OS OBJETOS GEOGRÁFICOS
Yves Lacoste
Essas cartas tão diversas reunidas nesta exposição, pode parecer
abusivo considerá-las como objetos geográficos, e assim creditá-las a esse
velho saber tão freqüentemente depreciado hoje, a Geografia.
Com efeito, as cartas geológicas não dependem, no essencial, da
Geologia, as cartas climáticas e meteorológicas não são estabelecidas pelo
climatólogo e o meteorologista, não são os historiadores que se ocupam das
cartas históricas e os pedólogos das cartas pedológicas, e não são os
demógrafos que constroem as cartas das densidades de povoamento ou aquelas das
taxas de mortalidade e de natalidade? Essas cartas ditas "do
Estado-Maior" estabelecidas primeiro pelos e para oficiais (que reservem
ainda estritamente seu uso em um considerável número de Estados), como todas
essas cartas sobre as quais os geólogos, historiadores, demógrafos, sociólogos,
botânicos, pedólogos, etc., traçam os contornos dos conjuntos espaciais que
interessam a cada uma de suas ciências, em poucas palavras, todas essas cartas,
não são os geógrafos, os professores de geografia que as constroem, mas sim os
cartógrafos.
Levantar a carta de um território não é um pequeno empreendimento;
é preciso dar-se conta da massa de esforços, das marchas e contramarchas, das
medidas, dos cálculos, das visadas de triangulação necessárias para estabelecer
a carta de uma porção mais ou menos vasta da superfície terrestre, sobretudo na
época em que não se podia ter nenhuma visão "do alto" na vertical (o olhar
de Deus?), nem fotografia aérea, nem fotografia de satélites, esses
procedimentos que facilitam tanto a produção das cartas de hoje. É preciso
também dar-se conta que essas cartas especializadas, geológicas, climáticas,
pedológicas, demográficas, etc., resultam de levantamentos, de observações
sobre o terreno ou do tratamento de um volume considerável de "dados"
estatísticos que foi preciso estabelecer através de enquetes e recenseamentos
minuciosos.
Chamar geográficos, todos esses objetos, todas essas representações
construídas das diferentes formas da diversidade do espaço terrestre e
creditá-las à Geografia parece, pois, bem uma pretensão epistemológica
ridiculamente abusiva de geógrafo. Mas, esse abuso que é preciso denunciar para
se ver mais claro (não é somente um abuso de linguagem), só existe se se reduz
a Geografia, como se tornou clássico fazer, à Geografia dos professores e a seu
discurso escolar ou universitário. Essa Geografia só existe de fato depois do
final do século XIX. Ora, nessa época, as cartas já eram muito numerosas, não
somente, desde perto de um século, os mapas-mundi e os planisférios que davam,
em pequena escala, uma representação bastante precisa das configurações do
conjunto do globo (traçado das costas, dos grandes rios, das fronteiras dos
Estados), mas também, para a Europa Ocidental, notadamente, cartas, em escalas
muito maiores, que davam uma representação bem mais detalhada de espaços de
menor envergadura.
Importa sublinhar que a Geografia é fundamentalmente um conjunto
de saberes muito mais vasto e muito mais antigo que a geografia dos professores
e que antes de ser um discurso de tipo cultural escolar ou científico, ela foi
de fato, desde que existem os Estados – o indispensável instrumento de práticas
sociais de grande envergadura, ainda que fosse pelo tamanho dos espaços que
deviam considerar, controlar, dominar, atravessar: não somente os do grande
comércio e da navegação de longo curso, mas também os dos militares, dos
dirigentes das grandes firmas e aqueles dos chefes de Estado. Essas cartas cujo
estabelecimento exigiu esforços e despesas, assim como domínio intelectual e
político dos espaços que representam, foram e são ainda meios de ação,
instrumentos de poder. É preciso lembrar, com o risco de chocar professores e
cientistas desinteressados, que "a geografia serve, antes, para fazer a
guerra".
Ora esta Geografia, que se pode chamar fundamental, que existe há
séculos, a que liga estreitamente saber e ação e que se dirige sobretudo aos
que tem poder – poder sobre os espaço e as pessoas que aí se encontram – esta
Geografia inclui fundamentalmente o estabelecimento de cartas. Durante séculos
a Geografia não foi, no essencial, discurso, logos a respeito da Terra, de suas
origens e de seus diferentes aspectos (em compensação, é o que foi a Geologia,
antes de se tornar no século XVIII uma ciência estreitamente ligada à
prospecção mineral). Fundamentalmente – e não somente etimologicamente – a
Geografia (grapheim significando desenhar) é, por uma parte, representação por
cartas do inventário das diferenças de todo tipo, tanto "físicas"
quanto "humanas" que se pode recensear na superfície do globo no seu
conjunto ou sobre espaços de menor extensão e, por outra parte, a partir desse
estoque de informações tão diversas cartografadas, raciocínio seja para
estabelecer uma estratégia, delimitando os obstáculos e descobrindo os terrenos
social ou topograficamente os mais favoráveis à ação, seja para compreender as
relações, as interações entre os múltiplos elementos da diversidade, o que é
também uma maneira de preparar a ação.
Esta tarefa essencial da Geografia que é o estabelecimento das
cartas será dela dissociada, sob o nome de Cartografia, somente a partir do
século XIX. É nessa época, com efeito, que, em Estados cada vez mais numerosos,
e por razões econômicas e militares, desenvolve-se maciçamente a produção de
cartas precisas, em grande escala, o que exige um grande número de
especialistas. É também nessa época que os pesquisadores das diversas ciências
naturais e sociais começam a estabelecer cartas especializadas, geológicas
botânicas, climáticas, demográficas, etc. Mas é também nessa época que se
desenvolve, por razões ideológicas, o ensino de certos elementos da geografia,
na escola primária, nos diferentes níveis do ensino secundário e na
Universidade. E é nessa época que o termo Geografia – que significava até então
saber cartográfico e político por excelência – será desde então utilizado em um
sentido muito restritivo para designar somente essa geografia dos professores
que acaba de aparecer. Diferentemente da geografia fundamental esta se separa
de toda prática, de toda estratégia e, assim, negligencia a utilização da
carta, porque ela não se destina a dirigentes, a homens de ação que têm
necessidade da carta para agir e para elaborar sua estratégia, mas a estudantes
ou a futuros professores que têm sobretudo que repetir, reproduzir os elementos
de saber que lhe foram transmitidos. De fato, é sobre essa separação que os
geógrafos universitários acreditavam poder fundar a cientificidade dessa nova
disciplina e esta será imposta, pelo sistema escolar, como um saber neutro com
valor essencialmente cultural e como a única forma possível da geografia hoje.
Na verdade, essa não passa de uma das suas formas.
Porque, evidentemente, a geografia dos professores não fez
desaparecer a geografia dos oficiais, a dos estrategistas ou dos homens de
ação. Mais discreta que a dos professores, essa geografia fundamental tem hoje
um papel econômico, militar, político maior que nunca. Os meios de investigação
de que passou a dispor recentemente, os do sensoriamento remoto por satélites,
dão pela primeira vez na história, a possibilidade de seguir, dia a dia, e
mesmo hora a hora, a evolução de numerosos fenômenos na superfície de todo o
planeta e isso, com extrema precisão. Mas essas observações são reservadas aos
dirigentes, de fato, aos das duas superpotências e não passam de migalhas mais
ou menos ultrapassadas o que é comunicado aos cientistas ou apresentado, a
título de exemplo, ao grande público. A notar que essa preocupação do segredo
geográfico é levada ao extremo
Se, na França como em outros países, o organismo oficial
encarregado de estabelecer e de comercializar as cartas topográficas em grande
escala, chama-se, não instituto de cartografia, mas Instituto Geográfico
Nacional (IGN), é herança desse período em que a Geografia implicava a
realização das cartas, porque esse organismo (que continua a obra empreendida
pelo Serviço Geográfico do Exército e que, na França, depende hoje do
ministério dos Trabalhos Públicos e dos Transportes) não tem nenhum contato com
a geografia universitária. Da mesma forma, esta última não participa com grande
coisa no estabelecimento das diferentes cartas especializadas, geológicas,
botânicas, etc. Em razão do progresso das ciências por uma divisão do trabalho
científico cada vez maior, parece pois abusivo considerar como "objetos
geográficos" e relacionar à Geografia cada um desses diferentes tipos de
cartas que resultam seja de pesquisas dos geólogos, seja daquelas dos demógrafos
ou dos pedólogos, etc.
Em compensação, se se considera, não mais separadamente, mas
conjuntamente – e é isso que permite essa exposição – esses diferentes tipos de
cartas especializadas ou temáticas que representam um mesmo território, parece
legítimo e mais ainda útil, considerá-las, na sua pluralidade, como
"objetos geográficos". Com efeito, a tomada em consideração, não
somente das diversas cartas especializadas de um mesmo território, mas também
das cartas que permitem considerá-lo em diferentes escalas, depende de uma
abordagem que é fundamentalmente a da Geografia. Essa abordagem que é, de fato,
a dos estrategistas, é muito mais difícil, mas também muito mais útil do que se
pode pensar à primeira vista.
Com efeito, não se trata de compilação, nem das monografias
enciclopedistas com plano em gavetas (1- o relevo, 2- o clima, 3- a vegetação,
etc.) que os geógrafos universitários consagraram a diversas
"regiões". Não se trata também de discursos acadêmicos, mas de uma
maneira de pensar estratégica cuja importância é capital para o sucesso das
ações que se estendem mais ou menos na superfície do globo. Por que é
necessário procurar considerar conjuntamente as representações espaciais
estabelecidas pelas diferentes disciplinas científicas? Porque a ação, seja ela
do tipo econômico ou militar, por exemplo, não se aplica, na realidade, sobre
um espaço abstrato cuja diferenciação resulta da análise de uma só disciplina,
mas sobre um território concreto cuja diversidade e complexidade só podem ser
extraídas por uma visão global, articulando os pontos de vista, as maneiras de
ver de numerosas disciplinas científicas. O espaço real onde se leva a ação não
é somente o dos topógrafos, ou dos geólogos, ou dos demógrafos, etc., ele é
concreto, entrecruzamento de todas essas maneiras especializadas e parciais de
ver o espaço terrestre.
As intersecções de conjuntos espaciais
A dificuldade, mas também a utilidade que há em examinar
conjuntamente as representações espaciais das diferentes disciplinas
científicas resulta primeiro da heterogeneidade das configurações que elas
distinguem para uma mesma porção da superfície terrestre.
Cada disciplina classifica qualitativa e quantitativamente os
diversos tipos de fenômenos que considera e é em função dessas classificações
qualitativas e quantitativas que são construídas as cartas temáticas ou
especializadas, cada uma representando as configurações de um maior ou menor
número de conjuntos espaciais. Tomemos alguns exemplos do que se entende por
conjunto espacial:
- para construir a carta geológica de um território o geólogo, a
partir de suas observações sobre o terreno , traça as linhas que separam as
áreas de afloramento dos diferentes tipos de rochas que ele distingue e define,
seja segundo uma classificação em função de sua antiguidade (se contêm fósseis
permitindo sua datação), seja segundo seu fácies. Cada área de afloramento
assim definida e delimitada pode ser considerada como um conjunto espacial;
- o climatólogo ou o meteorologista, a partir das observações
quantificadas de que dispõe, traça sobre as cartas diversas linhas tais como as
isotermas, as isóbaras, as isoietas que delimitam áreas onde a temperatura, a
pressão atmosférica ou a pluviosidade está compreendida (em dado momento, ou a
média em dado período de tempo) entre tal ou tal valor numérico; essas áreas
são outros tantos conjuntos espaciais;
- a partir das cifras de recenseamento operadas em certo número de
lugares ou de circunscrições administrativas, o demógrafo traça sobre a carta
linhas que separam diversos conjuntos espaciais onde, seja o número de
habitantes por Km2, seja a taxa de natalidade, seja a taxa de
mortalidade por exemplo está compreendida entre tal e tal valor numérico.
Seria possível multiplicar os exemplos. Cada disciplina que
considera as características espaciais das categorias de fenômenos que estuda,
é levada a distinguir diferentes conjuntos espaciais e a traçar seus limites
sobre a carta.
Ora, é importante sublinhar, o que é freqüentemente uma evidência
– mas os geógrafos universitários negligenciaram por muito tempo – que não há,
o mais freqüentemente coincidência entre os contornos dos diferentes tipos de
conjuntos espaciais que as diversas disciplinas delimitam para um mesmo
território. É suficiente folhar um Atlas ou um manual consagrado a um mesmo
continente ou a um mesmo Estado para se dar conta que as configurações das
diversas cartas temáticas (relevo, geologia, clima, povoamento, etc.) não
coincidem e que há, na maior parte dos casos, intersecção, por exemplo, entre
os contornos dos conjuntos espaciais geológicos e os dos conjuntos espaciais
climáticos, etc. Para examinar essas múltiplas intersecções com maior precisão,
pode-se superpor desenhos em suporte transparente, cada um trazendo uma carta
especializada: tem-se então a imagem que faria a superposição de vários
quebra-cabeças diferentemente recortados em placas transparentes.
Observando atentamente esse entrecruzamento dos contornos dos
diversos conjuntos espaciais, pode-se, é certo, observar coincidências,
inclusões, mas estas são muito menos a regra que a exceção e, sob esse ponto de
vista elas são dignas de atenção: elas atestam com efeito uma relação de
causalidade entre dois fenômenos (e às vezes mais) uma vez que, para uma certa
porção do espaço terrestre, sua configuração espacial aparece como vizinha ou
idêntica.
Ora, a Geografia universitária concedeu tal interesse a essas
coincidências de conjuntos espaciais estabelecidos por disciplinas diferentes,
que viu nessa correspondência, senão a regra, pelo menos o único tipo de
configuração espacial que seja digna de interesse. No lugar de se representar
como o resultado das intersecções entre os múltiplos conjuntos espaciais que é
conveniente distinguir segundo as diversas preocupações científicas, os
professores de geografia forjaram e inculcaram uma representação do espaço
terrestre baseada, freqüentemente contra toda evidência cartográfica, sobre a
coincidência dos contornos de diversas categorias de conjuntos.
Essa representação teve, entretanto, um considerável sucesso graças
ao ensino, e hoje elas são consideradas como uma "realidade"
geográfica evidente: é a "região". Cada uma delas das quais se
celebra a existência considera-se ter seu próprio relevo, seu clima particular,
sua população, e sua economia dotadas uns e outros de características
específicas, consideravelmente diferentes daquelas das regiões vizinhas. Tal
discurso cuja função ideológica é considerável, postula que a linha que é dada
como limite de tal "região" em relação àquelas que a cercam, seria
uma demarcação fundamental, marcando tanto os conjuntos espaciais descobertos
pelo geólogo como aqueles que dependem da climatologia, da demografia, da
economia, etc.
É suficiente examinar cartas geológicas, climáticas, demográficas
representando um espaço mais vasto que o da "região" da qual se
proclama a existência nos "seus" limites precisos para se dar conta
que essa maneira de ver as coisas não tem fundamentos científicos uma vez que
os contornos dos diversos conjuntos espaciais não coincidem.
De fato, os professores de Geografia, para afirmar a existência de
tal ou tal "região", dotada cada uma de sua individualidade
geológica, climática, demográfica, econômica, histórica, privilegiaram, sem o
dizer, sem mesmo disso se dar conta, um ou dois conjuntos espaciais cujos
contornos pareciam coincidir e que eram considerados a priori como
"determinantes" ou mais dignos de interesse que os outros para os
quais as configurações particulares muito diferentes eram escamoteadas. Foram
freqüentemente os contornos de conjuntos geológicos ou os de antigas províncias
(postulando que suas fronteiras tenham permanecido estáveis) que foram
privilegiados para servir de quadro às "regiões". Em compensação, os
contornos dos conjuntos econômicos, as áreas de influência das grandes cidades
foram geralmente negligenciados, salvo exceção.
Essa maneira relativamente simples de ver as coisas, uma vez que
nega as intersecções de múltiplos conjuntos, tem evidentemente vantagens
pedagógicas e não surpreende que o ensino primário e secundário a tenham
propagado. Mas o sucesso da idéia de "região" prende-se também a
poderosas razões ideológicas, que estão ligadas ao sentimento nacional: cada
Estado, cada "país" é apresentado como a reunião de certo número de
"regiões". Cada "região", descrita como uma entidade viva,
muito antiga, senão eterna, aparece como um dos órgãos do corpo da pátria.
A idéia de "região", a idéia de que só há uma maneira de
considerar o recorte de um espaço e, no fundo a idéia de que o espaço é
recortado pela Natureza, por Deus, segundo linhas simples e estáveis, traduz a
força ideológica da Geografia dos professores. Mas essas representações tranqüilizadoras
que são o fundamento de tantos discursos e escapadas líricas, não são
operacionais. Desde que não se trata mais de discursos ou de manuais escolares,
mas de ação, é preciso se dar conta, sob pena de fracasso, que as configurações
do espaço são muito mais complexas que o recorte simples em algumas grandes
"regiões" da geografia dos professores.
No raciocínio de tipo estratégico – e é o da Geografia que
denominamos fundamental – é preciso levar em conta as intersecções de toda
sorte de conjuntos espaciais, o entrecruzamento de seus contornos. É preciso
sobretudo delimitar com precisão a extensão dos fenômenos que são handicaps,
fatores de fracasso ou de dificuldades para o tipo de ação que se empreende e
procurar os lugares, os itinerários onde esta encontrará as condições que lhe
serão as mais favoráveis.
É porque não há coincidência – ou porque raramente há coincidência
– entre as configurações espaciais das diversas categorias de fenômenos
analisados pelas diferentes disciplinas científicas, geologia, climatologia,
demografia, economia, etc., que o raciocínio geográfico é socialmente
necessário, seja ele feito por geógrafos, universitários ou não, ou por homens
de ação, planejadores ou estrategistas.
A representação a mais operacional e a mais científica não é a de
um recorte simples em "regiões", espécie de casas justapostas umas às
outras, mas a de uma superposição de vários quebra-cabeças muito diferentemente
recortados.
Entretanto, essa representação do espaço que é já
consideravelmente complexa não é suficiente para ser operacional. Não é
suficiente com efeito raciocinar, como fizemos até aqui, sobre as intersecções
entre os diferentes tipos de conjuntos espaciais no seio de um mesmo
território. É preciso também levar em consideração espaços de dimensões muito
diferentes. Há problemas que se colocam no nível mundial, outros no nível de um
Estado, de uma grande aglomeração, outros ainda no quadro do bairro ou da
aldeia. Certamente todos esses problemas são ligados uns aos outros de
determinadas maneiras, mas eles são também diferentes. Para tomar o exemplo de
uma prática mais familiar, sabe-se que não se utiliza a mesma carta para ir de
carro de Paris a Nice e para encontrar uma rua na velha Nice.
As diferentes ordens de grandeza dos
objetos geográficos
As cartas e as fotografias tomadas de avião ou de satélites
(reunidas nessa exposição) representam porções muito desiguais da superfície
terrestre. Algumas cartas representam, mediante deformações calculadas e
escolhidas, toda a superfície do globo, outras a extensão de um continente,
outras ainda a de um Estado, de uma grande aglomeração urbana; algumas cartas
representam espaços de bem menor envergadura; uma pequena cidade, uma aldeia.
Há planos de bairros e mesmo planos de habitação.
Essas cartas e esses planos representam o espaço segundo relações
de redução, relações de escala muito diferentes: há planos na escala de redução
de 1/100 (um centímetro sobre a carta representa um metro na realidade), planos
na escala de 1/1000. Essas são escalas muito grandes. Na França o Instituto
Geográfico Nacional publica cartas em 1/10.000, para as grandes aglomerações,
cartas em 1/20.000 que não cobrem ainda o conjunto do território nacional,
cartas em 1/50.000, em 1/100.000, em 1/200.000 (é a escala da carta
"Michelin"). As cartas escolares murais que representam o conjunto do
Estado que é a França estão na escala de 1/1.000.000. Nos Atlas escolares,
mapas-mundi que representam o conjunto do planeta estão em escalas de
1/50.000.000 até 1/200.000.000, isto é,
Essa questão das diferenças de escalas, que é, entretanto,
fundamental para todos os raciocínios relativos ao espaço, é objeto de
numerosas confusões que não são somente confusões de linguagem. Lembramos,
mesmo aos geógrafos que cometem eles próprios contra-sensos, que mais a escala
de uma carta é dita "pequena", mais a superfície do território
representado é considerável; mais a carta é dita "em grande escala",
mais o espaço que ela representa de maneira detalhada é restrito. Fala-se
freqüentemente na mídia de "operações em grande escala" para designar
operações dispondo de meios importantes, aplicados sobre extensões
relativamente consideráveis. Para ser preciso, dever-se-ia falar de operações
"em pequena escala" uma vez que se referem a vastos territórios, mas
a fórmula seria menos evocativas, assim, a confusão é mantida.
Na verdade a noção de "grande" e de "pequena"
escala presta-se a mal entendidos em razão mesmo de sua relatividade. Com
efeito, em relação a uma carta em,1/10.000, uma carta na escala de 1/200.000
será considerada como uma carta em pequena escala, mas esta mesma carta em
1/200.000 será considerada como uma carta em grande escala em relação a uma
carta em 1/10.000.000 e assim sucessivamente. Na prática, mas também na teoria,
o que importa são as diferenças de tamanho que existem, na realidade, entre os
diferentes objetos geográficos, entre os diferentes conjuntos espaciais que o
raciocínio deve levar
É importante sublinhar que os raciocínios e as práticas sobre o
espaço devem levar em consideração objetos geográficos de dimensões muito
diferentes na realidade: as grandes estratégias planetárias devem, para ser
eficazes, articular-se a táticas levadas em nível local. Quando uma firma
multinacional decide criar uma nova fábrica e que julga proveitoso, por
diversas razões, implantá-la no Terceiro Mundo, o raciocínio dos dirigentes se
faz primeiro no nível planetário; depois se trata de escolher em qual parte do
Terceiro Mundo; na África, na América Latina? Tratar-se-á em seguida de
escolher no seio de um desses continentes, o Estado que oferece as condições as
mais vantajosas, depois no seio deste Estado, a região onde as comodidades são
as mais numerosas; tudo considerado, a fábrica será construída em um dado
lugar, sobre um dado terreno, cujas vantagens não podem evidentemente ser
consideradas sobre uma carta do Estado, com maior razão sobre uma carta do
continente.
Segundo as etapas do desenrolar de uma estratégia, o raciocínio
geográfico deve levar em conta conjuntos espaciais de dimensões muito
desiguais: uns medem-se em vários milhares de km, enquanto outros que não são
menos importantes para o sucesso ou fracasso da ação empreendida, têm algumas
centenas de metros. Assim, quando um avião atravessa o Atlântico, o piloto
raciocina primeiro em termos de metros no momento da decolagem, depois em
termos de centenas de quilômetros durante o sobrevôo do oceano, depois
novamente em termos de quilômetros, de centenas de metros e finalmente de
metros no momento da aterrizagem.
Um geógrafo francês, Jean Tricart, grande especialista em
Geomorfologia, propôs uma classificação cômoda dos conjuntos espaciais
concretos (montanha, oceano) ou abstratos (uma zona climática) segundo
diferentes ordens de grandeza. Ele distingue assim sete ordens de grandeza de
conjuntos espaciais:
1. Aqueles cuja dimensão se mede em dezenas de milhares de
quilômetros: os continentes, os oceanos, as grandes cadeias de montanhas como
os Andes;
2. Aqueles cuja dimensão se mede em milhares de quilômetros: o
"escudo" canadense, o Mar Mediterrâneo;
3. Aqueles cuja dimensão se mede em centenas de quilômetros: a Bacia
Parisiense por exemplo;
4. Aqueles cuja dimensão se mede em dezenas de quilômetros: o maciço
de Vercors nos Alpes por exemplo;
5. Aqueles cuja dimensão se mede em quilômetros;
6. Aqueles cuja dimensão se mede em dezenas de metros;
7. Aqueles cuja dimensão se mede em metros.
Esta classificação pode aplicar-se a toda sorte de conjuntos
espaciais sejam eles "físicos" ou "humanos". Pode-se assim,
por exemplo, classificar os Estados segundo sua dimensão territorial: a URSS é
o único Estado da primeira ordem de grandeza; a França estando nessa
classificação na 3ª ordem de grandeza.
Vimos que as descrições e os raciocínios geográficos repousam
sobre a tomada em consideração de um grande número de conjuntos espaciais,
concretos ou abstratos, que se classificam habitualmente segundo as diversas
categorias de ciências ou de saberes. Mas é preciso também levar em conta as
ordens de grandeza: os diferentes conjuntos espaciais, para os quais é preciso
considerar as relações espaciais, uns em relação aos outros – inclusão,
exclusão, coincidência, intersecção – para dar conta da extrema diversidade das
configurações geográficas, são de dimensões muito diferentes, desde as
"hiper-unidades" da primeira ordem de grandeza que cobrem uma grande
parte do planeta até conjuntos que não têm mais que alguns metros de
envergadura e que não são menos importantes de se levar em conta, no nível
local.
A análise das intersecções ou coincidências espaciais só apresenta
interesse entre conjuntos que dependem da mesma ordem de grandeza ou de ordens
de grandeza vizinhas. Evidentemente não tem grande significado localizar uma
parcela de algumas centenas de metros quadrados (ordem de grandeza 7) no quadro
de uma divisão zonal do mundo. Em compensação, é primeiro em vista de
intersecções de conjuntos de 5ª e 6ª ordens de grandeza
que é preciso localizar essa parcela.
É pois necessário considerar as intersecções dos conjuntos
espaciais segundo os diferentes níveis de análise desde aqueles que
correspondem a representações em muito "pequena" escala, 1ª,
2ª ordem de grandeza, até aqueles das representações em muito
"grande" escala, 5ª, 6ª ordem de grandeza. É
eficaz raciocinar como se o espaço terrestre fosse por assim dizer
"folheado", distinguindo, pelo pensamento, diferentes planos de
intersecções de conjuntos ou diferentes espaços de conceituação de dimensões
muito desiguais. Antes de referir-se às noções de grande e pequena escala que
só têm sentido relativo, é preferível classificar esses diferentes planos de
intersecção de conjuntos segundo diversas ordens de grandeza. O número e a
diversidade qualitativa dos conjuntos que se têm meios de distinguir crescem à
medida que seu tamanho diminui:
þ Um nível de análise das relações espaciais entre os diversos
conjuntos da primeira ordem de grandeza; eles são sobretudo relativamente pouco
numerosos: os continentes, os oceanos, as grandes zonas climáticas, as muito
grandes cadeias de montanhas (o conjunto Andes - Rochosas...) mas também o
conjunto "Terceiro Mundo", um muito vasto Estado como a URSS, os
dispositivos estratégicos no nível mundial das duas superpotências, etc. É
sobre um planisfério que se pode considerar as relações, as intersecções entre
os diferentes hiper conjuntos cujas dimensões se contam por dezenas de milhares
de quilômetros. A escala de representação cômoda indo de
þ Um nível de análise das relações espaciais entre os diversos
conjuntos da segunda ordem de grandeza; eles são mais numerosos que no nível
precedente: grandes conjuntos estruturais (escudos, domínios climáticos,
extensão marítima como o Mediterrâneo), conjunto dos países da cultura
muçulmana, alguns grandes Estados (Canadá, Brasil) ou imensas "regiões
(como o Saara ou a Sibéria). Suas dimensões se exprimem em milhares de
quilômetros e suas intersecções pode ser examinadas com precisão sobre cartas
cuja escala vai de 1/1.000.000 a 1/10.000.000.
þ Um nível de análise das intersecções entre os muito diversos
conjuntos da 3ª ordem de grandeza cujas dimensões se medem em
centenas de quilômetros: grandes bacias fluviais, cadeias de montanhas do porte
dos Alpes, , grandes bacias sedimentares, um grande número de Estados, mas
também as subdivisões territoriais que são estabelecidas no seio dos Estados da
Segunda ou primeira ordem de grandeza. As relações espaciais de todos esses
conjuntos examinam-se sobre cartas cuja escala se situa entre 1/500.000 e
1/1.000.000.
þ Um nível de análise das relações espaciais entre conjuntos da 4ª
ordem de grandeza cujas dimensões se medem em dezenas de quilômetros. Esses
conjuntos são muito mais numerosos e diversos que aqueles que se pode recensear
nas ordens de grandeza precedentes: pequenos Estados mais vastos, mas também
grandes aglomerações urbanas, áreas de influência urbana, unidades tectônicas
elementares segundo Tricart, bacias fluviais, grandes florestas, áreas
culturais, redes de circulação, áreas de extensão de um sistema de cultura
agrícola, "regiões" mineiras, etc. As intersecções desses conjuntos
examinam-se sobre cartas cuja escala é da ordem de 1/50.000 a 1/200.000.
þ Um nível de análise das intersecções entre os inúmeros conjuntos
da 6ª ordem de grandeza; suas dimensões se avaliam em dezenas de
metros: formas de modelado do terreno, e efeitos da exposição sobre as
condições climáticas de uma vertente, de um fundo de vale, quarteirões urbanos,
pequenas localidades, porções de um terreno agrícola, etc. Utilizam-se
documentos cartográficos na escala de 1/1.000 a 1/10.000.
Todos esses conjuntos, esses instrumentos de pensamento de que
dispomos hoje permitem-nos representar o mundo fragmentariamente, peculiarmente
e, poder-se-ia dizer, de maneira caleidoscópica uma vez que resultam de
procedimentos de investigação científica consideravelmente dessemelhantes e são
construídos em diferentes escalas, em diferentes níveis de abstração. O
problema que se coloca não é assim somente o da intersecção das diferentes
categorias de conjuntos espaciais em cada nível de análise, mas também o da
articulação dos diferentes níveis de análise, uma vez que cada um deles só dá
uma visão parcial da "realidade".
Entre cada um dos níveis de representação os quais é eficaz
separar sistematicamente pelo pensamento, encontra-se uma espécie de hiato que
corresponde à brusca mudança de escala, à passagem de uma ordem de grandeza a
outra. Importa sublinhar que as intersecções que se pode observar em um dado
nível, entre conjuntos de uma dada ordem de grandeza, não correspondem
necessariamente às intersecções que se pode observar em um outro nível de
representação, entre conjuntos de uma outra ordem de grandeza. Não é o mesmo
fenômeno, a mesma porção da "realidade" que se considera nos
diferentes níveis da análise espacial.
Esquema de intersecções de conjuntos espaciais em diferentes níveis
de análise
Nesse esquema teórico, distinguiram-se somente quatro níveis de
análise que correspondem às ordens de grandeza 1, 2, 3 e 4; poder-se-ia
representar intersecções de conjuntos concernentes a escalas maiores (ordem de
grandeza 5, 6, 7). No nível 4, representou-se muito esquematicamente a
intersecção de conjuntos espaciais cujas dimensões se medem em dezenas de
quilômetros: são por exemplo conjuntos topográficos (maciço montanhoso),
climáticos (diferenças climáticas devidas à exposição em relação ao maciço),
área de influência de um centro urbano, extensão de um grupo humano particular,
etc.
Essas diferentes "batatas" são evidentemente alegóricas.
Há também conjuntos lineares. Nesse nível 4, representou-se em traço menos
nítido uma parte dos limites de um conjunto H, o qual é da 3ª ordem
de grandeza e que só pode ser considerado numa escala menor.
No nível 3, representaram-se outros conjuntos espaciais, aqueles
cuja dimensão se mede em centenas de quilômetros e em traço menos nítido uma
parte dos limites de um conjunto F que é da 2ª ordem de grandeza. No
centro do plano 3, o pequeno quadrilátero em pontilhado corresponde àquele que
foi considerado, em escala maior, no 4º nível de análise.
No nível 2, representou-se a intersecção de conjuntos que se medem
em milhares de quilômetros e em traço menos nítido uma parte dos limites de um
conjunto A que pertence à primeira ordem de grandeza. No centro do plano 2, o
pequeno quadrilátero em pontilhado corresponde àquele que foi considerado, em
escala maior, no 3º nível de análise.
No nível 1, que corresponde a uma escala muito pequena, mostra a
intersecção de conjuntos espaciais cujas dimensões se medem em dezenas de
milhares de quilômetros (lembremos que a Terra não tem mais que
Para explicar a situação geográfica de um lugar ou condições
geográficas de uma operação, é preciso pois articular esses diferentes níveis
de intersecção de conjuntos.
Sempre a título teórico, eis como se pode representar graficamente
as diferenças entre várias representações geográficas, entre diferentes
maneiras de pensar o espaço:
1. A divisão clássica de um espaço em certo número de regiões. Essas
linhas com contornos mais ou menos sinuosos separam certo número de unidades
regionais, cada uma delas trazendo um nome próprio. O espaço aparece assim como
formado da justaposição de certo número de casas, os limites de cada uma delas
sendo "um dado geográfico". Cada "região" deve ser o objeto
de um estudo monográfico tratando de "seus" diferentes caracteres.
2. Representação de certo número de conjuntos espaciais, tanto
"físicos" quanto "humanos"; os contornos desses diferentes
conjuntos não coincidem; muito ao contrário, eles se superpõem; cada fenômeno
tomado em consideração deve ser visto nas particularidades de sua configuração
espacial. Os diferentes conjuntos espaciais não são designados por nomes
próprios, mas pelos elementos e as relações características de cada conjunto.
3. Em cinza, uma unidade regional "vidaliana"; fazer um
estudo monográfico dessa unidade, fechar-se em seus limites, dados uma vez por
todas, torna impossível a consideração dos diferentes conjuntos espaciais e de
suas intersecções.
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Publicado
originalmente em Cartes et Figures de
Traduzido e publicado na Seleção de Textos - N.18. AGB - São
Paulo, 1988
Digitado por:
Dale Catarino
Disponível no
endereço http://geocities.yahoo.com.br/cartografiatematica/textos/lacoste.html