O Budismo Étnico na Religiosidade Nikkey no Brasil: Aspectos Históricos e Formas de Sobrevivência Social

Rafael Shoji []

1. Introdução

Nesse artigo tenho a intenção de desenvolver mais conceitualmente a idéia de um Budismo étnico através das categorias de grupo étnico e identidade, citando os elementos históricos que justifiquem o conceito no caso dos nikkeis (descendentes de japoneses) no Brasil. Meu objetivo é com isso continuar uma tipologia que foi defendida em um artigo anterior, na qual foi proposta uma divisão entre um Budismo intelectualizado e um Budismo de resultados, desenvolvida no caso dos convertidos[1]. No caso do Brasil constata-se que o Budismo dos imigrantes, especialmente o japonês, vem se deparando a anos com o dilema de abertura ou extinção, com a progressiva integração cultural dos descendentes e o desaparecimento das primeiras gerações de imigrantes. Essa situação vem se desenvolvendo em quase todos os templos que não têm tido como prioridade uma abertura aos brasileiros. No entanto, ainda existe uma persistência da identidade étnica através das gerações, que tem se tornado essencial na estratégia de sobrevivência social de muitos templos, na qual as adaptações têm se realizado priorizando os descendentes. Essa estratäegia supõe que uma religiosidade étnica pode ser simultânea a uma adaptação linguística e cultural, o que pode ser explicado utilizando um conceito de etnicidade independente da preservação cultural e centrado na dinamicidade da interação social, a partir do foi proposto pelo antropólogo Fredrik Barth.

Além de desenvolver os aspectos conceituais do Budismo étnico, pretendo colocar sua prática dentro de um contexto mais geral, já que no Brasil o Budismo étnico também apresenta um padrão de divisão ritualística com outras religiões, principalmente o Catolicismo. Essa prática budista vem de encontro com uma convivência religiosa múltipla, freqüentemente encontrada tanto no Brasil quanto no Japão. Apesar de estar em contraste com o ambiente de recepção na maioria dos países ocidentais, no Japão e no Brasil as religiões assumem freqüentemente aspectos funcionais e contextuais na vida dos adeptos. Simplificadamente, se no Japão o Xintoísmo é a religião que representa o pertencimento étnico e é usada nas cerimônias de nascimento, no caso do Brasil um pertencimento ocorre muitas vezes através do batismo católico. O Budismo tradicional, tanto no Japão quanto no Brasil, é reservado para os rituais funerários e culto aos antepassados da religiosidade familiar. Existem elementos históricos que permitem acompanhar a mudança na identidade étnica dos nikkeis e seu reflexo na sua prática religiosa atual, interpretada como uma estratégia de convivência e interação social, que é influenciada por elementos brasileiros e japoneses mas também mantém uma distância de ambos.

2. O Conceito de Budismo Étnico

2.1 Aspectos Étnicos do Budismo Japonês

Para que conceito de Budismo étnico dos nikkeis possa ser aqui desenvolvido, é interessante contextualizar sua história dentro de uma discussão mais geral, tanto sobre o Budismo em países ocidentais como no que se refere às relações entre etnicidade e religião. Apesar do Budismo ser de forma geral freqüentemente descrito como uma das religiões universais, ao lado do Cristianismo e Islamismo, é necessário uma contextualização que dê conta da diversidade interna dos budistas e das particularidades do caso japonês.

No caso do Budismo japonês é possível identificar aspectos étnicos a partir da religiosidade popular japonesa, que combina elementos do Xintoísmo e da religiosidade familiar chinesa. De uma forma geral, os japoneses nunca incorporaram as doutrinas budistas da reencarnação e sobre o sofrimento que estão presentes nas escrituras budistas mais antigas e que são o ponto de partida para muitos budistas ocidentais. Também os patriarcas japoneses são em geral as figuras mais valorizados pelas escolas, em contraste com Shakyamuni Buda. Em termos da prática religiosa, no Japão o Budismo é associado principalmente com o culto aos antepassados, que não se encontrava tão ligado ao Budismo antes que ele chegasse ao Japão, além de conter devoções populares e elementos mágicos[2]. Na separação ritual realizada com o Xintoísmo, o Budismo japonês se ocupa principalmente dos rituais funerários, dado que a morte tendia a ser um tabu tanto no Xintoísmo tradicional como moderno. A maior parte dos japoneses tem funerais budistas, que são considerados um guia depois da morte. Esse processo é finalizado depois de 49 dias após o falecimento, com a entrada do espírito do falecido no mundo dos antepassados. Anualmente costumam-se realizar cerimônias budistas até o trigésimo terceiro ou quinquagésimo aniversário da morte. Em casa os antepassados são geralmente cultuados através de um altar budista (butsudan), geralmente mantido pelo filho primogênito, na qual cada antepassado é representado com uma tabuleta de madeira (ihai). Freqüentemente são postas oferendas na forma de frutas, comida ou bebida no altar e muitos descendentes rezam e se comuniquem com seus antepassados na frente do butsudan.

Dessa forma, o Budismo japonês é fortemente influenciado por uma tendência familiar e de culto aos antepassados[3], o que também é reforçado pelas cerimônias budistas anuais mais populares, que como no Xintoísmo e na cultura japonesa em geral, estão fortemente associadas às diferentes épocas e estações do ano. Em contraposição às cerimônias realizadas na morte de um familiar, que são realizadas no círculo privado, existem as cerimônias e festivais budistas de Obon e Ohigan. No Japão o Obon ocorre normalmente em agosto, no verão, quando se crê popularmente que os ancestrais retornam do mundo dos antepassados para viver um curto período com seus descendentes. De forma semelhante é comemorado o Ohigan, realizados nos equinócios de primavera (março) e outono (setembro). Nessa época são realizados rituais budistas e são visitadas e limpos os túmulos dos ancestrais. Em outros países asiáticos fora o Japão, o culto aos antepassados é raramente relacionado e praticado no Budismo, embora as escolas japonesas tradicionais se referiram ao sutra chinês Urabon como justificação doutrinária.

Apesar dessas cerimônias e práticas, o mundo espiritual e dos antepassados não é somente amistoso, o que lembra novamente a influência que o Xintoísmo tem na visão de mundo japonesa. Também faz parte da religiosidade popular a idéia de que aqueles que tiveram uma morte violenta ou prematura, ou antepassados que se sentem desprezados pelo descuido ou falta de atenção dos descendentes, podem ter uma relação que prejudique os que vivem nesse mundo. Por isso, fora as cerimônias tradicionais, em alguns grupos budistas também existem rituais e práticas que buscam eliminar essas potenciais causas do mal, principalmente em novos movimentos religiosos japoneses e nas escolas do Budismo esotérico japonês. De uma forma geral, a religiosidade japonesa tem um forte componente ritual associado à purificação, em detrimento de uma convicção pessoal e individual. Em alguns casos essa tendência aparece descrita como um carma relacionado aos antepassados, principalmente nas novas religiões. Ainda que esse conceito seja uma motivação importante para a prática budista em alguns grupos, não parece existir fundamento doutrinário na história do Budismo que justifique essas idéias mais contemporâneas de carma[4].

2.2 Etnicidade e Budismo nos Países Ocidentais

De uma forma geral, nos países ocidentais os estudos acadêmicos têm dividido os budistas em imigrantes e convertidos[5], que seriam distintas correntes em adaptação, com diferentes processos associados. O Budismo dos imigrantes teria como principal característica a preservação de uma identidade étnica a partir de rituais e devoções específicas. As principais características do Budismo dos convertidos seriam uma interpretação mais racionalizada do Budismo e uma estreita associação com a meditação, tendo como perfil social característico pessoas educadas e da classe média e alta da sociedade. Essas duas correntes, apresentando um desenvolvimento relativamente independente e práticas autônomas, muitas vezes compartilham o mesmo espaço físico e muitas vezes os mesmos líderes religiosos. Essas comunidades parecem apresentar, na maioria dos casos, somente uma pequena interação.

Devido a essa situação e a partir de um estudo de campo do Budismo Theravada nos EUA, Paul Numrich cunhou o termo "congregações paralelas", reafirmando a tendência de associar a prática religiosa ao elemento étnico[6]. A tese das congregações paralelas consiste na afirmação da existência de dois grupos distintos de praticantes nos templos budistas, que utilizam freqüentemente o mesmo espaço físico e tem em comum até líderes religiosos, mas não apresentam uma intersecção devido a diferenças culturais, linguísticas e de prática religiosa. Um dos resultados dessa divisão é também o diferente referencial teórico existente para analisar cada uma dessas congregações, que segundo Numrich deve ser diferenciado para cada uma dessas congregações. Enquanto que o conceito e as teorias sociológicas sobre Novos Movimentos Religiosos seriam úteis para se estudar os convertidos, o mesmo não pode ser dito em relação ao Budismo resultante da imigração[7].

Nos EUA, pode-se dizer que essa divisão do Budismo tem gerado um intenso debate, associado principalmente à representatividade[8]. Freqüentemente afirma-se a preponderância dos estudos sobre um Budismo americano, em contraposição a contribuição dos imigrantes asiáticos para o Budismo. Excluídos os debates ideológicos e as disputas étnicas potenciais dessa divisão, é fato que o Budismo dos convertidos foi bem mais estudado e documentado nos EUA, utilizando principalmente o referencial dos Novos Movimentos Religiosos. Nos últimos anos, no entanto, tem ocorrido uma grande influência do conceito de etnia nas abordagens sobre a adaptação do Budismo nos EUA[9]. Asai e Duncan mostram, por exemplo, que nos templos do Sôtô Zen, construídos antes dos anos 60, existe um padrão étnico e ritualístico que inexiste na compreensão dos convertidos ao Zen, que tem uma prática mais associada à meditação[10].

Em trabalhos recentes Martin Baumann tem apresentado argumentos que buscam fugir dessa perspectiva de abordagem a partir de uma divisão centrada na etnicidade, apesar de não ser negada a utilidade desse foco[11]. Especialmente em relação ao Budismo, Baumann defende que a divisão entre imigrantes e convertidos tem um tempo curto de duração, já que essa categoria não faria mais sentido tanto para a segunda geração de imigrantes quanto para a segunda geração de convertidos[12]. Como uma nova proposta analítica Baumann tem sugerido uma divisão dos budistas em tradicionalistas e modernistas, divisão centrada nos conceitos e práticas religiosos seguidos, o que seria uma categoria mais coerente no estudo do desenvolvimento do Budismo enquanto religião no Ocidente, além de apontar as conseqüências reversas no desenvolvimento do Budismo nos países asiáticos. Apesar de tanto o Budismo tradicionalista quanto modernista serem bastante plurais e heterogêneos, a diferença básica em entre ambos está que o a corrente modernista seria o resultado de um esforço para reformar e revitalizar o Budismo. Uma dos principais fatores para essa modernização seria a influência ocidental, que busca descobrir a "essência" do Budismo, expurgando elementos asiáticos considerados desnecessários ou muitas vezes prejudiciais ao caminho budista de libertação. Mas esses movimentos modernizadores não seriam naturalmente somente fruto da influência ocidental, sendo muitas vezes resultado de fatores históricos e nos países asiáticos. Dessa maneira, como um exemplo da perspectiva de Baumann, a Sôka Gakkai é considerada um movimento modernista dentro do Budismo de Nichiren[13].

A maioria dos estudos no continente americano, no entanto, ainda partem de uma correlação entre religiosidade étnica e Budismo mesmo em gerações mais avançadas de descendentes. Baseado na perda da consciência étnica nos descendentes de imigrantes, Mark Mullins propôs um modelo em três fases para o ciclo de vida das instituições religiosas fundadas por imigrantes, com base no Budismo japonês no Canadá[14]. Na primeira fase, os integrantes da comunidade religiosa são somente os imigrantes, que criam um espaço cultural e religioso semelhante ao que existia em seu país de origem. Na falta de um centro cultural e de um grupo religioso na sua língua materna, é natural que os próprios imigrantes estabeleçam esses espaços de convivência étnica. Além da língua, um fator adicional para o estabelecimento dessas comunidades é que em muitos casos os imigrantes sofrem uma discriminação no país em que se estabelecem. Em uma segunda fase, com o surgimento de novas gerações de descendentes e uma maior aculturação do grupo imigrante, é importante que o grupo religioso começe a formar sacerdotes que sejam bilíngues, além de um trabalho de tradução dos principais textos e cerimônias, já que alguns integrantes começam a não ter fluência na língua dos antepassados. Com o tempo, ocorre a assimilação estrutural da comunidade de imigrante e descendentes, através de casamentos inter-étnicos, mobilidade geográfica e livre participação em entidades sem orientação ou ligação com a comunidade étnica, principalmente no que diz respeito a formação educacional. Nesse ponto, a comunidade religiosa fundada pelos imigrantes entra em uma terceira fase, na qual se apresenta um grande dilema. Por um lado, a comunidade foi fundada tendo como orientação uma identidade étnica, sendo ainda controlada pelos imigrantes e tendo como tendência um certo conservadorismo. No entanto, a maior parte dos imigrantes originais já morreu e as novas gerações estão totalmente integradas em outro país. O dilema é que essas instituições têm que redefinir o seu propósito de existência social e dar um salto cultural, que representa também a diferença entre as gerações, mas tendo ainda a preocupação de manter uma ortodoxia religiosa, muitas vezes confundida com a cultura imigrante pelos adeptos. Com base nesse dilema, prevê Mullins, excetuando casos de uma nova onda imigratória ou uma onda de preconceitos contra o grupo étnico, a comunidade religiosa fundada pelos imigrantes tem de se tornar multiétnica ou então corre o risco de desaparecer, por perder seu sentido social. De qualquer forma, o grupo religioso com uma única base étnica tenderia a acabar.

2.3 Etnicidade como Interação Social

Com sua ênfase nos antepassados o Budismo japonês sempre fornece elementos que podem ser usados para uma identificação étnica através da valorização da origem e dos laços de parentesco. Por isso um conceito de etnia não deixa de ser útil também para gerações posteriores, como estarei argumentando para o caso da colônia japonesa no Brasil. Nos EUA, principalmente após o abandono e crítica das teorias assimilacionistas, o paradigma de etnicidade tem sido constantemente utilizado para estudar as comunidades de imigrantes e descendentes, já que grande parte das pesquisas empíricas mostrou uma crescente consciência da identidade étnica, associadas a políticas de reafirmação de minorias[15].

Ainda que o termo imigrante não possa ser atribuído aos descendentes, como sugere Baumann, ainda existe uma religiosidade derivada de uma vivência como comunidade étnica, que pode ser prolongada por diversas gerações. Para que essa afirmação possa ser melhor desenvolvida em termos teóricos, é necessário uma reflexão sobre o conceito de etnia. Para os fins desse artigo, estarei discutindo e utilizando as propostas sobre etnia a partir do trabalho de Fredrik Barth[16]. A partir de Barth e dos antropólogos que colaboram na sua linha teórica, surgiram diversas propostas para que o conceito pudesse ter um maior valor explicativo e refletisse melhor os dados empíricos das pesquisas antropológicas.

Em resumo, nessa perspectiva a etnicidade é vista como uma forma de interação social. Ao invés de destacar os aspectos de raça ou cultura na identificação de grupos étnicos, a etnicidade é vista como uma forma de interação e organização social, na qual existe uma diferenciação entre os que são do grupo e os que não pertencem a ele. De uma maneira tradicional, um grupo étnico tinha sua formação justificada devido a um suposto isolamento devido a diferenças raciais, culturais ou linguísticas[17]. Visto como interação social, ainda que esses elementos continuem sendo importantes para a definição de um grupo étnico, o mais importante é a auto-atribuição de uma unidade social diferenciada a partir de critérios de pertencimento ou diferenciação. A formação da identidade do grupo, nesse sentido, só ocorre em contato com padrões mais gerais da sociedade, que por sua vez também se transformam. Desta forma, é enfatizado o caráter mais relacional e dinâmico da identidade étnica. A comunicação é enfatizada na construção social da identidade, porque através desse contato é que surgem padrões de comparação. Por isso, o grupo étnico é estabelecido dinamicamente, suscetível a redefinições e transformações, devido ao seu aspecto relacional. No caso dos grupos étnicos frutos da imigração, essa identidade étnica se transforma não só devido às mudanças da sociedade hospedeira, mas também às novas gerações de descendentes, que se distanciam da cultura de origem dos ascendentes. A cultura e os costumes dos ascendentes, por sua vez, também podem se transformar rapidamente no país de origem.

Dada essa dinamicidade da etnicidade, talvez uma das afirmações mais relevantes dessa perspectiva seja que o grupo étnico pode permanecer com fronteiras mesmo se muitos aspectos culturais e a língua original forem abandonadas. Apesar dos grupos étnicos buscarem preservar suas culturas e tradições, nessa abordagem interacionista a definição do grupo étnico se concentra nas transformações das fronteiras, construídas entre os elementos do grupo e os que estão de fora. De uma forma geral os elementos do grupo étnico praticam um "jogo com outras regras", com diferentes padrões éticos, comportamentais e de comunicação, que eles absorvem através da vivência de uma identidade étnica diferenciada. Esse "jogo interno" se transforma com as gerações e não apresenta uma barreira na incorporação de elementos que estão na sociedade majoritária. Nesse sentido, um fenômeno comum é o uso estratégico e pragmático de identidades múltiplas, principalmente no caso dos descendentes de imigrantes.

Do ponto de vista da ciência das religiões, o ponto importante é a relação entre etnicidade e religião. Conforme Poutignat e Streiff-Fenart ressaltam, uma das formas de construção social da identidade étnica é através de um parentesco fictício, muitas vezes diretamente associado a mitos de origem comum[18]. Dessa forma, a unidade do grupo é remetida a um tempo imemorial e revitalizada constantemente através de um calendário ritual e cerimônias de passagem, muitas vezes entendidas como uma obrigação social pelos adeptos, ocorrendo a preservação da identidade étnica através da socialização religiosa. De maneira semelhante, uma perspectiva analítica para a compreensão da religiosidade étnica é a teoria da identidade em Mol[19]. Considerando identidade como o esforço em preservar a existência, algo que ocorre tanto em indivíduos quanto em grupos e é uma característica importante tanto do ponto de vista biológico quanto social, a religião é estudada como sendo a sacralização da identidade.

Nessa perspectiva, a evolução do grupo religioso é determinada pelas fronteiras do grupo étnico, que dependem da interação social e da absorção da religiosidade étnica pelas novas gerações. Para os que querem participar do grupo religioso, é freqüentemente necessário um entendimento e até um comportamento semelhante ao do grupo étnico. Para a maioria dos adeptos que já pertencem ao grupo étnico, os elementos étnicos e religiosos são dificilmente diferenciáveis, o que limita a possibilidade de conversão e divulgação das idéias religiosas do grupo. Nesse sentido, uma religião étnica pode ser entendida como a sacralização de símbolos que impliquem uma identificação social diferenciada, sendo são repassados mitos e ritos de uma identidade étnica para as próximas geração e sendo preservados símbolos que lembram uma origem comum.

3. A Construção Histórica da Identidade Religiosa dos Nikkeis no Brasil

Umas das consequências importantes de se utilizar um conceito de grupo étnico centrado na interação social é destacar as estratégias de adaptação e sobrevivência de um grupo que teve sua origem na imigração, ressaltando o caráter dinâmico dessas transformações. Dessa forma a comunidade de japoneses e descendentes no Brasil pode ser estudada antropologicamente como um grupo étnico que foi desenvolvendo fronteiras tanto com relação aos brasileiros quanto com relação aos japoneses, mas que diminui essas fronteiras de acordo com o contexto e a conveniência social. O uso de identidades múltiplas pode ser mais entendido como uma estratégia de adaptação e acomodação, fruto de uma identidade mestiça, do que uma verdadeira ausência de fronteiras. Com o passar do tempo, se por um lado a referência dos imigrantes era um Japão que não existia mais, também a história particular dos descendentes no Brasil estabeleceu uma identidade étnica a partir de uma visão construída do Japão e de uma assimilação seletiva da sociedade brasileira. Para uma diferenciação dos nikkeis em relação aos japoneses e brasileiros, descreverei os principais pontos históricos da interação social dos imigrantes, colocando esses pontos dentro do contexto da prática religiosa.

Apesar da imigração japonesa para o Brasil ter sido iniciada em 1908, originada devido a simultânea necessidade de mão-de-obra no Brasil e a superpopulação e crise agrícola no Japão, ela atingiu seu ápice entre os anos de 20 e 30. Em 1924 os EUA proibiram definitivamente a imigração japonesa, deslocando por isso o fluxo de imigrantes para o Brasil. Com isso, aproximadamente 75% do total de aproximadamente 190.000 imigrantes japoneses antes da Segunda Guerra chegaram ao Brasil entre 1925 e 1935. A maioria dos imigrantes se fixou primordialmente no interior do estado de São Paulo e no norte do Paraná, tendo como ocupação principal a agricultura[20]. Esses imigrantes pioneiros tiveram muitas dificuldades na sua adaptação ao Brasil, enfrentando um total desconhecimento da cultura brasileira e da língua portuguesa, além de preconceitos, condições precárias e de semi-escravidão nas fazendas. A formação cultural dos imigrantes japoneses era característica do nacionalismo militarista iniciado na Era Meiji e a maioria dos imigrantes japoneses não pretendia se fixar definitivamente no Brasil. A expectativa era um rápido enriquecimento e retorno ao Japão, intenção encontrada em quase todos os imigrantes até a Segunda Guerra Mundial. Essa atitude comunitária geral explica muito das atitudes dos imigrantes com respeito à adaptação cultural. Como não existiam expectativas de se estabelecer no Brasil, os imigrantes não tinham como prioridade o aprendizado do português ou a integração no Brasil, como aconteceu com outras nacionalidades. O esforço estava centrado em um rápido enriquecimento e na manutenção dos costumes culturais tais como eles eram cultivados no Japão. Por isso os filhos eram criados como japoneses e a comunidade criava escolas próprias, fruto do esforço comunitário, onde era lecionado o japonês e estimulado o culto ao imperador. A escola era um dos principais centros da comunidade e uma interpretação ritualizada da etnicidade japonesa era cultuada através da figura do imperador. Nessa época, o culto familiar aos antepassados foi substituído pelo pelo nacionalismo e valorização da niponicidade. Em concordância com essa tendência etnocêntrica, no Brasil o culto ao imperador e o xintoísmo nacionalista foram fatores que desenvolveram um forte espírito comunitário e de identidade étnica nos imigrantes japoneses[21]. Se por um lado os japoneses sempre tiveram um conceito bem definido de um grupo étnico separado, por outro lado eles também eram fisicamente contrastantes e culturalmente exóticos entre os brasileiros. As relações dos japoneses com os brasileiros em geral se restringiam mais aos contatos comerciais e ao necessário para a convivência. Os brasileiros criticavam duramente o que consideravam uma impossibilidade de assimilação dos japoneses, em sintonia com a politica nacionalista vigente no Brasil da época[22]. Apesar de reconhecerem a importância e potencial contribuição econômica dos japoneses e seus descendentes, existiam receios eugenistas e ameças de proibição da imigração. O governo japonês, interessado em manter a imigração para o Brasil, buscava dissolver essa preocupação, recomendando a adaptação cultural dos imigrantes e desencorajando o estabelecimento das religiões japonesas, já que na época o Catolicismo estava estreitamente associado à identidade brasileira[23].

Durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos posteriores, a colônia japonesa no Brasil viveu uma experiência traumática de redefinição de identidade étnica. Em 1942, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e o Japão, muitos na comunidade nipo-brasileira tiveram a terrível experiência de ser uma minoria étnica morando em um país inimigo. Devido aos processos causados pela guerra, essa época pode ser descrita como um período fundamental para a adaptação dos japoneses em toda a América[24]. A história dessa redefinição da identidade e etnicidade japonesa no Brasil teve como componentes não só restrições governamentais devido à presença do Japão na aliança do Eixo, mas teve como característica também um total sentido de desorientação, em uma situação que criou profundos conflitos na colônia. Com o final da guerra, aconteceu uma divisão na comunidade, devido ao nacionalismo japonês e ao relativo isolamento linguístico. A comunidade japonesa no Brasil se dividiu então entre os derrotistas (makegumi) e vitoristas (kachegumi), ou seja, aqueles que pensavam que o Japão tinha perdido e aqueles que achavam que o Japão tinha vencido a guerra. Nesse contexto surgiu a Shindo Renmei, um grupo que se consagrava ao cultivo do espírito nipônico. Posteriormente a Shindo Renmei passou a atuar como uma organização terrorista e se dedicar a planejar e ameaçar os chamados derrotistas, então considerados traidores, além de promover falsificações que afirmavam a vitória do Japão na guerra. Apesar de ser improvável que propósitos violentos ou fraudulentos fossem a intenção de todos os adeptos, supõe-se a organização tenha tido, em seu auge, 100.000 contribuintes diretos e 60.000 simpatizantes[25]. Para essa maioria, os derrotistas eram traidores do espírito nipônico e do Japão.

A situação só foi retornando à normalidade devido à perseguição policial e ao lento esclarecimento que foi penetrando na comunidade japonesa. Como consequência, ficou claro para os japoneses e descendentes que o retorno ao Japão, que era a intenção da maioria, seria impossível e que a única alternativa seria o definitivo estabelecimento no Brasil. Em contraste com outros grupos de imigrantes, a maioria dos japoneses não teve muitas opções a não ser viver no Brasil, o que não deixa de ter consequências para a interação social que define um grupo étnico. Nesse sentido a adaptação dos japoneses no período do pós-guerra foi marcada por várias características que têm sido mais descritas como acomodação, identificação e estratégias de integração, em contraposição à aculturação e assimilação[26].

Do ponto de vista do estudo das religiões, é necessário ressaltar que um Xintoísmo nacionalista teve de ser traumaticamente abandonado nessa redefinição da identidade do grupo étnico. As alternativas foram a tendência de uma integração ao Brasil através do Catolicismo ou uma reafirmação de uma outra identidade japonesa, mais associada ao Budismo ou às novas religiões. Para muitos nikkeis, essas opções se combinaram em algum tipo de convivência múltipla. No caso do Budismo, esse período posterior à Segunda Guerra significou uma nova fase, com o estabelecimento do vínculo institucional com o Japão através da fundação oficial de várias missões budistas, que reuniram templos e iniciativas já existentes e que estavam dispersas. Em muitos casos as missões tiveram como objetivo também a pacificação das comunidades, já que muitas delas ainda estavam divididas devido a questão dos makegumi e kachegumi[27]. Com isso, em 1952 foram fundadas as primeiras missões oficiais do Budismo no Brasil, através do estabelecimento oficial das escolas da Jôdo Shinshû, representadas pelos ramos Ôtani e Hompa[28]. O ramo Ôtani é mais conhecido pelo nome de Nambei Hoganji ou Higashi Hoganji. O ramo Hompa, que absorveu a maior parte dos pequenos templos existentes antes da institucionalização[29], é também conhecido como Hompa Hoganji ou Nishi Hoganji. Em 1952 também foi fundado o templo Kannon da Tendaishû, em Diadema. Em 1953 foi iniciada a missão Jôdoshû e em 1955 iniciou-se a missão Sôtô Zen e Nichirenshû. Em 1955 o Sumo Pontíficie da Honmon Butsuryûshû (HBS) fez uma visita assistencial ao Brasil, iniciando um contato mais oficial com a comunidade existente no Brasil, em grande parte existente e se desenvolvendo a partir dos esforços do Rev. Nissui Ibaragui, então já considerado o fundador da HBS no Brasil, com centros em São Paulo e no Paraná[30].

Em paralelo ao estabelecimento das missões, ocorreu um novo fluxo migratório do Japão para o Brasil de 1953 até 1962, com cerca de 50.000 imigrantes[31], o que trazia uma realimentação das tradições japonesas no Brasil e a chegada de novos movimentos religiosos, que tiveram um rápido crescimento no Japão do pós-guerra, após a proibição do Xintoísmo de Estado. Em 1960 é fundado o Distrito Brasil da Sôka Gakkai e nos anos seguintes são fundadas várias sedes regionais[32]. Já as atividades da Risshô Kôseikai no Brasil foram iniciadas em 1971. Entre 1971 e 1976 foi construído o templo Joganji Fudô Myô-ô da Tendaishû. A Reyukai foi registrada no Brasil em 1975, a partir de um núcleo que tinha sido formado após a vinda do imigrante Toku Suzuki ao Brasil, em 1969[33].

O estabelecimento e institucionalização desses movimentos foi o resultado de uma necessidade religiosa dos nikkeis. As atividades econômicas da família, principalmente no ambiente rural, eram baseadas no conceito de ie, que estipula que o patrimônio conjunto da família é administrado pelo filho primogênito. Em termos de classe social essas atividades se enquadram no que Maeyama chamou de "velha classe média", identificada a partir da continuidade das atividades dos pioneiros imigrantes, principalmente na agricultura e nos pequenos negócios familiares, que geralmente não dependiam de uma formação educacional e uma consequente maior integração e participação na vida nacional[34]. Apesar do abandono do Xintoísmo nacionalista, a religião ainda continuou tendo um caráter étnico para a maioria dos japoneses e seus descendentes, o que se manifestou no estabelecimento do Budismo. As principais características sociológicas da vida religiosa dos japoneses no Brasil do pós-guerra foram descritas por Takeshi Maeyama, que defendeu uma correlação entre religião, parentesco e classe social. Ele observou na época que existia uma clara dicotomia entre o que a comunidade nipo-brasileira chamava de "religião japonesa" e "religião brasileira". Como "religião japonesa", entendia-se não só o Xintoísmo e o Budismo como também as novas religiões japonesas, que na época utilizavam somente o japonês e eram frequentadas somente por japoneses e seus descendentes. Em contraposição aos filhos mais velhos e tradicionais, os filhos mais novos foram muitas vezes incentivados a se identificarem mais definitivamente com a sociedade brasileira, muitas vezes emigrando para as áreas urbanas em busca de uma melhor educação. Um dos principais pólos de atração foi dado pelo crescimento da cidade de São Paulo, que também oferecia boas oportunidades de educação. Como com muitos descendentes de imigrantes, uma mudança geográfica muitas vezes enfraquece os laços com a comunidade étnica, que se combinava com a família, estimulando uma integração mais estrutural, quer seja com casamentos inter-étnicos ou através da participação em sociedades sem vínculo étnico[35]. Ao invés de receber as propriedades da família como herança, como no caso dos filhos mais velhos, os filhos mais novos recebiam a oportunidade e apoio para estudar na universidade. Em geral esses irmãos mais novos tiveram mais liberdade de se converter ao Catolicismo, que se caracterizou como um importante elemento da identidade nacional no Brasil. Essa "conversão" foi muitas vezes provocada por fatores estritamente estratégicos, já que ser católico representava uma rede de contatos sociais e a ausência de preconceitos religiosos. Como exemplo, Maeyama destaca o papel do padrinho e da formatura[36], no qual uma efetiva participação implicava em uma missa de ação de graças, o que muitas vezes implicava no batizado dos nikkeis. Isso era visto pelos pais mais como uma acomodação à sociedade brasileira e por isso apresentavam pouca resistência. Muitos desses filhos batizados, no entanto, também entendiam essa participação como uma integração mais definitiva ao Brasil. Além disso, um outro motivo para a conversão dos descendentes de japoneses ao Catolicismo foi também o relativo preconceito contra os não-católicos na sociedade brasileira da época, que eram classificados como pagãos.

De uma forma geral, pode-se dizer que esse trânsito estratégico entre a cultura brasileira e japonesa foi bem sucedido, buscando maximizar o ganho social através de uma adaptação cultural no que pareceu necessário e conveniente. Um ponto de diferenciação em relação à sociedade brasileira em geral é a relativa ascenção social da comunidade nikkey. A partir dos anos 70, com o chamado milagre econômico brasileiro e com a progressiva integração dos nikkeis no sistema educacional, vem se consolidando a importância econômica da comunidade[37]. Em paralelo, a ascensão do Japão no cenário mundial e o crescente interesse pela cultura japonesa no mundo ocidental fez com que os imigrantes e descendentes de japoneses no Brasil tivessem uma imagem diferenciada para os brasileiros, ainda que muitas vezes através de estereótipos ou preconceitos[38]. De qualquer forma, é fato a integração estrutural dos nikkeis. Se nos anos 60 e 70 existia a busca por uma integração nos diversos setores da sociedade brasileira, hoje existem dados que mostram uma assimilação estrutural em uma taxa bastante alta. De fato, alguns dados estatísticos comprovam essa tendência: os casamentos inter-étnicos já representam cerca de 46% do total[39]. Cerca de 28% dos nikkeis são mestiços, um número que aumenta progressivamente com as gerações: 6% são mestiços na segunda geração, 42% na terceira e 62% na quarta[40]. No que se refere diretamente ao comportamento religioso, quase 60% já se declaram católicos e somente cerca de 25% ainda se dizem pertencentes a uma religião japonesa[41].

Além dessa rápida integração e da morte dos imigrantes japoneses, que estão mais associados aos templos devido ao vínculo étnico, muitas religiões japonesas, principalmente templos budistas, têm perdido membros devido ao fenômeno dekassegui. A partir dos anos 80, especialmente devido à crise econômica brasileira e com a necessidade de mão-de-obra no Japão, cerca de 190.000 pessoas se deslocaram para o Japão como trabalhadores temporários, dos quais somente cerca de 35.000 são mestiços ou brasileiros sem descendência[42]. Chamados de dekasseguis, muitos deles executam serviços braçais que os japoneses não estavam mais dispostos a realizar. Com o passar do tempo, uma parcela dos dekasseguis tem optado por se estabelecer definitivamente no Japão, sendo que outros retornam para o Brasil com o dinheiro que conseguiram economizar. Apesar de teoricamente ser uma possibilidade de contato com a cultura japonesa para os nikkeis que trabalham como dekasseguis[43], por outro lado esse fenômeno também é responsável por uma sensível diminuição do número de membros das chamadas religiões japonesas. Esses fatores têm aumentado a preocupação de adaptação dos templos tradicionais, que devido a perda de adeptos têm começado a tratar o problema como uma questão de sobrevivência.

No que diz respeito à identidade étnica atual, apesar de ser um consenso a progressiva integração estrutural da comunidade dos japoneses e seus descendentes, é preciso notar uma diferenciação étnica que ainda persiste, mas que encontra um difícil espaço de expressão em uma sociedade como a brasileira, que é multicultural mas que dificilmente reconhece um pertencimento simultâneo a múltiplas culturas[44]. Uma das formas de observar essa diferenciação étnica é a auto-denominação dos nikkeis como um grupo étnico que tem limites para com os japoneses e brasileiros. No caso dos dekasseguis, por exemplo, é muitas vezes citado um conflito de identidade, já que o imigrante nikkey se sente um brasileiro no Japão mas é chamado de japonês no Brasil, criando padrões mesclados de comportamento[45]. Em um contexto mais geral, um dos aspectos que contribuem decisivamente para uma identidade étnica na comunidade nikkey são os traços físicos e fisionômicos diferenciados. Se com os descendentes de outros imigrantes essa diferenciação se perde na variedade dos tipos físicos que compõem os brasileiros, no caso dos nikkeis ela está se encontra presente mesmo em descendentes que não tiveram quase nenhum contato com os costumes japoneses[46]. Mesmo com relação às novas gerações de descendentes, também tem sido indicada uma permanência da consciência étnica através de aspectos como alimentação e tendência na formação de amizades, ainda que aspectos como língua e interesse pela música japonesa venham se perdendo rapidamente[47]. Em termos sociais mais gerais, outro aspecto de diferença étnica é que ainda existem muitas atividades organizadas pelos nikkeis, intermediárias entre a cultura japonesa e brasileira, que têm buscado se firmar em contraste a uma assimilação total, tentando destacar o perigo de perder potenciais contribuições que a cultura japonesa tradicional pode ter para o Brasil. Por outro lado, existem publicações que simplesmente veiculam essa identidade étnica através dessa auto-identificação do grupo nikkey, algumas delas tendo um considerável sucesso com jovens e com interessados pela cultura japonesa em geral[48].

A identidade dos nikkeis, entendidos como um grupo étnico a partir de sua interação com japoneses e brasileiros, se reflete diretamente no que diz respeito às práticas dos que ainda são budistas. Nos itens a seguir, tentarei descrever os padrões gerais dos elementos que estimulam uma identidade étnica diferenciada e aqueles que mostram uma apropriação da religiosidade brasileira, pontos de separação e de contato que podem ser reconhecidos nos templos e devotos budistas.

4. Fronteiras Étnicas e de Geração no Budismo Nikkey

A partir de meados da década de 70, se as chamadas novas religiões japonesas buscaram se adaptar e atrair brasileiros, ainda que mesmo atualmente o controle ainda permaneça predominantemente com descendentes de japoneses, no caso de muitos templos um esforço de abertura étnica raramente existiu, com exceção de algumas correntes nos templos étnicos Zen, que atraem diversos brasileiros, e um razoável número de simpatizantes no templo da Koyasan Shingon em Suzano. Essas escolas mais tradicionais se encontram reunidas na Federação de Seitas Budistas do Brasil, que desde 1958 reúne as escolas Zen, Jôdoshû, Jôdo Shinshû (ramos Higashi e Nishi) e Nichirenshû. Algumas dessas características de um Budismo étnico de nikkeis também podem ser encontradas em grupos como a Igreja Budista Nambei Yugazam Jyomiyoji, de orientação Shingon, ou mesmo em algumas novas religiões que não tem tido ou conseguido uma significativa participação de brasileiros, como os grupos Shinrankai, Honmon Butsuryûshû e a Risshô Kôseikai. A seguir estarei tentando descrever as características gerais deste Budismo étnico a partir de pesquisas de campo com as instituições citadas, o que incluiu entrevistas, observações de rituais e análise de programação e das publicações dos grupos na mídia.

Com o surgimento das novas gerações, o que é chamado de Budismo japonês vem se transformando rapidamente em um Budismo nikkey, com a combinação de padrões brasileiros e japoneses, mas sem uma abertura étnica significativa. O Budismo nikkey se baseia, e em muitos grupos essa característica ainda é uma realidade, na identidade étnica e na religiosidade familiar dos descendentes, que se interessam pelo Budismo principalmente devido aos festivais e cerimônias fúnebres, considerando o templo budista mais como um centro de cultura japonesa. Confirmando o ciclo proposto por Mullins, com a morte dos imigrantes e a progressiva integração estrutural e cultural dos descendentes, muitos templos têm enfrentado uma significativa redução no número de adeptos e monges, tendo que encontrar novas maneiras de sustentar a motivação de sua existência social. No entanto, um esforço de adaptação cultural e linguística não tem sido acompanhada de uma abertura étnica, sendo mais motivado pela tentativa de acompanhar as fronteiras que definem o grupo.

De uma forma geral o esforço de adaptação e tradução do Budismo nikkey tem sido feito visando muito mais os descendentes de japoneses do que os brasileiros, em um movimento de resistência a uma tendência de integração total ao Brasil. O papel desses templos reflete uma tendência de valorização da etnicidade, na sutil e paradoxal dificuldade de inclusão dos descendentes de japoneses na identidade nacional brasileira. Apesar da adaptação linguística e cultural dos templos, esses fatores de resistência geraram uma tendência pequena de adaptação da doutrina para o ambiente brasileiro, que buscasse desvincular o Budismo do grupo nikkey. Em alguns casos a adaptação foi feita com atividades que, se não são budistas, se associam estreitamente à cultura japonesa. Praticamente todos os templos oferecem atividades que não se vinculam diretamente à religião, como cursos de japonês, karaokê, ikebana, danças típicas, ou mesmo artes marciais como karatê e kendô. Esse aspecto faz até com que alguns templos acabem tendo o aspecto religioso e doutrinal como relativamente secundário, já que a justificação para sua existência social e sua fonte de renda se dá mais a partir da sua oferta como um centro cultural japonês. Ainda que essa oferta possa atrair simpatizantes da cultura japonesa para o Budismo, esse Budismo diluído também é um veículo de propagação e valorização da influência japonesa na identidade nikkey e para eventuais convertidos.

Em alguns casos, existem pequenos grupos de brasileiros, a maioria somente simpatizantes, que buscam o Budismo dentro dos templos étnicos. Dificilmente essas congregações são paralelas no sentido de uma ausência de interação, conforme observado nos templos Theravada dos EUA por Numrich, apesar de existirem atividades mais direcionadas a um ou outro grupo. No aspecto mais diretamente associado à religião, a maior participação de brasileiros se dá a partir de horários de meditação ou de dias de retiro (no caso do Zen) ou a partir do oferecimento de consultas e cerimônias para a resolução de problemas (no caso do Budismo esotérico), o que varia segundo a disponibilidade de monges e a abertura da comunidade. Algumas dessas atividades são pagas e com isso garantem o seu prosseguimento, atraindo interessados na cultura japonesa ou em uma religiosidade alternativa, que são motivados por um interesse intelectual ou na busca de um status esotérico. No caso do Budismo da Terra Pura é mais difícil encontrar ressonância nas expectativas que os brasileiros esperam encontrar[49], ainda que práticas amidistas tenham atraído intelectuais que foram bastante importantes para a divulgação do Budismo em geral. Em alguns casos, uma das estratégias tem sido oferecer uma meditação baseada em alguns sutras de contemplação da Terra Pura, mas essa atividade, heterodoxa no contexto japonês, ainda encontra interrupções e resistências nas comunidades. Outra alternativa encontrada para criar pequenos espaços nos quais os brasileiros possam se interessar pela doutrina da Terra Pura foi o oferecimento de cursos doutrinais pagos, nesse caso no ramo Higashi da Jôdo Shinshû, uma alternativa que tem se estabelecido de uma forma mais contínua e com um apoio mais institucional. Como tendência geral, no entanto, as escolas da Terra Pura ainda têm pouquíssimos brasileiros e estão bastante concentradas nos nikkeis, apresentando correntes de clara resistência a uma maior abertura. Como as escolas da Terra Pura apresentam a maior estrutura de templos e o maior número de adeptos no contexto do Budismo tradicional, tendo perdido um grande número de adeptos nos últimos anos, tem sido especialmente ressaltado a necessidade de uma reorientação linguística e cultural nesses templos. Como norma geral de todos os templos étnicos, no entanto, isso tem sido feito priorizando os descendentes e buscando preservar a herança japonesa.

Para poder destacar os motivos dessa estratégia de sobrevivência é relevante uma abordagem interacionista, já que as fronteiras do grupo étnico são definidas pela evolução e diferenciação do grupo em relação à sociedade majoritária. Nesse caso, um dos fatores básicos para a adaptação de uma religião de imigrantes em outro contexto cultural, independente da intenção missionária, é a atitude valorativa existente. Uma assimetria nas relações entre os dois grupos, quer seja devido a uma diferença histórica ou sócio-econômica, ou devido a uma suposta superioridade cultural, alteram significantemente o esforço de adaptação do grupo imigrante. Por isso o encontro entre religiões e o esforço de adaptação de uma religião são dificilmente generalizáveis, variando conforme a situação histórica e o modo como diferentes grupos de imigrantes e nativos se analisam, verificando dessa forma o que pode ser adaptado e de que maneira. As diferenças existentes e supostas entre os nikkeis e brasileiros, causada por fatores culturais, históricos e sócio-econômicos, tem por isso um papel não só na formação da identidade nikkey mas também na adaptação do Budismo no Brasil[50].

Um aspecto geral é o fato do Brasil ainda ter uma carência em infraestrutura básica e um alto nível de desigualdade social. Um Budismo no contexto do Terceiro Mundo, ainda que tenha sido sugerido em alguns trabalhos acadêmicos[51], ainda não foi suficientemente descrito e estudado, sendo o Brasil um importante exemplo de como essas características podem atuar. No caso do Budismo étnico isso tem como conseqüência não só diferenças nos recursos materiais disponíveis nos templos, mas também pode influir na sustentabilidade econômica das atividades, na distribuição de poder e no foco das atividades sociais. Nesse contexto a assistência social é um campo de atuação que pode ser importante, já que existem áreas de demanda social no Brasil. De uma forma geral, no caso do Budismo nikkey os principais beneficiados dessas atividades sociais pertencem à própria comunidade étnica. Um exemplo de importante atuação social é o trabalho da escola Jôdoshû, que associou seu trabalho missionário budista com a assistência social[52], a partir de duas instituições que forma iniciadas a partir do templo, a Kodomo no sono, em São Paulo, inicialmente destinada a crianças excepcionais e a Wajunkai, em Maringá, destinada a idosos. Essas entidades têm uma diretoria e atividades independentes e apesar de seguirem orientação budista aceitam a participação de quaisquer grupos ou pessoas. A Kodomo no sono foi a princípio criada para atender crianças nikkey, mas atualmente está também aberta aos brasileiros. A associação de idosos foi a princípio criada para atender aos imigrantes que não tinham família e sofreu uma ampliação nos últimos anos, depois da doação de um terreno pela Prefeitura de Maringá.

Em relação a um confronto mais direto, a maior parte dos líderes entrevistados afirmou que ainda existem nikkeis que têm resistências contra atividades mais direcionadas para os brasileiros, ou pelo menos correntes que são claramente contra uma abertura étnica[53]. Um outro aspecto dessa interação, estreitamente relacionado a representação étnica, se refere ao sustento econômico dos templos. Um ponto ressaltado por quase todos os representantes do Budismo étnico é que os brasileiros não tem o costume de associar sua opção espiritual a uma contribuição voluntária. Por isso, freqüentemente os nikkeis também são os únicos provedores econômicos dos templos. Isso reforça ainda mais a tendência de que esses templos representam aqueles que menos se sentem inclinados a uma integração total à sociedade brasileira, preservando um centro cultural e uma identidade étnica através de uma religiosidade baseada na família e no culto aos antepassados, o por sua vez tem muito pouco interesse para os brasileiros. Talvez devido a esses fatores o elemento étnico ainda é determinante nas relações de poder e na administração dos templos. Isso não impede que existam muitos conflitos na disputa de poder nos templos, mas em geral essas disputas seguem uma lógica interna ao grupo nikkey. Na prática, devido ao fato dos nikkeis deterem o controle político, a preservação da memória e cultura nikkey são aspectos mais enfatizados, em detrimento de uma maior inserção dentro da cultura brasileira.

Por isso, apesar do relativo interesse de muitos brasileiros pelo Budismo, a estratégia de sobrevivência do Budismo étnico consiste mais concretamente na atração dos descendentes das famílias nikkeis que já participam dos templos. Com isso, o papel dos templos contribui na preservação da influência japonesa na identidade étnica dos nikkeis, que pode sobreviver em pelo menos uma parcela dos descendentes. Algo que pode ser encontrado em muitos templos étnicos são as congregações de descendentes, determinadas pelas diferentes gerações e pela progressiva adaptação ao Brasil. Essas diferentes congregações de descendentes mantém contato entre si, não sendo paralelas no sentido de Numrich, mas mantendo atividades independentes. Elas podem ser observadas não só através de entrevistas, mas também na análise da programação e nos grupos de atividades existentes nos templos. Se a língua preferencialmente utilizada para a comunicação com a geração dos pioneiros e de muitos nisseis é o japonês, a maioria dos descendentes das mais novas gerações só entendem o português. Em alguns jornais de templos existem as duas línguas, com notícias diferentes para os diferentes tipos de audiência. Se para os mais velhos as artes tradicionais japonesas são enfatizadas e a história dos imigrantes e dos templos é um elemento importante[54], no caso dos jovens as atividades conjuntas se destinam mais a reuniões de grupo e manutenção de um espaço convivência nikkey através do escotismo, práticas esportivas ou reuniões de confraternização e karaokê para jovens.

Em ambas as congregações de descendentes os aspectos espirituais do Budismo são um elemento relativamente secundário e para os mais jovens o Budismo é freqüentemente retratado como uma religião somente para os mais velhos. Ainda que alguns dos descendentes possam até desenvolver ou ser atraídos para uma parcela mais contemplativa, principalmente aqueles que desenvolveram um interesse mais intelectualizado, a maior parte dos devotos se refere à prática religiosa como uma obrigação ou tradição familiar, muitas vezes como forma de se livrar de infortúnios que a falta do culto aos antepassados poderia trazer. Mesmo atualmente o Budismo nikkey é praticado como a sacralização de uma identidade étnica, através dos rituais de veneração aos ancestrais e da celebração do esforço dos imigrantes pioneiros, fornecendo para os de fora um espaço de preservação e divulgação da cultura japonesa. No entanto, enquanto uma identidade étnica dos nikkeis sobreviver, mesmo que se transforme, sempre haverá uma possibilidade de sobrevivência e de adaptação do Budismo étnico, ainda que as tendências são de que ele diminua sua estrutura e o número de adeptos com o passar das gerações[55].

5. Pontos de Contato: Combinações na Religiosidade Nikkey

Em um análise de um processo histórico mais longo, é interessante observar que o Xintoísmo de Estado, que refletia a identidade étnica antes da Segunda Guerra, foi progressivamente sendo substituído pelo Catolicismo, que nessa época era considerado a religião que representava o Brasil. Em termos atuais, no caso dos nikkeis a múltipla filiação religiosa tem muitas vezes um papel integrador, no sentido de incorporar elementos da sociedade majoritária. No caso dos devotos, é comum a sobreposição de rituais budistas e de outras religiões, já que a participação em rituais budistas é muitas vezes entendida como um ritual da família, uma obrigação para impedir infortúnios ou uma manifestação de respeito. Dessa forma, uma continuidade das religiões étnicas também se dá na convivência simultânea com as religiões majoritárias na sociedade brasileira, algo que é difícil de avaliar e quantificar empiricamente. O fato da religiosidade japonesa, excetuando os novos movimentos religiosos, ser familiar e orientada a rituais e não a partir de crenças pessoais, possibilita um espaço de convivência múltipla no caso dos nikkeis, no qual diferentes religiões assumem diferentes papéis que podem ser entendidos entre o pólo de integração e etnicidade. Uma múltipla convivência religiosa é relatada em quase todos os templos étnicos no Brasil, ainda que uma importante exceção tenha que ser feita a alguns grupos derivados do Budismo de Nichiren.

Por isso uma perspectiva teórica que analise somente a partir das instituições pode ser bastante inadequada quando se observa diretamente os adeptos, principalmente quando eles vivem em um ambiente de recepção que, ao contrário dos EUA e dos países europeus, apresenta uma tendência de convivência religiosa múltipla como o Brasil. Uma perspectiva não centrada nas instituições revela que existem combinações religiosas que expressam uma realidade ainda mais diferenciada, que podem ser entendidas a partir de diferentes níveis de identidade. Nesse sentido, Hans Mol propôs que existem diferentes identidades nos níveis pessoal, grupal e social[56]. Essas identidades podem convergir ou divergir, o que pode ser refletido nas práticas religiosas. No Japão, por exemplo, ele cita uma correlação entre identidade comunitária e Xintoísmo, a identidade familiar e Budismo e identidade pessoal e Cristianismo. A presença de vários níveis de identidade pode ser ainda mais clara em sociedades na qual uma convivência religiosa múltipla é algo comum, já que nesses casos uma questão importante é o papel que diferentes religiões tem na vida de um mesmo indivíduo ou grupo. No caso dos imigrantes e descendentes em geral, é possível que diferentes práticas tenham significados para diferentes níveis de pertencimento social, principalmente para as novas gerações, em um padrão que depende da sociedade receptora.

No caso do Brasil, o pertencimento a instituições que simbolizem uma integração à sociedade majoritária não impede a participação em uma religiosidade que implique uma identidade étnica e familiar. Um espaço étnico, o que pode ser a justificação social de um templo budista, modelado originalmente como um pequeno Japão, não é necessariamente a totalidade da vida religiosa dos adeptos. Isso se verifica através da convivência múltipla em diversas religiões, um elemento que caracteriza o comportamento de brasileiros e japoneses. No monoteísmo tradicional um relativismo religioso pode ser descrito como uma espécie de heresia, no qual rituais de diferentes religiões são contextualizados e destinados para esferas e fins diferentes. No entanto, ainda que existam muitas diferenças na maneira de realizar essa convivência múltipla, uma sensação de incompatibilidade não é a experiência de grande parte dos brasileiros e japoneses. Transpondo essa tendência para os nikkeis, se os brasileiros podem ser, por exemplo, católicos e umbandistas, e os japoneses xintoístas e budistas, os nikkeis podem ser, por exemplo, católicos e budistas, ou mesmo espíritas e xintoístas. Por isso, mesmo atualmente não é raro encontrar o butsudan, o altar budista para os antepassados, em famílias que se "converteram" ao Catolicismo. Também não é incomum que figuras católicas sejam colocadas nesses altares domésticos. Se tipicamente muitos japoneses nascem xintoístas e morrem budistas, uma parte dos nikkeis nasce católica mas é sepultada com rituais budistas, por exemplo, em uma expressão de pertencimento religioso múltiplo, fruto de uma identidade nikkey que sofre influências brasileiras e japonesas.

Em um outro nível de combinação, que pode ser chamado de sincretismo em um sentido mais amplo, ocorre a incorporação de elementos de outras religiões, estando também presente no uso de um vocabulário religioso mais livre e informal, em geral a partir do Catolicismo. O Dia de Finados no Brasil, que ocorre no dia 2 de novembro, já foi tradicionalmente interpretado como um Obon brasileiro[57]. Por outro lado, se nos EUA, por exemplo, é comum nos templos japoneses a presença de escolas dominicais, entre outras claras influências do Protestantismo[58], a Honmon Butsuryûshû do Brasil, por exemplo, tem utilizado o termo "catequese", no que se refere aos seus encontros de instrução doutrinária. Nas escolas do Terra Pura, em outro exemplo, é possível observar ocasionalmente um gesto católico como o sinal da cruz, freqüente nos adeptos que só freqüentam o templo nas chamadas missas de família, dedicadas aos antepassados. A maioria dos templos budistas também acaba incorporando cerimônias como batismo e casamento em um ritual mais ocidentalizado, ainda que se busque imbuir essas cerimônias de significados budistas. O batismo é um termo usado, por exemplo, para designar a iniciação ao Budismo ou como uma apresentação da criança ao templo.

Apesar de não deixarem de ser um ponto de contato e de influência da sociedade brasileira, essas adaptações, conforme ressaltado, não implicam uma abertura étnica, sendo em certos templos só o resultado da transformação das fronteiras do próprio grupo. Isso ocorre até em casos de um sincretismo estrito em um nível mais institucional, não somente na incorporação de um vocabulário, mas a partir da suspensão de barreiras entre práticas e conceitos que pertencem a diferentes sistemas religiosos. Um exemplo dessa independência entre sincretismo e abertura étnica ocorre especialmente no Budismo esotérico no Brasil, que tradicionalmente inclui o Shingon e Tendai, mas que também influencia alguns novos movimentos religiosos como a Agonshû e a Shinnyo-en. No caso de algumas escolas do Budismo esotérico no Brasil, existe a clara incorporação de vocabulário e conceitos do Espiritismo e de religiões afro-brasileiras, sincretizados com aspectos mágicos e utilitários do Budismo e da religiosidade popular japonesa, o que atrai diversos simpatizantes e alguns convertidos brasileiros[59]. Por outro lado, um exemplo concreto de fechamento étnico, apesar de tendências sincréticas, é a chamada Igreja Budista Nambei Yugazam Jyomiyoji, em Suzano, construído a partir de uma dissidência do templo Shingon da Koyasan. Esse templo, associado ao templo Daigoji no Japão, se denomina como pertencendo ao movimento Shuguendô, que foi fundado no século XIII e que foi bastante importante na incorporação de elementos xintoístas no Budismo Shingon. Apresentando uma grandiosa e tradicional construção, a igreja budista é freqüentada principalmente por imigrantes e descendentes. Ela se conservando etnicamente japonês e bastante tradicional nos seus costumes, usando somente o japonês, apesar do número de praticantes ser cada vez menor. No Brasil, um dos aspectos interessantes desse templo é o fato dos imigrantes terem incorporado alguns elementos do Catolicismo. Nesse contexto, algo que chama a atenção no altar é uma imagem lateral de Nossa Senhora Aparecida, tradicional devoção popular católica no Brasil, ao lado de bodisatvas do Shingon e da imagem de Fudô Myô-ô no centro. Segundo entrevistas, a imagem representaria a integração dos japoneses no Brasil. Além da incorporação de Nossa Senhora Aparecida como uma imagem devocional, existem aproximadamente três peregrinações por ano à cidade de Aparecida do Norte, tradicional ponto de peregrinação católico. Nas paredes laterais, o grupo aparece freqüentemente acompanhado de padres católicos nessas peregrinações. Nesse templo, é possível afirmar a presença do sincretismo, usando o termo em um sentido amplo, devido à direta incorporação de elementos católicos. Ainda que o templo seja um dos mais tradicionais do Brasil, esses elementos católicos mostram o caráter híbrido da cultura religiosa nikkey, fruto da formação de uma identidade em um ambiente majoritariamente católico e que apresenta a possibilidade de uma convivência religiosa múltipla.

Conclusões

A partir de um conceito de etnicidade baseado na interação social, é possível analisar diferentes tendências na adaptação das religiões japonesas no Brasil. Do ponto de vista das instituições, em uma afirmação teórica mais geral, as religiões trazidas pelos imigrantes oscilam entre duas estratégias, no que se refere à sua permanência social. Uma delas maximiza a abertura cultural, no sentido de ampliar o número de adeptos nativos, mas buscando eventualmente manter uma base étnica constante que garanta a sua sustentação. Os imigrantes e descendentes que se identificam com esse projeto apresentam em geral propósitos mais universalistas e favoráveis à integração, sendo estimulados pela sua própria religião nesse processo. Essa característica é freqüentemente encontrada na evolução das Novas Religiões japonesas no Brasil, que se adaptam rapidamente e também estimulam uma clara abertura étnica. No pólo oposto, no qual a identidade imigrante é a prioridade, essa abertura cultural é freqüentemente minimizada, acompanhando somente a evolução das fronteiras do próprio grupo étnico, que só tem uma alteração identitária mais radical com o passar das gerações. A esse último caso pertence o Budismo étnico nikkey, sendo mais conservador na sua adaptação e enfrentando um grande desafio com a mudança da língua e das fronteiras do grupo. Nesse caso, é relevante analisar os critérios que definem as fronteiras do grupo e as práticas religiosas que podem veicular essa identidade étnica.

Instituições com diferentes congregações, tradicionalmente com diferentes estratégias para diferentes públicos, não são tão comuns nos templos nikkeis no Brasil. Quando existem, como no caso de alguns templos Zen e do Budismo esotérico, dificilmente as congregações são paralelas no sentido de não apresentarem nenhuma interação, podendo existir conflitos se algum dos grupos não quiser conviver com essa ambiguidade ou se sentir o único provedor econômico da instituição, algo que ocorre freqüentemente no Brasil. Nos templos étnicos nikkey no Brasil, diferentes grupos são comuns como uma expressão da presença de diferentes gerações de adeptos, o que gera outras estratégias de sobrevivência social, que se esforça por adaptações culturais e linguísticas mas busca manter os limites étnicos do grupo. Com a possibilidade de uma religiosidade múltipla no Brasil e dada a particular história dos nikkeis, também pode ser constatado que o Budismo representa uma religião familiar e de simbolização da identidade étnica, enquanto religiões brasileiras, principalmente o Catolicismo, são praticadas como uma forma de pertencimento à sociedade majoritária. Essa possibilidade de ambiguidade religiosa em ambiente de recepção para o Budismo, em contraposição aos EUA e Europa, permite um relaxamento das tensões étnicas, mas também uma diluição e ambiguidade na sua continuidade e adaptação.

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Notas

[1] Cf. Shoji 2002a.

[2] Para um resumo da religiosidade popular japonesa, ver Reader 1993.

[3] Alguns autores não só defendem que a religiosidade japonesa tem como base a família (cf. Hori 1968: 49-81), mas também que o Budismo tem sua organização baseada nesse conceito (cf. Earhart 1997: 73-76). A família estaria expressa na organização dos templos e saceerdotes, praticamente substituindo um conceito de sangha mas tradicional, baseado no Vinaya.

[4] Para uma discussão geral sobre a reinterpretação do conceito de carma no Japão e em novos movimentos religiosos japoneses, consultar Kisala 1994.

[5] Já em Prebish 1979 existe uma divisão em Budismo dos imigrantes e dos caucasiano-europeus, sendo esta última posteriormente substituída pela categoria dos convertidos, devido a uma influência das pesquisas de Paul Numrich, conforme Prebish 1999: 62.

[6] Cf. Numrich 1996: 63-79.

[7] Idem: 78.

[8] Ver, entre outros, Fields 1999.

[9] Como um exemplo pode ser citado Chandler 1999, que nesse trabalho desenvolve uma teoria de combinações étnicas, sugerindo que as diferentes influências étnicas são determinantes para a auto-compreensão do que é ser budista.

[10] Cf. Asai e Duncan 1999.

[11] Cf. Baumann 1999.

[12] Cf. Baumann 2001.

[13] Idem: 62.

[14] Cf. Mullins 1987.

[15] Cf. Poutignat 1997: 65-84.

[16] Um trabalho fundamental para essa concepção de etnicidade é Barth 1997 [1969], escrito como uma introdução para estudos que seguem essa linha teórica.

[17] Barth 1997 [1969]: 189-190.

[18] Cf. Pontignat 1997: 160-166.

[19] Cf. Mol 1979.

[20] Cf. Maeyama 1973a: 242, entre outros.

[21] Cf. Maeyama 1973b.

[22] Cf. Lesser 2000: 177-194.

[23] Mesmo buscando cumprir essas recomendações, baseado em uma política eugenista que tinha como receio o isolamento dos japoneses, ocorreu a limitação da imigração nipônica pela Constituição Brasileira de 1934 a uma cota de cerca de 3 mil por ano, ainda que esse número não tenha sido rigidamente cumprido. Cf. Lesser 2000: 217-220.

[24] No caso do Brasil, consultar Maeyama 1973b. Para um resumo no contexto dos EUA, ver Tanaka 1999 e Seager 1999: 51-59.

[25] Cf. Morais 2001:103, a partir dos registros da organização apreendidos pela polícia brasileira.

[26] Cf. Maeyama 1973: 251, Cf. Cardoso 1972: 175-177.

[27] Segundo entrevistas com líderes de templos, em alguns dos documentos oficiais de estabelecimento das missões também se encontra essa proposta de pacificação, como por exemplo na ordem do Higashi Hoganji. Casos mais concretos podem ser obtidos a partir de histórias de fiéis, como pode ser lido por exemplo no jornal Brasil Jodo da Jôdoshû, na seção "Apresentando Fiéis da Comunidade" de abril de 2000, que mostra que ainda em 1954 existiam conflitos sobre a vitória do Japão e que em alguns casos as missões religiosas contribuíram para a pacificação. No caso da HBS essa divisão entre vencedores e derrotados prosseguiu até 1955 e em 1965 ainda existiam questões sobre esse tema, cf. Nakamaki 2002: 94.

[28] Cf. Gonçalves 2002:183. Para efeitos de uma breve comparação desse momento histórico, se nos Estados Unidos a adaptação cultural se acelerou devido a uma história de imigração mais longa e como consequência das experiências dos campos de concentração, no caso do Brasil pode-se dizer que a missão foi iniciada no pós-guerra. No caso dos Estados Unidos, os templos se mantiveram mais autônomos depois da guerra, o que contrasta com a tendência de institucionalização no Brasil. Esse contraste pode ser visto claramente no caso das escolas da Jôdo Shinshû. Apesar da forte identidade étnica ainda associada com a BCA, já em 1944 o inglês foi adotado como a língua principal, o Protestantismo foi uma clara influência na adaptação e o nome North American Buddhist Mission foi substituído por The Buddhist Churches of America (cf. Tanaka 1999: 8, Bloom 1998, Yoo 2002, Seager 1999: 53-59). Comparativamente, as missões japonesas das escolas da Jôdo Shinshû no Brasil iniciaram-se oficialmente na década de 50, e ainda continuam com o nome de missão.

[29] Cf. Gonçalves 1990: 171.

[30] Cf. Nakamaki 2002: 96-99.

[31] Cf. Saito(1) 1980: 83-84. Ao contrário do fluxo imigratório anterior, existia nesses novos imigrantes a opção pela permanência definitiva, mutos deles vindos de antigas possessões e colônias japonesas. Também em contraste com os outros imigrantes, muitos deles tiveram a Amazônia e a região Nordeste do Brasil como destino.

[32] Cf. Pereira 2002: 265-266.

[33] Cf. Mori 1992. Para mais detalhes consultar Shoji 2002a.

[34] Cf. Maeyama 1973b.

[35] Para que se possa ter uma dimensão da importância desse fator para uma integração estrutural, vale destacar que se no início cerca de 90% dos japoneses viviam na área rural, atualmente 90% dos japoneses e descendentes moram nas cidades. Cf. Mori 1992: 561.

[36] Cf. Maeyama 1973a: 250.

[37] Diversas estatísticas refletem essa particularidade. Segundo o IBGE, os brasileiros de origem asiática (majoritariamente descendentes de japoneses) se encontram no topo da pirâmide social. Em termos comparativos, a renda dos japoneses e seus descendentes é cerca de 76% maior que os brasileiros de origem européia e 4,3 vezes maior que os brasileiros de origem africana, cf. Relatório PINAD do IBGE realizado em 1988. Dados semelhantes podem ser encontrados na produção nacional agrícola: a comunidade japonesa é responsável por 70% da produção brasileira de batatas, 45% da produção de soja, 10% da produção de café, 94% da produção de chá e 50% da produção de ovos. Isso ocorre apesar de somente 10% dos nikkeis, ou seja, menos de 0,1% da população brasileira, trabalharem na agricultura, cf. Oro 2000: 115. Outros dados mostram que o nível educacional dos japoneses e seus descendentes é também bastante maior que a média nacional, Cf. Miyao 1980.

[38] Para uma pesquisa qualitativa, na área da psicologia social, sobre os estereótipos associados mutuamente aos brasileiros e à comunidade nikkey, consultar Saito(2) 1986. Uma análise desses clichês é interessante porque eles mostram as fronteiras e uma introjeção de valores diferenciados. Com relação aos participante do grupo minoritário, esses elementos também mostram pontos de conflito e permanente justificação com a sociedade majoritária, o que não deixa de se apresentar como uma motivação de identificação que define comunidades e relacionamentos sociais.

[39] Cf. Lesser 2000: 296.

[40] Cf. Miyao 1996: 78.

[41] Cf. Mori 1992: 594. Infelizmente dados estatísticos de pertença múltipla ainda são quase desconhecidos e em geral pouco pesquisados no Brasil. Conforme será argumentado adiante, em pesquisas qualitativas observa-se uma combinação religiosa no caso de muitos nikkeis.

[42] Cf. Lesser 2000: 297. Segundo estatísticas, os dekasseguis se encontravam entre os que tinham a menor fonte de renda entre os nikkeis. Para essas estatísticas e para um estudo aprofundado dos dekasseguis, ainda que sejam pouco abordados os aspectos de prática religiosa, ver Kawamura 1999.

[43] Essa é a possibilidade de transmissão da cultura japonesa através dos dekasseguis é defendida em Miyao 1996.

[44] Cf. Lesser 2000: 296-300

[45] Sobre os padrões culturais miscigenados dos dekasseguis, ver Kawamura 1999: 211-221.

[46] Essa característica física não pode ser subestimada, já que o confronto entre dois grupos também depende de sinais claros de identificação étnica, além de valores estéticos e necessidade de aceitação. Nesse contexto, uma tendência entre descendentes de orientais tem sido uma cirurgia plástica nos olhos, com o objetivo de ocidentalizá-los a partir da criação de uma dobra de pele nas pálpebras. Estima-se que sejam realizadas cercade 14.000 dessas operações por ano (cf. reportagem "De olhos bem abertos", Revista Veja, 7.8.2002) . Embora essa "ocidentalização" via cirurgia plástica possa ser interpretada como uma busca de se tornar brasileiro (cf. Lesser 2000: 296), também no Japão e na Coréia essa operação é muito popular.

[47] Cf. Saito(3) 1986.

[48] Como exemplos dessas publicações podem ser citados o São Paulo Shimbun, o Jornal do Nikkey, O Jornal Tudo Bem (para dekasseguis) e a revista Made in Japan, entre outros. Em geral tem sido assumido que uma decadência das associações nipo-brasileiras (incluindo templos) indicaria uma perda de etnicidade, mas uma das razões para esse desinteresse também parece ser a diferença de gerações, algo que também ocorre no Japão atual. Um modelo de niponicidade para os descendentes pode ser dado pelo Japão atual e não somente pelos imigrantes. Uma análise histórica mais detalhada da mídia nikkey, por exemplo, mostra a permanência de certos assuntos, como o debate sobre as influências japonesas e brasileiras nos nikkeis, mas existem significativas diferenças no peso e tratamento desses temas entre as gerações de descendentes. A revista Made in Japan, por exemplo, mantém um grande sucesso entre jovens dekasseguis, nikkeis ou interessados pela cultura japonesa em geral, trazendo temas tradicionais mas divulgando-os a partir de uma visão mais ocidentalizada. A revalorização étnica, nesses casos, se dá mais a partir de uma cultura pop e tecnológica que configura o Japão atual, além da reintrodução de costumes e tradições. O grupo JBC, estabelecido em Tóquio e São Paulo, que publica a Made in Japan e tem lançado desde mangás até revistas de culinária japonesa, tem como sua mais nova publicação a Revista Zen, utilizando o uso comum da palavra no português e destinando a revista a temas religiosos e esotéricos em geral.

[49] Para detalhes sobre o caso japonês, ver Shoji 2002a. Para uma análise mais geral da motivação dos budistas no Brasil, ver Usarski 2002. No contexto das novas religiões japonesas, ver Clarke 1999.

[50] Um exemplo de influência da confrontação na adaptação foi a comemoração do centenário de amizade Brasil-Japão, que produziu um simpósio com o sutil título "A contribuição do Budismo para a Ordem e Progresso do Brasil". Na comunidade nikkey em geral, muitas vezes uma valorização étnica assume um caráter explícito, como nas palavras do então deputado estadual de São Paulo, Hatiro Shimomoto, em simpósio sobre o futuro da comunidade nikkey, publicado em livro: "O mais importante de tudo é que nós tenhamos orgulho da fisionomia que temos, da nossa origem. Acredito que o povo nipônico é o melhor do mundo. Estamos querendo melhorar o Brasil com nossa participação" (Ninomiya 1996: 101).

[51] Para uma coletânea de artigos sobre o Budismo na África, ver Clasquin 1999.

[52] A ordem teve como pioneiro no Brasil o monge Ryoshin Hasegawa, fundador e professor associado a assistência social. Ele defendia que a missão deveria estar concentrada no tripé educação, Budismo e assistência social.

[53] As acusações vão desde um nível mais sutil, como no uso da palavra gaijin (estrangeiro) para designar os brasileiros, até casos mais explícitos, como mais recentemente na saída da monge brasileira Coen da direção do templo Busshinji, algo que foi amplamente divulgado na mídia. Para mais detalhes sobre as tensões internas e acusações que envolveram o seu afastamento, ver entre outras fontes as reportagens "Monja sem templo", Revista TPM n.4 e "Comunidade se reúne para defender monja 'demitida' ", do Jornal Nippo-Brasil n. 91.

[54] Um dos principais eventos da Federação de Seitas Budistas, por exemplo, é o culto em memória aos imigrantes pioneiros, celebrado em junho.

[55] Esse é o caso da BCA nos EUA, que já inclui 100 anos de adaptação mas ainda se constitui majoritariamente de adeptos nikkeis, devido a diversas razões, cf. Tanaka 1999 e Bloom 1998. No caso dos nikkeis dos EUA, no entanto, o Budismo sempre fez parte de uma imigração mais longa e da formação de uma identidade em que o pertencimento étnico e religioso foi mais explícito. Apesar e devido aos pontos de tensão com a sociedade majoritária, que culminaram na experiência do confinamento em campos de concentração durante a Segunda Guerra, a opção por uma americanização e a preservação da identidade étnica sempre foram mais claras no Budismo nos EUA. No Brasil, com outras relações étnicas e uma tendência à convivência religiosa múltipla, as dificuldades de se criar um espaço étnico associado ao Budismo nikkey se somam ao grande esforço necessário na transição cultural e linguística, apesar de uma identificação étnica ainda persistir.

[56] Cf. Mol 1978: 10-14

[57] Cf. Maeyama 1973b: 430.

[58] Cf. Yoo 2002, Seager 1999: 53-59.

[59] Para uma análise no caso dos convertidos e simpatizantes brasileiros ao Budismo esotérico, principalmente o templo da Koyasan em Suzano, bem como uma elaboração mais teórica sobre a presença do sincretismo no Budismo, ver Shoji 2002b (a ser publicado).