Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo

 

Ruy Moreira

 

Neste final de século uma realidade nova, apoiada não mais nas formas antigas de relações, mas nas que exprimem os conteúdos novos do mundo do capitalismo globalizado traz consigo uma enorme renovação das formas geográficas de organização. Uma mudança correspondente se pede assim ao olhar geográfico. Conceitos velhos aparecem sob forma nova e conceitos novos aparecem destronando e realocando de lugar as velhas categorias pedindo um continuo esforço de coerência.

Mas em que consiste este olhar? E como contemporaneizá-lo?

 

1

A realidade e as formas matriciais do espaço

Ate o advento da primeira revolução industrial no século XVIII o mundo era um conjunto de realidades regionais as mais diversas e as sociedades se distribuíam numa infinita diversidade espacial. Desde então a tecnologia industrial passa a intervir nessa distribuição unificando em sua expansão, área a área, um após outro, os antigos espaços regionais.

Com a vinda da segunda revolução industrial, que ocorre na virada dos séculos XIX-XX, esta uniformização é levada à escala planetária. Os espaços são globalizados em menos de um século, sob um só modo de produção, que unifica os mercados e os valores, suprime a identidade cultural das civilizações antigas e traz com a sua uniformidade técnica uma desarrumação sócio-ambiental em escala inusitada. Ao rearrumá-los sob um só modo padrão de organização de produção, destrói e prejudica os seus modos de vida e a sua bio e homodiversidade.

O ponto de inflexão é a décadas de 50 do século XX.

 

1. A região: o olhar sobre um espaço lento

Quando os geógrafos dos anos 50 olhavam o mundo o que viam era uma história humana passada que mal havia virado de página no trânsito do século xix-xx. Viam a sombra das civilizações antigas, com suas paisagens regionais relativamente paradas, compartimentadas e distanciadas.

Os meios de transporte e comunicação e o poder de intervenção técnica da humanidade sobre os meios ambientes regionais só neste momento passavam a se alicerçar na tecnologia da segunda Revolução Industrial, ganglionada nos anos 30-40 pelo conflito do entreguerras.

Nada mais natural, pois que intuíssem eles a sensação da imobilidade dos espaços e teorizassem sobre a paisagem como paragens de duração eterna em suas imutáveis localizações.

É isto o que explica ter a leitura geográfica por muito tempo se pautado na categoria da região.

A região é então concebida como um todo de síntese única entre as frações de espaço da superfície terrestre e cuja característica básica é a demarcação territorial de limites rigorosamente precisos. O que viam na paisagem era assim essa fração de espaço cuja unidade é dada por uma forma singular de síntese dos fenômenos físicos e humanos num limite territorial preciso que a diferencia e a demarca dos demais espaços regionais distribuídos na superfície terrestre justamente por esta singularidade. Pouco importava se o dito e o visto não coincidissem exatamente.

E que as coisas mudavam, mas o ritmo da mudança era lento. De tal modo que se olhassem a paisagem de um lugar e lá voltassem décadas de pois, provavelmente vissem a mesma paisagem. A distribuição dos cheios e vazios, para usar uma expressão de Jean Brunhes, se trocava com lentidão e os limites territoriais das extensões permaneciam praticamente os mesmos por longos tempos.

 

2. A rede: o olhar sobre o espaço móvel e integrado

Durante um bom tempo, foi esse olhar regional a tradição na geografia: fazer geografia é fazer a região, dizia-se. A organização espacial da sociedade é a sua organização regional e ler a sociedade é conhecer suas regionalidades.

Uma mudança forte vinha, entretanto, ocorrendo em surdina na arrumação dos velhos espaços fazia tempo. Desde o Renascimento com o renascimento mercantil e o advento das grandes navegações e descobertas do Novo Mundo, uma mudança acontece na arrumação dos espaços das civilizações, recortando-as em países e regiões. Esta mudança se acelera para ganhar forma definitiva com as revoluções industriais dos séculos XVIII e XX, com a conversão dos antigos espaços na segmentação das regiões da divisão internacional de trabalho da produção e das trocas da economia industrial. A ordem fabril que assim se institui vai dando ao espaço um modo novo de ser, regionalizado e integrado a partir da integração das escalas de mercado. É assim que a imagem do mundo ganha a forma desde então tornada tradicional das grandes regiões dos anos 50. Primeiro das regiões homogêneas, Depois, das regiões polarizadas. E quando a região adquire então um capital significado e importância na ordem real da organização espacial das sociedades modernas, mas no justo momento que começa a se diluir diante de um espaço mundial em unificação em rede.

Todavia, a tradição regional é tão forte que ainda por um tempo irá se pensar nestes termos os espaços das sociedades do presente. O que é bom que fosse. O de que, entretanto, se precisava era mudar o modo de entender a paisagem, uma vez que a forma como a geografia passava a arrumar a organização da vida social dos homens é a da rede.

A organização em rede mudou o conteúdo dos espaços e, por conseguinte, o lugar da região dentro do discurso teórico da geografia. E evidente que a teoria tem que acompanhar a mudança da realidade, ao preço de não mais dela dar conta. Uma vez que o espaço geográfico muda de conteúdo, já que ele é produto da história, e a história, mudando, muda com ela tudo que ela produz, muda igualmente de forma. A forma que nele tinha importância principal no passado, já não a tem do mesmo modo e grau na organização do presente. Por isso, a região já não ocupava o mesmo lugar na ordem construtiva do discurso. Mas não se percebia ainda a organização em rede. O fato é que a região não declina de importância, tanto no espaço real quanto no da teorização, mas eu papel não é mais o da forma chave da arrumação dos espaços reais bem como de a principal entre as categorias constitutivas do discurso geográfico.

Com o desenvolvimento em particular dos meios de transporte, das comunicações e transmissão de energia, característica essencial da organização espacial da sociedade moderna, uma sociedade umbelicalmente ligada à evolução da técnica, à aceleração das interligações e movimentação das pessoas, objetos e capitais sobre os territórios, à rapidez do aumento da densidade e da escala da circulação, a rede então surge e se articula como a forma nova e positiva de organização geográfica das sociedades, uma vez que é ela a arquitetura das conexões que dão suporte às relações avançadas da produção e do mercado. Coincidentemente assim com a evolução dos meios que vão levar o mundo à globalização.

A rede não é, entretanto, um fenômeno recente, recente é o status espacial que ganha. Imaginemos o espaço no passado, quando cada civilização constituía um território organizado em específico e a partir de uma cidade central. A cidade organiza aí o espaço segundo um entorno regional próprio para cada civilização. De cada cidade partem vetores de uma rede de circulação (transportes, comunicações e energia) destinada a orientar as trocas entre as civilizações umas com as outras, na dependência da qual a cidade exerce seu papel de arrumadora, organizadora e centralizadora dos territórios. Embora já existentes, estas relações não são todavia permanentes e muito menos abarcantes do território da civilização inteira e de todas as civilizações numa globalidade de todo o mundo. Isto só vai acontecer recentemente.

O início remoto se dá no Renascimento, com o desenvolvimento do transporte marítimo a grandes distâncias e o desenvolvimento articulado e em paralelo dos transportes fluviais e terrestres nos continentes. Aí se estabelece uma conexão que evolui e se acelera do século XVI ao XVIII, quando então advém a revolução industrial e com ela a máquina a vapor, surgindo o trem e o navio moderno.

O desenvolvimento dos meios de transportes e comunicações trazidos pela revolução industrial interliga mais intensamente e em caráter permanente as cidades. Surgem assim os relés urbanos ligando os transportes marítimos e continentais, iniciando o recobrimento que vai deitar-se sobre o espaço terrestre como um todo numa única rede. É o tempo de hegemonia das cidades portuárias como Londres, Hamburgo, Nova lorque, Rio de Janeiro.

Uma desterritorialização dos homens, coisas e objetos assim vai se dando caminhando para aparecer como o fenômeno geográfico característico da história moderna, estimulando e alimentando um movimento de nova territorialização. O começo é a reterritorialização dos cultivares.

Transportados pelos navios, os cultivares se difundem e se misturam nos diferentes espaços, formando a paisagem entrecruzada das culturas de hoje, em que as regiões não se distinguem mais umas das outras pelos cultivos, uma vez que o trigo, o café, o arroz, o milho, a batata, tornam-se culturas mundiais. Destino que será o de todas as plantas e animais.

Então, a antiga paisagem regional dos cultivares, fundadora e constitutiva dos complexos alimentares de cada povo, cada paisagem arrumada ao redor de uma cultura chave à qual se juntam as demais culturas do complexo, como a paisagem dos arrozais do oriente asiático, do trigo-centeio do ocidente europeu e do milho-batata dos altiplanos americanos, tão bem analisadas por Max Sorre, vai-se desmanchando. Cada cultivar é descolado do seu ambiente regional natural para ir alocar-se em contextos ambientais de outros lugares, acompanhando o desenvolvimento das comunicações e das trocas.

Essa mudança da arrumação regional que ocorre em todo o mundo, saindo de uma regionalidade baseada numa planta central para uma outra apoiada numa combinação de plantas vindas da migração de cultivares oriundos de outros cantos, muda a cultura humana em cada povo por completo. É o início da globalização atual, marcado pela escalada dos cultivares, uma escalada cultural, porque o resultado é uma radical mudança dos hábitos e regimes alimentares dos povos, alterando suas relações ambientais, os gostos e os costumes.

E se estabelece a partir daí, uma intencional confusão de termos, embaralhando o conceito de culturas e cultivares, explorando o próprio fato da antiga imbricação das culturas na regionalidade dos seus cultivares. Agora, cultivar vira cultura ao virar o veículo da colonização. E morre desde então o primeiro termo dentro do segundo, de modo a fazer-se prevalecer a cultura a referência cultural do colonizador, não mais a cultura dos cultivares do colonizado. Um jogo ideológico que só agora vem à tona com a emergência do discurso da biodiversidade, ligado ao interesse do resgate do conhecimento próprio da cultura dos antigos cultivares para o fim de implementar a cultura técnica da engenharia genética.

A propagação das técnicas de transportes e comunicações próprias da segunda revolução industrial, encarnadas no caminhão, no automóvel, no avião, no telégrafo, no telefone, na televisão, ao lado das técnicas de transmissão de energia, aceleram esse movimento de recobrimento do planeta por uma rede densa de todo tipo de circulação e de trocas.

O mundo é assim recriado, formado de uma escala territorial de densidade social intensamente mais forte, O tecido espacial se torna ao mesmo tempo diferenciado e um só em escala planetária.

O fato é que o conteúdo espacial sofre uma profunda mutação de qualidade. O sentido do que é, mudou radicalmente, e assim mudou de modo correspondentemente radical o conteúdo do conceito. O conteúdo social torna-se mais explícito, e numa tal intensidade que densidade deixa de ser apenas quantidade, para adquirir um significado mais qualitativo. Cabe-lhe agora o sentido da espessura.

Neste caráter novo, uma baixa densidade de população pode ser baixa do ponto de vista da quantidade, mas alia do ponto de vista da rede de relações sociais que encarna. É assim que os campos se despovoam de população, mas ao mesmo tempo ficam ainda mais densos de ocupação de atividades de circulação e econômicas. As cidades viram numa nova forma de urbanização e de espaço urbano.

É o espaço por fim organizado como rede, não mais apenas em rede.

Ao tornar livre para o movimento territorial a população e coisas dos lugares, a rede desloca de um para outro canto, agora, infinitas relações sociais e econômicas, e não mais objetos e cultivares, preenchendo os lugares com a densidade das suas relações técnicas e de trocas.

E então que de relés, as cidades se convertem em nós, diante de um espaço transformado numa grande rede de nodosidade, a cidade vai ocupar, nessa espessura nodosa, o papel de cidade global, integrando um espaço cada vez mais globalizado em rede.

Ao chegarmos aos dias de hoje, em que a rede do computador é o dado técnico constitutivo do circuito diferenciado dos espaços, o espaço em rede então de vez se consolida. Extinguem-se, assim, os espaços do mundo organizados em regiões singulares e de compartimentos fechados, a intensidade e globalidade das interligações ainda mais aumentam, a mobilidade territorial mais se agiliza, a distância entre os lugares e suas coisas mais se encurta, a espessura do tecido espacial mais se adensa, e o espaço do planeta assim ainda mais se comprime.

Então, assim como sucede com a forma geral, cada atributo clássico da geografia ganha um outro sentido. Em particular, a distância e a contigüidade.

A distância perde seu sentido físico, diante do seu maior conteúdo social. Vira uma realidade para o trem, outra para o avião, outra ainda para o automóvel, sem falar do telefone, da moeda digital e da comunicação pela internet. Quem, com Paul Virílio, diz que o tempo está suprimindo o espaço, externa uma ilusão conceitual, de vez que o tempo é que cada vez mais se converte em espaço, o espaço do tecido social seguidamente mais espesso e denso. E quem, com David Harvey, afirma uma tese de compressão do espaço-tempo, sem considerar, com Soja, a ardilosidade com que na modernidade, desde o Renascimento, subsumira-se o espaço no tempo físico, incorre num equívoco igualmente.

Porque a contigüidade, a condição sem a qual da região, que sem ela não se constitui, perde o significado de antes, sobrevive.

3. O lugar: o olhar sobre o novo espaço de síntese

“Ocupar um lugar no espaço” tornou-se assim a palavra forte da nova espacialidade. Expressão que indica a principalidade que na estrutura do espaço vai ocupar o lugar.

O lugar é o ponto de referência da inclusão-exclusão e nodosidade-não contigüidade (as categorias chaves do espaço organizado em rede). Uma referência que não desnecessita, mas refaz, da contigüidade.

Mas o que é o lugar?

Podemos compreendê-lo por dupla forma de entendimento. O lugar como o ponto da rede formada pela conjuminação da horizontalidade e da verticalidade, do conceito de Milton Santos, e o lugar como espaço vivido e clarificado pela relação de pertencimento, do conceito da fenomenologia usada pela Geografia tanto da percepção quanto humanista.

Para Milton Santos, o lugar que a rede organiza em sua ação arrumadora do território é um agregado de segmentos ao mesmo tempo internos e externos de atividades. A contigüidade é o interno que integra os segmentos numa única unidade regional de espaço. É a horizontalidade. Por sua vez, a nodosidade é o externo que integra numa coalescência os segmentos contíguos ao fluxo do mundo verticalmente. É a verticalidade. Cada ponto local da superfície terrestre globalizado em rede vai ser o resultado desse encontro entrecruzado de horizontalidade e de verticalidade. E é isso o lugar.

A horizontalidade tem, portanto a ver com a antiga noção de contigüidade. Seu vínculo interno é a produção. A fábrica, as áreas de mineração a ela articulada como fornecedoras de matérias-primas, as áreas de agricultura fornecedoras dos insumos requeridos pela indústria e pelo consumo da cidade são, todos eles, pontos espaciais de interligação local promovida pelo ato do interesse solidário da horizontalidade. Cada atividade é parte de um todo orgânico do ponto de vista da horizontalidade. E nessa condição entra como especificidade no todo orgânico do lugar.

A verticalidade é a combinação dos diferentes nós postos acima e além da horizontalidade. Seu veículo integrador é a circulação, circulação de produtos, mas, sobretudo, de informações. Sua forma material é a trama da rede dos transportes, das comunicações e meios de transmissão de energia, mas, sobretudo, a infovia, que leva aos diferentes planos horizontais as coisas que lhe vêm de fora.

Cada lugar nasce por isso diferente do outro, dando ao todo da globalização um cunho nitidamente fragmentário, já que o lugar são todos os lugares. Condição que leva Milton Santos a dizer que é o lugar que existe e não o mundo, de vez que são as coisas e os lugares que se mundializam, e não o mundo.

E o lugar então o real agente sedimentador do processo da inclusão e da exclusão. Tudo dependendo de como se estabelecem as correlações de forças de seus componentes sociais.

Sua natureza e poder vêm dessa característica de ser a um só tempo horizontalidade e verticalidade. Por parte da horizontalidade, tudo depende da capacidade de aglutinação dos elementos contíguos. Por parte da verticalidade, da capacidade desses elementos aglutinantes se inserirem no fluxo vital das informações, que são o alimento e a razão mesma da rede (é neste momento que a contigüidade pode servir ou desservir como poder do lugar).

Mas para a geografia fenomenológica o lugar é o sentido do pertencimento, a identidade biográfica do homem com os elementos do seu espaço vivido. No lugar, cada objeto ou coisa tem uma história que se confunde com a história dos seus habitantes, assim compreendidos justamente por não terem com a ambiência uma relação de estrangeiro. E reversivamente, cada momento da história de vida do homem está contada e datada na trajetória ocorrida de cada coisa e objeto, homem e objetos se identificando reciprocamente. A globalização não extingue, antes impõe que se refaça o sentido do pertencimento face à nova forma que cria de espaço vivido. Cada vez mais os objetos e coisas da ambiência deixam de ter com o homem a relação antiga do pertencimento, os objetos renovando-se a cada momento e vindo de uma trajetória que é para o homem completamente desconhecida, a história dos homens e das coisas que formam o novo espaço vivido não contam uma mesma história, o que força o homem a reconstruir a cada instante uma nova ambiência que restabeleça o sentido de pertencimento.

Podemos, entretanto, entender que não se trata de dois conceitos de lugar distintos e não necessariamente excludentes. Lugar como relação nodal e lugar como relação de pertencimento podem ser vistos como dois ângulos de olhares distintos sobre o mesmo espaço do homem advindo do mundo globalizado. Tanto o sentido nodal quanto o sentido da vivência estão aí presentes, mas distintos justamente pela diferença do sentido.

Seja como for, realidade nova determinado em sua forma e conteúdo pela rede global da nodosidade e ao mesmo tempo pela necessidade do homem de (re) fazer o sentido do espaço ressignificando-o como relação de ambiência e de pertencimento, é o lugar que dá o tom da diferenciação do espaço em nosso tempo.

Sua força vem de seu vínculo com o homem e da permanência necessária da contigüidade enquanto nexo do homem com o seu espaço. Se a coabitação do mesmo fez da região a forma organizadora por excelência do espaço no passado, e a nodosidade a refaz em sua escala para dar ao lugar o papel da forma matricial do espaço de hoje, nem por isso a contigüidade é uma categoria de ambiência que se desfaz. Antes, recria-se. Ontem, a contigüidade integrava numa mesma regionalidade pessoas diferentes mas coabitantes da mesma espacialidade. Hoje, ela é a condição da acessibilidade dos mesmos coabitantes a este dado integrador-excluidor do mundo globalizado que é a informação informatizada, mesmo que habitem ou não uma mesma integralidade de espaço.

 

4. O novo caráter da política

Estar em rede tornou-se assim o primeiro mandamento. E fazer política passou a ser a construção de um grande arco de alianças ao redor da entrada em rede a partir do lugar.

A corrida pela inclusão do lugar na rede a um só tempo aproxima e afasta as componentes sociais do lugar. Acirra as disputas internas dos lugares e entre as forças dos distintos lugares. E assim um caráter novo de luta política aparece dentro e em decorrência do que é o novo caráter do espaço, exigindo que se reinvente as formas de ação e que se deixe em posição subalterna as formas clássicas e mais antigas.

Comanda os embates deste espaço o jogo da inclusão e da exclusão dos lugares. Lugares ou segmentos de classes inteiros podem ser incluídos, ou, ao contrário, excluídos dos arranjos espaciais, a depender de como os interesses do lugar se aliem e organizem o acesso às informações da rede.

É aqui que entra o papel das velhas e novas categorias do lugar. Estar em rede tomou-se o mesmo que dizer estar em algum lugar em rede. O mandamento é por isso dominar um lugar. Para estar inserido na verticalidade a condição é estar inserido na horizontalidade do espaço contíguo. Mas para que os interesses lugarizados se concretizem é preciso estar inserido em rede na verticalidade. Antes de mais, é preciso pois estar inserido num lugar, para se estar inserido em rede na geopolítica da horizontalidade e verticalidade. Uma vez lugarizado, pode-se daí puxar a informação, disputar-se sua primazia e então jogar-se o jogo do poder, com a instituição da hegemonia.

É a informação a matéria prima essencial do espaço-rede. Indústrias que às vezes têm dificuldade de obter matéria prima, obtêm-na facilmente uma vez se vejam inseridas no circuito exclusivo da informação. Mais que inserir-se, acessar é o sinônimo de privilégio e instantaneidade de informação. E, assim, de poder encontrar-se em vantagem na dianteira dos competidores. Acessa informações quem está verticalizado. Quem só está horizontalizado exclui-se do circuito, e, então, dos benefícios da informação. Define-se assim o poder da sobrevivência.

O fato é que a instantaneidade do tempo virou espaço, neste mundo organizado na instantaneidade da rede. E o vital é a contemporaneidade do instante.

Daí a reunião de países em blocos regionais, no momento mesmo que a história se despede do espaço arrumado em grandes unidades de região. Quanto mais olhamos para o mapa contemporâneo, mais o que vemos, numa aparente contradição com um mundo globalizado em rede, é a multiplicação de blocos regionais como o Mercosul, o Nafta e a UE. É a região que continua a existir, porém não mais na forma e com o papel de antes, e sim na de articulação no lugar da união concentradora de estratégias globalizantes que usam de formas passadas para recuperar-se de entrada tardia no mundo unificado em rede (UE), reduzir margens de exclusão herdadas (Mercosul) ou evitar ônus de quem desde o começo já nasceu globalizado (Nafta).

Modos de estratégia e não geográficos de ser. Veículos de contemporaneidade e não modos estruturais sedimentados de definir-se, como eram as realidades regionais do passado, remoto (as antigas civilizações) ou recente (regiões da divisão internacional industrial do trabalho). Estratégia de ação conjunta dos elementos de hegemonia horizontal, organizando sua integração na confraria dos incluídos da verticalidade, e a exclusão, por enxugamento (de custos, de preços, de postos de trabalho), da parte maciça dos demais segmentos do mesmo espaço, é esse o fazer da nova política.

 

II

O que é e quais são as componentes estruturais do espaço

 

Tornou-se vital para a Geografia diante dessa nova realidade clarificar o sentido teórico das suas categorias e, sobretudo o entendimento conceitual do que seja o espaço geográfico.

 

1. Espaço: a tensa coabitação dos contrários

Olhando o mundo, vê-se que é ele formado pela diversidade. Povoa-o a pluralidade: vemos as árvores, os animais, as nuvens, as rochas, os homens. A diversidade é o que chama nossa atenção de imediato.

Na medida em que, entretanto a experienciamos no convívio mais íntimo, vem-nos a noção de que junto com a diversidade há a unidade. Uma interligação entre as diferentes coisas faz que a diversidade acabe contraditoriamente se fundindo na unidade única de um só todo.

A grande pergunta que devemos, fazer é o que leva tudo a ser diferente e ao mesmo tempo uma só realidade. A resposta relaciona-se a como o homem se localiza dentro desse mundo e a partir daí o vê e unifica. É quando o mundo estendido diante dele se revela uma grande coabitação. Uma convivência global, onde animais, vegetais, nuvens, chuvas, tudo se relaciona num viver com o homem. E assim não só o homem não se vê como uma figura isolada e inerte dentro dessa diversidade, como também se vê como co-participe e criador do mundo. Compreende que tem com o todo uma relação de sujeito-objeto, criando e sendo criado no mundo. Isto é, que não apenas coabita, mas atua, age sobre a diversidade, rearrumando-a no sentido de dar-lhe a forma unitária de um modo de vida, torná-lo um mundo, e assim constrói-se a si mesmo.

 

2. O olhar categorial: a localização, a distribuição e a extensão

Por força dessa diversidade, o homem que a olha vê o mundo primeiramente como uma localização de coisas e objetos. Como cada lugar é diferente do outro por seu aspecto de solo, de vegetação, de relevo, de vida humana. A localização dá vez à distribuição e a circundância se arruma como uma rede de distribuição de localizações.

Diante do seu olhar, emergem, assim, a localização e a distribuição como categorias geográficas, e a noção de que agem de modo combinado. Essa combinação leva-o direto à noção da extensão. E, assim, da unidade.

Essa leitura vem do sentido da coabitação com que o mundo do diverso vai a ele aparecendo. De modo que cedo os homens percebem que a ação coabitante é a origem da extensão como a unidade dos pontos localizados e da distribuição.

Formam-se, assim, os pressupostos do conceito de espaço geográfico: o espaço entendido como a coabitação das coisas através das categorias da localização e da distribuição, apreendida por meio da extensão como a unidade geográfica do mundo do homem.

 

3. A ontologia do espaço: o fio tenso entre a diferença e a diferença.

A noção da unidade é complexa, de vez que ela é uma unidade dos contrários. Nela, a diferença da diversidade conflita com a identidade necessária da coabitação.

Revela-se nessa contradição a essência ontológica do espaço: a tensão entre a diferença e o padrão da unidade conferido pela identidade da coabitação.

Vindo da forma como a distribuição das coisas em sua localização múltipla e ainda difusa se integra numa só unidade de coabitação, o espaço é a relação tensa da diferença da diversidade contra a identidade da unidade que lhe é imposta.

Seja sob o nome de região, país ou continente, é sempre essa unidade coabitante do diverso, essa diversidade suprimida na unidade, essa unida de contraditória da diversidade tensamente sintetizada no padrão, é sempre isso o espaço geográfico.

Se nem sempre podemos nos dar conta dessa natureza ontológica do espaço, é porque toda uma cultura do espaço como identidade vinda da filosofia clássica isso não nos permite.

 

4. As categorias do processo de constituição da unidade do espaço

Como se processa a constituição da unidade? Detenhamo-nos agora nesse tema.

Vimos que o homem olha para a diversidade a partir de ponto de referência definido internamente à diversidade Se a olhasse sem um ponto de referência, não saberia situar-se dentro dela, sentir-se-ia perdido no seu meio e não descobriria o sentido da coabitação. Desde o momento que o institui, orienta-se (não por acaso a orientação é um dado por excelência geográfico) e pode sentir-se dentro dela como situado dentro de um todo. Assim nasce a noção de mundo. E é a noção do mundo como mundo georeferenciado que cria no homem a consciência da unidade como uma construção humana.

Sob múltiplas formas, as coisas estabelecem vínculos espontâneos entre si. Portanto, os homens não os inventam. Mas assim como as coisas chegam ao homem na forma do trigo, e eles necessitam-no na do pão, os vínculos lhes chegam sob uma dada forma, mas os homens a reinventam transformando-a noutra. Filtram dentre os múltiplos vínculos as formas que lhes apontam seus interesses de construção de mundo e dão ao conjunto vínculos de unidade segundo a opção de possibilidade que escolhem. Convertem, no dizer de Benjamin, as mil possibilidades da h na direção da história assim cria da, construindo o mundo como — vir-a-ser da direção escolhida.

Organizados e assim referenciados, os homens fundem-se com o mundo numa relação identitária. Não mais vê o entorno diverso como um caos, um todo estranho e dele desligado, mas como um mundo construído numa reciprocidade de pertencimento.

É assim que o espaço surge como ambientalidade. Um todo em que tudo flui como uma ambiência enraizada no pertencimento da identidade. Quando mudamos de cidade, sentimo-nos desidentificados e por isso desambientalizados. Só quando tomamos as casas, o arruamento, o fluxo do trânsito, um detalhe da paisagem como referências de localização e distribuição, nos sentimos identificados, espacializados e assim enraizadamente ambientalizados. Por isso que natureza é diferente de meio ambiente.

O todo nasce assim como um enraizamento cultural. Quando um índio circula dentro da diversidade natural da floresta amazônica e reconhece e se reconhece em cada elemento, assim como os gregos antigos em relação às estrelas e ao movimento do sol, e nós modernos, com o mapa, as coordenadas e os pontos cardeais, cada árvore, cada animal, cada rio, cada detalhe que lhe diga e o converta num ser geograficamente orientado e ambientado, o faz sentir-se enraizado num mundo.

A referência espacial do enraizamento é a territorialização do homem. Todo ponto de referência de unidade espacial é sempre um dado extraído do território, domínio da localização e a distribuição do objeto da paisagem de onde o sentido do homem ambientalizado aparece no recorte, sentido de estar culturalmente enraizado, unido num pertencimento de identidade, que só acontece com homens territorializados.

 

5. A uniformização do espaço-mundo pela técnica

A técnica ocupa um papel de destaque específico nessa constituição da unidade espacial dos homens. Em vista de tomar os paradigmas da ciência por referência, sobretudo o princípio da repetição, a técnica age impondo à diversidade a unidade padrão da sua uniformidade.

Quando, então, sob a mediação da técnica o homem age sobre a diversidade com o intuito de transformá-la no seu modo de unidade, suprime-a e a realinha, sacrificando e submetendo a diferença à uniformidade do seu padrão de unidade.

O totem das sociedades antigas, como a de nossos índios, atua de modo diferente. Enquanto o totem comporta-se como um símbolo subjetivo de referência, a técnica atua por meio do signo utilitário da ciência. E estabelece desse modo a incompatibilidade tensa do presente.

A ideologia trabalha no sentido de ocultá-la. Ao buscar referenciar a identidade espacial num elemento que traga em si um forte sentido de subjetividade humana do tipo “a finalidade cio econômico é o próprio homem”, o projeto técnico ideologiza as modernas sociedades. Se Brasil, América Latina, Europa, nomes espaciais, são expressões simbólicas altamente carregadas de adjetivação destinada a estabelecer entre a diversidade humana a noção de uma unidade espacial identificada na nação, a brasilidade, a latinoamericanidade, a europeicidade são ardis da construção econômica da modernidade.

É a contradição da técnica a que mais conflita com a diversidade dos espaços. Uma vez que é o signo cultural de identidade que referencia a unidade e a técnica tende a suprimi-lo no seu afã de unificar os homens economicamente em escalas territoriais seguidamente mais amplas, a uniformidade técnica põe em conflito modo de produção e modo de vida, e torna muito aguda a essência tensa do espaço.

 

6. A homogenia e a hegemonia: a relação entre o espaço e a sociedade

O problema maior dessa contradição é o forte teor de dominação social que por ser padrão todo padrão porta.

Uma vez que é homogeneidade da heterogeneidade, o processo da constituição da unidade, sob qualquer padrão paradigmático, é um processo político. Situação que se visualiza, sobretudo quando a técnica estende e generaliza seu padrão uniforme sobre a biodiversidade (diversidade da natureza) e a homodiversidade (diversidade sócio-cultural do homem) de sociedades antes dispersas, extinguindo—as e fazendo do espaço geográfico um dado determinante da unidade nacional dos homens.

O fato é que construído por referência a um signo, este passa a constituir a relação social e de poder estabelecida na unidade da sociedade, uma vez que o espaço passa a ser o que for este signo. Daí que o seu conheci mento avulta em importância para entender a sociedade. Conhecer o signo da referência da unidade espacial é conhecer o jogo social da hegemonia.

O signo pode ser um dado constitutivo de unidade comunitária. Como na relação totêmica das comunidades primitivas. Nessas sociedades, a função do signo é fazer da reunião a força dos coabitantes diante da adaptação do seu meio, e assim o meio da reafirmação da pluralidade. Esta, por isto não se dissolve como um torrão de açúcar na água diante da unidade do espaço. A espaço-temporalidade organiza a ambientalização reproduzindo a cultura plural dos indivíduos e organiza o laço comunitário com base na diversidade, sedimentando a união que concretiza e a plenifica as individualidades. Os valores agem no sentido da unificação, mas é a diversidade a forma significa que tem vida, reafirmando-se dentro da espacialidade constituída. Mas pode ser um dado constitutivo da dominação de uns homens sobre outros. Como nas sociedades modernas, onde os signos de unidade técnica têm uma clara função hegemônica de classe. Assim, ao invés de criar a identidade comunitária dos coabitantes, a técnica é signicamente orientada para criar a hegemonia de classe da classe dominante. O padrão da cultura técnica não consagra e plenifica a diversidade das diferenças, mas é levado a agir no sentido de converter a diferença na unidade da função econômica, e a desigualdade social a apresentar-se como a forma natural da diferença. A ideologia corre no sentido de o signo de unidade, referenciada na dominação do dominante, ser tomada como uma relação natural, tão natural como o ar que a comunidade dos homens sujeitos a este hegemonia respira.

 

III

A forma atual de representação e o olhar geográfico sobre o espaço-mundo globalizado

 

Em que medida a clarificação teórica das categorias que fundamentam o discurso geográfico e o movimento do real que de atomizado e arrumado em unidades regionais diversas marcha para desembocar no espaço integrado em rede segundo uma nodosidade dos lugares, faz da geografia uma forma atualizada e produtiva de representação de mundo que se espera de um saber tão estrategicamente colocado?

 

1. As duas formas e o problema da personalidade lingüística da geografia

Embora lendo pela janela do espaço a complexa realidade mutante do mundo, o geógrafo não tem sabido dar um lugar sólido ao saber geográfico na atual quadra histórica das nossas sociedades.

A causa, em boa parte, está no estado de estagnação e mesmo de retro cesso em que se encontra o seu universo analítico.

É fato que a linguagem geográfica deixou de enriquecer-se já de um tempo. As expressões vocabulares antigas perderam a atualidade do conteúdo e as novas expressões que apresenta foram tiradas mais de outros campos de saber que da sua própria evolução interna. Encontramo-nos hoje num estado crônico de perda da personalidade lingüística, e assim da personalidade acadêmica como um todo.

Como isto aconteceu? Há uma raiz de origem epistêmica e outra de natureza metodológica, ambas com forte viés institucional.

Há, na história de nossa ciência três geografias, uma correndo habitual mente em paralelo à outra: a geografia real (da realidade que existe fora de nós) e a geografia teórica (da leitura desse real), que se cruzam nos meandros burocráticos da geografia institucional.

Não é isto uma propriedade da Geografia, mas do saber, uma vez que a ciência é uma forma de leitura do mundo que usa como recurso próprio o expediente das representações conceituais.

Há uma realidade externa a nós, que é o fato de a humanidade para existir como sociedade organizada, ter que adquirir uma forma dada de organização espacial. E há a captura deste elemento próprio da realidade do mundo que é a sua organização espacial sob uma formulação teórica. Estabelece-se assim na geografia como em toda forma de saber, uma diferença entre realidade e conhecimento, com a tradução dupla do real e do lido.

Se este duplo não é uma exclusividade do saber geográfico, há nele, entretanto, uma especificidade no fato de que raramente em sua história as duas geografias coincidem, raramente se encontram, raramente se confundem.

A década de 50 é um raro momento de encontro. Quando os geógrafos daquela década falam do mundo real, a geografia teórica o representa com uma precisão tal, que as pessoas que os ouvem é como se estivessem vendo o que falam, não sentindo diferença nenhuma entre o que ouvem e o que vêm. Tal é o que percebemos nos textos de um Pierre George, acerca dos espaços agrários ou dos espaços industriais da França ou de qualquer outro contexto regional do mundo. A geografia é um saber descritivo, um saber que olha e fala do mundo por meio da descrição, mas o faz numa tal correspondência, que as pessoas saem das aulas, andam pelos espaços do mundo, e olhando estes espaços se lembram das aulas do professor de geografia.

Tal não é o que em nosso tempo se dá. Muito raramente acontece de quando hoje as pessoas olhem a organização dos espaços, se lembrem do seu professor de geografia. Falta a identidade entre o que ele falou e o que se está vendo.

Porque isto aconteceu?

É verdade que não é esta uma primeira vez. Também no período do entre-guerras vêmo-la ocorrer.

Há, na verdade, há um movimento cíclico, no qual as duas geografias se aproximam e se distanciam, se aproximam e se distanciam... O momento de hoje é um desses de distanciamento. Mas de um grande afastamento.

 

2. O fixo e o fluxo

Qual a origem disto?

No plano mais geral, o fato de a geografia ler o mundo através da paisagem. O historiador usa recursos mais abstratos na sua leitura do mundo. Pode usar a paisagem, mas prescinde dela. O sociólogo também. Mas o geógrafo, caracteristicamente, é um cientista que é exatamente através do mergulho na paisagem que vê e explica o mundo no que ele é.

Isto faz da linguagem da geografia uma linguagem por essência colada justamente a este dado real do mundo que é a paisagem geográfica. Ora, a transfiguração da região em rede, dado real de nosso tempo, só lentamente vem sendo traduzida numa linguagem mais contemporânea de paisagem.

A fluidez e a mobilidade contínua de territorialização – desterritorializazação - reterritorialização (TDR), é precisamente isso, que contrariamente ao período dos anos 50, caracteriza o espaço de nosso tempo. No entanto, vemos o mundo muito ainda como realidade estática.

Jean Brunhes ensinava que o espaço é uma alternância de cheios e vazios. E que a distribuição é na verdade re-distribuição. Na medida do tempo, cheios e vazios trocam de posição entre si. O que hoje é vazio, amanhã é cheio, e o que hoje é cheio, amanhã é vazio. Sob forma belamente metafórica, Brunhes está dizendo que o espaço tem um caráter dinâmico, como numa tela de um filme no cinema. E que devemos vê-lo por isso em seu movimento. Uma coisa é a localização e distribuição do fenômeno no tempo passado e outro no tempo presente. Cada época da história diz qual é o sentido e o significado de cada uma dessas e das demais categorias de leitura do real. Simplesmente porque o conteúdo histórico-concreto do espaço (a geografia real) é quem define as categorias de leitura (a geografia teórica).

Não foi, entretanto esse modo de entender o que se sedimentou. A noção consagrada foi a de que fazer geografia é localizar. A noção do olhar fixo por excelência geográfico. A ênfase excessiva dada à localização, nos fez perder a percepção de que geografia é movimento. Contrariamente, Brunhes sugere tomar por referência a distribuição, que é um modo de olhar o espaço como o movimento da diversidade sintetizando-se na unidade padrão de espaço.

Não atentamos para o quanto o pensamento brunhiano trazia de revolucionário para a leitura geográfica do mundo. Raros viram, como Brunhes, a necessidade de fundar-se a leitura geográfica na categoria da distribuição.

E a conseqüência conservadora de se calcá-la na categoria imóvel da localização. Vemo-lo só agora, quando o espaço ganha uma fantástica dinâmica de mobilidade.

Milton Santos, numa recriação magnífica dos cheios e vazios de Brunhes, fala de fixos e fluxos. Está falando dos dias de hoje, em que o capital, ser sem fronteiras, se localiza num ponto fixo, alça vôo para um ponto sempre novo, redistribuindo-se ao sabor do fluxo incessante da mobilidade territorial do lucro.

É a mobilidade territorial a forma de prática espacial que envolve indústrias, pessoas e o mercado de trabalho, num processo de TDR permanente. Sua origem é o mercado, que, das múltiplas e dissociadas trocas locais ou regionais de até então, passa em poucas décadas a ser nacional e logo internacional, hoje virando global. O interesse mercantil do capital, que, orientado pelo lucro, migra entre os diferentes setores e lugares em busca da taxa mais alta, leva consigo o trabalho. E são os meios modernos de transporte, comunicações e transmissão de energia que, revolucionados pela tecnologia da segunda revolução industrial, dão-lhe o poder da velocidade incrível com que derrubam fronteiras e ilimitadamente franqueia o horizonte da sua acumulação.

A incongruência do primado da categoria da localização sobre a da distribuição não nos permitiu ver a tempo o esclerosamento do conceito de região (num contexto de espaço fluido, as realidades locais se tornaram realidades abertas e entrecruzadas e não há mais vez para territorialidades fechadas) e a emergência da organização do espaço em rede com sua nodosidade do lugar.

 

3. 0 problema cartográfico da geographia

Igualmente, não nos permitiu ver o envelhecimento e desatualização da velha cartografia (preparadas para captar realidades pouco mutáveis, suas categorias ficaram inapropriadas para captar a realidade fluida de hoje). A perceber, assim, o outro aspecto do estado de desencontro das duas geografias: o problema da representação cartográfica. Fruto da terceira geografia: a dos currículos e interesses engessados da academia nas universidades.

A geografia lê o mundo através da paisagem. Paisagem é forma. Forma é forma do conteúdo. Mudando o conteúdo, muda a forma. Embora sempre mude mais lentamente, se a forma não acompanha ou não acompanha no mesmo ritmo a mudança do conteúdo, o conteúdo vai para frente e a forma fica para trás.

A perda do acompanhamento disto, exatamente isto, foi o que aconteceu com a geografia. Perdida no desencontro entre a paisagem-forma e a realidade-conteúdo, a geografia da leitura afastou-se na passagem do meio do para o final de nosso século abismalmente da geografia real.

De certa maneira, através da região, a relação forma-conteúdo mantinha ainda nos anos 50 alguma contemporaneidade. Dado ao que era a tecnologia da época, o conteúdo não mudava tão aceleradamente. Desde então, o divórcio que se estabeleceu lançou a geografia na separação abismal entre o real e o lido.

A construção do espaço pela tecnologia poderosa da segunda revolução industrial, hoje a caminho da terceira, desfez o antigo elo do tempo da arrumação regional e pôs a relação forma-conteúdo sob a égide da rede. A mutabilidade de aceleração veloz que desde então teve lugar, permanentemente defasando a forma em relação ao conteúdo, incumbiu-se de fazer o resto. A paisagem em relação ao real, o espaço em relação ao tempo, a geografia em relação à história, a realidade em relação à representação cartográfica, a geografia teórica em relação à geografia real, todas essas relações entraram num ritmo tal de descompasso, que nem as formas de arte lograram rebatê-lo.

É quando se evidenciam as duas razões da defasagem: a metodológica, isto é, o fato de a geografia ler o conteúdo do mundo através da paisagem, uma forma que permanentemente defasa do conteúdo; e a epistemológica, isto é, a natureza altamente mutante da técnica de nossa era industrial.

E logo o problema metodológico sobrepôs-se ao problema epistemológico. A técnica deu origem em sua mutabilidade cada vez mais acelerada a uma fluidificação tão crescente dos espaços, através da mobilidade territorial generalizada e planetária das coisas, pessoas e relações, que rapidamente as duas geografias defasaram, e na amplitude de um hiato talvez jamais visto. Rapidamente, caducaram as categorias da leitura: localização já é não mais a pura instalação de coisas em pontos fixos; distribuição é mais que nunca redistribuição; região é horizontalidade-verticalidade.

E o fenômeno cartográfico perde o vínculo geodésico das coordenadas para assumir a face semiológica dos movimentos fluidos.

 

4. A linguagem perdida e os lugares da recuperação

Não é sem razão que nossos programas escolares começam com as noções e expressões vocabulares da representação cartográfica.

Aí, vê-se que a base da leitura são as categorias da localização, da distribuição e da unidade. Aprendemos o ritual banal do trabalho geográfico, localizando-se e distribuindo-se é que se mapeia O mundo. E que todo trabalho geográfico consiste numa seqüência clássica de três pontos: primeiro, localiza-se o fenômeno; depois, monta-se a rede da sua distribuição; a seguir, contextualiza-se a unidade espacial da rede; para, por fim, configurar-se a representação cartográfica. Tudo verbalizado na linguagem da representação cartográfica.

O mapa contém no seu vocabulário todo o repertório do olhar geográfico. Todo fenômeno obedece ao princípio do arrumar cartográfico do espaço. Todo estudo ambiental é, por exemplo, um problema de ordenamento territorial localizado (porque não acontece na estratosfera, mas num ponto concretamente definido da superfície da terra, e porque não acontece de modo desordenado, mas por causa de parâmetros de ordenamento territorial definidos), O mesmo acontece com o estudo de uma cidade, da vida do campo, das articulações do mercado. Eis porque o historiador trabalha com mapa, sem que tenha que ser geógrafo. Também o sociólogo. E igualmente o biólogo. Todos, mas necessariamente o geógrafo.

Para ser geográfico, é preciso haver, entretanto, unidade entre forma e conteúdo no trabalho cartográfico. O pressuposto, como vimos, do problema da unidade entre o real e o lido, o espacial e o representado. Isto significando o resgate da palavra como veículo do conteúdo e pressuposto essencial da linguagem geográfica. Uma linguagem de representação espacial, cuja perda colocou a leitura geográfica anos-luz atrás da evolução da realidade.

É preciso, pois reinventar a palavra na geografia. E o pressuposto é a reinvenção do fazer cartográfico.

Não por acaso, as palavras geográficas são palavras que melhor encontramos exatamente nos mapas. Olhando a legenda, o que mostra o mapa são signos e realidades tipicamente geográficos: formas de relevo, tipos de clima, densidade de população, tipos de bacia hidrográfica, formas de cidade, núcleos migratórios, coisas da paisagem que simplesmente transportamos através de uma linguagem própria para o papel. De modo que olhando sua nervura o que aparece no mapa são as categorias do espaço mais elementares: distância, extensão, latitude, longitude, longitude são palavras do arsenal geográfico.

Já é hoje evidente que a partir de dado momento da sua história moderna, a geografia separou-se de sua forma de linguagem. Não percebemos ainda que tem residido aí a fonte de nosso problema metodológico. Primeiro: nos dias de hoje nos encontramos cada vez mais afastados da linguagem cartográfica, agravando o afastamento entre a geografia teórica e a geografia real. Segundo: a linguagem cartográfica que usamos está desatualizada, já nada tendo de relação com a realidade espacial contemporânea.

A separação que autonomizou a cartografia da sua origem na geografia separou representação e conteúdo. A cartografia levou consigo a forma e esvaziou o arsenal lingüístico da geografia. Em troca, esvaziou-se de conteúdo. A Geografia levou o conteúdo e esvaziou a forma. Em troca, esvaziou-se a si mesma. Com essa perda radical de sua linguagem e práticas para a cartografia, começa o ciclo da decadência da geografia.

Restaram alguns resíduos dessa identidade perdida, aqui e ali espalha dos pelos livros didáticos. Onde os mapas apenas edulcoram o discurso geográfico, sem que guardem com ele qualquer unidade orgânica. Mas restaram, sobretudo no imaginário público, que os vê como uma forma de linguagem típica de identificação da geografia.

Se é assim, a geografia escolar e a do imaginário popular são duas poderosas fontes de resgate da originalidade perdida pela Geografia. Pode-se começar, recriando a linguagem dos próprios livros didáticos. Nossos programas e livros escolares sempre começam com as noções de orientação, localização, escala, justificados na afirmação de que são elas as noções de base da geografia. Mas o que vem a seguir não tem a mínima ligação estruturante com as noções previamente dadas. Toda uma carga de palavras é desperdiçada. Obriga-se o estudante a conhecê-las e aplicá-las em exercícios e conversações, tudo a título de iniciação a um raciocínio geográfico. Mas num sacrifício em vão, de vez que o próprio professor não estrutura e formula seu pensamento em termos de conteúdo e forma da geografia.

O pressuposto é que se devolva o sentido e o significado geográfico das expressões cartográficas. E que se devolva à cartografia o seu real conteúdo geográfico. Que se restabeleça o elo necessário entre conteúdo e for ma, refundindo a cartografia na geografia e vice-versa.

Só assim se pode superar a coabitação desorgânica incompreensível que vemos nos livros e textos de geografia, entre o mapa e a parte escrita, onde o mapa ao invés de forma de fala e fonte da relação lingüística da geografia com o mundo aparece como mera ilustração estética e informativa, servindo apenas para quebrar a monotonia descritiva do texto. Coexistência que para o aluno-leitor traduz-se numa sobrecarga tal, que este (e nós mesmos) já não sabe mais porque foi obrigado pelo seu professor a comprar um Atlas cujos mapas já estão todos nas páginas dos livros. Só que o que estava no Atlas se transportou para o livro de geografia, mas não para realizar um casamento, porque o mapa está dentro do texto muito mais.

 

5. Da cartografia cartográfica à cartografia geográfica

Mas, ao mesmo tempo, é preciso reinventar a cartografia. Relacionando-se à paisagem, o mapa deve estar de acordo com ela. Em nosso tempo de grande mutabilidade tecnológica, a paisagem muda tão rápida e constantemente, que nossa cartografia perdeu com ela toda correspondência. É uma cartografia cartográfica, e sob essa forma já não dá conta do real Assim, é hora de criarmos uma cartografia geográfica.

Esta deve ser uma cartografia construída a partir dos novos conceitos e não das medidas matemáticas. Não que a cartografia que temos tenha se tornado imprestável, uma coisa inútil. Jogá-la fora como coisa imprestável seria jogar a água da banheira fora com a criança e tudo. Permanece ela tão fundamental à leitura geográfica do mundo corno o fora até agora. Todavia, é ela uma forma de representação de mundo calcada em referências fixas, Serviu para perspecionar e descobrir os espaços dos anos 50. Já não têm serventia sozinha para ler os espaços deste fim de século. É uma cartografia ainda necessária, mas não mais suficiente.

Por outro lado, os parâmetros de uma cartografia geográfica já estão postos. E o seu ponto capital de referência é o próprio conceito de espaço.

Vimos que o espaço é a heterogeneidade convertida em homogeneidade, a diferença em identidade, a diversidade em padrão. Dialéticas. Um ser ontologicamente tenso e contraditório. Por isso, toda unidade espacial é um quadro de tensão. Tensão que é mais forte nas sociedades modernas, uma vez que a diversidade é padronizada numa uniformidade espacial imposta pela técnica e pela intenção da hegemonia. Tensão da globalização que vem acompanhada da fragmentação do mundo. E do conflito entre inclusão e excluídos.

Mapear este mundo é antes de tudo exprimir numa representação espacial a pletora das imagens da realidade moderna. A reação da diversidade das culturas contra a uniformidade técnica planetarizada. A reação da biodiversidade ecossistêmica (na forma da desarrumação ambiental do planeta). E a reação da homodiversidade (na forma da explosão dos separatismos). E assim o conflito entre o multiculturalismo do mundo humano e a uniformitarismo padrão da técnica.

E que seja adequada à essência ontológica do espaço. Estudar a sociedade a partir da sua tensão dialética. Ou seja, falar do espaço geográfico como unidade tensa do par diversidade-padrão (uma outra forma de referir à definição hettneriana de estudo da terra como mundo diferenciado do homem).

Precisa-se de uma cartografia que tome a geografia como ciência da reflexão da forma de coabitação social que se deseja para homens plurais. Como o olhar que ajude a compreender as relações sociais, econômicas, culturais e de poder político das nossas sociedades em termos espaciais e da coabitação como forma de vida, de modo a contribuir que em cada canto seja mais humana e mais justa. Que tome as categorias da diferença e da unidade (diversidade e padrão) como o conteúdo básico da construção espacial das sociedades, e por meio delas ofereça à sociedade o uni verso linguístico-conceitual que pede todo olhar crítico-construtivo sobre o mundo.

 

 

Extraído de "O círculo e a espiral", Edições AGB Niterói, 2004.