Aspectos do Campo Religioso Mundial Contemporâneo
Entrevista[*] com Michael Pye[**]

Jorge Claudio Noel Ribeiro Júnior[***] []

Como estão as religiões na sociedade moderna?

Michael Pye - Isso é um assunto enorme! Estamos diante de tendências muito interessantes e contraditórias. Por muito tempo se falou no processo de secularização, mas recentemente observamos um retorno, uma reafirmação de muitos valores e instituições religiosas e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de novas formas de religião, no Ocidente e por toda a parte.

E esse surgimento de novas religiões se deve a que fatores?

Michael Pye- Penso que o poder das religiões tradicionais recuou, o que abriu um espaço para experimentações espirituais, o que conduz à formação de novos grupos e organizações religiosas.

Mas por que as religiões tradicionais recuaram?

Michael Pye- Penso que isso ocorreu em parte porque essas religiões perderam o contato com as buscas interiores de muitos seres humanos, em parte referentes a uma geração e também devido à mobilidade, à migração entre cidades e países. Dessa forma, as pessoas perderam as raízes que tinham, mas continuam a procurar algum tipo de orientação.

E a temática da secularização ainda é atual?

Michael Pye- A secularização está fora de moda. Durante a Guerra Fria se acreditava que a religião estava gradualmente perdendo poder, mas após esse período a religião voltou com força, sobretudo na Europa. Agora os sociólogos da religião não falam mais de secularização e sim de uma integração complexa de várias dinâmicas, algumas contraditórias. Por exemplo, as religiões estão fazendo grandes esforços, usando a mídia, para manter suas congregações, fazer sua pregação e manter padrões éticos. Entre as diversas culturas gera-se muita comunicação sobre muitas coisas que todas as pessoas podem receber. Assim, conceitos éticos, aspirações religiosas são substituídos e cria-se uma brecha.

Poderia dar alguns exemplos desse processo?

Michael Pye- Essas brechas ocorrem no campo ético. Recentemente ocorreu uma conferência na Igreja Anglicana, em que um bispo norte-americano era muito progressista com respeito à ética sexual e as igrejas africanas eram muito mais conservadoras. Surgiu uma grande discussão acerca da ordenação de mulheres, da homossexualidade. Surgiu muita divisão na comunhão anglicana. Ao mesmo tempo, muitos pensam que isso tudo não tem nada a ver com cristianismo, e perdem interesse pela religião. Pode ser bom para o noticiário, mas não se refere ao apoio ou orientação espiritual das pessoas.

E qual seria essa ancoragem espiritual?

Michael Pye- Quando as pessoas se afastam de sua religião, há muitíssimos caminhos a seguir. As questões sexuais não parecem ser cruciais nesse processo. Nas sociedades ocidentais já existe uma grande tolerância na moral sexual e não penso que ainda haja preocupação a esse respeito. Já nas sociedades tradicionais há grande inquietação sobre isso, pois elas têm dificuldade em aceitar orientações diferentes.

Quais são as preocupações das pessoas que buscam orientação espiritual?

Michael Pye- Até onde se pode ver, num sentido globalizado, não obstante o grande volume de comunicação, as pessoas estão muito preocupadas consigo mesmas, com seu bem-estar, sua felicidade, sua saúde e longevidade, como ter uma vida pessoal saudável e harmoniosa. Por isso, em muitos casos, estão olhando para as religiões orientais porque pensam que elas as ajudam a se apaziguar, por exemplo, mediante algum tipo de meditação, yoga, comida macrobiótica. Se as pessoas atingem esse estado de paz? Acho que cada um é que pode responder a isso. Mas para algumas pessoas isso é satisfatório e resolve várias questões, porque é uma busca auto-orientada, mas faz com que elas deixem de prestar atenção a problemas políticos, num sentido amplo, e que permanecem sem solução. O bispo africano Desmond Tutu costuma dizer: "Quem liga para o que as pessoas fazem na cama?". Eu diria: "O que interessa quanto ao que as pessoas fazem quando meditam?" Cada um é que sabe, mas é preciso saber encaminhar os grandes problemas - como a pobreza, abuso de drogas, desorientação da juventude - que deveriam ocupar as grandes religiões. Elas tentam voltar-se a essas questões, mas não são bem sucedidas.

Concretamente, como a juventude está desorientada?

Michael Pye- Não sei se sou o mais adequado para falar de jovens, porque a população está ficando cada vez mais velha e talvez os próprios jovens tenham uma visão acerca de sua situação. Há uma certa contradição entre a extrema inventividade e interesses exploratórios da juventude e as dificuldades das gerações mais velhas em lidar com ela. Os adultos parecem já ter resolvido seus problemas principais, mas é surpreendente como muitos deles permanecem buscando soluções. Há uma expressão em português, e também em francês, que é "terceira idade", uma fase importante na vida espiritual e cultural. Quanto à juventude, sua grande possibilidade é que ela pode buscar, em toda parte, por exemplo na internet e ao viajar. Percebe-se que nenhuma grande instituição consegue falar aos jovens em bloco. De algum modo, há um supermercado de ofertas. Cabe às escolas e aos pais ajudar os jovens a fazer boas opções.

As igrejas, os adultos falam aos jovens. Mas, o que os jovens falam aos adultos e às igrejas?

Michael Pye- Estamos aqui numa conversa complexa acerca das relações entre gerações, que é uma exploração interessante. Penso que os ensinamentos das religiões tradicionais são muito rígidos e estruturados a partir do passado. Talvez fosse melhor pensar tematicamente, por exemplo, as relações humanas e não começar da ética. Como ter relações humanas satisfatórias? Isso se aplica a todas as gerações, dentro de uma abordagem mais indutiva, que parte mais de situações concretas, com menos ênfase em doutrinas e em receitas rígidas que estariam estruturadas demais. No Brasil vocês têm uma igreja católica forte, mas nos países protestantes da Europa do Norte não há uma ênfase tão forte na catequese, embora haja práticas nesse sentido. A igreja católica publicou um catecismo.

Volto à pergunta: qual seria a mensagem da juventude para o mundo adulto?

Michael Pye- Eu tenho setenta anos... O que penso que a juventude está dizendo a todo mundo é: "Amor". E qual a resposta dos adultos? "Bem, nós sabemos sobre isso, obrigado". Mas essa mensagem retorna sempre: "Não liguem para as estruturas, concentrem-se no amor, no cuidado, na alegria, não se esqueçam de aproveitar a vida". Nesse sentido, gente como eu pode beneficiar-se do contato com os estudantes, suas atitudes vitais. Hoje, quando entrei no elevador na universidade, havia uma jovem mãe com sua criança no colo que olhou para mim e deu um grande sorriso. Isso é maravilhoso. Essa era sua mensagem: "Sorria!".

Essa seria um mensagem para todo mundo?

Michael Pye- Sim, parece muito simples, mas é muito diferente de um ambiente marcado pela pressão, pela guerra em que se forçam as pessoas a entrar em situações que elas não podem suportar. Essa mensagem de amor, alegria, cuidado se encontra em muitas religiões, mas elas não são todas iguais e oferecem alimentos diferentes. Como as religiões ajudam as pessoas a viver? As pessoas parecem felizes? Vejo muitas atividades de massa, mesmo aqui no Brasil, em que as pessoas fazem muitas coisas, mas não me parecem particularmente felizes e sim um tanto pressionadas a parecer felizes, mas não parecem naturalmente felizes. Seria interessante considerar religiões em que as pessoas estejam facilmente felizes. Vejo isso, por exemplo na Igreja Messiânica mundial, uma religião japonesa: não sou membro dela, mas encontrei pessoas gentis lá, abrem espaço para as pessoas serem felizes. O júbilo é um conceito cristão muito antigo e também encontrei alguns monges católicos plenos desse tipo de espírito.

Quais suas impressões acerca das religiões no Brasil?

Michael Pye- Essa questão é muito ampla e cheguei recentemente ao Brasil. E tenho impressões ainda superficiais. Mas me interessaram nessa sociedade as inter-relações entre as sólidas posições do catolicismo e o grande volume de experimentação religiosa representadas em parte por religiões japonesas, pelo candomblé, pelas manifestações populares. Visitei Aparecida e é um fenômeno surpreendente, com sua basílica enorme, a história interessante de como a santa foi achada pela rede dos pescadores. Parece-me que Aparecida se refere à maioria do povo brasileiro, à alma brasileira. Nossa Senhora é descrita como uma mãe de todos, um ponto de referência. Também me chamou a atenção a menção muito frequente a Deus; no dinheiro está impresso "Deus seja louvado"; nos táxis aparece a mensagem "Agradeço a Deus por mais um dia". Você tem razão, Deus é brasileiro - é o que venho descobrindo. Não estou muito certo de quem é Deus, mas com certeza ele olha pelos brasileiros. É uma espécie de divindade genérica.

O que o senhor pensa sobre as igrejas neopentecostais?

Michael Pye- Visitei uma igreja bem grande. Não lembro o nome dela porque são denominações miuto parecidas. Acho que foi a Igreja Universal. Também vi muitos programas na TV. Sempre é impressionante ver tanta gente reunida e como o pregador avança passo a passo, falando com o público e retornando à Bíblia, daí fazem alguma oração, em seguida volta a pregação e gradualmente a emoção é construída. Não estou certo que seja um movimento livre do Espírito Santo: parece-me mais como algo organizado por um uso muito competente da mídia, de técnicas de pregação. Esses programas não são muito frequentes em outros países, exceto nos EUA onde estão muito desenvolvidos. Também me chamou a atenção que os programas católicos na TV estão em competição no mesmo nível dos programas de outras igrejas: não consigo imaginar aonde esse grande “campeonato de futebol” vai chegar. Parece que estão jogando o mesmo esporte.

O senhor poderia destacar algumas características nos programas de rádio ou TV?

Michael Pye- Parece haver uma contradição entre o evento de massa envolvendo sentimento religioso, como um rebanho, mas ao mesmo tempo atento para problemas individuais. Alguém está envolvido com bebida, ou está doente, apresenta infidelidade matrimonial, ou está possuído por um demônio e faz barulhos terríveis. Esses problemas são levados por indivíduos dentro de um ambiente de massa. Isso é uma espécie de paradoxo que parece resolvido quando a pessoa é levada para a frente de todos e apresenta sua situação ao pregador. Ambos dialogam usando o microfone do pregador; o foco se concentra naquela pessoa e a multidão apóia o pregador a salvar aquela pessoa. Quando o indivíduo se torna visível no palco, manifesta como é seu problema e também como recebeu ajuda de Deus e do Espírito Santo. Quanto à expulsão do demônio, não estou muito certo de que tiveram sucesso, mas a pessoa ficou bem sossegada. Ela foi conduzida para fora e não estou seguro de que no mês seguinte ela não voltará com nova possessão. Não sei se foi uma ação eficiente, nem se foi encenada, como acontece em lutas profissionais em que não se sabe se os lutadores estão mesmo golpeando uns aos outros. Não estou certo, mas parece haver um pouco de show. Para mim, a dúvida é um instrumento de conhecimento. Não preciso acreditar em demônios, mas tento entender o que se passa ali. Será que as pessoas esperam o efeito obtido? Esse efeito precisa mesmo ocorrer apenas porque se espera que ocorra? Até que ponto as pessoas contribuem para esse efeito e, sentindo-se desamparadas, precisam dele? Esse é um fenômeno muito difícil de pesquisar. Na igreja católica há uma forte tradição de exorcismo e, na Europa, tem crescido essa prática. Isso em parte porque as pessoas se sentem participando de uma luta entre o bem e o mal. É simples; eu estou do lado errado nessa batalha e preciso passar para o lado certo. É uma espécie de teatro psicológico, sem contradições.

Dê um panorama sobre as religiões no Japão

Michael Pye- Essa questão é muito ampla, pois há muitas religiões no Japão. Há dúzias delas. As tradições principais são o xintoísmo, com muitos lugares sagrados, e o budismo, que se divide em denominações como zen e shin budismo que pertencem à corrente mahayana. Há também religiões novas com muitos milhares e até milhões de seguidores. As igrejas cristãs atingem apenas 1% da população. Esses cálculos são difíceis porque quando se somam os membros que as religiões anunciam, o resultado é maior do que a população viva... E isso se deve a que muitas pessoas têm alguma relação com mais de uma religião. A maioria se relaciona a algum templo budista por causa dos ancestrais e dos cemitérios. Assim, entre 60 e 80% são budistas. Também a maioria dirá que é xinto, apenas porque são japoneses.

Quais são as características do xintoísmo?

Michael Pye- Muitos falam “xintoísmo”, mas eu prefiro dizer "xinto" porque é a palavra japonesa e significa "o caminho dos deuses". Dentre suas características principais está um interesse muito grande em lugares sagrados, separados do mundo ordinário onde se pode experimentar purificação. Antes de ir ao santuário, o sacerdote purifica a pessoa mediante um ritual, ela reza e, claro, faz uma pequena oferta em dinheiro, agradece e volta para casa pensando que as coisas vão melhorar para ela.

Quais são os deuses deles?

Michael Pye- São muitíssimos deuses. Há uma jovem deusa, Amaterasu Omikami, que é a divindade central. Há muitas outras, como Okuninushi ou Susanu o Mikoto, com nomes muito compridos que vêm de tradições mitológicas oriundas dos antepassados. Há controvérsias sobre o nascimento do xinto e seus representantes dizem que é a religião original do Japão. Pesquisadores dizem que o xinto é continuamente reinventado, mas não garantem que tenha começado há 2 mil anos. Aqui há uma questão de mito e História.

Quanto tempo o senhor viveu no Japão?

Michael Pye- São dez anos, ao longo de várias etapas, que começaram em 1961.

O que aprendeu com a sociedade e as dezenas de religiões no Japão?

Michael Pye- De fato, aprendi muita coisa importante. A principal é que a religião pode ser muito flexível e, especialmente no budismo, suas expressões e símbolos são provisórios; essa adaptabilidade ajuda muito às pessoas, que mais tarde precisam deixar essas manifestações para trás. A lição é que não se deve ficar muito preso a um ponto particular da doutrina religiosa porque ele está relacionado à situação das pessoas. Essa flexibilidade permite às religiões no Japão se relacionarem entre si.

Há alguma característica da experiência religiosa tradicional japonesa?

Michael Pye- Penso que ela provém do budismo mahayana e que é relevante para toda a Ásia Oriental. Eles têm a idéia de que não se deve prender a uma doutrina. O budismo primitivo era um pouco rígido e se reagiu a isso, dizendo que é preciso libertar-se dessas coisas rígidas e os ensinamentos devem servir para sua orientação. Esse é o teor de muitas sutras budistas e influenciou o pensamento subsequente naquela região. A idéia de que vivemos numa realidade em transformação foi reinterpretada pelas gerações seguintes: a questão não é guardar algo, mas adaptar-se e fazer os ensinamentos se adequarem à situação concreta das pessoas. Essa é uma abordagem muito difundida. Outra característica comum às religiões é que elas com facilidade abreviam algo. Por exemplo, houve um tempo em que se dava um cavalo de presente ao templo. Outras pessoas também quiseram dar seus presentes, mas não podiam pagar um cavalo e, então, faziam uma pintura de um cavalo num pedaço de madeira e a davam ao templo. Essa prática se espalhou, ou se fazia ou se comprava a pintura de outras pessoas e no verso escreviam suas mensagens, suas orações. Trata-se de uma abreviação muito apropriada de algo maior. Jovens vão ao templo e usam essas tabuinhas para apresentar seus pedidos como ser aprovado num exame, encontrar uma namorada na outra classe, e assim por diante. Colocam numa estante esses símbolos, a que chamam de "ema", o que significa "pintura de um cavalo". Agora há outros temas e são muito populares. Há milhões de tipos. Nos templos há umas molduras com ganchos, e também varais, onde as pessoas penduram seus emas. É interessante ver o que as pessoas estão pedindo em oração: sucesso, segurança no trânsito, bem-estar da família, cura de doenças. Muito populares são os pedidos para se encontrar parceiros, casamento, amor. Pode-se pendurar os emas sobretudo nos templos xinto, mas também em muitos templos budistas, embora alguns sejam muito estritos quanto a isso. Eles enfatizam a experiência espiritual e não transações materiais. No caso do budismo shin, que é muito forte no Brasil entre a comunidade japonesa, há rejeição da idéia de rezar por coisas particulares e são mais espiritualizados.

Para o senhor os japoneses são religiosos ou secularizados? Ou ambos?

Michael Pye- Quando perguntados, muitos japoneses dizem que não são religiosos, não têm fé religiosa. Eles gostam de pensar que são muito secularizados. Mas, de repente, no Ano Novo, vão ao templo; na primavera, verão ou outono eles visitam os cemitérios para venerar seus ancestrais; no verão fazem um grande festival xinto, que todo mundo curte e, claro, vão ao aos túmulos bater palmas, duas vezes. Tudo isso são atividades religiosas e não interessam as doutrinas que as pessoas têm em mente, mas elas dizem que não têm uma crença fixa como, talvez, um ocidental. No entanto, essas ações são intensamente religiosas.

Quais são os principais rituais dessas religiões?

Michael Pye- No caso do xinto, é principalmente a purificação e a oração por aquilo que precisam. No budismo, os rituais principais se relacionam aos ancestrais - os japoneses geralmente acreditam que é preciso cuidar dos antepassados. Porque eles ainda são membros da família. É comum haver um altar doméstico e diariamente se comparece perante ele, para agradecer aos ancestrais o sucesso num exame, ou para avisar que se está planejando casar e pedir aprovação e proteção. Em geral, os budistas são responsáveis pelos cemitérios e altares domésticos. Os funerais são sobretudo budistas e muita gente reclama que os monges cobram caro para fazer os funerais. Mas, que fazer? Quando seu pai morre, é preciso haver um funeral e você acaba pagando. Habitualmente as pessoas se preparam com antecedência para essas despesas, como uma espécie de sacrifício. É preciso fazer esses rituais oficiais, para que o falecido seja transferido para a próxima situação.

Esses rituais duram muito dias, não é?

Michael Pye- Há uma cremação e as cinzas são colocadas numa urna. Em seguida o monge, ou sobretudo o sacerdote budista recita alguns sutras e em várias datas subsequentes, até cem dias depois. É um processo bem longo, após o qual a pessoa passa a integrar o grupo dos ancestrais.

Há um céu, após esta vida?

Michael Pye- Não exatamente um céu. Em duas ou três denominações mais importantes, há o conceito de Terra mais Pura. Espera-se que seu parente renasça na Terra Pura, onde se vive muito comodamente, é um tipo de paraíso onde tudo é muito agradável. Mais tarde se pode entrar no nirvana, quando já se atingiu um estado adequado de perfeição. Não é preciso preocupar-se, basta confiar que o Amida Buda o levará para a Terra Pura, pois por nós mesmos não podemos fazer nada de suficientemente bom. Há um forte sentido de inadequação pessoal e confiança na graça, na compaixão do Amida Buda. Amida Buda é a divindade central no budismo e xin budismo, é o Buda do Oeste. Há muitos budas míticos, um para cada ponto cardeal. Através do Amida Buda, o karma negativo é expurgado.

Como é a doutrina do karma?

Michael Pye- Essa doutrina passa atualmente por uma importante transformação. No budismo original, ela significava que tudo o que fazemos tem consequência com o que vem em seguida. Ações boas e más terão repercussões boas ou más para nós. Vidas anteriores têm efeito sobre a vida presente. Assim, se eu for um inglês bem comportado, serei recompensado renascendo no Brasil... Há a possibilidade de progredir moralmente. Mas na Ásia Oriental, os ancestrais se tornaram mais importantes e, após sua morte, se reúnem a um grupo coletivo e espera-se que todos se tornem budas. Assim, a doutrina do karma não aponta mais para o futuro, quando todos se tornam antepassados, mas serve para explicar o presente. Para explicar por que estou num lugar gostoso como o Brasil, é porque anteriormente fiz algo bom para merecer isso. Assim, torna-se uma doutrina explicativa, mais que uma previsão.

O que dizer das novas religiões no Japão?

Michael Pye- Esse assunto é muito importante. Desde os últimos dois ou três séculos, elas vêm emergindo uma após a outra. Mais recentemente surgiram o que chamamos as "novas novas religiões". Elas formam um tipo de família que se dirige às necessidades espirituais dos indivíduos, que estão com problemas, em busca de soluções aqui e agora, mas também esperando identificar alguma dimensão espiritual, receber bens e mensagens espirituais. Há uma devoção muito forte para com o fundador dessa religião, dependência emocional. Isso é uma experiência religiosa diferente dos tradicionais xinto e budismo. Pode-se ir à sede central dessas religiões e ver muita gente lá - há cerca de 20 a 30 milhões de pessoas envolvidas com esses novos movimentos religiosos. À semelhança do protestantismo, podem surgir novas seitas que acrescentam novos ensinamentos aos do líder ou tentam retornar ao ensinamento original.

Quais os nomes desses "novas novas religiões"?

Michael Pye- Você quer mesmo saber? Konkokyo, Tenrikyo, Kurozumikyo, Omotokyô, Seicho-no-iê, Mahikari .... Há muitos outros nomes. A principal, Soka Gakkai, que é imensa e existe também no Brasil, na França.

Há características comuns a essas religiões?

Michael Pye- Os ensinamentos são muito diversos. Há um grupo de inspiração budista, outro de inspiração xinto. Mas elas são diferentes porque são mais pessoais, mas mantêm a purificação, rezam batendo palmas, às vezes palmas extras. Outras têm pouca referência às religiões tradicionais, como a Ciência da Felicidade, que é uma síntese eclética de muitos elementos e levantou muito dinheiro com publicações. Não usam tanto a TV como no Brasil. A TV noticia mais atividades do budismo e xinto e ignora as novas religiões - há uma espécie de preconceito, de conspiração contra elas, porque não fazem parte do perfil oficial da nação. Nem todas estão crescendo e algumas diminuíram, à medida que as gerações se sucedem. Elas não têm propriamente uma vida curta, porque é muito difícil uma religião desaparecer, em geral. Seria preciso que toda a civilização desaparecesse para uma religião desaparecer: em geral há alguma continuação. Sempre há gente leal que mantém a coisa viva, como sobreviventes em pequenos grupos.

Notas

[*] Entrevista original concedida à TV PUC

[**] Professor emérito de Ciência da Religião na Universidade de Marburg (Alemanha) e professor convidado da Universidade Otani, Kyoto, (Japão)

[***] Professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião das PUC-SP.