Elementos para uma Teoria da Consciência Apofática

Luiz Felipe Pondé[*] []
Nossos ‘ambientes naturais’ incluem, é claro, as
criaturas que são nossas companheiras, nossas
práticas e as delas, e o que nós e elas produzimos
– cultura, nesse sentido – que, no caso dos seres
humanos, inclui sistemas conceituais, expressões
verbais, teorias, textos, partes de equipamentos,
habilidades técnicas, rotinas de treinamento e as
instituições que conservam e transmitem todas
essas coisas
.”[1]

Resumo

Partindo de uma discussão epistemológica geral, que se move por um cenário pragmático e evolucionista, a intenção do artigo é discutir a conceito de consciência apofática na tradição teológica negativa cristã, defendendo a idéia de que o discurso místico em questão se constitui numa noética específica, fundamental para uma teoria da mística.

Abstract

Starting with a general epistemological discussion in a pragmatic and darwinian scenario, the paper aims at discussing the concept of apophatic consciousness in the Christian negative theological tradition, defending the idea that the mystic speech in question consitutes a specific noetics which is fundamental for a theory of mysticism.

1. Elementos de epistemologia

Epistemologia é hoje, antes de tudo, uma consciência aguda do fato que nós, como as bactérias, somos seres “de cultura”[2]. Em nosso caso, a relação com o meio ambiente no qual estamos inseridos (provavelmente devido a um certo tipo de pseudo-estabilidade complexa alcançada ao longo dos milênios, normalmente descrita como “crença” – atavismo animal ou “conhecimento” –, que se constitui numa adesão sem fundamento estrutural a modos variados de imagens neuronalmente produzidas como reação ao meio exterior e/ou interior ao corpo) acabou se materializando também em sons articulados que chamamos conceitos. Isso quer dizer que bactérias e insetos, assim como peixes, devem ter desenvolvido procedimentos que realizam algum tipo de cognição – isto é, existiria uma “zooepistemologia” que desconhecemos. O relativismo “sócio-cultural” seria um modo menor de consciência sofista[3] se comparado ao relativismo biológico-condicionado. Pára além desse biorepertório, a questão passa pela dúvida – para alguns, nem mais dúvida – se é ainda possível falarmos em episteme em oposição a doxa (o “erro” de Platão), na medida em que tudo o que realizamos em termos cognitivos não passa de produtos condicionados pela “cultura” local – não haveria, portanto, conhecimento incondicionado (o que, a rigor, pode implicar um certo contra-senso lógico), termo que tem sérias ressonâncias para alguém que estuda mística apofática. Na caverna só contemplamos sombras (logo, só há teoria das sombras) que não são reflexo de luz alguma, mas apenas esboços produzidos pelo atrito entre nossas terminações nervosas e as partículas bioquímicas que nos envolvem e nos compõem. Sombras das sombras, em meio as quais, somente um ruído se articula – na realidade, um imperativo categórico: adapte-se. A validade de uma configuração específica de sombras é unicamente pragmática, já que não há, a rigor, estrutura mas apenas conjuntura. Lembremos: a “teoria da adaptação seletiva” é, também, uma crença – o que significa dizer que a “objetividade” dela é apenas a de um comportamento cognitivo que se impõe como um lugar privilegiado na cadeia epistêmica por produzir uma interpretação do “mundo” que parece funcionar hoje em dia. A descrição da cognição humana como discernimento retórico em meio a sombras não é contemporâneo: Protágoras já afirmara que o que normalmente chamamos de “verdade” é o efeito da teia lingüística que melhor nos condiciona. Se a “verdade” é função de uma teia, possivelmente encontraremos em algum lugar a sombra de uma aranha[4]. A microdinâmica dos modos de crer – realização de cognição – revela-se como um contínuo que cegamente testa crenças (comportamentos cognitivos) úteis ou mortais, num ecossistema infinitamente horizontal que perfaz um círculo sem centro, chamado por alguns de hermenêutico – esse teste é a materialidade bioepistemológica em ato. Um sotaque específico, um endereço institucional e/ou residencial, uma pesquisa de uma vida inteira, uma reputação bem posta, um best seller, uma causa que pareça justa, uma moda militante, uma milhagem alta, um olhar cativante, o cansaço, tudo isso é parte da teia microdinâmica da crença. Qual a possibilidade de que uma pergunta feita por uma mulher d’Angola tenha o mesmo peso de uma pergunta feita por uma inglesa? Imaginando que a angolana articule questões que outras ouvem. Evidentemente que a angolana terá muito provavelmente menos recursos tais como bolsas, bibliotecas, serviço de eletricidade, internet rápida, serviços rápidos e eficientes de transporte público, métodos contraceptivos, etc. É muito provável que as perguntas mais importantes venham da inglesa e que mesmo em Angola, as mulheres leiam os livros das inglesas e não as teses angolanas. O contágio da “cultura” angolana é inevitável. Quando uma angolana falar, provavelmente o fará a partir do pensamento da inglesa. Ver como essas duas mulheres pensam juntas é fazer epistemologia. Epistemologia “em cultura” é contabilizar e agenciar a doxa. Isso de modo nenhum implica ausência de responsabilidade epistêmica – ainda que possa assim ser interpretado –, mas sim a necessidade de que nos apropriemos dessa conjuntura infinita que mimetiza, pela inércia do hábito, uma estrutura de funcionamento que na realidade é inexistente. Há que se colocar (bem) na cadeia alimentar hermenêutica: não há como aprender epistemologia sem fazer epistemologia.

Uma tal descrição da epistemologia (pragmática e darwiniana) revela evidentemente uma identidade sofista profunda entre “verdade” e “poder”, como toda concepção retórica do conhecimento, o que não é por si de modo algum uma evidência auto-fundadora – algo muito parecido ao que Leo Strauss descreve como a infelicidade da “politização” do conhecimento em termos de “power politics”. O que vemos por detrás da “culturalização” do saber é uma simples redução da busca pelo conhecimento a idéia da força da persuasão (como todo modo de epistemologia circular). Não me parece estranho que, de certa forma, nos aproximemos demasiadamente de uma idéia de epistemologia como técnicas sofisticadas de publicidade. E mais: há uma clara tendência na “cosmologia” darwiniana - e a pragmática evolucionista é apenas um caso dentro de uma descrição geral - a uma cerrada crítica a qualquer noção de causa teleológica, o que anula qualquer idéia de intencionalidade (a “lei da sobrevivência” ou a “lei da violência” não passam de atrito em si randômico entre partículas indiferentes, posteriormente interpretado por nós como seletividade “natural”), colorindo o universo com o tom de um sonambulismo feroz em meio ao qual uma linguagem joga seu jogo contingente.

“Como o próprio Weber aponta, as ciências sociais buscam entender a vida social a partir de um ponto de vista mundano (this-wordly). Ciências sociais são conhecimento humano da vida humana. Sua luz é a luz natural. (...). Os insights e soluções poderiam ser questionados a partir do conhecimento sobre-humano e da revelação divina. Mas, como Weber indicou, as ciências sociais em si não podem levar em conta tais questionamentos, porque eles se baseiam em pressuposições que não podem nunca serem evidentes para uma razão humana não assistida. Ao aceitar pressuposições desse caráter, as ciências sociais se transformariam em judaísmo, cristianismo, islamismo ou budismo ou algum outro tipo de ciências sociais “denominacionais”. Ademais, se genuínos insights das ciências sociais podem ser questionados a partir da revelação, a revelação não está apenas acima da razão mas contra a razão. Weber não tinha nenhum prurido em dizer que toda crença na revelação é, afinal, crença no absurdo. Se essa visão de Weber, que afinal de contas, não era uma autoridade teológica, é compatível com uma crença inteligente na revelação, não precisa ser nossa preocupação aqui.”[5]

Tenho dito com freqüência que o estudo da religião demanda uma “cultura epistemológica”[6] poderosa. Mas no que a prática de uma cientista da religião pode estar relacionada com o relato acima descrito? Ou dito de outra forma: como ela (a cientista) deve agir a fim de se colocar na cadeia alimentar epistêmica? Primeiramente, essa relação estabelece-se na medida em que o campo denominado “ciências da religião” não apresenta uma estabilidade constituída – não há uma crença dominante – em termos epistêmicos. A instabilidade semântica do campo em questão – o que se abre para uma violência pragmática adaptacionista constante – é, na realidade, figura da instabilidade histórico-filosófica da própria gênese das chamadas “ciências do espírito”, ou “ciência humanas”, ou “ciências da cultura”: uma Proto-Alemanha sob as botas da République Française de Bonaparte. Fruto dialético da empreitada científica moderna e iluminista, as ciências humanas sofrem de uma constante instabilidade na sua microdinâmica cognitiva. E mais: tendo a ciência moderna surgido no embate com as crenças metafísicas e religiosas abrâamicas, só uma iniciante – ou alguém que retoricamente busca “esconder o jogo” – pode supor que a suposta neutralidade ou objetividade em ciências sociais realiza de fato uma simetria epistêmica em se tratando da religião (a narrativa de Strauss acerca de Weber citada acima é um exemplo claro de negação de simetria entre ciências sociais e religião conceitualmente articulada – a “razão assistida”). A “objetividade” das ciências da cultura aplicada a religião é uma objetividade criptomilitante. Isso pode ser facilmente identificado quando lembramos que para um abrâamico, a Bíblia ou o Alcorão não são frutos da “cultura” mas sim revelação de um agente exterior a “cultura”[7]. Essa tensão é corriqueiramente desconsiderada a fim de que a formatação da religião como “cultura” se dê na forma de uma “objetividade” auto-fundante. Acredito que uma atitude desestabilizadora da crença na fácil redução de religião a “cultura” é uma discussão que exponha essa superposição de conceitos que na realidade, do ponto de vista do sujeito religioso, é falsa. Uma pergunta a ser feita talvez seja: em que medida esse fundamentalismo sócio-culturalista “esgota” as formas de escutarmos nosso “objeto religião”? Todavia, essa falsidade repousa num contexto poderoso que é a dificuldade em retomarmos o core noético de muito do que se produziu na religião abrâamica em termos conceituais articulados. Esta retomada deveria se dar dentro da comunidade relevante para a discussão, isto é, das cientistas da religião. Dito de outra forma: a redução em questão se alimenta de uma forma específica de ignorância (acerca da noésis religiosa), e essa ignorância, por sua vez, alimenta a retórica da redução da religião a “cultura” na medida em que faz daquela um fragmento de comportamento mudo. O argumento comum (weberiano, inclusive) de que a noética (aqui no sentido de conjunto de enunciados justificáveis publicamente) religiosa não faz parte da noética em ciências da religião é típico desta retórica: por que o puro behaviorismo religioso e seus supostos contextos sociais seriam os únicos a servirem como instrumento de compreensão do que “é” religião? Contra a pseudo-evidência de que haja “objetividade na circularidade”, lembremos que uma mística, por exemplo, não narra algo com o intuito de construir objetividade pública, logo a constatação desta ausência é antes de tudo (e apenas) descritiva e não normativa. A razão para o discurso criptomilitante parece-me evidente: sustentar um modus específico na cadeia alimentar epistêmica[8], mas que não me parece ter muitas credenciais noéticas. Tais “credencias noéticas” – aquilo que Strauss na citação acima se refere especificamente como “ser uma autoridade teológica” no caso de discussões religiosas – só podem ser alcançadas através de um diálogo cerrado com as tramas conceituais produzidas pela noésis religiosa. Tais “credenciais” devem ser testadas a partir da capacidade que elas têm (ou não) de estabelecerem um embate consistente com a produção que lhe é exterior, e não simplesmente invalidadas por uma crença pretensamente estabilizada de que uma “razão sociológico-dependente” é, afinal, a Razão Suficiente aristotélica encontrada entre os supostos descendentes apressados de Protágoras. Se os conteúdos da “razão assistida” serão “contra” a razão social/natural (“não-assistida”) – no sentido de lhe impor um diálogo metatéorico consistente –, seremos simplesmente obrigados a reavaliar nossas crenças falsamente estabilizadas (sobre a noética da “razão assistida” em se tratando do estudo da religião), pois afinal de contas, “razão” não designa um Em Si fora da teia protagórica ou darwinista-pragmática. Arriscaria dizer que trata-se de investigarmos aquilo que Strauss diz não pretender analisar na citação: uma “razão assistida” é necessariamente uma razão menos epistêmica?

Penso que uma discussão estabelecida em torno do termo “ciências da religião” não tem muito fôlego. Para mim é evidente que o plural aqui remete ao escopo das diversas atitudes epistêmicas – e que me parecem ser consistentes na dependência de objetos específicos – que constituem o campo metodológico em questão. Não vejo porque uma socióloga ou antropóloga deva negar a possibilidade de uma psicóloga ou filósofa ou teóloga discutir e buscar estabelecer comportamentos cognitivos articulados acerca da religião – a não ser um a priori político militante ou institucional que busca assimetria epistêmica a fim de fazer valer lobbies epistemológicos específicos num sentido párakuhniano. Parece-me mais proveitoso uma discussão que ponha em diálogo e em conflito as diversas narrativas de nossas cinco colegas: entendo esse conflito como um movimento que visa estabelecer uma teoria da religião. Não se trata apenas de propor “nomes”. Trata-se de propor a busca de um operador sintético que ao invés de calar o conflito, nos coloque no seio da instabilidade epistêmica mas dentro de um movimento de apropriação e discriminação das diversas narrativas que as cientistas da religião produzem[9]. E mais: não me parece consistente negar o fato que a atitude científica é historicamente datada e que portanto faz-se necessário levarmos em conta que uma teoria da religião é o produto de mulheres modernas e/ou pós-modernas (homens também), e que portanto, faz parte de um tal esforço teorético investigar as transformações históricas das relações entre religião e sociedade em geral, e o que a noética religiosa têm a dizer sobre essas transformações – muitas vezes esquecemos que fazer ciência já é uma atitude logocêntrica e eurocêntrica (foi a inglesa que inventou, não a angolana). Isto é: uma teoria da religião (comportamento cognitivo da cientista da religião e não da religiosa) é produzida no embate entre ciência, cultura e religião, todas três conceitualmente articuladas. O que está em jogo na minha recusa do preconceito weberiano é o fato que nenhuma razão funda a si mesma (toda razão é assistida, a menos que falemos de lógicas indutivas ou dedutivas), logo, qualquer dos seus pressupostos metatéoricos são igualmente, para o terrorismo cético, modos não auto-justificados de pressão epistemológica (seja por razões reveladas, dedutivas, indutivas ou “culturais”). E mais: o fato de haver contingência entre linguagem e mundo, ou dito de outra forma, da semântica ser quase sempre ingênua no seu delírio referencial, só nos remete mais uma vez as dificuldades da tensão platônico-sofista. O nome contexto descreve, ainda que de modo econômico, a condição humana geral.

“Em segundo lugar, razão pode ser usada em um sentido mais substantivo, referindo-se a sabedoria acumulada de uma tradição, particularmente (em nosso caso) a sabedoria acumulada da tradição clássica. Este é um sentido mais substantivo de razão do que aquele que a restringe ao procedimentos lógicos indutivos ou dedutivos porque, diferentemente da apelação a lógica indutiva ou dedutiva, a sabedoria da tradição expressava-se em um certo core de crenças e atitudes, e certas virtudes éticas e intelectuais. [...]. Enquanto o primeiro sentido de “razão” é de caráter primariamente lógico e formal, este sentido é primariamente epistemológico. Isto é, a sabedoria recebida dá corpo a demandas de conhecimento de certas coisas sobre o mundo”.[10]

Rorty costuma dizer que método em ciência nada mais é do que possuir uma lista de perguntas boas[11]. Perguntas boas são perguntas produtivas, e ser produtiva neste sentido é gerar outras listas de perguntas boas (livros, debates, entrevistas, teses, controvérsias, pessoas que queiram mostrar que você está errada, pessoas que leiam e escutem o que você fala, pessoas que ponham suas idéias em diálogo com outras pessoas, etc). A leitura pragmática do modelo darwiniano de pensamento[12] (como desenvolvi brevemente no primeiro parágrafo acima), associada aos vocabulários kuhnianos – normalmente descritos como construtivistas em epistemologia – tem sido rica em produzir listas como essas no embate com modelos tidos como pré-kuhnianos (demarcacionismo, fundacionismo, falseasionismo crítico-realista, positivismo lógico, inducionismo ingênuo, reconstruções racionais, etc). Minha intenção no restante deste pequeno ensaio é levantar algumas poucas questões, que espero, sejam produtivas. Primeiramente, pergunto em que medida a tradição apofática cristã se constitui numa maiêutica negativa? Isto é, produz um tipo de cognição que ilumina pelo que afirma, diríamos, uma negatividade de efeito pragmático sem sofrer com a neurose semântica referencial. Para tal, pretendo indagar alguns autores que descrevem essa experiência apofática a fim de tentar compreender sua noética (tanto no sentido definido acima como no de forma última de contemplação pára além da dianoética) particular. Uma segunda pergunta, decorrente desta, é: qual o movimento teorético diferenciador aqui presente? Enfim, examinemos alguns poucos produtos da “razão assistida” referida por Strauss.

2. Elementos teórico-empíricos

“Nada mais é preciso para legitimar a filosofia no seu sentido socrático original: filosofia é conhecimento de que não se conhece, isto é, é conhecimento daquilo que não se conhece, ou consciência dos problemas fundamentais e, como conseqüência, das alternativas fundamentais com relação as soluções que estão ao alcance do pensamento humano.”[13]

A referência a maiêutica socrática na fala de Strauss[14] é explícita: em se tratando de filosofia, Sócrates segue em direção a uma paidéia que forma através do esgotamento das possibilidades positivas de definição que a razão produz no seu movimento de enfrentar os problemas que lhe são colocados. Este esgotamento em si é o “conhecimento daquilo que não se sabe”, isto é, o resto maiêutico é conhecimento negativo: a saída da caverna é, no limite, a construção de uma consciência negativa pois a luz é apofática. Tal comportamento cognitivo implica um tipo de consciência que, esvaziando-se das possibilidades positivas (testadas ou superadas), atinge uma percepção (não em sentido metafórico do termo) daquilo que apesar de estar pára além da trama de palavras articuladas (fora da representação), permanece em estado de realização cognitiva. Trata-se da idéia clássica de uma ignorância que conhece. A chegada a este estágio negativo, segundo o comportamento maiêutico, se dá via a chegada a fronteira da capacidade de representação racional positiva possível, aquilo que teoricamente eu chamaria de superação maiêutica da catafática. Em outras palavras, atravessa-se a razão catafática pelo uso exaustivo dela mesma. Sócrates e Platão, pela exaustão da dianóia, produzem uma noésis (aqui entendida, precisamente, como o oposto ao raciocínio discursivo característico da intermediação dianoética) de forte caráter negativo: as definições dianoéticas tombam diante do esforço ascético, e este esforço é público. A ascese dianoética gera a noética (que na mística que aqui discuto receberá o nome teórico de negativa). Evidentemente que na noética mística, essa ascese não é fruto de um esforço puramente racional (e seria em Sócrates e Platão? Não creio.), mas sim do fato de que o nous da mística[15] é visitado (segundo o que ela nos relata) e é essa visita que Strauss entende como caráter “assistido” (aqui interpretado no seu viés duro, isto é, não somente no sentido de alguém que em sendo religioso, tem seu intelecto assistido pela leitura das escrituras, mas no sentido de nous sob pathos) da razão que transita pela revelação (profética e mística). Vejamos o que nos fala uma mística do séc. XIII do norte da Europa: “Aquele que permaneceu em Deus tão longo tempo que compreendeu a maravilha que Deus é em sua Deidade, parece com freqüência, aos próprios olhos dos homens que não têm este conhecimento, sem Deus por excesso de Deus, instável por excesso de constância e ignorante por excesso de saber.”[16]

O uso de termos que parecem paradoxais é típico desta tradição negativa. Hadewijch se refere a um tipo de conhecimento diante da ausência do qual se estabelece o postulado eliminacionista clássico: a noética negativa é um privilégio particular de quem experimentou o “estar em Deus”.O uso de termos que parecem paradoxais é típico desta tradição negativa. Claro que em se tratando da discussão em bases socráticas, não encontramos este argumento da ordem do que o cristianismo ortodoxo chama pâthon ta théia: sofrer o pathos de Deus[17]. Como dizia acima, a noética apofática não é o resultado de um método que pela razão pura se chega ao além da razão, mas sim, de um conhecimento revelado vivencialmente que transforma (metanóia) o nous da mística levando-a a um discurso que se materializa como uma maiêutica negativa. É pela presença de Deus diante do campo de realização cognitiva que se dá a ascese apofática. Trata-se de uma experiência lingüística que fala de uma superação da linguagem pela catástrofe que esta sofre ao ser despedaçada contra aquilo que é irrepresentável (logo, funda-se uma consciência dessa irrepresentabilidade). Esse “estar em Deus” opõe o “excesso” a falta, sendo que tal “excesso” parece aos olhos do não visitado (a razão não assistida por Deus) como a falta do que exatamente abunda. A mística conhece tanto Deus que as que não são místicas, mas religiosas, pensam que ali não há Deus, ela é tão estável no que sabe e no que é que parece instabilidade e ignorância puras. A cega com relação ao que ela sabe não dispõe dos parâmetros de discernimento (a noética negativa em si) e por isso tende a interpretar sempre errado. Não há simetria epistêmica entre ela e os “oficiais de Deus” excluídos da experiência. O termo “instável” aqui talvez mereça uma atenção especial na medida em que o estado de não alteração (constância) é tão superior que tende a ser lido como ausência de constância. Na realidade, Hadewijch fala aqui de um “modo” negativo de identidade (caso particular de constância ontológica estrutural) que escapa ao olhos de quem está excluído dela: para Hadewijch qualquer construção lógica que estabeleça a noção mínima de identidade desconhece Aquilo que realmente é. Todavia, será precisamente este “é” que estará fora de qualquer lógica identitária possível. Como conhecer algo que “tem” identidade negativa? Tal processo é que se constituirá numa forma particular de noésis com desdobramentos interessantes para a cientista da religião em processo teorético: por definição, conhecer implica condicionar a um sistema de cognição, Hadewijch fala aqui de uma cognição do que é incondicionado. Evidentemente que não se pode entender (em termos teoréticos) o que ela diz, sem se percorrer uma dura discussão acerca dos processos cognitivos e epistêmicos que na realidade se constituem em sistemas de condicionamento. “Na aphairesis a alma se desfaz perante eles (os atributos que são aqueles da incognoscibilidade de Deus) para deixá-los reinar sozinhos lá onde ela estava: a alma conhece Deus em se deixando ser aquilo que ele é. Há ai para a alma uma percepção da unidade divina como fundamento infundado de tudo que é? Há ai uma apresentação, uma apreensão, uma presentificação da incognoscibilidade divina? Seria, talvez, mais justo dizer que o não-conhecimento é a incognoscibilidade divina que se instala na alma tomando o lugar daquilo que nela é princípio de apreensão”[18].

Este conceito de aphairesis, que remonta ao neoplatonismo original, fala exatamente, segundo o estudioso da mística medieval De Libera, deste processo de percepção do Incondicionado. A linguagem paradoxical da mística é resultado da tentativa de condicionar lingüisticamente um modo de contemplar a alteridade que é “aquele” de Deus: Deus sem condicionamentos, sem o recurso da letra. Este modo, como veremos mais abaixo, parece ter uma intencionalidade não referencial mas antes de tudo pedagógica (e mântrica): visa uma transformação do uso da linguagem que inviabilize o processo de formação da representação semântica ou do ato pragmático, pouco importa. A maiêutica negativa será o discurso que fala dessa contínua impossibilidade de representação e que neste processo constituirá uma noética de caráter dinâmico. Incondicionado, irrepresentável, incognoscível, invisível visível, são termos que se recobrem: todos implicam um uso da linguagem causador de uma transformação noética. Vejamos quatro trechos de autores[19] que, de certa forma, fundam teologicamente esta tradição negativa: Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio, Máximo Confessor e Gregório Palamas. “O que significa a entrada de Moisés e a visão que nela ele teve de Deus? Quão mais o espírito na sua marcha adiante consegue numa aplicação sempre maior e mais perfeita compreender o que é o conhecimento das realidades e se aproxima mais da contemplação, mais ele vê que a natureza divina é invisível. Tendo abandonado todos as aparências, não somente o que percebe os sentidos, mas o que a inteligência crê ver, ele vai sempre mais ao interior, pelo esforço do espírito até o Invisível e ao Incognoscível e que aí ele vê Deus. O verdadeiro conhecimento daquele que ele busca e sua verdadeira visão, consiste em ver que ele é invisível, apartado de tudo por sua incompreensibilidade como por trevas. (...) define por este negação que a essência divina é invisível não somente aos homens mas a toda natureza intelectual. Ele escapa a toda gnose e ao alcance do espírito.”[20]

“Exercite-se sem parar as contemplações místicas, abandone as sensações, renuncie às operações intelectuais, rejeite tudo que pertence ao sensível e ao inteligível, despoje-se totalmente do não-ser e do ser, e eleve-se assim, tanto quanto lhe seja possível, até unir-se, na ignorância, com Aquele que está além de toda essência e de todo saber. Pois é em saindo de tudo e de você mesmo, de modo irresistível e perfeito, que você se elevará num puro êxtase até o raio nas trevas da divina Superessência, tendo tudo abandonado e estando despojado de tudo.”[21]

“Os santos tornam-se o que não pode jamais pertencer propriamente a potência natural, porque a natureza não possui nenhuma faculdade capaz de perceber o que ultrapassa a natureza. Nenhum aspecto da théosis é, de fato, produto da natureza, pois a natureza não pode compreender Deus. Somente a graça divina possui propriamente a faculdade de comunicar a théosis aos seres; então a natureza resplandece de uma luz sobrenatural e se acha transportada acima de seus próprios limites”.[22]

“Porque esta faculdade não tem outro modo de agir, tendo abandonado todos os outros seres, ele se transforma inteiramente em luz e se assimila ao que vê, ele se une sem mistura, sendo luz. Se ele olha para si mesmo, vê luz; se olha o objeto de sua visão é ainda a luz e se olha o meio que emprega para ver, é ainda a luz; é esta a união; que tudo isso seja um, de modo que aquele que vê não pudesse distinguir nem o meio, nem a meta, nem a essência, mas que ele tenha consciência somente de ser luz e de ver uma luz distinta de toda criatura.“[23]

A experiência relatada nestes quatro autores místicos inicia-se pela referência explícita a tradição mosaica: Deus esconde-se nas trevas, onde colocou sua tenda. A idéia de que Deus está fora da representação é aqui fundamental como contexto lógico na medida em que sustentará o discurso da tensão metalógica semântica ou pragmática: trata-se de um esforço de superação não só do sensível mas do inteligível, por isso narra-se uma noética negativa. A théosis é “produto” da ação da graça e não de uma dinâmica natural. A referência a luz que é distinta de toda criatura fala-nos dessa tensão entre um espaço sobrenatural, incognoscível, mas materializado sensorialmente: não ser e não ser natural significa que não há descrição especular ou instrumental a menos que esta se dê numa dinâmica de auto-superação. Esta é o “despojar-se” ou a denudatio latina medieval. O místico não fala a partir da sua condição criatural, mas sim da violência que esta sofre devido a visita daquilo que não cabe na natureza. O discurso negativo tem como estrutura a idéia de ruptura, só que esta ruptura é uma forma de imperativo epistêmico: Deus, por ser “extra-lingüístico”, e pelo fato do místico ter “estado” neste espaço “extra-lingüístico”, a narrativa apofática falará de uma antropologia, por sua vez, apofática. A consciência mística caracteriza-se pela narrativa de uma descontinuidade psicológica em sentido naturalista, o místico não crê em si mesmo porque não se constitui num eidos e porque, acima de tudo, não sofre da angústia de referencia semântica, o que é um modo de descrever seu gozo: liberta-se do imperativo semântico. A experiência do Incondicionado implica uma visão do mundo como necessariamente sem substancia: não se trata de um mero discurso acerca da desgraça, ainda que seja comum em autores místicos referências a consciência de que a proximidade de Deus implica a percepção da miséria da criatura: “Quanto mais profundamente caio, mais docemente bebo.”[24]

Como nos diz Mechthild aqui, esta consciência da caída é também a consciência que experimenta o gozo libertador. Despojar-se da identidade é despojar-se do peso de ser criatura, da gravidade da distância entre ela e Deus – só haveria semântica em Deus. É esta mesma consciência que fala da percepção do mundo como efêmero, o que não implica a idéia de destituído de valor, mas sim de secundário na hierarquia ontológica. A narrativa da consciência mística oferece a cientista da religião, por sua vez, a consciência epistêmica de que na atitude negativa existe uma gnose com relação a realidade da linguagem referencial: sua vacuidade estrutural evidente. Ainda que o discurso teológico-negativo opere na tensão da hierarquia dos nomes e não em movimento puramente niilisante, as palavras e as criaturas se desmancham no ar: o fundamental é ter consciência do termo a ser negativado. O discurso místico habita a consciência da fronteira do nome, e é precisamente aqui que se dá a consciência maiêutica: o não místico anda por caminhos nos quais, na realidade, vaga às cegas[25] , tateando no vazio, entre o espelho e o uso. A redução eidética da consciência mística é a queda no abismo da tensão noética. Este esforço eidético é uma das característica mais presentes na obra mística do Meister Eckhart (sécs. XIII e XIV).

“O princípio não tem outra razão que o fim, pois no fim último repousa tudo que jamais foi dotado de razão. O fim último do ser são as trevas ou o não conhecimento da divindade escondida, onde a luz ilumina, [...]. Aquele que é sem nome, que é a negação de todos os nomes, e jamais teve um nome. [...]. No fundo da alma, o Fundo de Deus e o fundo da alma sendo senão um só e mesmo fundo. Quão mais Te procuramos, menos Te encontramos. Tu deverás procurá-lo de forma que jamais o encontre; se tu não o procurares, encontrá-lo-á.”[26]

Vejamos como três diferentes scholars eckhartianos comentam esse movimento da consciência apofática em tensão noética negativa: “Esta forma pessoal ´eu´ exprime, sem que se possa entender mal, que Eckhart fala imediatamente a partir de sua própria experiência de ser um com Deus, não de modo a fazer de sua própria experiência o objeto de uma representação, o que seria de alguma forma abandonar a experiência em si (como quando se conta alguma coisa de si mesmo), mas de modo que o “eu” de Eckhart, que se mantém sem intermediário na unidade com Deus, fale diretamente.”[27] “Uma alma devorada pelo amor de Deus, privilegiada com um sentimento intenso da presença divina, e demandando a dialética todas as justificações que ela fosse capaz de dar.”[28] “Longe de se excluírem intelectualmente, a intuição mística e o pensamento dialético não somente podem coexistir, mas devem ser indissoluvelmente ligados num espírito tendido em direção a uma realidade metalógica.”[29]

O esforço eidético do místico é sustentar-se em atitude apofática enquanto descreve a experiência: esta não deve cair sob a atividade dianoética representativa. Uma teoria apofática é uma teoria que se constitui contra a cognição em representação ou contra a ingenuidade semântica. A consciência apofática caracteriza-se por um modo de contemplar o nome (a “alteridade” de Deus) que altera o fazer ontológico (e com este, todas as formas desdobradas de conhecimento). Se fôssemos descrever esse resto noético em chave profética, diríamos que o místico vê com os olhos transformados que a natureza não existe enquanto suficiência: qualquer eidética negativa implica uma redução do ser a apofática – pelo nous, dissocia-se, desnuda-se, depura-se o catafático a fim de processar a ascese, e este percurso caracteriza em grande parte as Questões Parisienses eckhartianas. A maiêutica eckhartiana revela-se como o eidos da dinâmica transcendente: superação contínua da angústia de referencia semântica ou pragmática. Sua obra dialética é uma ascética que define a noética como um tropismo para o Incondicionado: denudatio é o resultado da vocação do nous para a superação da atividade cognitiva entendida como apreensão do condicionado ou relativo. É isso que caracteriza a ultrapassagem da dianoética (conhecimento mediado). A paidéia eckhartiana será o esforço de em atitude dianoética (ou dialética) manter o conhecimento sem mediação: ou dito de outra forma, e mais precisa, é o movimento de fazer da dissolução dos nexos dianoéticos a mediação da teoria apofática (sua noética negativa). É neste processo que pode ser entendido seu niilismo noético, e quando associado a tantos termos eckhartianos como Abgrund, Niht, entre outros, revelam que sendo o fim último do nous o fim último das coisas, não há esgotamento do intelecto que não contemple, ou experimente, o rosto do pathos do Nada. Será precisamente a presença continua de Deus, descrita pelo místico, que estabelecerá a diferença ontológica entre a mística e o niilismo em si. Há uma escatologia cognitiva e epistêmica que constitui estruturalmente a consciência apofática.

Como nos diz o Meister[30] devemos nos elevar com os sentidos desnudados acima de todos os modos, adentro das trevas escondidas e silenciosas a fim de conhecermos Deus acima de Deus.

No DW 5, o Meister volta a sua linguagem aporética quando afirma que o conhecimento de Deus é bekennede kennelôs e o amor por Deus é minne minnelôs e que Deus é liehte vinster: Conhecimento sem conhecimento, amor sem amor, luz escura. Aqui fica claro como sua noética negativa pressupõe o percurso catafático: o acesso, para nosso místico dialético, ao conteúdo da consciência apofática se dá na medida em que, em estando no amor, percebe-se aquilo que precisa deste para ver o além do amor. Isso significa que não se trata de um discurso “solto no nada” mas um discurso teorético acerca de uma realidade que não nos é dada, enquanto consciência, sem uma ascese descrita pela linguagem que esgota a si mesma a cada palavra emitida: o negativo do nome. A negatividade mística é aquela que conhece todas as palavras para atingir a ungewortet wort, ou seja, o verbo ou a palavra não dita. Chegar aí, ao apofatismo, é ferir a intencionalidade lingüística estruturalmente. No Q 26, DW 11, o Meister afirmará que a potência intelecto nunca pode encontrar repouso pois ela não quer Deus como Espírito Santo, nem como filho, nem como Deus porque aí Ele tem nome. Neste percurso, a fim de atingir o unwortlich (o indizível), atinge-se o überwesen (o Sobrenatural). Aqui está a fronteira do nome.

3. Elementos Conceituais Finais

Na primeira parte deste pequeno ensaio descrevi o estado da epistemologia atual como sendo aquele que define o conhecimento como comportamento cognitivo que tende ou busca a estabilização. Esta será vivida como objetividade em cultura. Questões como a contingência da relação semântica (ou sua ausência pura e simples) ou o condicionamento das práticas semânticas (ou pragmáticas) são, na realidade, parte desta concepção epistemológica que se move num mundo estruturalmente conjuntural que confundiria inércia do hábito com objetividade fundante (sonambulismo epistemológico). Na seqüência, discuti, a partir de alguns trechos da tradição literária mística cristã, algumas característica do que seria uma consciência apofática e sua noética negativa. Nessas duas partes tentei trabalhar alguns elementos que ajude a cientista da religião abordar o tema da mística cristã de viés teológico negativo. No primeiro momento, dizendo que ela não se deixe encantar – no sentido de “mágica” – com movimentos retóricos que mimetizem estabilidades epistêmicas inexistentes. A rigor, trata-se sempre de um combate por comportamentos cognitivos que melhor acomodem “momentos históricos” na circularidade cognitiva humana. Para uma cética, trata-se sempre de compreender as formas de estabilização/desestabilização das crenças: a equipolência na diafonia. Evidentemente que tal compreensão habita uma linguagem que joga. No segundo momento, procurei produzir vocabulários que sejam úteis no entendimento dos processos noéticos dos autores/textos em questão – é claro que aqui proponho um conjunto de procedimentos que devem alimentar a polifonia da doxa geral, a partir do argumento que na mística em questão apropriar-se da maiêutica negativa implica maior recurso epistêmico. Uma das razões do procedimento weberiano citado acima por Strauss é o fato de que se não isolamos o contágio com o foco da crença religiosa, caímos na infernal discussão acerca do discernimento entre “hipóteses religiosas” em competição, o que faria do estudo da religião uma busca de diálogo religioso acomodativo – na melhor hipótese social – ou produtor de violências nas mais variadas formas. Penso que um forte argumento em favor do preconceito weberiano é buscar escapar dessa armadilha sem fim: nesse sentido, as guerras religiosas seriam um paradigma de conhecimento das religiões ultrapassado e infeliz. O isolamento do foco da crença garantiria um comportamento epistêmico sem esse stress histórico – aberto apenas as violências parakuhnianas. Um modo de contornar esse isolamento seria, no campo específico do estudo da mística, a análise comparativa dos textos, buscando identificar famílias de comportamentos lingüísticos semelhantes. Nesse movimento resguardar-se-ia a validade do foco, afirmando que só um longo percurso dialógico poderia nos dizer algo acerca da consistência última que superaria a diafonia entre os relatos e tradições. Concordar que exista diafonia não implica afirmar anomia noética, implica apenas reconhecer o caráter edêmico diafônico, porque um dado evidente do conhecimento é que no fundo, não sabemos muito acerca das coisas – essa afirmação é tão precisa quanto dizer que no fim (logo, para o intelecto), só há poeira (interessante lembrarmos do uso metafórico do deserto na noética eckhartiana). Neste cenário, não me coloco nem entre os que propõem um isolamento sociológico do foco (que me parece, abrem-se para fortes críticas céticas quanto ao uso que fazem de conceitos que significam sua atividade cognitiva, pois afinal de contas como definir sexo promíscuo, por exemplo, sem uma circularidade que acaba ajuizando o modo de praticar sexo num corte cronológico longo, logo begging the meaning?), nem dos que esperam desenvolver o diálogo que dissolveria a diafonia numa utopia de viés teológico (criptoteólogos). Reconheço sim, que ambos estão ao meu lado no mesmo processo, talvez circular, talvez inválido, fruto de um atavismo da espécie em buscar estabilidade no instável – o que, num universo darwiniano poderia ter um estatuto cosmológico não muito distante de uma luta entre girafas ou entre parasitas – e que se caracteriza por acontecerem em construções da engenharia civil dentro das quais escrevemos livros e conversamos sobre temas específicos em meio a disputas políticas de efeitos parakuhnianos. Podemos afirmar com Katz[31] que vocabulários que falam acerca do “transcendente” ou “inefável”, pensando que estariam “saindo” da linguagem, nada mais fazem do que fundar um outro jogo de linguagem, e ao construirmos um discurso fincado num transcendente tocado exclusivamente pela mística recorreríamos em ingenuidade epistemológica. Parece-me evidente que num entendimento protagórico do conhecimento, coisa em si ou aquilo sobre o que devemos calar ou circularidade são referências (de fundo) negativas que simplesmente reforçam um certo caráter sonâmbulico da linguagem, ainda que trate-se de um sonambulismo fortemente condicionado por regras a priori (qual sonambulismo não o é?). A construção negativa não me parece se restringir a identificação de que tudo que fazemos é jogar, pois jogar negativamente é um modo diferenciado de jogo. O fato que quando digo “inefável” o digo a partir de um contexto de partida que me diferencia de uma hindu, o que é verdadeiro em grande parte, não diz nada para a discussão acerca do que o Meister se refere quando fala da natureza do intelecto que tende a aphairesis dos nomes ou da fala Pseudo-Aeropagita acerca do abandono das atividades intelectuais ou da discussão de Hadewijch acerca da constância que escapa da identidade da constância. A dinâmica negativa na consciência apofática (denudatio), segundo nosso místico alemão, é precisamente essa dança em direção aos nomes que o intelecto produz e que ao produzir em tensão apofática, desnuda. Trata-se de uma noética formal. Como disse acima, parece haver um gozo nos relatos da tradição negativa cristã em se libertar da angústia semântica da referência. Um olhar teorético a partir dessa noética do Incondicionado parece deslocar a discussão acerca do “transcendente” de uma linguagem que privilegia a metáfora do locus para uma linguagem que privilegia a dinâmica de um modo específico de jogar: a consciência apofática, afogada na “cultura” dos vultos e das sombras, produz um vocabulário experimental religioso cujo eixo eidético é o movimento entre a caverna e o Incondicionado.

Notas

[*] Professor do programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião e do departamento de Teologia da PUC-SP.

[1] Barbara Herrnstein Smith, Crença e Resistência, Unesp, 2002, pgs., 105/106. (itálicos da autora).

[2] Prefiro o reducionismo biológico na medida em que o conceito social de “cultura”, por recobrir tudo o que há de humano, acaba por sofrer daquele tipo de característica que Terry Eagleton, Ideologia, Boitempo/Unesp, 1997, critica com relação a igualdade absoluta entre conhecimento e poder em Foucault: quando uma diferença conceitual não oferece possibilidade de discernimento entre ela e o diferente dela, essa diferença já não oferece uma diferença que faz diferença. Penso que o vocabulário biológico aqui é mais forte no sentido de indicar o que vem a ser uma “cultura da cultura”: uma retórica que assume o caráter endêmico de controvérsia como “a cultura da cognição” – não estamos longe do conflito necessário de Weber. Quem estabelece uma crença é alguém (pelo menos temporariamente) adaptado em meio a violência epistêmica endêmica. O vocabulário sócio-culturalista que dispersa os problemas na pluralidade dos “agentes” tende fortemente a ser condicionado por um movimento de inércia “tipologista” estatística ou militante. A única saída da anomia ou “quietismo epistêmico” decorrente é pela assunção de uma retórica pragmática.

[3] Lembremos que essa consciência da relatividade biológico-dependente não é de modo algum recente em epistemologia – o darwinismo veio apenas nos instrumentalizar com vocabulários poderosos: o ceticismo “médico” de Sextus Empíricus já falava no primeiro modo de Aenesidemus acerca da diafonia devido a diferenças estruturais entre os animais; é interessante acrescentar que um dos argumentos dados em defesa deste primeiro modo de ceticismo é a diafonia devido ao fato que alguns animais são sexuados (enquanto outros não são, ou o são de modo menos determinante) e que esta característica necessariamente alteraria a percepção do mundo a sua volta na medida em que machos e fêmeas tendem a desenvolver comportamentos voltados a reprodução que condicionam poderosamente a realização da cognição em suas espécies. Cf. Hankinson, RJ, The Sceptics, Routledge, London, 1995.

[4] Cf. Sprague, RK, (editor), The Older Sophists, a complete translation by several hands of the fragments in die Fragmente der Vorsokratiker edited by Diels-Kranz, University of South Caroline, 1972.

[5] Leo Strauss, Natural Right and History, The University of Chicago Press, 1965, p. 71.

[6] Cf. Pondé, LF, Por uma Cultura Epistemológica in Teixeira F, (org) Ciência(s) da Religião no Brasil, Paulinas, SP, 2001.

[7] Cf. Strauss, L, Jewish Philosophy and The Crisis of Modernity, State University of NY Press, Albany, 1997.

[8] Uma epistemóloga partidária da redução da religião a “cultura” poderia argumentar que a crença científica (estabilidade cognitiva nos moldes do discurso experimental e culturalista) surgiu num dado momento da história da espécie humana e tem desde então tentado se estabelecer como comportamento cognitivo mais adaptativo do que a crença religiosa. Todavia, para tal, faz-se necessário que esse comportamento cognitivo consiga de fato extinguir o comportamento cognitivo religioso entre os seres humanos – no sentido de verificarmos suas credenciais noéticas como “superiores” enquanto atitudes cognitivas que melhor realizam a experiência de inserção ambiental humana como ser conceitual. Visto dessa forma, é evidente a importância de uma pragmática violenta em favor da redução da religião a idéia de “cultura”.

[9] Cf. Gisel, P / Tétaz, JM, (orgs), Théories de la religion, Labor et Fides, Lausane, 2002.

[10] Paul Helm (editor), Faith and Reason, “Introduction”, p. 5, Oxford University Press, Oxford, 1999.

[11] Cf. Rorty, R, Consequences of Pragmatism, Harvest Wheatsheaf, Hertfordshire, 1982.

[12] Como um bom exemplo deste tipo de leitura, Barbara H. Smith, Crença e Resistência, Unesp, SP, 2002.

[13] Leo Strauss, ob. cit., p.32.

[14] Ainda que Strauss esteja aqui falando de filosofia, acredito que é legítimo contagiar minha hipótese, que não é estritamente do campo filosófico puro, porque ao falar de uma teoria mística estou necessariamente navegando por um tipo de filosofia da religião, que é aquela que nasce a partir das categorias e problemas propostos pelos textos religiosos e pelas autoras religiosas (cf. Heschel, AI, God in Search of Man, FSG, NY, 2000). O “conhecimento daquilo que não se conhece” é um enunciado muito próximo dos paradoxos lógicos trazidos pelas místicas e místicos.

[15] Refiro-me aqui a mulher mística e não a categoria religiosa.

[16] Hadewijch, Carta XXVIII, p. 209. (Citado em Voici Maître Eckhart, Emilie Zum Brunn, org, Jérôme Millon, Grenoble, 1994)

[17] Heschel também trabalha esse conceito de pathos de Deus na consciência do profeta (cf. The Prophets, Perennial Classics, FSG, NY, 2000). Strauss discutirá a idéia de “razão assistida” também a partir da experiência profética, como vemos na sua discussão da obra do judaísmo espanhol medieval (cf. Philosophy and Law, State University of NY Press, Albany, 1995).

[18] Alain De Libera, Penser au moyen âge, Seuil, Paris, 1991, p. 301.

[19] É comum no estudo da mística lidarmos com “autores” na medida em que eles são elementos empíricos das suas tradições, assim como rituais, processos sociais constitutivos, textos sagrados, etc. Além disso, para a cientista da religião preocupada em se apropriar da nóesis específica da sua tradição-objeto, é fundamental compreender o modo como autores discutem suas experiências a partir de sua tradições religiosas de origem, e tal processo cognitivo compõe estruturalmente o “objeto” religião. A falta de repertório com relação a autores religiosos faz parte de uma compreensão anoética e anômica do fenômeno religioso, principalmente quando a tradição em questão entende a si mesma como uma “religião do livro”. Como nos diz Elizabeth A Petroff, no seu Body and Soul, Essays on Medieval Women and Mysticism, Oxford University Press, Oxford, 1994, p. 3, “Se alguém não é já um místico, poderá entender a mística lendo textos místicos, pois mística é uma experiência, não uma idéia.”

[20 Gregório de Nissa, Vie de Moïse II, 163/164, tradução de Jean Daniélou, Sources Chrétiènnes I, Cerf, Paris, 1955, p. 81/82.

[21] Pseudo-Dionísio, Teologia Mística, PG 3, 997B-1000A, trad. M. de Gandillac, Oeuvres Complètes, p.177-178.

[22] Máximo Confessor, A Thalassios, 22, PG XC, 321 A.

[23] Gregório Palamas,Tríades pour les saints hésychastes II, 3 S 34, p. 458-460.

[24] Mechthild Von Magdeburg, Das fliessende Licht der Gottheit, Livro IV, cap. XII, linha 107, ed. Neumann, Artemis Verlag, München, 1990.

[25] Sobre esta imagem do caminhar cego em oposição ao caminhar da consciência mística, cf. Mechthild Von Magdeburg, Ob. Cit., livro VI, cap. XXXI, linha 1 e segs., entre outros trechos.

[26] Meister Eckhart, Sermão alemão Q15 (ed. Quint), DW, 1, Die deutschen und lateinischen Werke, W. Kohlhammer Verlag, Stuttgart, p. 252-253.

[27] S. Ueda, Die Gottesgeburt in der Seele und der Durchbruch zur Gottheit, 1965.

[28] Etiénne Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, 1986, p. 700.

[29] Vladimir Lossky, Théologie Négative et Connaissance de Dieu chez Maître Eckhart, J Vrin, Paris, 1988, p. 78.

[30] Cf. Edição de sermöes alemães do Mestre Eckhart organizadas por Franz Pfeiffer (Pf), Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1924, p. 8.

[31] Cf. Steven T. Katz (org), Mysticism and Philosophical Analysis, Oxford University Press, NY, 1978.