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Pela construção de um estado de crítica: a reflexão crítica como campo dialógico

Ana Maria Tavares*

Resumo : O texto aqui apresentado foi originalmente elaborado para o debate sobre a crítica de arte no I Congresso de Jornalismo realizado em São Paulo, pela Revista Cult, em Maio de 2009. Tendo como campo de trabalho a prática artística e a docência e envolvida no processo de formação de artistas desde 1982, meu objetivo foi argumentar a favor de um entendimento da crítica como dispositivo da arte e, portanto, atributo não só de críticos, mas também de artistas. Defendo a idéia da manutenção de um ‘estado de crítica' para o contexto brasileiro a partir de uma relação dialógica e internacionalizada, envolvendo também a fala crítica de artistas. Para isso reporto às práticas adotadas no século XX pelos artistas que colaboraram para inserir a obra de arte no campo programático da auto-crítica e da crítica ao sistema, evidenciando assim a posição destes como agente ativos no sistema.

Abstract: The essay presented here was first presented as a lecture for the debate on the critique of art for the I Congresso de Jornalismo organized in São Paulo by Revista Cult, in May 2009. It intends to present my understanding of art critique as an element of the art practice and therefore a field not only for art critics but also for artists. It stands for the creation of a ‘critical state' for the Brazilian context taking as a point of departure a dialogical and a more internationalized relation involving specially artists' practices. For this it reports to the art production developed in the twentieth century which collaborated to include art in the programmatic field of self-critique making evident the position of the artist as an active and self-empowered agent of the art system.


Primeiramente gostaria de pontuar meu lugar de fala. Como profissional atuante no meio das Artes Plásticas e na docência em arte desde o início dos anos oitenta, tendo como base o cenário paulistano, elaborei para este debate uma reflexão sobre a crítica de arte a partir de um tipo de prática artística que não se pensa apenas como ‘expressão de uma subjetividade' mas que se constrói, desde sua origem e concepção, como lugar e modo de reflexão crítica. Assim, considero que quando falamos em crítica de arte não estamos delineando um quadro limitado de especialistas assim chamados “críticos” e reforçando a constituição de territórios de adversários: de um lado os artistas produtores de universos abstratos e paralelos e, de outro, os críticos, aqueles supostamente distanciados do fazer e que, por direito, ocupariam a posição privilegiada do saber e do julgamento.

Isto posto, quero lembrar que a crítica em arte vem sendo re-configurada desde seu surgimento no séc XIX e que isso ocorre principalmente como conseqüência de um posicionamento, ou melhor dizendo, de um re-posicionamento de artistas que instauram a crítica como campo dialógico, onde o discurso não se coloca mais de fora para dentro mas nasce e se potencializa como dispositivo da própria obra. Artistas passam a atuar como agentes potencializadores dos debates críticos, assumindo não apenas uma posição de resistência mas reveladora, pois toma para si a função de amplificar tanto o campo da crítica como também o campo da própria arte ( e é proposital aqui o uso do termo amplificar para expressar a importância da escuta no contexto da crítica em oposição à idéia de ampliar como conotação espacial, como demarcação ou ganho de território ). Inúmeros artistas rejeitaram ocupar uma posição submissa e a estes determinada pelo sistema vigente e passaram a adotar práticas que explicitavam os mecanismos desse mesmo sistema ou cuja obra já se inseria no campo programático da auto-crítica. De Manet (séc. XIX) a Marcel Duchamp, de Kosuth e Robert Smithson a Helio Oiticica e Richard Serra (sec XX), entre tantos outros artistas que incorporaram em suas proposições uma atuação que poderia ser entendida como uma espécie de ‘analista do sistema' e agente de seus próprios discursos.

Esse novo posicionamento do artista, que toma para si a tarefa crítica e a elaboração de uma prática discursiva, vai gerar conseqüências também irreversíveis para o campo da formação em Artes, explicitada, por exemplo, na adoção de novas terminologias: das Belas Artes, que privilegiavam a noção de artista como gênio inspirado e mestre do fazer, às Artes Visuais ou Poéticas Visuais, termos que favoreceram o estabelecimento de novos diálogos com o campo da cultura ( Visual Culture, Cultural Studies , etc). Vimos assim o crescente desenvolvimento e amadurecimento de programas de formação universitária em níveis de graduação e pós-graduação em Arte e Crítica de Arte e outras tantas especializações nesse campo. Nos Estados Unidos ou na Europa, por exemplo, um artista que ingressa no programa de mestrado em arte, com duração de dois anos, pode obter também, caso queira, o título em Art Criticism, cumprindo mais um ano de créditos. A partir da década de setenta é frequente também o número de artistas que participam de cursos ou debates teóricos oferecidos por museus e outras instituições. Dessa maneira, a antiga distância entre o fazer plástico e o fazer textual crítico-analítico, além do texto poético foi, aos poucos, sendo minimizada com a atuação mais contundente do artista agora assumidamente ‘pensador', cuja obra é também reflexão e discurso crítico-poético. Recentemente tive a oportunidade de ver chegar em minhas mãos um livro de ensaios, cartas e conversas do artista argentino León Ferrari e parte destes foram escritos durante o período em que viveu aqui em São Paulo. É incrível examinar a dimensão que estes textos, às vezes até coloquiais, podem ter para entender uma obra e uma época. ... sem falar em textos de outros artistas ou nas teses de mestrado e doutorado de artistas como Ricardo Basbaum, Carla Zacanini, Milton Machado, Dora Longo Bahia, Regina Melim, Marilá Dardot, Jorge Menna Barreto, Raquel Gabelotti, etc.

Com esse cenário posto, gostaria de pensar que a mudança tivesse mesmo se efetivado amplamente em nosso contexto e que tivéssemos de fato deixado de lado o velho paradigma para construir um ambiente verdadeiramente rico, almejando assim aproximações potencializadoras e orgânicas, abertas, contextualizadas e, principalmente atualizadas pelos discursos da própria arte, do que há de mais contemporâneo, isto é, daquilo que ainda não está nos livros talvez até empoeirados de nossas prateleiras. E o que seria isto? Como re-configurar ainda mais a crítica em nosso contexto? A quem ouvir? Com quem falar? E afinal, para quem falamos? Para quem falam os críticos? E os artistas, para quem falam e como são ouvidos?

Se estas são perguntas tão fundamentais para os artistas e se nós não podemos nos mover sem problematizar questões, como deveria ser então para aqueles que assumem posições de liderança no mundo editorial? Interessa a tomada de partido que opte pela escuta continuada entre os vários agentes da arte? Onde vão parar as inúmeras pesquisas realizadas por artistas nas universidades no Brasil? Quantos artistas que já escreveram textos incrivelmente renovadores de qualidade crítica e poética e nunca foram publicados, nem mesmo como um artigo em um importante jornal? E quantos críticos já se interessaram em criar um debate a partir desses pensamentos vivos? Como estes trabalhos poderiam contribuir para a formação dos públicos?

Ao invés da manutenção do binômio arte e crítica, temos talvez que trabalhar por uma condição crítica implicada no re-ver e no ante-ver, no sentido de amplificar a escuta; nas visões retrospectivas e também prospectivas visando sobretudo um debate capaz de promover a rica mediação entre a obra e seus públicos. Mas para isto precisaríamos, ao meu ver, de três condições essenciais:

   •  'Responsabilidade crítica' tal como defendida por Walter Zanini, um de nossos grandes pensadores, o professor, historiador, crítico e curador, quando implantou mudanças radicais no formato da Bienal Internacional de São Paulo, nas edições de 1981 e 1983. Estruturou então esta grande mostra a partir das relações entre as linguagens e não mais por delegações de países, colocando a Bienal em posição de vanguarda, especialmente a curatorial, e em sintonia com um modo de pensar atualizado pela arte . Aqui a idéia de ‘ responsabilidade crítica ', a exemplo do que as mudanças de Zanini puderam provocar em nosso meio, demandaria, para o meio jornalístico e para a mídia em geral, uma reflexão séria, comprometida e informada, visando a criação de um programa-projeto implicado na construção de conhecimento em arte e na formação de públicos, que pensaria desde a programação visual –o texto como imagem e a imagem do texto– à inclusão, entre outros, de jovens críticos e de artistas como críticos, de várias gerações, proporcionando principalmente diversidade e o entrecruzamento das áreas. [o artista como etnógrafo, o artista como arquiteto, o artista como mediador, etc]

   •  A manutenção da crítica como processo dialógico, continuado . Refiro-me aqui à constituição de um ‘estado de crítica', de uma condição processual da crítica, uma que não visasse apenas descrever pontualmente ou explicar arte (pois isso é demasiadamente simplista, mas infelizmente é o que mais vemos) mas que se preocupasse em demonstrar as conexões da arte com o mundo, com seu momento histórico e com o passado, estabelecendo uma relação mais orgânica com seu contexto. Há muito sabemos que a arte não se interessa por si só e que o famoso discurso da ‘arte pela arte' ou do ‘coeficiente zero de significados' teve seus dias contados. A arte que importa é reveladora do mundo em que vivemos, de nosso tempo e, por isto, a importância de nos preocuparmos em criar as pontes e as ferramentas para acessá-la. Desta maneira, a crítica em arte também precisa, tal como a arte, pisar fora de seu próprio campo, proporcionar o debate entre os diversos pensadores inclusive e, principalmente, com artistas. Isso se aplicaria também aos processos de formação no campo do jornalismo voltado para as artes. Para uma atuação competente é necessária a formação especializada.

   •  Internacionalização da crítica: ativar o debate entre o local e o global . O debate crítico em arte quando apenas atrelado às práticas de nosso contexto deixam de avançar criando lacunas abismais uma vez que a produção nacional, seja ela de qual estado for, já revela um diálogo com o que se passa em todos os cantos do mundo. Certamente podemos atribuir esse fato à facilidade de acesso à informação, não só textual mas imagética, não apenas fotografias mas vídeos de arte, não apenas documentos mas arquivos on line ao vivo, depoimentos, palestras e discussões em tempo presente. Textos e livros de importantes pensadores de arte precisam ser traduzidos em maior escala, até mesmo para facilitar o trabalho de formação. Considero que hoje os artistas brasileiros não produzem ou pensam apenas para seu circuito. Se por um lado estão antenados na história, criando diálogos com outros artistas do passado, por outro se conectam com a produção atual de forma quase imediata. A paisagem da arte é de tal amplitude que os horizontes dos artistas pairam em distâncias imagináveis já há algum tempo. A arte brasileira tem sido, há muitos anos, fortemente reconhecida e valorizada na cena internacional. Artistas são chamados a compartilhar múltiplos processos e tempos, seja em bienais internacionais, feiras de arte ou outras exposições mundo afora. Dessa maneira vivemos literalmente uma ‘aldeia global' e, portanto, a crítica deve também operar de forma a criar em nosso contexto um network de relações e diálogos.

Iniciei esse curto depoimento tentando rever de que maneira a crítica de arte no Brasil contribuiu para meu entendimento de arte ou o quanto isso influenciou meu trabalho. Lembrei-me claro que os anos mais fascinantes que pude viver e aprender sobre esse tema foram aqueles acompanhei, como aluna da FAAP e posteriormente já como artista e professora de arte, a maneira como os artistas de uma ou mais gerações anteriores à minha se organizavam diante da escassez de recursos, da dificuldade de acesso à informação, de acesso aos textos e fontes sobre a produção contemporânea e, sobretudo, diante de uma certa crítica careta que ocupava os meios importantes da cidade. Os artistas criavam meios, inventavam formas de fazer para que fossem ouvidos ou, se ainda não fossem ouvidos ou nem mesmo conseguissem mudar o sistema (ou as pessoas), se afirmavam como artistas agentes e produtores com posicionamentos expandidos, aquilo que recentemente o artista Ricardo Basbaum veio a formular como “ o artista, etc ” 1. Nesse contexto, certamente as Bienais eram momentos de rara importância não só pelas mostras em si mas pela oportunidade de diálogo com o mundo que transbordava também para os jornais. Foi nos anos ‘80 e ‘90 que vimos o surgimento da Revista São Paulo, editada pelo artista Luiz Paulo Baravelli, e outras que tiveram duração ainda mais curta. Vimos também uma presença mais regular de textos críticos de arte (como os de Lisette Lagnado, Angélica de Moraes e Tadeu Chiarelli, Aracy Amaral, entre outros) mas não chegamos a ver uma abertura para contextos e agentes externos. Havia uma cobertura mais intensa das exposições. Mas é certo que de lá pra cá uma enorme transformação ocorreu. Se por um lado o espaço para a arte na mídia encolheu talvez na mesma proporção em que a produção se ampliou, as editoras reconheceram o vazio nesse campo e a presença de um público ávido por informação atualizada; se deram conta também da riqueza da produção em arte de nossa cultura, muito embora ainda haja sempre mais a se publicar. As instituições (museus e galerias) também se fortaleceram promovendo um grande dinamismo cultural, incentivando pesquisas de nossos curadores, publicando catálogos e algumas vezes convidando para seus programas pensadores estrangeiros.

Porém, se até os anos 2000 parecíamos ainda trabalhar para formar e cobrir as lacunas desse sistema, parece que hoje já podemos detectar um trabalho mais sistemático e continuado que possivelmente será fator de mudanças mais definitivas em nosso meio. Estes, embora em alguns casos pouco reconhecidos e outros pouco divulgados, dão sinais de que a instituição da crítica como processo dialógico é algo possível e mesmo desejado. Como exemplo, é importante ressaltar, além dos cursos de Pós Graduação em Artes Plásticas ou Poéticas Visuais em várias universidades do Brasil, o trabalho que o Fórum Permanente de Museus 2 vem realizando, os programas de formação de jovens críticos do Paço das Artes e do Centro Cultural São Paulo, cada um atuando de forma a atender seus objetivos específicos, e ainda, o curso de especialização Arte: Crítica e Curadoria, um dos poucos nessa área no Brasil, oferecido pela PUC em São Paulo, para a formação do crítico-curador.

Gostaria de finalizar ressaltando que julgo de extrema importância enfrentar nossas resistências e carências para tornar o processo crítico em arte no Brasil –e não apenas do Brasil, tal como nossa produção, um discurso que tenha como base o nosso lugar de fala mas que esteja sobretudo sintonizado e consciente dos processos críticos de outros contextos buscando, no entrecruzamento das falas e das áreas de conhecimento, produzir sentido e colaborar não só para a formação mas a potencialização de nosso pertencimento intelectual, revelado também na arte aqui produzida. Somente dessa maneira é que teremos as ferramentas para dialogar criticamente com a produção que nos chega por meio de textos ou das exposições realizadas no Brasil, das Bienais Internacionais e outros eventos de arte. Retomo enfim perguntas cruciais para nossa reflexão: Como re-configurar ainda mais a crítica em nosso contexto? A quem ouvir? Com quem falar? E afinal, para quem falamos? Para quem falam os críticos? E os artistas, para quem falam e como são ouvidos?

Notas

* Artista e professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ECA/USP onde atua como professora e orientadora na graduação e pós-graduação. Atua na docência desde 1982 e tem colaborado para a formação de inúmeros artistas. Obteve seu MFA na School of the Art Institute of Chicago, CHGO, USA em 1984 e o doutorado na ECA/USP em 2000. Expõe suas obras no cenário nacional e internacional e está representada em várias coleções de arte. No ano de 2008 foi escolhida como artista residente do Visual Arts Programm do MIT Massachusetts Institute of Technology colaborando com o programa de mestrado em artes. seravati@usp.br

1 BASBAUM, R. . I love etc.-artists. In: Jens Hoffmann. (Org.). The next documenta should be curated by an artist. 1ª ed. Frankfurt - Alemanha: Revolver - Archiv für aktuelle kunst, 2004, v. , p. -.

2 Fórum Permanente de Museus: www.forumpermanente.org

Bibliografia

BASBAUM, R. . I love etc.-artists. In: Jens Hoffmann. (Org.). The next documenta should be curated by an artist. 1ª ed. Frankfurt - Alemanha: Revolver - Archiv für aktuelle kunst, 2004, v. , p. -.

Fórum Permanente de Museus: www.forumpermanente.org


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