Hipertexto e Criação Literária

 

Muitos autores buscaram uma espécie de subversão da ordem, de acordo com Bolter (1991), ao estruturar o texto de maneira alternativa, apostando mais na atividade do leitor do que nos cânones (bem) estabelecidos da literatura que sempre vigoraram. Estes verdadeiros "transgressores" procuraram, de alguma forma, libertar-se dos limites a sua arte. Neste sentido, é importante atentarmos para a obra de Marcel Proust, James Joyce, Júlio Cortázar, Jorge Luiz Borges e Laurence Sterne. Ao tentar romper uma narrativa considerada linear, eles poderiam estar inaugurando uma forma de pensamento hipertextual na literatura. "É como se estes autores estivessem esperando pelo computador para libertá-los do impresso. E de fato, muitas de suas obras poderiam ser transferidas para o espaço da escrita (hipertextual) e plenamente reconstruídas naquele" (Bolter, 1991, p. 132).

É reconhecido o poder das artes de antecipar os futuros desenvolvimentos sociais e técnicos, como lembrou McLuhan (1974), e neste caso, com a literatura não foi diferente. Autores como Landow (1995), Bolter (1991) e Murray (1997) são unânimes em afirmar que estas tentativas de rompimento dos padrões "lineares" da escrita teriam sido precursoras do conceito do hipertexto. Estas obras poderiam ser chamadas metaforicamente de "hipertextuais" porque referem-se a muitos outros textos através de conexões e associações que podem ou não ficar a cargo do leitor. São obras que, de certa forma, subvertem a noção de texto tradicional, apontando para a atividade do leitor em seguir caminhos variados em histórias multiformes.

Um exemplo pode ser "O jogo da amarelinha", de Júlio Cortázar (Rayuela, 1963), no qual o autor fornece duas seqüências de leitura da obra: a primeira, pela ordem tal como está impressa no livro, que estende-se até o capítulo 56, sendo os demais, "capítulos prescindíveis", segundo o autor; a segunda, uma seqüência de leitura determinada pelo autor e diferente da ordenação impressa no livro, o que constitui-se, de acordo com Cortázar, no "segundo livro". Este pode ser tomado como um exemplo hipertextual de romance impresso, basicamente, por instituir uma leitura multiseqüencial. Jorge Luis Borges, no seu conto "O jardim dos caminhos que se bifurcam" (El jardín de senderos que se bifurcan, 1941), apresenta uma história repleta de alusões e associações dentro dela mesma, com se fosse um labirinto num exercício de narrativa que assume formas diferentes de tempo e de espaço, realizando uma verdadeira reconceituação destes aspectos na forma literária. Laurence Sterne, em "Tristram Shandy", parece brincar com os próprios caracteres gráficos de representação textual. Eles são subvertidos em nome de uma outra ordem de leitura, apostando em interrupções, ou jogando com a ausência total de texto em uma determinada página, ou ainda, a repetição exaustiva de um certo símbolo gráfico em meio ao texto.

Os precursores do hipertexto também são procurados em outras formas literárias, como a Bíblia. Este é um exemplo de uma obra escrita que se utilizou de redes e conexões, assim como o Talmude, um gigantesco hipertexto que consiste no texto bíblico comentado por diversos rabinos.

Pode-se dizer, a partir dos exemplos acima, que encontramos uma literatura "pré-hipertexto" (Landow, 1995) em autores que tentaram romper com o espaço limitado da página impressa. Eles fizeram exercícios narrativos em termos de associações do pensamento e também do próprio objeto textual.

O mesmo Landow (1995), na sua discussão a respeito, observa que o hipertexto pode ser visto como uma lente, um novo agente de percepção. Como uma lente, pode ressaltar alguns aspectos destas obras literárias que, antes do surgimento do hipertexto, talvez não estivessem sendo notadas, ou, melhor dizendo, talvez fossem notadas, mas não encontrassem sua definição apropriada.

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