que realize suas demandas sociais. Incomoda aos monopólios tanto os estreitos limites institucionais do capitalismo concorrencial quanto o crescente poder orgânico e ideológico de ação do movimento operário. Se a cultura de classe gerada pelo mutualismo e ainda mais reforçada pelos organismos sindicais representara para o capital uma forma de questionamento da ordem burguesa, o surgimento do pai-tido operário e agora da revolução operária traz a gravidade da ameaça do seu fim na história. Por isso, incomoda-o sobretudo o rumo que o desdobramento da crise do capitalismo segue na Rússia com sua tendência a difundir-se pelo continente. Converge-se assim para a substituição do Estado Liberal pelo Estado que intervém e toma como tarefa sua a questão econômica e social.

Desse modo, a regulação estatal aparece para substituir a regulação mercantil. É que instrumentada nas regras espontâneas do livre jogo das trocas a regulação mercantil mostra-se impotente para responder por si mesma tanto às demandas sociais dos trabalhadores quanto às demandas de infra-estrutura das novas empresas capitalistas. O novo Estado irá assim conjugar a velha tarefa de criar nos planos judicial e policial-militar as condições gerais que reproduzam o capital e a nova tarefa de crias noutros planos as condições que gerem o capital. As demandas sociais dos trabalhadores são então direcionadas para a geração do capital variável via uma espécie de salário indireto na forma da escola publica medicina publica seguridade social etc. e as demandas infra-estruturais de grande escala do capital monopolista o são para a geração do capital constante, via implantação de redes de transportes sistemas de energia etc. Mas estes monopólios vão ter que conviver com o fato de que o capital já não faz a historia como ate então fizera Por isso a nova forma do Estado vai refletir em sua estrutura e tarefas tanto o novo poder do capital quanto a nova fase em que o movimento da classe trabalhadora entra no século xx com sua capacidade organizada de ação.

Mas esta nova forma do Estado capitalista não surgira de imediato Ela vai sair dos turbulentos anos de guerra recessão e repressão como uma espécie de síntese das experiências do planejamento soviético, do new deal americano e dos governos autoritários europeus. A partir da década de 30, pois.

A infra-estrutura requerida pelo capitalismo dos monopólios só pode existir na escala da sua mundialidade. O Welfare State é assim a fase da paulatina mundialização do processo produtivo capitalista que encerra a velha fase de relação puramente colonialista.

Mundializar o capitalismo com suas próprias relações de produção nos quadros da economia imperante nas décadas iniciais do século xx pressupõe antes de mais nada implantar em cada canto atrasado as condições mínimas requeridas para tanto. Num mundo dividido em países industrializados e não-industrializados como o de então, isto significa o maciço investimento que abrevie nos países não-industrializados os longos anos que os países industrializados consumiram com a acumulação primitiva, incluindo-se as experiências científicas e técnicas que desembocarão na revolução industrial. A finalidade é obter a baixa do custo de capital e a alta da produtividade do trabalho que resultem na taxa de mais-valia mais compatível com a alta taxa de acumulação sem a qual a mundialização não compensa. A fórmula parece simples: para a formação do capital variável, significa realizar o deslocamento maciço e controlado da força de trabalho alocada na monoprodução para seu amontoamento nas cidades como exército de reserva e a transformação de suas demandas sociais de educação, saúde e seguridade social, transportes urbanos, habitação e lazer numa política de reprodução a baixo custo da força de trabalho que valham como salário indireto para que o patronato, tal como aprendera nas suas lutas contra o trabalho no capitalismo adiantado, pague salários reais baixos mas sem prejuízo do mercado de força de trabalho; já para a formação do capital constante, tanto o fixo quanto o circulante, significa o investimento maciço em vias de transporte, sistema de telecomunicações, usinas de energia, refina rias de petróleo, indústrias siderúrgicas, com que se integrem todos os cantos do território nacional no roteiro da industrialização, incluindo-se a modernização da agricultura que libere excedentes de força de trabalho e pro dutos em volume crescente para o desenvolvimento da indústria. Tudo isso com recursos tomados ao público por meio de um sistema indireto de tributação (o sistema de repasse do imposto ao preço das mercadorias, cujo fim de linha são os próprios trabalhadores), seguindo a política que irá tornar-se clássica nesses países de “socializar os custos para os fins da acumulação privada”.

Tal é o que vemos acontecendo em todo o mundo ao longo do período dos anos 30 aos anos 80, limites com que se inicia e se conclui a expansão capitalista que muda a face planetária.

Hoje, não por acaso, o capital clama pelo retorno ao privado e à regulação mercantil. Exige do Estado a privatização das empresas que este foi instalando neste e naquele setor país a país para cumprir sua tarefa de construir o capitalismo em escala mundial e que se retire da esfera econômica deixando-a como área de ação exclusiva da empresa privada.

E o neoliberalismo. Uma metáfora talvez nos ajude a aclarar a sua lógica. Imaginemos um escultor com um cinzel na mão e diante de um bloco informe de pedra sabão, Aos poucos o escultor vai dando à pedra contornos definidos de um corpo: aqui aparecem os dedos das mãos, acolá as pernas e os pés, mais adiante os traços de um rosto, até que por fim aparece o corpo inteiro. O escultor é o Estado, o cinzel são os recursos retirados do público e investidos em infra-estrutura e serviços sociais, e o corpo é a sociedade capitalista industrial. Enquanto o capitalismo engatinhava a caminho da sua industrialização o empresariado protestava contra o que acusava de intromissão do Estado no livre funcionamento da economia de mercado. São críticas que entretanto se desfazem diante das taxas gerais de lucro que, tal como reza a cartilha do keynesianismo, a ideologia do Welfare State, é justamente a intervenção planejada do Estado quem propicia. Mas por volta dos anos 70, concluída para a maioria dos países esta fase histórica de sua transformação capitalista, então já construído o capitalismo no seu todo e faltando apenas alguns arremates essenciais para terminar, como a reforma agrária e a menor desigualdade da repartição da riqueza social, que estabilizem o mercado e as tensões sociais internamente, a grande empresa privada capitalista sente que já pode andar com suas próprias pernas e então declara cumprido e cessado o papel do Welfare State, proclama em cada país recém-industrializado a sua maioridade perante o Estado, e pede o fim dos seus dias exigindo que este transfira para si o patrimônio acumulado e construído com recurso público.

É assim que surge o neoliberalismo, para fundamentar, com a rudeza das transparências que só não vê quem não quer, esta rapinante surrupiaçao privatista de um patrimônio construído com o suor dos trabalhadores. Condenando o que chama de gigantismo estéril do Estado do Bem-Estar-Social e acusando-o de descapitalizar e asfixiar a empresa privada, o neoliberalismo apresenta-se como o portador das medidas reparadoras do “equívoco histórico” capaz de restaurar a livre economia de mercado. A primeira medida que apresenta é a redução fiscal, tomada como a medida recapitalizadora e desasfixiante que devolverá às empresas a iniciativa e liberdade de criação bloqueadas pela regulação estatal. Mas esta medida, afirma-se, só cumpre sua função renascentista mediante uma segunda, que consiste em de volver pela privatização o sistema econômico ao domínio da empresa privada. Por fim, a essencial medida da desregulamentação, que retorne a sociedade amplamente ao sistema da regulação mercantil.

Pode-se ver que o neoliberalismo vem para operar a desconstrução do capitalismo do Welfare State. Seu discurso consiste num repertório de contrapontos, um a um, a cada elemento da fórmula keynesiana. Ponhamos ao avesso tudo que um keynesiano aponte como elemento edificador do capitalismo e teremos um neoliberal. Se para o keynesiano é o investimento estatal o antídoto contra a paralisia do sistema capitalista, para o neoliberal a intervenção estatal é exatamente a sua anestesia; se para o keynesiano o investimento estatal é a fonte geradora do pleno emprego, da distribuição da renda e do impulso ao consumo, para o neoliberal é ele pura fonte de burocratismo estatal e de espiral inflacionária que só o investimento priva do desfaz e reverte. E se para o keynesiano é a regulação estatal quem pode garantir a paz social e a conseqüente fluidez do sistema, para o neoliberal estas situações ideais são intrínsecas somente à regulação mercantil. Redução fiscal, privatização, despatrimonialização, desregulamentação, tal é o perfil do Estado neoliberal.

 

2. A crise da técnica e o problema do paradigma clássico de ciência

A CULTURA CARTESIANO-NEWTONIANA

Em todo o decurso dessa evolução em que Welfare State e mundialização do capitalismo se identificam e confundem, uma conseqüência visível é a uniformização técnica da naturalmente heterogênea superfície planetária, impondo-lhe um padrão único de cultura técnico-científica, que entretanto é historicamente anterior ao Welfare State.

A RELAÇÃO CARTESIANA DE TRABALHO

Trata-se do paradigma de inter-relação ciência-técnica gerado no correr do século XVI (Renascimento) ao xviii (Iluminismo) que tem, como vimos, a Física Mecânica por referência e que no século xvIIi-xix se materializa no sistema de maquinaria da revolução industrial, e desde então evolui aperfeiçoando-se aqui e ali cada vez que uma nova descoberta científica de imediato se cristaliza em novos e avançados artefatos mecânicos.

Construindo o mundo moderno à imagem e semelhança dessa sua cultura técnica, o capitalismo erige-o na forma de uma gigantesca engrenagem, onde homem e natureza são forças e a fábrica é sua microscopia. Por tanto, como um sistema harmonicamente unificado na regularidade matemática das leis de Newton, desde o nível macro dos céus ao nível micro da fábrica.

Sob este paradigma, o capital pode controlar, reger e sujeitar o mundo aos fins de sua hegemonia de classe. Mundo que cria ainda sob a forma mercantil ao reduzir progressivamente o trabalho às suas relações mais simples: primeiro, limitando-o aos movimentos mais simples e repetitivos; em seguida, vinculando-o a um universo de ferramentas também diligentemente decompostas às suas formas mais simples; depois, obrigando o trabalha dor a ocupar-se de tarefas mais e mais especializadas; mais adiante, subordinando-o ao complexo sistema de maquinaria formado pela interligação dessas ferramentas simples; e, por fim, enquadrando-o na férrea norma da administração contábil do custo-benefício. Forja assim o mundo da revolução industrial, que faz do conjunto dos homens e da natureza um sistema absoluto e disciplinado de engrenagem mecânica, a natureza e a sociedade aparecendo como duas faces de uma mesma ordem, a ordem reduzida a forças que transitam entre uma e outra margem, ora com o nome de natureza e ora com o de sociedade.

A CIVILIZAÇÃO GEOLÓGICA

Sobre essa base paradigmática, o capital então nasce, cresce e se sedimenta, expandindo o capitalismo em escala mais e mais planetária.

O consumo de minério em grande escala é vital à continuidade do sistema. Até a revolução industrial as matérias-primas vinham dos vegetais e animais. Mesmo as máquinas eram fabricadas com madeira arrancada das florestas, só usando-se metais nas peças das ligaduras. A revolução industrial inaugura uma era geológica. De início o consumo de minérios visava o fabrico das máquinas necessárias à montagem e funcionamento das fábricas. Depois, com a generalização do emprego das máquinas nos transportes e na agricultura esse consumo aumentou grandemente. Por fim, sua generalização transborda até mesmo o sistema produtivo, entrando pelo universo dos bens de consumo da massa da população, como roupas, utensílios e mesmo medicamentos. A mundialização do capitalismo mundializa essa cultura de materiais construídos pelo consumo de minérios, que então começam a mostrar sinais de esgotamento.

O FIM DE UM CICLO DE CULTURA TÉCNICA

Mas no momento mesmo em que planetariza o mundo como uma razão técnica, o capital vê esgotar-se a capacidade autogerminativa dessa máquina-mundo. É que, ao equacionar-se economicamente como um campo físico, o capital funda sua base paradigmática numa exigência: a da redução dos recursos naturais e homens ao horizonte infindo de objetos-físicos. Basta assim que uma dessas “forças” produtivas falte ou emperre, para que seu movimento entre em crise. É o que acontece toda vez que a classe operária, rejeitando ver-se reduzida à mera condição de força física de trabalho, emerge no cenário do sistema com suas reivindicações de sujeito. Como a lógica do sistema é o capital responder consumindo mais forças sob a potencialização técnica que reduza custos ao seu mínimo e eleve a produtividade ao seu máximo, de modo a que o lucro suba e a acumulação se concretize acima das eventuais perdas para a classe trabalhadora, o sistema retroalimenta-se como um ciclo de expansivo e infindável consumo de re cursos e portanto de novos espaços territoriais. Um paradigma que, contraditoriamente, supera-se projetando seu limite intrínseco sobre o horizonte ilimitado do Planeta.

Tem sido esta a história espacial do capitalismo desde o seu nascimento. Enquanto o espaço capitalista se limitou às restritas áreas da Europa,

EUA e Japão, houve o restante do mundo para alimentar essa lógica. Quando, por fim, mundializou-se até os limites do horizonte planetário, descobriu o capitalismo que estava prisioneiro da sua própria cultura técnico cientifica de base. Percebeu em todas as suas fraturas o limite de conteúdo dessa velha base físico-mecânica, o horizonte estreito que doravante oferecia. E viu que era hora de reinventar-se culturalmente.

É que a mundialização do processo produtivo avançado mundializara também os conflitos de classes do capitalismo, forçando o capital, para manter a taxa de acumulação sob controle, a acelerar o consumo dos recursos concorrentes para o rebaixamento dos custos e elevação da produtividade, porque assim poderia não só recuperar o que perdia frente aos ganhos dos trabalhadores como também realizar melhores barganhas com eles. Mas com isso o problema ficava encaminhado só até o novo ciclo de pressão salarial, além de que com o tempo passaria a embricar-se com o esgotamento justamente dos recursos esgotáveis e não-renováveis, como os metais básicos e os combustíveis fósseis. Embora o crescimento populacional do mundo subdesenvolvido garanta a abundância da força-de-trabalho ainda por longo tempo, o fato de a natureza armazenar cada vez menos recursos rebaixadores dos custos e subidores da produtividade do trabalho faz que a margem maleável do capital de administrar tanto sua relação com o trabalho quanto sua competição interna por mercados vá ficando por demais estreita e perigosa. No quadro do paradigma o máximo que se podia fazer daí para diante era aperfeiçoar a classificação dos recursos em abundantes — não abundantes e esgotáveis — inesgotáveis, para exercer melhor a administração do seu consumo. Era assim chegada a hora da grande reforma do paradigma.

A mundialização da cultura técnico-científica físico-mecânica fora obra dos maciços investimentos realizados pelo Estado do Bem-Estar-Social ao longo dos anos 30 aos 70 por toda a superfície do globo, em particular no Terceiro Mundo, definindo-se sob essa forma a relação Estado Economia desde então vigente. A partir dos anos 70, entretanto, o ataque neoliberal ao Estado, acusando-o de negligência com a inovação tecnológica, indica querer com isso expressar seu desejo de ver o Estado simultaneamente auto-reformando-se e orientando a reinvenção da base técnica. Concretamente, parece exigir a reestruturação geral da forma de relação economia—política que vigorou por quase todo o século xx, mudando tanto a forma do Estado quanto o padrão técnico-científico basificador da mundialização da acumulação industrial, declarando iniciada assim a reinvenção global do capitalismo.

O DEBATE DA NOVA CULTURA: A ECO-92 E AS TENDÊNCIAS DA NOVA RELAÇÃO TÉCNICA COM A NATUREZA

Estamos vendo fechar-se pois neste final de século xx uma fase e começar outra nova e ainda indistinguível. Em outras palavras, vivemos uma nova fase de reformas históricas do capitalismo, cuja peculiaridade em relação às reformas do passado é a simultaneidade da reforma do Estado e do velho padrão de relação técnica do trabalho, reformas que se entrelaçam, se reforçam e se confundem.

Se quanto ao Estado esta reforma visa fazê-lo retornar às funções essenciais que exercia no final do século XIX antes de converter-se no Welfare State, no tocante à relação técnica do trabalho pede-se muito mais. Não se trata de propriamente reformar, mas de reinventar a cultura técnico-científica gerada pela revolução industrial do século XvIIi-xix e que ensejou a organização do processo produtivo capitalista desde então até os dias de hoje. Isto é, trata-se de criar uma cultura técnico-científica que seja nova o suficiente para revigorar o sistema do capitalismo e restabelecer-lhe a maleabilidade de administrar suas contradições de classes, diminuída pelo esgotamento do velho paradigma.

O fato é que esta política de persistir no consumo de forças produtivas segundo os termos do padrão técnico-científico histórico já esgotado tem levado o capitalismo a devastar de modo generalizado justamente as forças de que o capital depende, deixando-o crescentemente debilitado diante dos conflitos permanentes que vive internamente e com o trabalho.

É então que vem à transparência o que antes só percebiam os seus críticos: essa cultura técnico-científica histórica tem a característica de consumir a natureza sem ter a capacidade congênita de reconstruí-la. Em outras palavras, de impor à natureza um molde uniformitariamente padronizante e não auto-regenerativo, quando a natureza, ao contrário, é heterogeneamente padronizada e auto-regenerativa.

Reinventar a cultura técnico-científica é, pois, substituir o paradigma destrutivo e não auto-regenerador (porque moldado na concepção físico-mecânica de natureza), por um outro paradigma compativelmente heterogêneo e auto-regenerativo (porque inspirado na concepção químico-biológica da natureza).

Como não se cria uma nova cultura técnico-científica da noite para o dia, o tempo virou uma variável estratégica. É preciso tempo para fazê-la surgir, mas não se dispõe de muito tempo num sistema que se arrasta numa crise que de tão prolongada tornou-se sincrônica em escala mundial. Isto é, tempo para que as pesquisas químicas e biológicas se expandam e já se convertam em novos artefatos tecnológicos, e tempo para que o capital fixo hoje materializado nos artefatos mecânicos do velho paradigma se liquefaça e de imediato se rematerialize nos artefatos (máquinas de novo tipo?) do novo.

Mas tempo numa conjuntura de mundialidade significa acerto de estratégias entre os Estados. Daí a ECO-92.

Este evento visou ser assim o acerto protocolar entre os Estados sobre um calendário sincronizador de todas as reformas: da reforma neoliberal do Estado já em curso e da que se deve o quanto antes iniciar da relação técnica do trabalho. Esta passagem do velho para o novo paradigma pressupõe acordos entre as grandes corporações privadas, o que pede a mediação dos Estados. AECO-92 é o fórum ideado para a finalidade dessa conjuminação dos acordos acerca das reformas.

Não se trata de voluntarismo do capital. A ECO-92 pôde vir para este fim porque o novo já existe minimamente desenvolvido, na forma da microeletrônica, da química fina, da biotecnologia e dos novos materiais, mas ainda se precisa da mais rápida reversão paradigmática que dispa o processo produtivo da roupagem do velho e o vista com a nova. Por isso a biodiversidade e sua irmã-siamesa a biotecnologia foram os “buracos negros” da ECO-92.

A biotecnologia se enraíza no conhecimento do código genético cuja riqueza é tão mais ampla quanto maior seja a diversidade dos seres vivos. Ocorre que o quadro dos conhecimentos desse patrimônio é ainda muito precário em razão da longa hegemonia do velho paradigma, o que pede o acúmulo de pesquisa que o converta em tecnologia em escala de produção industrial. É aqui onde entra o tema das florestas, outro “buraco negro”, em particular as florestas tropicais, onde é maior a biodiversidade, a exemplo da floresta amazônica, que reúne presumivelmente 40% de todo o código genético planetário.

Biodiversidade e biotecnologia são assim as pontas de uma nova ordem paradigmática, dita global. A noção da diversidade da natureza é o novo conceito que vem para substituir o velho e monolítico conceito de uma ordem natural paradigmaticamente única E a biotecnologia é a versão técnica que transfigura a natureza num paradigma técnico-cientifico não mais de caráter físico-mecânico, O conceito de natureza biodiversa leva a alterar todo o conjunto dos conceitos herdados do paradigma físico, levando a refazer a noção vigente de estrutura e movimentos da natureza e ainda de recursos naturais. O conceito de recursos de feição basicamente mineral e assim de circunscrições territoriais rigidamente demarcadas do paradigma vigente, deve dar lugar ao conceito de recursos de feição genética e portanto sem fronteiras territoriais fixadas, porque laboratoriais, a não ser as da própria marcha para adiante da biorrevolução.

Esta reconceituação da natureza com seu reflexo sobre um novo conceito de recursos pede assim uma nova geografia: de um lado temos um novo recurso que está mais para as criações laboratoriais que para territorialidades pré-estabelecidas e por outro temos uma pesquisa de ocorrências florestais baseada na territorialidade fixa. Por fim, isto pede novas regras para as relações internacionais que aponte para uma espacialidade de fluidez inaudita.

Por isso, vivemos neste final de século uma situação científica semelhante à dos séculos xviii-xix, em que aventureiros, naturalistas e geógrafos saíam mundo afora conquistando, pesquisando e cartografando os recursos requeridos pela revolução industrial de então: os minérios e energia fóssil. Um novo esforço de descoberta do planeta é hoje requerido para a pesquisa e mapeamento desse novo recurso natural chamado código genético, com a diferença de que os aventureiros, naturalistas e geógrafos de hoje usam guarda-pó branco e operam com supercomputadores. Mas para que isto ocorra, o espaço mundial não mais pode continuar organizado nas velhas e rígidas fronteiras nacionais criadas pelo velho capitalismo. O capital pede o fim da velha e a criação de uma nova porém ambígua “geopolítica”. As chaves dessa nova “geopolítica” são o “patrimônio universal” e o direito de patente industrial, duas novas categorias jurídicas que se contrariam. No conceito de “patrimônio universal” as áreas florestais devem ser abertas à pesquisa internacional, cabendo ao Estado preservá-las e garantir as condições necessárias para que a nova cartografação se concretize. Sendo assim, determinam as corporações transnacionais, as florestas devem ser declara das patrimônio de toda a humanidade e não mais propriedade territorial dos respectivos Estados Nacionais. Mas, dizem estas corporações, se a pesquisa deve ter esta franquia, a patente da tecnologia criada com base nela deve ser propriedade privada de quem a inventa.

As reformas deste final de século parecem, pois, vir para culminar as superações estruturais que as reformas do final do século xix teriam vindo para apenas iniciar. Mas o mundo que delas vai sair terá uma cara geográfica completamente diferente.

Para isso, precisou-se de um evento em tudo parecido com a Conferência de Berlim de 1885!

 

III - A repetição e a diferença: em busca de um novo paradigma de ciência e tecnologia

A crise do capitalismo em nosso tempo é mais profunda que as do passado porque entrou em crise a própria cultura técnico-científica que a sociedade moderna tem por sua raiz. Sob o nome sutil de crise ambiental esta crise está afetando a sociedade inteira.

Vimos que a sociedade moderna tem sua base orgânica na cultura da técnica fabril que transborda da fábrica e se difunde para a sociedade como um todo para converter-se na ordem social do conjunto.

Esta cultura é a cultura da repetição.

A LÓGICA DA REPETIÇÃO

A repetição é o cíclico movimento disciplinar do trabalho monotonamente reproduzido dentro da fábrica e da administração alicerçada na operação contábil. É o cotidiano dos eternos ciclos da vida: acordamos, saímos para o trabalho e voltamos para casa ao final do dia sabendo que este dia repetir-se-á exatamente do mesmo modo no dia seguinte.

Nem sempre todavia a sociedade se organizou dessa maneira. A nossa sociedade moderna é que tem esta característica. Há uma razão para isso. E que a repetição organiza o controle, do processo produtivo às diferentes relações de classes. Pela repetição pode-se controlar os custos da produção nas fábricas seu volume, ritmo, velocidade do modo que se queira. E por ela pode-se modelar a estrutura das instituições como controle social regular, a exemplo da lei e do Estado.

Mas o motivo mais profundo de a repetição ser a base de todo o sistema industrial é a razão mercantil. Mercado é competição e competição implica regularidade. Sem repetição não há a regularidade da competição e então não há mercado. Não há sociedade de classes. Não há capitalismo.

Não é a primeira vez na história que uma sociedade se organiza com base nas relações de mercado. A sociedade escravista da Antiguidade era mercantil. E se analisarmos de outra maneira diferente da corrente, veremos que a sociedade feudal também o era. Mas foi a sociedade capitalista que levou a ordem mercantil a engravidar a totalidade social desde o dia-a-dia do nosso cotidiano. O segredo é o mecanismo da repetição.

Nosso sistema econômico é repetição pelo motivo simples de a produção mercantil requerer o controle disciplinar do trabalho. A nossa ordem econômica é repetitiva para que a produção e a competição possam interagir: o mercado possa organizar a produção e a produção regular-se pelo fundamento da ordem econômico-social capitalista.

De modo que a lógica da repetição é a necessidade da regularidade, porque é pela regularidade que o sistema como um todo pode se organizar e funcionar em caráter perpetuo.

A REPETIÇÃO MECÂNICA E A INVENÇÃO TÉCNICA DA NATUREZA

A repetição é uma das fontes da contradição do mundo moderno. É que olhando para o mundo o que vemos não é a repetição, mas a diferença. Cada pessoa que vemos é diferente da outra. Cada lugar, cada objeto, cada momento do tempo. A realidade do mundo não é a repetição e sim a diversidade. Mas a realidade da organização de nossa sociedade moderna é a sujeição da diversidade à repetição. E a tendência da repetição é modelar a vida como um padrão uniforme, embora a vida antes de repetição seja diversidade e assim negação do padrão único. Sobre a base dessa contradição entre a diversidade e a repetição ergueu-se o mundo moderno.

Mas esta contradição que está na base da nossa sociedade moderna não foi inventada pela nossa sociedade. Se ela é assim, é porque de alguma forma corresponde à realidade objetiva.

Nosso mundo realmente tem o seu quê de repetitivo. Cada vez que solto um objeto no ar, ele repete sempre o mesmo movimento de queda. Conhecemos esse fenômeno: é a Lei da Gravidade. Já na Antiguidade os gregos haviam notado que o mundo segue um ciclo: a toda noite sucede o dia e a todo dia sucede a noite; as estações também ciclicamente se repetem; o homem nasce, cresce e morre; nasce um novo homem para que o ciclo da vida humana se repita permanentemente. Mas ao lado da repetição os gregos também perceberam que o mundo é diversidade. Tanto assim que a Filosofia nasceu em face de uma pergunta suscitada pela constatação des ta contradição do mundo: como pode o mundo ser ao mesmo tempo repetição e diversidade, padrão e diferença?

Olhando o mundo os gregos perceberam que por dentro da diversidade havia a unidade, unificando-a numa totalidade. A repetição assim se combinava dialeticamente com a diversidade. Temos aí a velha dialética de Heráclito, que vai sendo retomada no tempo por diferentes pensadores, até chegar à modernidade com Kant, mas sobretudo com Hegel.

Se então a nossa sociedade tem na estrutura da sua organização simultaneamente a repetição e a diversidade é porque encontram-se elas objetivamente no mundo. Portanto a contradição da nossa sociedade moderna é uma contradição da própria realidade objetiva. Sucede, no entanto, que a história da construção da sociedade capitalista teve o intuito de fazer da repetição a normalidade e da diversidade a anormalidade, quebrando e dicotomizando a relação dialética entre elas existente com o objetivo claro de fazer prevalecer sobre a diversidade humana o interesse repetitivo da reprodução capitalista.

O ponto de partida dessa dissolução da diversidade no filtro da repetição é o enquadramento da natureza num molde técnico mecanicista e ma temático. Por isto, a história da construção do capitalismo coincide com a história da redução da natureza pela ciência moderna a uma natureza física. A natureza é o regularmente repetitivo, mecânico e matemático, diz Galileu Galilei na origem da formação da cultura técnico-científica moderna; tudo, mesmo que seja diverso, mas desde que não se comporte em termos matemáticos, diz, não é natureza e não faz parte da natureza. Ora, como só o que é regularmente repetitivo condiz com a intenção técnica, reduz-se a natureza ao fim técnico e dela exclui-se a diversidade, o seu caráter diverso, e assim se constitui uma idéia de natureza exclusivamente fundada na repetição.

Aquilo que acontece com o movimento da Terra é o que se passou a considerar a partir do Renascimento como o comportamento padrão da natureza. E do Renascimento ao Iluminismo esta idéia da natureza foi apenas se aperfeiçoando, referenciando a idéia que hoje temos de organização do mundo como ordem gravitacional.

O objetivo é a criação do mundo como campo de forças de ação centrífuga e centrípeta se resolvendo num movimento cíclico. Portanto um mundo em tudo semelhante a uma máquina, com seu vaivém de subida e de descida, seu deslocamento de peças para um canto e para o outro voltando sempre ao mesmo ponto de partida, numa regularidade de repetição constante.

A REPETIÇÃO MECÂNICA E A ORDEM SÓCIO-CULTURAL

Do movimento dos astros no sistema solar passa-se ao movimento das matérias-primas nas fábricas, e dos homens na sociedade, o mundo é assim convertido num só: aquele ordenado pela Lei da Gravidade.

Aqui, a idéia da repetição natural desemboca na idéia da ordem social. Se a repetição é a incansável rotina do ciclo, há que haver algo que tenha força suficiente não só para promover seu movimento, mas também para dirigi-lo ordenadamente. Algo que tenha a força suficiente para fazer que as coisas que tendam a ir voltem, e depois deixe-as irem de novo para então puxá-las de volta, num eterno ciclo de repetição. Por isso o sistema solar virou o modelo de referência da organização tanto da ordem física como da ordem social: o sol é o centro dos planetas, assim como o pai o é da família, o professor da sala de aula, o presidente do país, deus do cosmos.

Evidentemente que o capitalismo não inventou a cultura da repetição. Ele a herdou de toda uma evolução histórica que vem desde o escravismo antigo. A cultura da repetição faz parte da velha tradição cultural da metafísica, segundo a qual há algo no mundo que é sempre universal, sempre constante, na composição da ossatura do mundo. Algo que está onipresente em cada detalhe do diverso, agindo para padronizá-la sob um arcabouço eterno, a exemplo da relação do uno e do múltiplo dos criadores da filosofia. Mas na modernidade, expressando um pacto estabelecido des de o Renascimento entre a ciência e a religião, sob o olhar rigoroso da metafísica, foi ela reinventada para os fins próprios de organizar o mundo do capitalismo. Na sociedade moderna esse algo é a repetição matemático-mecânica porque sua função é aqui a de assentar a base técnica da reprodução capitalista.

Assim, o capitalismo não inventou a repetição, a diversidade, e a contradição que há entre elas; reinventou-as, para dar-lhes um novo molde, o molde capitalista, do mesmo modo como fez com os seres humanos, reinventando-nos para dar-nos o molde social que hoje concretamente somos.

E o capitalismo pode fazer isso porque o homem é um ser cultural, dando-nos às vezes a impressão de primeiro nascermos no mundo dos símbolos para só depois irmos para o mundo da psicologia, estando nossa essência humana muito mais para a semiologia que para a fria razão matemática. Não é por acaso que nossa primeira idade é a idade da fantasia, e não a da lógica pura. E a fantasia que nos vai suscitando a indagação lógica, embora assim não nos pareça porque nossa cultura da repetição mecânica, a cultura moderna por excelência, racionalista, concebe a fantasia como o oposto do real, como a fuga ao real, quando a fantasia é o sonho da construção utópica de um mundo com sabor dos nossos desejos.

É que o capitalismo constrói o nosso mundo como mundo dos seus desejos. De que maneira? Filtrando a diversidade do mundo objetivo que vivemos pelo filtro da repetição físico-mecânica. Mas com qual intenção? A de nessa filtragem organizar o mundo com base na repetição mecânica, para, então, depois de o mundo já assim se encontrar, restabelecer a diversidade como diversidade interna da repetição mecânico-matemática. Um ardil bem arquitetado.

Para tanto, bastou aos “intelectuais orgânicos” do capitalismo observarem que os objetos movem-se no espaço segundo leis mecânico-matemáticas, para, numa sumária simplificação, reduzir o mundo como um todo a este movimento único, e sob esta base nele intervir tecnicamente.

O grande veículo dessa construção foi a revolução industrial do século XVIII-XIX. Não por acaso o estuário onde deságua a natureza reduzida à repetição mecânica. Foi a revolução industrial o acontecimento histórico consolidador por excelência do mundo como ordem capitalista.

É com a revolução industrial que a repetição gravitacional se transpor ta definitivamente da astronomia para transfigurar-se no centro da ordem social. Nascida parametrada na fábrica, a ordem social capitalista nos mo dela sob a diversidade centrada gravitacionalmente no poder deste sol que é o capital.

O problema é que com isso o capitalismo reuniu em si mesmo todas as contradições que o mundo acumulou na sua longa evolução histórica. Por que ao reinventar a contradição naturalmente existente entre a repetição e a diversidade nos termos da sua ordem social, fez da diversidade de suas classes o boomerang que contra ela se volta como ordem de repetição: aqui, é um capitalista competindo com outro capitalista; acolá, é o trabalha dor conflitando com seu patrão por uma forma mais justa de repartição da riqueza social, riqueza produzida pela classe trabalhadora, mas como mundo orbital da força centrífuga do capital. Persiste assim a contradição da diversidade com a repetição, manifestada agora como contestação de uma repetição que é a própria ordem burguesa.

A MUNDIALIZAÇÃO DA REPETIÇÃO CAPITALISTA

É esta contradição da repetição capitalista que faz o capitalismo, tal como as forças do “Efeito Doppler” com o universo, expandir-se pelo espaço planetário até torná-lo a ordem mundial de nossos dias. Impulsionado pelas contradições de suas próprias forças sociais, o capitalismo mundializou-se rapidamente, tornando universais, em menos de um século, problemas que são seus.

A cultura da repetição toma-se mundial. É que a expansão do capitalismo submeteu o mundo a uma economia política viciada na cultura científico-técnico enraizada no consumo de forças naturais baratas como meio de equacionar seus conflitos de produção. Trata-se de uma economia política que à semelhança da física faz o sistema econômico assemelhar-se a um campo de forças, movido pela competição. Para realizar-se, a competição depende de um constante rebaixamento de custos e elevação da produtividade, e, portanto, do aperfeiçoamento do padrão tecnológico. A lógica é gerar a elevação da produtividade. Esta elevação é perseguida por cada capitalista particular, que dela depende para recuperar as taxas de lucro e de acumulação do capital sempre sujeitas à pressão, seja da classe trabalhadora em sua luta por melhores salários e seja por outro capitalista em sua disputa pelo domínio do mercado. Como a elevação da produtividade num Setor é logo copiada pelos demais, assim se estabelecendo a generalização que nivela o sistema econômico no seu todo, a competitividade retoma o seu ciclo, reiniciando-o sempre. Uma vez que o consumo sempre renovado e amplia do implícito no processo cíclico só é possível pelo acréscimo de novos espaços, a expansão territorial do capitalismo é a condição desse ciclo não colapsar, levando o sistema capitalista rumo a uma mundialização incessante. Duas características adquire em conseqüência essa economia política em nosso tempo: o nível da mundialidade e o da alta concentração técnica.

A CRISE DITA AMBIENTAL: O LIMITE DO PARADIGMA DA REPETIÇÃO

Esta escalada é visível a partir dos anos 50, quando por tudo que é canto que se ande ver-se-á multiplicando-se uma mesma paisagem geográfica: a dos grandes complexos industriais e urbanos circundados por imensidões de áreas agropecuárias cada vez mais submetidas à mecanização.

E a escalada do desastre: o mundo diverso dos ecossistemas está sendo reorganizado planetariamente segundo a uniformidade férrea do padrão repetitivo da cultura científico-técnica do capitalismo. Assim, a diversidade subordina-se por inteiro a um único padrão técnico de organização, homogeneizando as formações vegetais pelos cultivos especializados, envenenando as águas, erodindo os solos, assoreando os rios. A padronagem heterogênea dos grandes espaços naturais desaparece diante da homogeneidade imposta pelos padrões mecânicos em rápida propagação pelas mais diferenciadas áreas rurais do mundo.

Por isso o mundo de nossos dias é o mundo da repetição capitalista se difundindo através da homogeneização do planeta na sua tecnologia de grande escala territorial. Repetição que modela mundialmente sob um único padrão nosso modo de vida: um mesmo padrão de roupa, de escola, de livro, de seriado de televisão, de política econômica (atualmente a neoliberal).

Por isso mesmo, paradoxalmente este momento de auge do capitalismo é o de sua maior crise: a diversidade reage contra o padrão único como as águas contidas por uma represa.

E esta crise se exprime ambientalmente pelo simples fato de a cultura técnico-científica planetarizada ter por traços básicos características que conflitam com as da natureza: a cultura técnico-científica é um padrão uniformizante e não auto-regenerativo quando a natureza que esta técnica transforma é pelo contrário diversamente padronizada e auto-regenerativa. Exemplifiquemos: quando se sofre um corte no corpo ou quando se derruba um trecho da mata amazônica, por mais tempo que leve a natureza se regenera por si mesma; mas a máquina devasta e não traz consigo congenitamente a mesma possibilidade da auto-regeneração natural, só a possibilidade da irreversível destruição.

O PARADIGMA DA REPETIÇÃO E A CONTRADIÇÃO ENTRE A TÉCNICA E A NATUREZA

É assim que a destruição da natureza diversa e auto-regenerativa denuncia ao mundializar a cultura técnico-científica as contradições congênitas da ordem capitalista.

Esta contradição entre a técnica e a natureza não é de agora. Na verdade, existe desde que existe o capitalismo, porque lhe é congênita. Mesmo quando o capitalismo limitava geograficamente sua ocorrência aos diminutos espaços industrializados da Europa Ocidental, do Japão e dos Estados Unidos, já o efeito ambiental era danoso. A literatura de ficção, como os romances de D. H. Lawrence, está repleta de descrições de ambientes devastados pela tecnologia inventada pelo capitalismo e não por acaso os romances ingleses passaram a designar as áreas industriais da Inglaterra de “regiões negras”. Mas enquanto esta destruição ambiental restringia-se àquelas poucas áreas, o próprio âmbito maior do planeta se incumbia de amortecer-lhe os efeitos. Ao mundializar-se e ampliar em sua abarcagem a própria heterogeneidade planetária, a transparência da contradição veio à tona. O mundo inteiro virou uma região negra, quando a epiderme inteira do plane ta se viu exposta à repetição mecânica.

A grande contradição de nosso tempo é que há cada vez menos área ainda não transformada em “região negra”, levando a capacidade de a repetição mecânica responder às demandas da expansão capitalista ao esgotamento.

Durante muito tempo os geógrafos advertiram para o conteúdo físico-técnico do nosso conceito de recursos naturais, um conceito vazado na re petição mecânica. O balanço da abundância ou escassez de dado recurso, observam, faz-se por uma leitura literalmente orientada pelo estômago des se artefato gerado pela Física chamado máquina. A tal ponto que a escassez de um recurso resolveu-se até agora com a criação da tecnologia apenas reguladora do seu consumo e o estoque resumiu-se a uma questão de evolução da tecnologia. Não se deu ouvido aos geógrafos.

Enquanto a periferia territorial do capitalismo favoreceu, este paradigma mecânico não foi posto em balanço. Até que um dia atingiu-se o limite do horizonte de novas áreas. Então, percebeu-se que havia um limite para a continuidade da expansão do capitalismo e que este limite real não era o físico-geográfico, mas o congênito do próprio paradigma de cultura técnico-científica que tem por base.

Entre um momento e outro, a ciência criou dois meios de controle do problema surgido: de um lado, a classificação dos recursos em renováveis e não-renováveis além de esgotáveis e inesgotáveis, de grande utilidade gestora, e de outro o conservacionismo, que cedo evolui para o ecologismo e para o ambientalismo, de maior poder de ação que os mecanismos de pura administração. Seja como for, o esquema de classificação serviu para mensurar o que já estava evidente: que em sua estratégia de custo—produtividade eram justamente os recursos não-renováveis e esgotáveis que o capital vinha consumindo em maior conta. E o movimento de conscientização sobre o meio ambiente serviu para preparar os ambientes político e intelectual para a denúncia dos males do paradigma mecânico-matemático e a necessidade de sua superação.

Assim, chegou-se à descoberta de que o limite real da expansão do capitalismo está localizado dentro do ardil da repetição mecânica, como desde o século XVIII-XIX denunciam os críticos socialistas.

O RETORNO DA DIVERSIDADE

Com a crise do paradigma vem a redescoberta da diversidade. E o resgate da diversidade traz a reafirmação da diferença como realidade de mundo.

Ao invés de um padrão geral, do qual a diversidade seria a mera diferenciação do mesmo, a realidade do mundo é essa diversidade sem a sobreposição repetitiva.

Foi o sistema de classificação criado pela ciência comprometida com a afirmação do primado da repetição que cristalizou em nossa cultura essa idéia da diversidade como mera diferenciação interna da repetição. Mas este sistema taxonômico reafirmador do mundo como repetição vem sendo questionado no próprio âmbito da ciência desde o nascimento da moderna Biologia no século XVIII-XIX.

A Biologia introduz uma nova forma de compreender a natureza. Pela primeira vez prova-se empiricamente que a Lei da Gravidade, embora real, não é a única nem mesmo a forma fundamental de movimento dos fenômenos naturais. Ao lado do movimento cíclico do movimento mecânico e com o mesmo grau de determinação sobre os fenômenos encontram-se o movi mento da conservação da energia próprio da Química e o da transformação dos seres em seres novos e diferenciados próprio da Biologia. Por isso, uma coisa é a semelhança e outra a diferença, estabelecendo-se nessa distinção a reconceituação da repetição e da sua relação recíproca com a diversidade. Por mais semelhança que haja entre dois objetos ou dois seres não são eles a mesma coisa. O padrão tem a ver com a semelhança e não com a diferença. Tais são as novas noções que a Biologia introduz no plano das idéias científicas. Dessa forma, a idéia do ciclo vai cedendo lugar à idéia da espiral como idéia geral do movimento.

O sucesso da revolução industrial do século xviii-xix, um movimento fundado na repetição mecânica, já sedimentara entretanto nossa cultura nas velhas noções de natureza geradas pela Física clássica, firmando a revolução industrial a noção de progresso tão cara à ordem burguesa.

Por todo o correr do século xix-xx este paradigma cultural não só consolidou-se como se firmou em todos os campos do saber humano como realidade global de mundo. Da Física à Economia e à Sociologia o mundo ganhou a cara da repetição e da diversidade paradigmática.

Seu poder de generalização se espraiou tanto e tão fortemente que até mesmo as novas noções trazidas pela Biologia caíram sob sua influência, desembocando no evolucionismo.

Só quando o cisma se deu dentro da própria Física, com o surgimento da Física Relativista primeiro e da Física Quântica a seguir é que o abalo se deu com mais força. Mas estamos nos anos 30 do nosso século e a mundialização do capitalismo mal entrou na sua marcha final.

A progressão da Física Quântica no sentido da Biologia molecular e dessa no da Engenharia Genética tornara todavia tão irreversível a nova tendência, que a crise da mundialização acabou por parecer não mais que apenas uma gota d’água.

Por isso, foi preciso esperar um século mais para com o esgotamento do paradigma cartesiano-newtoniano vermos vir à tona com toda sua transparência a dialética da diversidade.

BIODIVERSIDADE E O NOVO PARADIGMA DE TÉCNICA E DE NATUREZA

Falar em diversidade é dizer que o movimento da natureza não segue a forma circular típica do paradigma físico-mecânico, mas sim o espiralado da reprodução por diferenciação da vida, que é próprio das ressintetizações biológicas.

Ao invés de uma natureza dividida em inorgânica, orgânica e viva, te mos um movimento em que ora o que temos é a natureza em forma inorgânica e mais adiante esta mesma natureza transfigurada em forma orgânica por meio da fotossíntese, para mais alem, pela respiração, remineralizar-se e voltar à forma inorgânica, recompondo a base para novo ciclo de síntese da matéria viva, numa recíproca transformação abiótico-biótico sem fim. Assim, o que era há pouco mineral, agora são os sais do nosso organismo que daqui mais para adiante readquirirão a forma mineral, num movimento tão diferente do físico-mecânico que as máquinas nele inspiradas seriam inca pazes de reproduzir.

Estruturado para pôr em movimento uma natureza estruturada na lei da gravidade, a cultura técnico-científica estreita-se agora diante dos próprios novos conhecimentos científicos trazidos pela evolução da Física, da Química e da Biologia, bem como da Engenharia Genética das últimas décadas, mas também por isso mesmo se vê perante a possibilidade histórica concreta de ser superada por uma nova cultura.

A velha lei da gravidade curva-se diante da nova lei do desenvolvimento por diferenciação. E, assim, o velho conceito de repetição inclina-se perante o novo conceito de diversidade.

EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA DE REPETIÇÃO UNIVERSAL

Até os anos 80 o problema da crise paradigmática foi detectado desde a área técnica, com as denúncias de envenenamento do meio ambiente e dos alimentos pela agrônoma norte-americana Rachel Carson em seu livro A primavera silenciosa, até a área epistêmica, com as críticas à modernidade de filósofos como Jean-François Lyotard em seu livro O pós-moderno e Deleuze—Guatari em suas diferentes obras. Reforça este universo de crítica a adesão de intelectuais que, desencantados com a decomposição do “socialismo real”, deslocam sua ação para o campo da denúncia ecológica. Faltava todavia alguma coisa universal a este estado geral de crítica. E este algo vem, pela apropriação das denúncias dos seringueiros ao avanço do latifúndio moderno na Amazônia, dando-se ao discurso florestal o valor universalizante que a ideologia ecológica buscava.

Remetendo em linha direta à problemática da pesquisa e industrialização dos códigos genéticos, o discurso florestal abre a era da nova cata à natureza deste final de século XX.

Diante de um quadro minimamente arrumado no campo epistêmico (um novo discurso filosófico de natureza) como no campo técnico (novas tecnologias com novas bases científicas) precipita-se a reinvenção paradigmática.

Até anos recentes o discurso econômico pautava-se pela falsa contradição entre o crescimento populacional e o estoque dos recursos. Sob essa fórmula malthusiana enfatizava-se um limite matemático dos recursos planetários frente às necessidades da população. Para este discurso havia um limite para a nossa evolução histórica e este era um limite físico-geográfico. A reconceituação da repetição e da diversidade, e então da sua dialética interativa, desloca o problema do limite da natureza secularmente concebi da no campo físico-mecânico deste para o novo campo aberto pela biologia molecular. O limite deixou de ser assim natural, para ser cultural, O planeta não tem limite, porquanto a limitação está no âmago do conceito paradigmático de natureza. O limite não está nos recursos do planeta e sim na estreiteza do conceito de natureza e de recurso natural da nossa cultura técnico-científica mecânica, no caráter cartesiano-newtoniano que o capitalismo criou a partir do Renascimento de combinação entre a repetição e a diversidade, O paradigma é o limite.

BI0TECN0LOGIA E ENGENHARIA GENÉTICA: A NOVA REPETIÇÃO PARADIGMÁTICA?

Ora, tal paradigma nasceu com o intuito de estruturar o mundo como a ordem da repetição regularmente constante desde a fábrica às idéias religiosas e coesionada pela regularidade das trocas. Por isso a redescoberta da diversidade vem acompanhada de uma áurea de coisa subversiva. Em sua emergência, contesta o padrão.

E, no entanto a redescoberta da diversidade aparece não mais que como uma reinvenção da repetição para sob outras formas realizar os mesmos fins de padronizar a acumulação capitalista. O ponto de partida dessa recriação da base material do capitalismo é o deslocamento da centração do paradigma técnico-científico dos velhos conceitos físico-mecânicos de re petição e diversidade para os novos conceitos de repetição e diversidade advindos do universo da Biologia, com o fito de reinventar-se a relação técnica do trabalho.

Um primeiro aspecto se ressalta nesse trânsito paradigmático: a estratégia do tempo. O mundo foge rapidamente da Física para a Biologia. Ou mais precisamente, caminha para o encontro da Biologia casada com a nova Física, a Biologia Molecular, cujo fruto é a Biotecnologia. Há entretanto uma determinação de tempo. É que toda a estrutura material das nossas sociedades objetifica a Física mecânica, isto significando um volume extraordinário de capital fixo materializado na forma das máquinas desde as fábricas aos bancos e às fazendas e isso em escala mundial. O capital necessita desmaterializar-se das máquinas para rematerializar-se nos novos arte fatos que venham da biorrevolução e isto demanda tempo. E tempo é preciso ainda para que a biorrevolução saia da fase da pesquisa para realizar-se tecnicamente. Quem vai pagar os custos dessa estratégia de tempos?

Mas um segundo aspecto ressalta-se ainda: a reafirmação padronizante do trabalho. Durante todos esses séculos da história da humanidade inicia da com o Renascimento a regularidade foi a categoria chave da estrutura e organização da sociedade capitalista, e o fundamento dessa regularidade foi a repetição mecânica objetivamente localizada na lei da gravidade. Pode- se dizer que de uma certa forma o capitalismo é o filho da repetição mecânica, sem a qual ficaria inviabilizado todo o esquema da regulação, desde a mercantil à jurídica, que o consolida como uma ordem social assentada na hegemonia da classe burguesa sobre a sociedade como um todo a partir do controle fabril do trabalho da classe operária. Estaríamos assim diante da pura reinvenção da cultura da repetição?

CULTURA TÉCNICO-CIENTÍFICA E LIBERDADE HUMANA

A organização do trabalho na forma de regras técnicas é fundamento da organização social em qualquer sociedade passada e futura. Aperfeiçoando as estruturas sociais passadas, a sociedade capitalista alicerçou-se sobre o padrão da repetição mecânica, resolvendo a favor do capital o problema da relação necessidade—liberdade. O fracasso da experiência do socialismo soviético, sabemo-lo, tem entre suas raízes a reiteração dessa estrutura paradigmática, que, em conseqüência, no limite, conservou e mais ainda reforçou as formas de alienação do trabalho essencialmente capitalista dentro do corpo de uma sociedade que se pretendia socialista.

Sepultada no universo da leitura meramente técnica pela revolução industrial, a liberdade retorna à tona hoje pelas frestas da redescoberta da diversidade. Todavia, em sendo uma reinvenção técnica da velha subordinação da diversidade ao padrão filtrado de repetição, ontem o mecânico e hoje o biotécnico, a biorrevolução tende a materializar em seus artefatos novos o velho artifício da repetição mecânica. Sob a forma de uma nova ordem ou da ordem atual renovada visa-se manter a velha hegemonia de classe burguesa.

Já sabemos que a biorrevolução é a pesquisa exaustiva do segredo dos códigos genéticos e podemos supor que em face disso os artefatos possam se pulverizar pelo infinito da biodiversidade, e assim engendrar uma territorialidade mais plural. Por essa via estaríamos diante de um paradigma não-padronizante e auto-regenerativo, compatibilizado com a diversidade real da vida no planeta. Entretanto, construída para ser a nova base científico-técnica de uma economia congenitamente centrada na reprodução ampliada do capital, é de se indagar até onde pode ir essa redescoberta da diversidade diante da regularidade que a reprodução capitalista pressupõe.

Diante dessa reinvenção da contradição histórica entre a técnica e a natureza, o olhar de classe dos trabalhadores indaga: para onde a reinvenção cultural da base técnico-científica tende a levar a sociedade, para nova repetição padronizante ou para o livre curso da diversidade? Se não se põe em dúvida a necessidade da superação da velha cultura técnico-científica, uma lição se pode tirar da velha história: o capitalismo não é capaz de contemplar uma cultura da diferença com a liberdade humana que isso implica.

 

 

Capítulo 4 do livro "O círculo e a espiral", Edições AGB Niterói, 2004.