Ponto de mutação
Por Igor Ribeiro*
EmCrise –
Queria
dividir essa pequena, mas preciosa peça que pude ler no último caderno JB
Ecológico, do dia 18. O texto não estava até então na net nem há outras
reproduções "digitais" em português, o que transforma esta versão em
sua primeira presença verdadeira na rede. Trata-se da reprodução de um diálogo
do filme "O Ponto de Mutação", dirigido por Bernt Capra, baseado no
livro de mesmo nome, escrito por Fritjof Capra, um austríaco doutor em Física
pela Universidade de Viena e um dos fundadores do Centro de Eco-Alfabetização
de Berkeley, na Califórnia, além de ser um dos mais renomados representantes do
pensamento ecológico e sistêmico da atualidade. É autor de O Tao da Física
(1975), o Ponto de Mutação (1982) e a Teia da Vida (1996) e falará no
Acampamento da Juventude.
Esse texto
já ilumina muita coisa em pouco mais de duas páginas. Apesar de parecer ingênuo
em seu começo, vale à pena a leitura a ponto de convencer até mesmo os mais agnósticos
na sua retórica científica, bonita e simples. No filme, o trecho a seguir é
dito por uma cientista a um candidato democrata à presidência dos EUA e a um
poeta. E tais palavras reforçaram, para mim, que para que o mundo melhore o
homem atual deve procurar ser menos cartesiano e produtivo, e mais ecológico e
criativo. Eu tenho tentado. Espero que vocês também curtam a idéia.
O Ponto de Mutação
"Perdoem-me,
mas vocês, políticos, dificultam as coisas. As idéias da maioria de vocês, de direita
ou de esquerda, parecem-me antiquadas e mecânicas como um relógio. Para me
explicar, eu preciso retroceder até Descartes, que foi o primeiro arquiteto da
visão do mundo como relógio. Uma visão mecanicista que ainda domina
especialmente vocês. É como se a natureza funcionasse feito um relógio. Vocês a
desmontam, a reduzem a um monte de peças simples e fáceis de entender,
analisam-nas e, aí, pensam que passam a entender o todo.
Mas não foi
sempre assim. Não antes de Descartes. Quando ele introduziu isso, provocou uma
ruptura revolucionária com a Igreja. Descartes queria saber como o mundo
funcionava sem a ajuda do Papa, pois para ele, o mundo era só uma máquina. Aí
Descartes ficou fascinado pela máquina do relógio e fez dele a sua principal
metáfora: 'vejo o corpo como nada mais que uma máquina'. Um homem saudável é um
relógio bem-feito, e um doente, um relógio malfeito. E funciona tão bem que os
cientistas passaram a acreditar que todos os seres vivos, plantas, animais,
nós, não passamos de máquinas, e isto é falso. Isto tomou conta de tudo: arte,
política etc.
Mas os
tempos mudaram Precisamos de uma nova maneira de entender a vida. A ciência já
passou o pensamento mecanicista. Mas vocês, políticos, parecem ainda ter essa
máquina dentro de suas cabeças.
A grande
dívida - Bem, tomemos o problema da superpopulação. Nós não o resolveremos
olhando as formas de contracepção isoladamente. Pesquisas demonstram que o
contraceptivo mais eficaz são ganhos econômicos e sociais que reduziriam as
famílias grandes.
Vocês
sabiam que, no mundo todo, todo dia 40 mil crianças morrem de desnutrição e
doenças evitáveis? Quase a todo segundo?
Mas estas
curtas vidas não podem ser vistas isoladamente. Elas são parte de um sistema
maior, que envolve a economia, o meio ambiente, e sobretudo à grande dívida do
Terceiro Mundo.
O fardo dos
empréstimos frenéticos não recai sobre quem tem contas no estrangeiro ou
empresas, mas sim sobre os que já não têm nada! Há três anos, um presidente
perguntou: 'Crianças devem passar fome para pagarmos a dívida?'
Tal
pergunta foi respondida na prática, e a resposta foi 'sim', porque, desde
então, milhares de crianças do Terceiro Mundo deram a vida delas para pagar a
dívida de seus países e outros milhões pagam os juros com corpos e mentes subnutridos.
O Brasil,
por exemplo. Vocês sabiam que lá eles destroem a Floresta Amazônica à razão de
um campo de futebol por segundo?
Por quê?
Tentam pagar a dívida nacional com o gado e as terras. Nem têm tempo para
vender a madeira! Põem fogo na floresta! E o desmatamento é uma das causas
principais do efeito estufa na atmosfera. Enquanto isto, nós gastamos na
corrida armamentista!
Como vêem,
vocês não podem olhar em separado os problemas globais tentando entendê-los e
resolvê-los. Claro que podem consertar uma peça, mas ela vai quebrar de novo em
um segundo, porque se ignorou o que se conecta a ela. Precisamos mudar tudo de
uma vez, ao mesmo tempo. Os ideais, as instituições, os valores. Todas essas
novas tecnologias, comunicações e banco de dados causam mais problemas do que
os resolvem. A medicina, por exemplo, avançou espantosamente em tecnologia, mas
o seu custo subiu igualmente. Tornou-se medicina para ricos. E a saúde pública
não melhorou muito, embora pudesse melhorar se apenas mudássemos nossos hábitos
alimentares.
Em vez
disso, especialistas pensam em corações artificiais. Se nossa agricultura nos
alimentasse melhor, em vez de desmatar a Amazônia para criar gado que tem carne
vermelha e é uma das principais causas dos enfartes, talvez não gastássemos
tanto dinheiro com corações artificiais. E por aí vai. São só alguns exemplos
de conexões.
Outro
princípio - A questão política é: 'Como começar?' Mudando nossa maneira de ver
o mundo. Vocês ainda procuram a peça certa para consertar primeiro. Não vêem que
todos os problemas são fragmentos de uma só crise, uma crise de percepção.
A medicina
mecanicista, por exemplo, tem tido sucesso até certo ponto, pois simplesmente
bloqueia os mecanismos da doença E isso não é curar. É como na política. Apenas
mudam-se os problemas de lugar. Os sistemas não encorajam a prevenção, só a
intervenção.
Não quero
condenar o pensamento de Descartes, mas só reconhecer suas limitações. Ver o
mundo como uma máquina pode ter sido útil por 300 anos, mas essa percepção,
hoje, além de errada, na verdade é nociva. Precisamos de uma nova visão do
mundo. O mundo muda mais rápido que a percepção das pessoas. Não seria um
grande desafio político pular o abismo, informar, permitir que nos sintamos
responsáveis? O povo nem confia mais em vocês, políticos. Na última eleição, só
50% deram-se ao trabalho de votar.
A ciência
moderna, a tecnologia e os negócios não fizeram o que Bacon sugeriu: torturar o
nosso planeta? Não podemos mais nos esquivar. Não podemos correr o risco. As
marés estão diminuindo, talvez por causa do lixo jogado na baía, ou dos
fertilizantes. Lagos podem morrer, oceanos inteiros ficam poluídos, o solo, as
florestas, as águas, envenenados, mortos! As coisas mudam tão rápido nas mãos
do homem. A natureza se fragiliza, a chuva toma-se ácida.
Há dois
grandes princípios em todo ser vivo: o masculino, que é dominador, agressivo,
seja lá o que for; e o feminino, que é nutriente, gentil! Esses princípios
costumavam estar equilibrados e, agora, o homem criou ferramentas e armas físicas
e intelectuais para desequilibrá-los completamente! Demos ferramentas
mecanicistas às pessoas sedentas de poder! Estou dizendo que vocês, homens,
perderam o controle! E vocês, eu, todos nós somos as vítimas. Então qual é o
risco ou o erro em darem uma chance a outro princípio?
Pensamento
ecológico - Toda manhã eu tento entender a linguagem da natureza: 'As pedras
falam, e eu me calo'. Gosto de escrever isso, a que eu chamo de 'pensamento
ecológico', em oposição ao pensamento cartesiano. Gostaria de propor um novo
modo de ver as coisas, que nos ajudasse a superar esta crise de percepção.
Descobri
que pensar de maneira ecológica simplesmente faz mais sentido. Dá uma
compreensão mais firme da realidade, dá força. Saber é poder, sim, mas no
sentido de poder pessoal, e não do velho impulso masculino de ter poder sobre
outros.
Foi Isaac
Newton, na verdade, que o concretizou, que o transformou em teoria científica,
Bem, nas
mãos certas, ou melhor, nas mentes certas tais equações funcionavam lindamente.
Eu poderia usar as leis de Newton para explicar cada movimento. Era um feito
tão incrível para a época, que essas leis logo foram adoradas como a teoria
correta da realidade, as leis finais da natureza.
O sonho
cartesiano do mundo como uma máquina perfeita tornara-se um fato consumado.
Isto trouxe inúmeros benefícios às pessoas. Elas podiam fazer coisas com as
quais nem sonhavam antes. Era irresistível e, claro, a velha noção do mundo
como um ser vivo, sumiu do mapa.
Lembrem-se
de que todos os conceitos newtonianos baseavam-se em coisas que podiam ser
vistas ou ao menos visualizadas. Mas o que estavam descobrindo neste mundo
estranho e novo eram conceitos que não podiam mais ser visualizados.
Ao se depararem
com os absurdos fenômenos da física atômica tiveram de admitir que não tinham
uma linguagem, nem mesmo uma forma adequada de pensar nas novas descobertas.
Foram obrigados a pensar em conceitos radicalmente novos. Para entender porque
a matéria é tão sólida precisavam desafiar até as idéias convencionais sobre a
existência da matéria, e após muitos anos de frustrações tiveram de admitir que
a matéria não existe com certeza e em lugares definidos, mas sim, mostra
tendência a existir. Em linguagem científica, não falamos em tendências,
falamos
Ética universal
- A vida é um monte de padrões de probabilidades de conexões. Essas
probabilidades não são probabilidades de coisas e, sim, probabilidades de
conexões. Uma partícula é, essencialmente, um conjunto de relações que se
estendem para se conectarem a outras coisas. Conexões de outras coisas, mas que
também são conexões, e assim por diante. Na física atômica, nunca se tem
objetos. A natureza essencial da matéria não está nos objetos, mas nas
conexões.
A essência
do acorde está nas relações. É a relação entre a duração e a freqüência que
compõe a melodia. As relações formam a música. As relações formam a matéria.
Esta visão do universo feito de harmonia de sons e relações não é uma
descoberta nova. Os físicos estão apenas provando que o que chamamos de objeto,
átomo, molécula ou partícula, é só uma aproximação, uma metáfora No nível
subatômico, há uma troca contínua de matéria e energia. Somos todos parte de
uma teia inseparável de relações.
Assim como
a luz, muitas outras partículas de alta energia, os raios cósmicos, bombardeiam
a Terra. Todas essas partículas colidem com o ar e criam mais partículas,
interagem, criam e destroem outras partículas, e nós estamos no meio da dança
cósmica de criação e destruição. Todos nós, todo o tempo.
Sabiam que
nunca falamos de responsabilidade na universidade, nem nunca discutimos ética
no meu tempo? Nunca nos ensinaram valores morais. Ninguém nos impôs a sabedoria
dos índios americanos que tomavam todas as decisões pensando na sétima geração.
Nunca nos ensinaram a pensar no futuro assim. A ciência pura não existe mais! O
cientista não se tranca em seu laboratório e escolhe o assunto que mais o
fascina. A ciência é cara, e o Pentágono, que paga a maior parte dela, é que
decide o que é fascinante. 70% da pesquisa científica nos EUA, atualmente, é
paga pelos militares.
Partido
verde - Pacifistas, ambientalistas, feministas, veteranos, eles foram todos
para o Partido Verde, o que mostra que o pensamento ecológico está ficando mais
forte. As pessoas vêem o quadro geral, vêem que as questões estão relacionadas.
Acho que
lidamos com um processo histórico tão profundo que nem os americanos resistirão
muito. Quando olho para o campo científico, vejo um padrão, a mesma noção
holística surgindo. Pensar em processos, e não
Estou
tentando fazê-los aceitar uma visão, mas vocês, políticos, só estão
interessados na embalagem. Acho que enquanto continuar a ver as coisas nessa
velha ótica patriarcal, cartesiana, newtoniana, vocês deixarão de ver o mundo
como ele realmente é. Vocês, eu, todos nós precisamos de uma nova visão do
mundo, e de uma ciência mais abrangente para nos apoiar.
Há uma
teoria surgindo agora que coloca todas as idéias ecológicas de que falamos numa
estrutura científica coesa e coerente. Nós a chamamos de Teoria dos Sistemas,
dos Sistemas Vivos. Todos os seres vivos, bem como os sistemas sociais e os
ecossistemas. Essa teoria ajudaria muito na compreensão das ciências que lidam
com a vida. Isto é ciência, e muitos cientistas, incluindo alguns prêmios
Nobel, têm trabalhado nestas idéias. Isto é ciência, mas de um tipo novo. Em
vez de picotar as coisas, ela olha para os sistemas vivos como um todo.
Um
cartesiano olharia para uma árvore e a dissecaria, mas aí ele jamais entenderia
a natureza da árvore. Um pensador de sistemas veria as trocas sazonais entre a
árvore e a terra, entre a terra e o céu. Ele veria o ciclo anual que é como uma
gigantesca respiração que a Terra realiza com suas florestas, dando-nos o oxigênio.
0 sopro da vida, ligando a Terra ao céu e nós ao Universo. Um pensador de
sistemas veria a vida da árvore somente em relação à vida de toda floresta Ele
veria a árvore como o habitat de pássaros, o lar de insetos. Já se vocês,
políticos, tentarem entender a árvore como algo isolado, ficariam intrigado com
os milhões de frutos que produz na vida, pois só uma ou duas árvores resultarão
deles. Mas se vocês virem a árvore como um membro de um sistema vivo maior, tal
abundância de frutos fará sentido, pois centenas de animais e aves sobreviverão
graças a eles.
Interdependência
- A árvore também não sobrevive sozinha. Para tirar água do solo, ela precisa
dos fungos que crescem na raiz. O fungo precisa da raiz e a raiz do fungo. Se
um morrer, o outro morre também. Há milhões de relações como esta no mundo,
cada uma envolvendo uma interdependência.
A teoria
dos sistemas reconhece esta teia de relações, como a essência de todas as
coisas vivas. Só um desinformado chamaria tal noção de ingênua ou romântica,
porque a dependência comum a todos nós é um fato científico. Uma teia de
relações. Sim, mas desta vez é a própria teia da vida.
A teoria
dos sistemas realmente dá o perfil de uma resposta àquela questão eterna: o que
é a vida?
Na
linguagem dos sistemas, a resposta seria que a essência da vida é a
auto-organização. E significa algo específico, também. Significa que um sistema
vivo se mantém, se renova e se transcende sozinho. Um sistema vivo, embora
dependa do ambiente, não é determinado por ele. Os campos de centeio nesta ilha
francesa deveriam ser verdes o ano inteiro, por causa das chuvas. Mas todo
verão eles ficam amarelos. Por quê? Para usar uma metáfora, cada planta se
'1embra' que surgiu no clima seco do sul da Ásia. Ela 'lembra', e nem o clima
muito diferente muda este mecanismo. Ela se mantém e se organiza sozinha.
Nós, por
exemplo, como todo ser vivo, nos renovamos sempre em ciclos contínuos. Bem mais
rápido do que imaginam Sabiam que o pâncreas humano substitui a maior parte de
suas células a cada 24 horas? Acordamos com um pâncreas novo todos os dias e
uma nova mucosa gástrica também. Nossa pele descama à razão de milhares de
células por minuto. Sabiam que a maior parte do pó das nossas casas é só pele
morta?
Ao mesmo
tempo em que as células mortas caem, igual número se divide e forma a nova
pele. Assim a vida se renova. Embora as células sejam trocadas, reconhecermos
um ao outro porque o padrão de nossa organização continua o mesmo. Esta é uma
das características importantes da vida: mudança estrutural continua, mas
estabilidade nos padrões de organização do sistema E há a autotranscendência.
A
auto-organização não consiste apenas nos sistemas vivos se manterem e se
renovarem continuamente. Significa também que têm uma tendência a se
transcenderem, a se estenderem, e a criarem novas formas. Esta para mim, é uma
das partes mais emocionantes de entender a vida A dinâmica evolutiva básica da
vida não é a adaptação. É a criatividade. A criatividade é um elemento básico
da evolução. Cada organismo vivo tem potencial para a criatividade, para
surpreender e transcender a si mesmo. Para criar beleza também Evolução é muito
mais do que adaptação ao meio ambiente. 0 que é o meio ambiente senão um
sistema vivo, que evolui e se adapta criativamente?
Então, quem
se adapta a quem?
Um se
adapta ao outro. Eles coevoluem. A evolução é uma dança em progresso, uma
conversa em progresso. 'Não evoluímos no planeta, evoluímos com o planeta'. Então,
não seria extraordinário e poderoso se pudesse introduzir só essa idéia no
diálogo político?
A questão
central é a busca obsessiva do crescimento! Isso precisa parar.
Para
começar, é dando importância à próxima geração e à seguinte. Foi só quando não
as incluímos em nossas teorias científicas e na busca do crescimento, que
colocamos toda a vida em perigo.
Pensem
apenas no fato horripilante de estarmos deixando para nossos filhos o mais
venenoso dos detritos: o plutônio! Ele continuará venenoso até a próxima
geração, e a seguinte. Continuará venenoso por meio milhão de anos!
Nunca
deveríamos ter aceitado a teoria de que saber é poder, nem a idéia de que o que
é bom para a GM é bom para os EUA!
Precisamos
de uma sociedade sustentável, em que nossas necessidades sejam satisfeitas sem
diminuir as possibilidades da próxima geração!"
*Igor Ribeiro é jornalista e, sem saber, colaborador do EmCrise.