Sumário
 
 
Da ruptura ao esclarecimento:
a crítica da tecnologia em trabalhos de artemídia

Fábio Oliveira Nunes*


Resumo: A exemplo das vanguardas modernas, que prezavam a ruptura e a subversão, atualmente existem trabalhos em mídia arte que buscam uma certa desautomatização do receptor, inserindo problemáticas que abordam questões sociais e a própria tecnologia. Nesse contexto, o artista Perry Hoberman desenvolve sua pesquisa poética, em novos meios, entre a postura crítica e a contestação social..

Abstract: Like the modern avant-garde, which praised disruption and subversion, there are current studies in media art that somehow seek to de-automatize the receiver, introducing matters that address to social issues and technology itself. In this context, the artist Perry Hoberman develops his poetic research in new ways, between critical stance and social dissent.

1. Ruptura: o legado das vanguardas

O espírito de revolução é inerente à história da arte moderna: a ruptura muitas vezes é a postura artística que mais evidencia o papel do artista no contexto artístico e social. Desde as vanguardas, a ruptura é o caminho fundamental para a inserção do “novo”, da recombinação e da quebra ao estabelecido, papel este, inclusive delegado aos artistas pelo senso comum: o estereótipo do artista emana excentricidade e inconformidade em sua relação com o mundo. Mais do rotular a figura do artista (poderíamos lembrar, por exemplo, da célebre imagem do sujeito cronópio , símbolo da genialidade, loucura, generosidade e rebeldia, pelo escritor belga-argentino Júlio Cortázar) é necessário desvincular qualquer gratuidade nesta postura: como diria Joseph Beuys, na idéia da arte como organismo social , “a arte não é somente um artefato material, ela é acima de tudo, uma ação projetada para ter conseqüências sociais”. Da figura do artista vamos para a natureza dos seus atos.

A arte moderna rompe com o passado da arte: os futuristas proclamavam fervorosamente o novo, os dadás também anunciavam a sua “tabula rasa” com alegria e devoção. Mas além do passado, rompe-se também com o artístico, colocando a “experiência humana” (HAFTMAN apud SEDLMAYR, s/d:166) como protagonista, partindo a elementos “não artísticos”, ou seja, imersos na realidade. As produções de Kazimir Malevitch – quadro negro sobre fundo branco – e Marcel Duchamp – readymades – são evidências desta situação. Ao se inserir enquanto realidade era de se esperar que as especificidades constituintes do objeto artístico viessem à tona, iniciando discursos de metalinguagem que iriam encontrar seu ápice na contemporaneidade. É também neste período que se buscam por novos paradigmas de linguagem através de três ângulos básicos que sintetizam a antiestética modernista, conforme FERRARA (1986:09): o experimentalismo, o funcionalismo e o sincretismo. Unidos, esses três paradigmas, buscam uma revolução na linguagem até então colocada. O experimentalismo tende a exaurir o universo de sua condição estética, onde a exploração de possibilidades de procedimentos constitui o objetivo da própria obra; o funcionalismo pensa o objeto artístico inserido na realidade, e conseqüentemente, passível à apreensão da percepção, acima de suas relações semânticas ou de interpretação; já o sincretismo, surge da conjugação dos paradigmas anteriores, na busca de uma linguagem que possa operar com sua própria estrutura. Segundo FERRARA (1986:12): “o sincretismo da arte moderna justifica-se pela absoluta necessidade de escapar ao domínio do significado arbitrário e inovar na linguagem o que está ligado ao desenvolvimento tecnológico, às teorias da comunicação e da informação e às novas técnicas de reprodução”.

Na apropriação das novas tecnologias – na intersecção da arte e tecnologia – pelos artistas, muito daquilo que era preconizado pela arte moderna, foi revisitado. Um dos exemplos disso é a iniciativa da “Estética da Comunicação”, fundada por Mario Costa, professor de estética da Universidade de Salerno, com os artistas Fred Forest e Horácio Zabala, em meados de 1983. Sobre esta estética, nos apresenta ZANINI (2003:18) como uma nova idade do espírito, baseada numa extraordinária fusão entre arte, ciência e tecnologia, e complementa:

 

“A estética da comunicação – afirma [Mario Costa] ‘é uma estética de eventos'. O evento é definido em suas propriedades e, sinteticamente, podemos dizer: não se reduz a uma forma; apresenta-se como um fluxo espaço-temporal, um processo interativo vivente; expande-se ilimitadamente no espaço-tempo; sua importância não reside no conteúdo permutado, mas nas condições funcionais da troca; seu processo se faz em tempo real; é uma mobilização de energia que substitui forma e objeto; é o resultado de duas noções interativas temporais: o presente e a simultaneidade; consiste no emprego do espaço-tempo para criar balanços sensoriais: refere-se particularmente às teorias da ‘Escola de Toronto' (de H.Innis a McLuhan) e a hipóteses levantadas pelas pesquisas neuroculturais; ativa uma nova fenomenologia da presença puramente qualitativa e baseada na extensão tecnológica planetária do sistema nervoso; é o feeling de não se tratar do ‘belo' e sim do ‘sublime' e o fato inédito de este poder ser pela primeira vez ‘domesticado' pela estética da comunicação.”

Além disso, na introdução do livro Sublime Tecnológico , de Mario COSTA (1995:07-11), Annateresa Fabris, ao abordar a Estética da Comunicação, comenta as relações desta com algumas experiências das vanguardas históricas e neovanguardas, apontando que o próprio Costa relaciona sua proposta, com o futurismo, dadaísmo e Fluxus com a exploração do acontecimento; com a arte conceitual com o fenômeno da desmaterialização; com a poética de obra aberta pelas possibilidades de interação e assim por diante. E ainda, a própria concepção da Estética da Comunicação que, baseada em dez princípios fundamentais, busca indiretamente re-configurar as linguagens já estabelecidas, um ideário que se configura como um manifesto 1, prática tipicamente modernista. É certo que a própria inserção dos novos meios invariavelmente rompe com os paradigmas da arte no domínio estético, e mais do que exaltar, a “Estética da Comunicação” anuncia os propósitos desta quebra, mapeando a área de ação das novas tecnologias.

 

2. Na busca da desautomatização

Precedendo a idéia de ruptura, temos a idéia de subversão, que, de ordem estética, relaciona-se com as considerações sobre a poética de estranhamento e poética de afastamento de FERRARA (1986:36). O conceito de estranhamento foi criado por Chklóvski, em 1916 e foi apreendido por Bertolt Brecht por volta de 1935. Sobre Brecht, dramaturgo e diretor teatral, FERRARA nos apresenta:

 

“ A obra de Brecht sustenta-se na corda tensa de um paradoxo que se explica na medida em que o homem é obrigado a viver em condições sociais que lhe impossibilitam revelar sua verdadeira face humana.(...) Num mundo assim, onde a regra é ser duro, não ceder à tentação da bondade, qualquer infração generosa pode trazer conseqüências fatais para o infrator. Nessa desordem ordenada, confusão planificada e desumana humanidade (A Exceção e a Regra), até mesmo a ciência que poderia ter o privilégio de entender os paradoxos nos quais estava submerso o mundo, corre o risco de não atingir sua finalidade, de não chegar à consecução de sua missão redentora e sucumbir em ameaças e destruição ”.

 

Mas, além disso, Brecht adota em seu teatro o estranhamento com a intenção de criar uma interferência que permitiria ver à distância, isto é, longe de condicionamentos, a realidade. Para isso, o dramaturgo eliminou a quarta parede (na qual, antes, o público era um elemento ignorado) – aproximando público e palco – humanizou o ator e acima de tudo, dessacralizou o teatro, deixando de ser ritual e místico. Brecht lança mão do insólito para despertar o receptor da “hipnose” – passiva – em que estava imerso desde o drama clássico 2. Uma visível busca da quebra da automatização na leitura exercida pelo receptor. Daí, a partir das considerações de TAVARES (2004:234), sintetizaremos o estranhamento para adentrar o campo de sua versão mais radicalizada, o afastamento :

 

“ Na tendência de radicalização do procedimento do estranhamento, a experiência do choque dá continuidade à intenção de desautomatização do ato de percepção. Todavia, se, nos casos analisados anteriormente [poéticas do estranhamento] , a solicitação se desenvolve pelas propostas de fragmentação e de percepção da forma absoluta, como o afastamento induz-se o receptor a uma experiência de conflito com o objeto .”

Essa relação de conflito é visível no trabalho de Brecht, que nos coloca um estranhamento exacerbado, numa relação que se estabelece entre a negação (da linguagem) e a interpretação (as propriedades de sentido do trabalho) na busca do novo. As questões de estrutura – metalinguagem – emergem numa primeira vista, procura-se a inserção na realidade e conseqüentemente a quebra da automatização do receptor. Mas na poética do afastamento isso vem de assalto ao receptor. Porém, além disso, TAVARES (2004: 234) coloca a situação do seguinte modo:

 

“A poética do afastamento impõe-se pela proposta de o espectador resistir a integrar-se na realidade vivida, rompendo com isso a automatização da percepção, no propósito de recuperar um poder reflexivo e crítico diante da contemplação. Segue, deste modo, o método dos formalistas russos, todavia deste distingue-se em razão de aprofundar-se nas relações de conteúdo e não naquelas diretamente voltadas para a problemática da forma em si mesma.”

 

Ilustração 1 - Ação de Fred Forest nas ruas do centro de São Paulo.

 

Essa idéia de recuperação de um poder reflexivo e crítico especialmente nos interessa. A poética de afastamento abre caminho para pensarmos, voltando à idéia de arte como organismo social , de Beuys, num direcionamento deste “despertar” para determinadas questões que estão além do universo estético. Já nos anos setenta, o artista Fred Forest já pensava através desse viés, através de sua “Arte sociológica” que, junto com Hervé Fischer e Jean- Paul Thenot, declarava que “nossa sensibilidade é manipulada pelos meios de comunicação em massa”. Forest é conhecido através de ações que, a exemplo da poética do afastamento , procurava o choque com o receptor a fim de sensibilizá-lo: um exemplo, foi a ação ocorrida em outubro de 1973, no centro da cidade de São Paulo, onde o artista percorreu diversas ruas comerciais com cartazes e placas em branco, sem qualquer texto ou imagem – em outra ação semelhante, o artista alugou uma página inteira do jornal francês Le Monde , que se apresentava completamente em branco, na qual existia a possibilidade do leitor preencher o espaço com o que quisesse e, em seguida, enviar ao artista. Ainda na mesma linha, o artista também conseguiu convencer uma emissora francesa a transmitir, num intervalo de um noticiário de grande audiência, seus 60 minutos de branco . Forest ocupa o espaço da mídia de massa, sob a forma insólita do vazio informacional, como maneira de problematizar o próprio meio através de uma estratégia explícita de choque com a sensibilidade do receptor: sua proposta, ao ocupar um meio não convencionado como artístico, recusa uma estrutura já estabelecida e propõe o que seria impraticável 3.

Voltando rapidamente para as vanguardas, para JAUSS (apud ZILBERMAN, 1989:54), “a circunstância de a obra contrariar um ‘sistema de respostas' ou um código atua como um estímulo para que se intensifique o processo de comunicação: a obra se livra de uma engrenagem opressora e, na medida em que recebida, apreciada e compreendida pelo seu destinatário, convida-o a participar desse universo de liberdade. De novo o conceito de emancipação se faz presente, desta vez para servir de avalista para a natureza simultaneamente comunicativa e liberadora da criação artística”. Então, estendendo estas considerações para a contemporaneidade, supomos que essas apropriações, como as realizadas por Forest, reafirmam o processo de comunicação mas, além disso, inserem o receptor dentro desse ideal libertário .

Na mídia arte, a ocupação ou apropriação é a essência de sua existência, afinal, as novas tecnologias não nascem com fins essencialmente artísticos: passam a tê-los no decorrer de sua difusão ao grande público. Porém, o que vai ser decisivo no decorrer das primeiras manifestações sob a forma de experimentações artísticas será o distanciamento em relação ao estabelecido que, aproximando Brecht, mantém o receptor sob uma constante hipnose . Mas, diante dos meios mais contemporâneos – muitas vezes compromissados com interesses além da esfera da comunicação – esse desejável esclarecimento passa a ser mais complexo.

O ato de questionar a tecnologia pode se dar sob diferentes aspectos. Um primeiro deles são as conseqüências sociais da sua inserção, o que, de fato, ao se tornar parte integrante da vida dos seres, altera ou introduz. Um segundo aspecto é problematizar para o que estão tencionadas as tecnologias e como sua postura pode ser – ou está sendo – tendenciosa. A primeira situação aceita uma visão mais positiva e construtiva. A segunda não necessariamente. Mas o fato é que os artistas das novas tecnologias, ao menos uma parte deles, desvencilharam de um primeiro momento de deslumbre com as possibilidades imagéticas que especialmente o computador proporciona e passaram a considerar, num contexto maior (social, político, econômico etc.), criticamente o que a tecnologia – e por extensão, a tecnociência 4 – traz.

O receptor idealizado pelo artista, o leitor implícito 5 conforme ISER (apud TAVARES, 2001) para a leitura de trabalhos que possuam uma postura crítica em relação às tecnologias seria aquele que, de maneira muito pragmática, possui uma relação direta com os novos meios no seu cotidiano, ou ainda, que diretamente se confronta com determinados elementos ou dispositivos que materializam uma condição questionável sob algum aspecto. O indivíduo contemporâneo, inserido num mundo onde a tecnologia é onipresente, de maneira geral, tende a relativizar a tecnologia: a relevância e eficácia das máquinas, da maneira mais trivial possível, em supermercados, estações de metrô ou bancos, sempre é questionada. Os artistas procurarão contextualizar essa relação, retirando-a inicialmente do universo do prosaico para o sensível.

 

3. A crítica de Perry Hoberman

Alguns dos trabalhos do artista americano Perry Hoberman, pioneiro na mídia arte – atuando com performances e instalações interativas – são exemplares para se discutir de maneira incisiva, a tecnologia. Um dos seus trabalhos mais conhecidos é Bar Code Hotel (1994), instalação interativa onde os visitantes recebiam uma “varinha” com um scanner e tinham a disposição nas paredes, mesas e em cubos, diferentes códigos de barra.Quando escolhidos pelos visitantes e lidos, esses códigos criavam personagens, definiam ações e comportamentos numa projeção em realidade virtual disposta no espaço.

Porém, é mais recentemente que vemos com maior definição, a preocupação de Hoberman em relação à tecnologia: Zombiac (2000), por exemplo, embora seja muito menos lúdico do que Bar Code Hotel , propõe uma discussão mais densa. Este trabalho consiste em uma instalação com diversos terminais de computadores, novos e antigos, alguns datados dos anos 70 e outros bem mais recentes, distribuídos pelo espaço. A tela de cada monitor foi substituída por uma superfície translúcida de plástico que possui uma luz verde embutida. O equipamento é dotado de diversos sensores – de presença (movimento) e de som – bem como, autofalantes que emitem diferentes ruídos, estando, ainda, montado sobre uma plataforma giratória, podendo assim, mudar rapidamente sua face para qualquer direção.

 

Ilustração 2 – Bar Code Hotel (1994).

 

Cada terminal, constituído da maneira mencionada, possui algoritmos e comportamentos semi-randômicos que permitem que no meio desta multidão de computadores, um ou mais deles inicie uma “conversa” emitindo ruídos e seqüências de emissão de luz verde. A partir do momento que algum deles inicie, os seus vizinhos giram a face para o monitor ativo e passam a capturar seus flashes e sons, motivando-os a responderem imediatamente. Daí, ao passo que os vizinhos dos vizinhos também captam emissões, instauram-se turbilhões de conversas, que podem ser dos mais variados ritmos (nas palavras do artista 6: diálogo, argumento, bate-papo ou pequena conversa), iniciando e terminando de maneira inesperada, criando grupos espontâneos de constante reconfiguração. O artista diretamente relaciona o comportamento de seus terminais como atitudes similares àquelas que são corriqueiras em eventos sociais como uma festa de abertura de exposição ou um coquetel, no qual, a ação é pautada pelo caráter espontâneo e completamente imprevisível.

Mas é interessante ver também que as ações do sistema independem – ao menos num primeiro momento – da contemplação ou da presença do receptor. As conversas se estabelecem e se findam sem que haja a interferência de qualquer indivíduo. Porém, a partir do momento que alguém adentra o espaço dos terminais e passa por entre eles, conseqüentemente, seus movimentos e sua localização passam a serem capturados pelas máquinas e elas oferecerão alguma reação: som de vozes sintetizadas, arquivos de áudio adulterados ou chiados de modem, flashes intermitentes de luz verde. Hoberman fala sobre o seu trabalho:

 

“Numa primeira olhada, os visitantes talvez percebam um arranjo de workstations genéricas. Então, à medida que os monitores e trocam flashes um com o outro, a percepção de um estranho tipo de comunicação emerge. Finalmente, desviando-se através da instalação, os visitantes podem ter uma sensação de algo próprio do homem (apesar da sensação ser um intruso) inteligentemente ouvindo e direcionando, tentando comunicar, estabelecendo contato” 7.

 

Ilustração 3 – Zombiac (2000).

Zombiac num primeiro instante se encontra dentro daquilo que COUCHOT (2003:32) chama de interatividade endógena onde “ o pesquisador cria uma situação espaço-temporal (microuniverso, cenas diversas etc.) na qual os objetos virtuais, realistas ou imaginários mantêm entre si relações do tipo ‘emergente', deixa os objetos desenvolver-se mais ou menos livremente controlando sua autonomia ”, já que o sistema é, sob um aspecto, autônomo, da mesma forma que outros trabalhos de arte e novas tecnologias que utilizam seres de inteligência artificial e/ou algoritmos como, por exemplo, A-Volve (1993-1994) de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau ou Evolved Creatures (1995) de Karl Sims, embora ambas estejam inseridas no domínio do virtual 8. Mas além de se relacionar com demais trabalhos é certo que o próprio título do trabalho nos sinaliza para a intenção de pensar a inteligência artificial de maneira mais geral: o nome Zombiac é visivelmente a aglutinação de Zumbi e Eniac – sigla do primeiro computador criado, em 1946, que significa Electronic Numeric Integrator And Calculator 9. Existe a intenção de explicitar o percurso desde Eniac até os primeiros nuances que temos hoje da inteligência artificial, criando aqueles que seriam, em relação a uma sociedade tida inteligente, os zumbis.

Mas quem realmente seriam os zumbis já que os elementos ativos (inteligentes) desse micro-cosmo são os terminais, são eles que estabelecem contato, iniciam e findam relacionamentos e são eles que inspiram uma comunicação aparentemente plausível? Não somos nós, enquanto receptores, somente intrusos: a significância da nossa comunicação e do nosso pensar aqui é nula.

A abordagem crítica sobre a tecnologia, conduzida por Hoberman não se finda em Zombiac . Em Accept (2003), o artista retoma essas considerações, tomando corpo de modo mais direto. Nesta exposição, o artista reúne uma gama de trabalhos nos mais distintos meios – antigos e novos – discutindo, conforme está em seu site, “ nossos dilemas atuais: um mundo com o poder cada vez mais crescente da tecnologia, onde nosso poder para fazer uso criativo destas mesmas tecnologias está sobre perigo das mais variadas formas. Restrições e vigilância estão diretamente ligadas ao software, hardware e redes que usamos diariamente em um processo para tornar-nos um exército de, cada vez mais lucrativos e passivos, consumidores” 10.

Accept se compõe dos seguintes trabalhos: Your Time is Valuable , trabalho realizado a partir de um computador, sensor de presença e uma tela LCD – na qual são apresentados, a partir do momento que o visitante se encontra em sua frente, números que descrevem, em porcentagem, o quanto teria sido visto ou assistido em relação a outros meios como o cinema; Art under contract , trabalho composto de um computador e uma pequena caixa de metal que possui um visor que é aberto por alguns instantes (e apresenta uma imagem) apenas quando o visitante aceita um “contrato de licença do usuário final” similar àqueles presentes ao instalar qualquer software, disponível a ser clicado no espaço expositivo; Ok/Cancel , série de imagens impressas onde apresentam onipresentes janelas de sistemas operacionais (Windows 98, Macintosh OS X e outros) em insólitas situações; My Life in SPAM , série de imagens impressas, criadas através da superposição de mensagens eletrônicas comerciais não-solicitadas – os chamados SPAMs – capturadas desde 1998 até 2002, totalizando cerca de 6.000 mensagens; The Great Indoors , um monitor 3D de alta tecnologia (que dispensa o uso de óculos) dialoga visualmente com silhuetas de figuras, animais e objetos, constituídas de plástico e fibra de vidro e coloridas (as silhuetas pretas são repetidas em azul e vermelho translúcidos), revivendo os interesses do artista nos anos oitenta em visão estereoscópica e fenômenos óticos; Total Information Awareness , trabalho constituído de duas versões, sendo que em ambas duas esferas mecânicas, sob a imagem de olhos, rolam de um lado a outro, de cima a baixo, em todos os sentidos, como “um olho que tudo vê”.

 

Ilustração 4 – Apresentação de Accept (2003).

 

A justaposição de trabalhos excessivamente díspares, num primeiro momento, talvez não contribua para se realize uma reflexão plena sobre a sua poética. Por sua vez, a poética colocada conforme transcrita anteriormente (como resposta a dilemas atuais), direciona e conseqüentemente limita a leitura do receptor, que – se considerar realmente o que foi lido – se vê sem os vazios11 necessários para exercer a sua plena interpretação. Mas é preciso ver que o artista tem no prosaico, no trivial ao mundo computacional, a raiz do problema colocado e justamente daí procura trazer valores estéticos. Na verdade, uma equilibrada dosagem da carga social (pragmática) e poética é um problema que irá persistir, não apenas em Hoberman, como em toda uma gama de trabalhos com esses intuitos: alguns trabalhos definidos por mídia radical 12 verdadeiramente se materializam muito mais enquanto ações sociais do que faturas artísticas. Mas, enquanto suposição, podemos citar as considerações de SEDLMAYR (s/d: 168) a respeito da arte moderna: “ Esquece-se hoje, na luta pela ‘arte moderna', algo decisivo, ou seja, que as diretrizes revolucionárias extremas da arte não queriam ser arte ”; o que, ainda que inconscientemente, acabe acontecendo.

Essa nova arte crítica e subversiva, que lança mão das mídias para discutir sua própria tecnologia, se sustenta muitas vezes na catarse que exerce sob o seu receptor. Essa identificação, que poderá levá-lo a assumir outras normas de comportamento social, fará a ele ver-se a si mesmo como “o passivo consumidor” a que Hoberman se refere ou se ver como quem recebe um número cada vez maior de inúteis e desagradáveis SPAMs. Estas circunstâncias explicitam um ideal libertário da arte – demonstrando sua autonomia diante das técnicas e meios em questão. Essa produção não se subordinará ao meio que a agrega e muito pelo contrário: instigará o julgamento daquele que a recebe, estimulando uma visão mais desperta e ampla dos eventos e da posição contemporânea da tecnologia.

 

 

 

Notas

* Fábio Oliveira Nunes (Fabio FON) – é artista multimídia e professor universitário, atuando entre outras áreas, nos estudos de hipermídia, web arte, arte mídia e poéticas da visualidade. Um dos seus estudos mais importantes é Web Arte no Brasil, realizado a partir de 1999 e atualmente dedica-se à pesquisa da arte tecnológica crítica. É Doutor em Artes na Escola de Comunicações e Artes da USP e Mestre em Multimeios na UNICAMP. É também Professor Adjunto em Arte e Tecnologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Site pessoal: http://www.fabiofon.com .

1 Curiosamente, ZANINI (2003:31) também referencia em seu texto ao “Manifesto Sky-Art” de 1986 (que anuncia as preposições da telemática, da comunicação global), transcrevendo-o na íntegra. Refletindo grande impetuosidade e grandiloqüência, é inevitável não se remeter aos vanguardistas de outrora. FERRARA (1981:21) atenta para o fato de que “ a participação do receptor – aviltada, desejada, repelida, solicitada, estimulada, exigida – é tônica que perpassa os manifestos da arte moderna em todos os seus momentos ” e ainda conclui que “ podemos tentar definir as características dos movimentos modernistas pelo papel que neles representa o receptor, explícita ou implicitamente ”; ao compararmos, então, o “Manifesto Sky-Art” ou mesmo, os dez princípios da “Estética da Comunicação” a estas considerações, vemos o receptor também referenciado.

2 Esse tom de esclarecimento é muito rico em significados: há como fazer paralelos dos mais diversos. Referenciando a essa idéia de “iluminação” temos a filosofia de algumas religiões orientais, ou mesmo, o filme Matrix (The Matrix, EUA, 1999. Direção: Andy Wachowski, Larry Wachowski) com suas metáforas (como da pílula vermelha) como uma possibilidade de leitura.

3 Pensando na questão da apropriação ou ocupação do meio, o site de net arte JODI (http://www.jodi.org) é sem dúvida, pioneiro nestas questões na rede Internet. Ao contrário do que se procura na maioria dos espaços da rede, JODI apresenta-se inóspito, labiríntico e até perigoso: suas páginas são repletas de códigos desconhecidos, linguagens de programação sem qualquer sentido aparente, ícones sem qualquer função, situações que se assemelham a uma contaminação por vírus e ações, no mínimo, fora de qualquer expectativa. Assim como nestes trabalhos de Forest, o conceito de poética de afastamento está evidenciada através do choque ao receptor, e conseqüentemente, abre-se espaço a uma reflexão distanciada (neste caso, sobre a relação do visitante com a sintaxe da própria máquina).

4 O termo é utilizado para definir a interdependência entre as técnicas e as ciências no saber contemporâneo. Segundo ARAÚJO (1998:12-14), a tecnociência segue por duas perspectivas aparentemente contraditórias: uma primeira na qual o saber contemplativo e discursivo dá lugar ao método experimental e à modulação matemática na produção do conhecimento, ou seja, o que era “teoria” dá lugar à “ação sobre a realidade”; uma segunda perspectiva que minimiza a primeira: o que realmente importa são as redes de relações entre os indivíduos, constantemente atualizadas e mantidas, que “por definição não exclui os interesses políticos e econômicos”. Somadas, conferem um caráter “operatório”, ramificado e onipresente em todos os campos do conhecimento.

5 A figura do leitor implícito é aquela que “...materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condição de recepção, a seus leitores possíveis” ( ISER apud TAVARES, 2001). As referências de ISER partem da literatura, mas evidentemente, suas considerações cabem a qualquer meio.

6 As considerações de Perry Hoberman sobre Zombiac e demais trabalhos, estão disponíveis em sua página pessoal em: http://www.perryhoberman.com .

7 Tradução livre de trecho da página do site do artista: http://www.perryhoberman.com/pages/zombiac/text.html (acessada em 20/01/2005).

8 Virtual aqui no sentido de não abarcar fisicalidade na sua concepção. Porém, especialmente A-Volve possui uma interessante fisicalidade ao propor ao receptor a manipulação da água disposta no espaço para interagir com os supostos serem aquáticos mas, no seu cerne, levando em consideração a projeção 3D sob o aquário, é ainda do domínio do virtual.

9O autor também propõe Zombiac como uma sigla: Zone Of Monitor-Based Inter-Amnesiac Contact , literalmente, algo como, “Zona de contato inter-amnéstica baseada em monitores”.

10 Tradução livre da página do site do artista: http://www.perryhoberman.com/accept/html/info.html (acessada em 20/01/2005).

11 Referenciam-se a idéia do vazio, PLAZA (2003:13): “ na estética oriental o ‘vazio' não é algo a ser preenchido (como na visão ocidental), mas algo que seria ‘Gestalt' (ou unidade de percepção), manancial preche de potência onde, pela dança da energia, nascem todas as formas ”; ISER (1979: 91), sobre a literatura: “ O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios (...) no texto, que assim se oferecem para a ocupação do leitor. Como eles não podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o podem ser por meio de outro sistema. Quando isso se sucede, se inicia a atividade de constituição, pela qual tais vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor ”.

12 John D. H. Downing, coloca mídia radical como “ qualquer mídia que desafia o status quo econômico, cultural ou político. Em geral, elas são de pequeno porte, com orçamento baixo ou nulo. O termo abrange tudo, desde o uso do corpo como um veículo - dança, penteados, roupas, discursos em público, paródias e protestos - passando por expressões artísticas organizadas - como grafite, teatro de rua, performances, canções, cordéis, murais - até a mídia convencional - publicações impressas, rádio, vídeo, até mídias mais sofisticadas tecnologicamente, como a transmissão via satélite, a internet e videogames ” (citação retirada de entrevista disponível em http://somlivre.globo.com/mediaibox/templates/materia.asp?indice=6901 , acessada em 20/01/2005). Downing é conhecido por seu livro “Mídia Radical: Rebeldia nas comunicações e movimentos sociais” (São Paulo, Editora Senac, 2002) onde trata do tema.

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