Sumário
 
 

Infanticídio indígena, relativismo cultural e direitos humanos:
elementos para reflexão.
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Ana Keila Mosca Pinezi *

Resumo: Entre os Suruwahá ou Zuruahá, etnia localizada na bacia do rio Purus, sudoeste do Amazonas, o suicídio e o infanticídio são fatores preponderantes de mortalidade. Em setembro de 2005, o caso de duas meninas Suruwahá, Iganani e Sumawani, que sobreviveram à prática do infanticídio, foi veiculado pela grande mídia, tornando o debate sobre direitos humanos e diversidade cultural ainda mais intenso. Esses dois casos são apenas representativos de uma velha controvérsia em torno do universalismo dos direitos humanos e a autonomia dos grupos étnicos em relação a assuntos fundamentais como a manutenção da vida ou não e da classificação do que é violência e desrespeito ao ser humano ou não. A trajetória de Iganani, vítima de paralisia cerebral, e sua mãe, Muwaji, que tem enfrentado as tradições de seu povo e os empecilhos burocráticos brasileiros para tratar da reabilitação de sua filha, são enfocadas neste artigo. Em torno desse caso, o objetivo deste trabalho é o de colocar em debate questões relativas a práticas tradicionais, dinâmica cultural, relativismo cultural, contato interétnico e direitos universais do homem .
Palavras-Chave: Suruwahá, infanticídio, Direitos Humanos, Relativismo cultural

Abstract: Among Suruwahá or Zuruahá, ethnic group located in the Purus River basin , southwestern Amazon, suicide and infanticide are important factors of mortality. In September 2005, the case of two girls Suruwahá, Iganani and Sumawani, who survived the practice of infanticide was in the mainstream media, making discussion about human rights and cultural diversity even more intense. These two cases are only representative of an old controversy surrounding the human rights universality and ethnic groups autonomy in relation to key issues as the preservation of life and the classification what violence and disrespect for human rights. The trajectory of Iganani, victim of cerebral palsy, and her mother, Muwaji, who has faced the traditions of his people and bureaucratic obstacles to deal with the Brazilian rehabilitation of their daughter, are focused in this article. Around that case, the objective of this work is to debate issues of traditional practices, cultural dynamics, cultural relativism, interethnic contact and universal human rights.
Keywords: Suruwahá, Human Rights, infanticide, cultural relativism

Introdução

Um rastro terrível de sangue indígena acompanhou a história da colonização de toda a América Latina. O genocídio e também o etnocídio, praticados por portugueses e espanhóis, deixaram uma marca indelével na vida dos povos indígenas. As palavras de Darcy Ribeiro (1997, p.45-46) mostram um paralelo sobre a visão-de-mundo do branco e do índio em relação um ao “outro”, quando da chegada dos colonizadores nestas terras:

Aos olhos dos recém-chegados, aquela indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver.

 

Aos olhos dos índios, os oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando mais de tomar e reter do que dar, intercambiar? Sua sofreguidão seria inverossímil se não fosse tão visível no empenho de juntar toras de pau vermelho, como se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las e embarcá-las incansavelmente? Temeriam eles, acaso, que as florestas fossem acabar e, com elas as aves e as caças? Que os rios e o mar fossem secar, matando os peixes todos?

De maneira geral, podemos ver que o contato entre povos, entre etnias diferentes é marcado pelo estranhamento e pelo conflito e, não raro, pelo conflito violento. O contato interétnico entre, por exemplo, os portugueses e os nativos do “novo mundo” provocou a desagregação social e cultural de boa parte da população indígena, sem contar a eliminação física feita pelos colonizadores, seja pelas armas de fogo, seja pelas doenças por eles disseminadas.

Não bastasse a espoliação que sofreu no passado, a situação do índio, no Brasil, atualmente, é bastante precária. O indígena tem sido alijado da condição de cidadania básica, de acesso a formas fundamentais de sobrevivência (terra e seus recursos naturais, saúde básica, entre outros aspectos).

Apesar do encontro intercultural entre colonizadores e povos indígenas ter marcado um tempo de dominação daquele sobre este, houve, sem dúvida, uma relação de troca de elementos culturais e de mudança, em que as etnias em contato assimilaram determinados valores e costumes umas das outras, num processo intenso de dinâmica cultural. Diante disso, o que queremos demonstrar é que os povos indígenas, mesmo em uma situação de sujeição, não só receberam influência do “mundo dos brancos” mas o influenciaram também no que tange aos modos de vida e à visão-de-mundo. Muitos padrões culturais, de um e de outro, foram mudados.

A mudança cultural é algo que faz parte da própria constituição essencial da cultura. A mudança pode ocorrer por reações e reajustes endógenos e por motivações exógenas, advindas do contato intercultural, marcadas ou não por pressões e imposições externas. As trocas culturais entre sociedades diferentes é algo bastante comum e importante, pois possibilita que os membros de uma sociedade pensem sobre como organizam sua vida social, sobre seus tabus, interditos e pré-conceitos e revejam seu modus vivendi . A dinâmica cultural significa um dado fundamental para toda e qualquer sociedade e é um sinal de que a cultura está viva, em plena saúde.

Ao se falar em relação interétnica, há uma questão que se relaciona diretamente com ela que é a do relativismo cultural.

O relativismo cultural é uma teoria que implica a idéia de que é preciso compreender a diversidade cultural e respeitá-la, reconhecendo que todo sistema cultural tem uma coerência interna própria. Originalmente, a concepção de relativismo cultural tinha seu uso relacionado a um princípio operacional, metodológico. Assim pensado, o relativismo cultural é um instrumento metodológico fundamental para que o pesquisador realize, em culturas diferentes da sua, um trabalho antropológico sério, compreendendo que os traços culturais têm um significado e compõem o sistema cultural daquela sociedade ou grupo social.

Os problemas começam quando o relativismo cultural é radicalizado, absolutizado, e seu significado é deslocado desse princípio metodológico. Sua radicalização prevê, na maioria das vezes, o não contato entre povos diferentes e a idéia de que se ele ocorrer será, inexoravelmente, ruim, uma imposição cultural de um grupo sobre o outro. Assim, não é raro vermos posições extremadas quanto às possíveis relações entre etnias indígenas, por exemplo, e grupos outros da sociedade envolvente. Elas são vistas como um tipo de intervenção que é necessariamente destrutiva e perigosa desses grupos em relação às etnias indígenas. Desse modo, uma possível relação dialógica entre etnias é obstruída com base na preservação fantasiosa de uma pretensa pureza cultural.

Dentre as diferentes concepções de relativismo cultural, há ainda a de que ele seria um princípio ético que, por sua vez, “preconiza a neutralidade em relação às diferentes culturas” (Cuche, 2002, p.240). Sobre essa concepção, as palavras de Cuche (2002, p.240) são esclarecedoras:

 

O relativismo ético pode corresponder às vezes à atitude reivindicadora dos defensores das culturas minoritárias que, contestando as hierarquias de fato, defendem a igualdade de valor das culturas minoritárias e da cultura dominante. Mas, geralmente, ele aparece como a atitude elegante do forte em relação ao fraco. Atitude daquele que, assegurado da legitimidade da sua própria cultura, pode se dar ao luxo de uma certa abertura condescendente para a alteridade.

É fato que pensar na relação entre os grupos indígenas brasileiros e quaisquer grupos nacionais leva-nos, imediatamente, a pensar no intenso processo de exploração a que foram submetidos em nossa história quando do contato que tiveram não só com os colonizadores, mas, posteriormente, com outros grupos de interesse que representavam e representam uma forma de obtenção de lucros e vantagens. No entanto, a questão que se coloca é a de que seria justo e expressão de respeito aos direitos fundamentais das etnias indígenas, que, na história presente, esses povos pudessem, ao menos, usufruir dos benefícios dos “civilizados” e ter acesso às condições fundamentais de cidadania.

A questão dos direitos humanos pode ser aqui evocada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece direitos que são universais, que estão acima de quaisquer particularidades. O direito à vida é um desses direitos universais. O confronto entre relativismo cultural, que enfatiza a particularidade das culturas e de seus valores, e direitos humanos, que universaliza valores considerados para além dessas particularidades, tem acontecido entre os defensores dos dois lados. Uma das maneiras pela qual essa polarização tem sido resolvida é por meio da idéia de que é importante valorizar uma relação dialógica entre diferentes culturas, que possibilite a superação de conflitos e o estabelecimento de um acordo entre elas.

O diálogo entre culturas distintas sobre um determinado valor ou prática pressupõe o contato entre elas e não que fiquem e permaneçam estanques como postula o relativismo cultural radical. Por isso, é preciso relativizar o relativismo cultural, no sentido de vê-lo não como um princípio absoluto, mas como um instrumento que possibilite o encontro de forma respeitável. Essa relativização é capaz de evitar que a diferença, exaltada, contrarie os valores dos direitos humanos como uma forma de justificar os regimes de segregação, por exemplo. Se o direito à mudança não for respeitado, “O direito à diferença é então transformado em obrigação de diferença”. (Cuche, 2002, p.241).

As culturas não são totalmente dependentes ou totalmente autônomas. Na verdade, quando se pensa em relação dialógica entre culturas diferentes, a idéia é a de que as sociedades são interdependentes e de que a dinâmica cultural tem a ver, em grande parte, com o contato entre elas.

Essa idéia de interdependência está relacionada, portanto, ao encontro intercultural, fundamental para que uma sociedade possa pensar sobre si mesma e compreender que sua cultura não pode ser usada como força argumentativa inquestionável para explicar e justificar tudo 2, inclusive os atos de violência e desrespeito aos direitos humanos.

Um espaço de diálogo intercultural, então, é necessário. É nele que se poderá incluir a argumentação do outro, do diferente. Rouanet (1990, s/n) fala sobre essa questão:

 

(...) temos, isso sim, que tratar nossos interlocutores como seres racionais, capazes de argumentação, e a melhor maneira de prestar homenagem à dignidade humana desses seres racionais é incluí-los na esfera da argumentação, em vez de mantê-los num santuário extra-argumentativo, como os animais ameaçados de extinção.

Podemos ilustrar essa relação dialógica por meio do exemplo observado, em 1957, por Roberto Cardoso de Oliveira acerca da prática do infanticídio entre os Tapirapé e a reação a essa prática por parte de missionárias católicas que viviam na aldeia.

Por questões relacionadas à sobrevivência, os Tapirapé tinham como costume eliminar o quarto filho. Assim, segundo eles, a população se manteria em número reduzido (aproximadamente 1000 habitantes) e poderia garantir que o ecossistema local supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Essa prática acompanhava os Tapirapé por muito tempo, por isso, estava enraizada entre eles. Tanto que, na época da pesquisa feita por Cardoso de Oliveira, o número de habitantes da aldeia era de apenas 54 indígenas mas eles continuavam a praticar o infanticídio.

As missionárias, diante do infanticídio do quarto filho, argumentaram contra essa prática evocando princípios religiosos sobre a vida como um dom divino e que por isso precisa ser preservada. Com esse argumento, o que as freiras diziam não tinha sentido para os Tapirapé que valorizavam, prioritariamente, a vida da coletividade e não a do indivíduo. No entanto, ao mudarem a argumentação e ao focalizarem sobre a questão da grande diminuição dos indivíduos na aldeia, ameaçada ainda mais com o infanticídio do quarto filho, as freiras tiveram uma resposta positiva dos indígenas que reviram essa prática tradicional e que parecem tê-la abandonado. Roberto Cardoso de Oliveira (2000, s/n) fala sobre esse fato:

 

A consideração desse fato nesta conferência oferece a oportunidade de examinarmos não apenas um choque de valores morais (o peso relativo da vida individual para os Tapirapé e seu peso absoluto para as missionárias), mas uma forma criativa de buscar uma solução "negociada" entre comunidades orientadas por pontos de vista distintos. São, portanto, dois horizontes que acabam por fundir-se no exercício do diálogo interétnico, formador de uma única comunidade de comunicação, capaz, por sua vez, e pelo menos em algumas ocasiões, de atuar como uma comunidade de argumentação.

O exercício da argumentação entre culturas diferentes mostra-se essencial para uma troca intercultural baseada na ética e no respeito à diferença. Dessa forma, os universais propostos pela Carta dos Direitos Humanos podem ser pensados em relação às práticas particulares culturais. A ética e a abertura para a argumentação podem, então, intermediar a aparente contradição posta entre a universalidade dos direitos humanos e a afirmação do direito à diversidade cultural. Rouanet (1990, s/n) sintetiza essa noção:

 

A ética comunicativa é universalista. Ela se funda na hipótese de uma natureza humana universal, fundada na universalidade da comunicação pela linguagem. A moldura argumentativa é igualmente universal, não no sentido de que não existam discursos locais, em que os interessados abrangeriam apenas um grupo social específico, mas no sentido de que os argumentos usados devem ser susceptíveis de convencer todos os seres racionais, mesmo os não diretamente envolvidos.

A tensão entre direitos humanos e relativismo cultural será, neste trabalho, ilustrada pela história de Iganani, criança da etnia indígena Suruwahá que nasceu com paralisia cerebral e livrou-se do infanticídio pela intervenção da mãe, em março de 2004. Na mesma época em que nasceu Iganani, nasceu Sumawani, criança com traços de hermafrodismo. Ambos os casos foram bastante divulgados pela mídia brasileira. Neste trabalho, os fatos essenciais foram recuperados por meio da memória contada por uma lingüista e missionária que conviveu com essa etnia por aproximadamente vinte anos e que presenciou e acompanhou a difícil trajetória dessas crianças sobreviventes e de seus pais a fim de buscar a cura e a aceitação por parte da tribo. Os fatos serão aqui contados de maneira suscinta. Este trabalho não objetiva oferecer respostas, mesmo porque elas não são simples e tampouco exatas. O objetivo é suscitar o debate em torno do tema do infanticídio indígena e questões relativas ao relativismo cultural e aos direitos humanos.

A etnia Suruwahá localiza-se na bacia do rio Purus, sudoeste do Amazonas e conta com aproximadamente 144 membros. Para os Suruwahá, como para a maioria das etnias indígenas, a coletividade é importantíssima no que tange às decisões, escolhas e acontecimentos mais corriqueiros da vida. O coletivo está acima do individual. O nascimento de uma criança, por exemplo, é algo que interessa a todos os membros da tribo. Os problemas são compartilhados por todos, assim como as alegrias. Por isso, o nascimento de Sumawani e de Iganani, uma criança hermafrodita e outra com paralisia cerebral, é uma questão de toda a tribo indígena, não só dos pais e dos parentes. Entre os Suruwahá, o nascimento de uma criança que apresenta alguma anomalia física, bem como o de filhos considerados ilegítimos e o de gêmeos, é considerado uma maldição e uma ameaça ao bem-estar de toda a tribo. Assim, há a prática do infanticídio entre eles quando ocorre um caso desse tipo.

Os Suruwahá, no entanto, não são um povo completamente isolado do contato com os grupos da sociedade envolvente. Esses índigenas compreendem, de maneira geral, os malefícios e os benefícios produzidos pelos “brancos”. Eles sabem, por exemplo, que há recursos médicos no “mundo branco” que poderiam beneficiá-los e foi exatamente por isso que Iganani e Sumawani não foram mortas ao nascer. O próprio cacique da tribo propôs aos pais a intervenção da medicina do “branco” para o tratamento das crianças e disse que se elas fossem curadas seriam reinseridas na sociedade tribal. Houve uma opção pela vida, neste caso.

Diante disso, Sumawani e Iganani foram levadas, com a ajuda de dois lingüistas e missionários de um grupo missionário evangélico denominado JOCUM (Jovens com uma missão), para São Paulo, a fim de serem tratadas pela medicina “branca”. Depois de muita polêmica sobre os casos, que foram divulgados pela Rede Globo de Televisão, no Programa “Fantástico”, as crianças receberam tratamento adequado. Sumawani passou por uma cirurgia reparadora e foi constatado que é uma menina. Logo após, voltou com seus pais para a aldeia. Ela precisava tomar medicamentos à base de hormônio para se desenvolver e para evitar que tivesse complicações de saúde como desidratação, muito comum nesses casos. Sumawani, no entanto, no início de 2009, morreu, vítima exatamente de uma desidratação grave causada pela falta do hormônio. Iganani ainda recebe tratamento, em Brasília. Houve uma evolução bastante positiva de seu quadro, depois de passar por cirurgia, inclusive. A mãe de Iganani, Muwaji, contudo, tem sofrido muito em relação ao retorno para sua aldeia. Por um lado, ela diz que sente muita saudade dos pais e da tribo. Por outro, ela teme pela filha que, provavelmente, não será aceita pela coletividade. A criança sempre apresentará dificuldades quando ao desenvolvimento e isso implica em ameaça quanto à própria vida dela e da mãe na comunidade indígena.

Pode-se ver que os Suruwahá apontam para mudanças em sua visão-de-mundo, pois alguns membros da etnia têm demonstrado desacordo com a prática do infanticídio e têm procurado alternativas para ela. Qualquer sociedade é capaz de implementar mudanças, inclusive as que se relacionam ao plano cultural, a fim de buscar o bem estar dos indivíduos e da coletividade. As sociedades indígenas não são diferentes. A ética da responsabilidade nos chama a atenção sobre essas questões que envolvem não só o respeito à diferença e ao diferente, mas a necessidade de estabelecer uma ponte em que o contato se dá pelo encontro e pelo diálogo. Parece que essa via pode ser vista como um dos caminhos para que esses impasses se resolvam. O contato entre grupos culturais distintos pode ser intenso, o que não significa perda da identidade cultural de nenhum deles, já que a própria identidade é, em essência, dinâmica.

 

Considerações Finais

Diante das atrocidades praticadas aos povos indígenas na história da colonização, a Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe a esses grupos minoritários a possibilidade de terem reconhecidos seus direitos como seres humanos e terem garantidos esses direitos de forma especial. Por sua vez, o Pacto de Direitos Civis e Políticos, relacionado ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, referidos ambos como Pactos de Direitos Humanos, aprovados pela ONU, em 1966, em seu artigo 27 afirma que “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. Assim, universalidade de direitos e particularidade cultural são valorizados, embora se reconheça uma relação hierárquica entre direitos universais e aqueles reconhecidos apenas pela população local.

O caso de Iganani e sua mãe, Muwaji, acirrou as discussões acerca do relativismo cultural, da legitimidade das práticas culturais e dos direitos humanos, em especial ao que diz respeito ao direito à vida.

Os casos Sumawani e Iganani possibilitam que pensemos concretamente a relação dialógica que precisa ser estabelecida no contato intercultural. Os impasses entre direitos humanos universais e diversidade cultual estão aqui colocados. Como devem ser pensados os direitos dos Suruwahá no que tange à manutenção da prática do infanticídio como prática cultural tradicional em relação ao direito à vida, como direito universal? Mais ainda, como os indivíduos, membros dessa etnia, que pedem mudanças em relação a essa prática, podem ter esse direito respeitado? E de que forma? Quem o garantirá? O Estado Brasileiro? Para onde irão os “desviantes”, como Muwaji?

Estas são perguntas que não comportam respostas que discorram de uma visão radical do relativismo cultural, tampouco que discorram de uma visão simplista do significado dos Direitos Universais do Homem. Essas perguntas, para além de qualquer resposta, exigem a compreensão em profundidade dos significados que estão em jogo no processo de dinâmica social e cultural dos povos indígenas do Brasil e das novas classificações, em meio aos conflitos, que surgem desse processo. Para isso, ouvir o que esses povos têm a dizer parece ser o melhor caminho para que, novamente, não sejam eles desconsiderados em suas peculiaridades culturais e nem alvos de um paternalismo “branco”, ancorado em equações radicais e fundamentalistas que se prestam à universalização de absolutos considerados relativistas.

 

Notas

*Licenciatura em História pela UNIMAUÁ e bacharel em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia, pela UnB; mestrado em Psicologia pela USP e doutorado em Ciências (Psicologia) pela USP. Atualmente é docente em Dedicação Exclusiva da Universidade Federal do ABC (UFABC).

1 Trabalho baseado em apresentação feita na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.

2 Roberto Cardoso de Oliveira (2000, s/n) afirma que: (...) nem tudo o que está na tradição ou na cultura pode (ou deve) ser tomado como norma ou critério do que seria correto ou bom.

 

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