Judeus e Muçulmanos na França: Mudando respostas à diversidade cultural e religiosa[*]

Martine Cohen[**] []

Resumo

A partir do caso das comunidades de judeus e muçulmanos na França, em contexto de globalização, a autora examina as consequências das reinvindicações religioso-identitárias face ao Estado Laico francês. Recorrendo a uma perspectiva histórica que remonta o final da Segunda Guerra Mundial, ela analisa o atual debate “laicidade x multiculturalismo”, indagando como o multiculturalismo/globalização pode desestabilizar estruturas jurídico-políticas do Estado laico na França.

Palavras chave: Judeus, Muçulmanos, França, laicidade, multiculturalismo

Abstract

Based upon the cases of Jewish and Muslim communities in France, in the context of globalization, the author examines the consequences of claims - related both to religious and identity issues - made against the French Secular State. Resorting to a Historical perspective that goes back to the end of World War II, she analyses the current debate on "Secularism x Multiculturalism”, questioning the ways in which multiculturalism / globalization can destabilize the legal and political structures of the French Secular State.

Keywords: Jews, Muslims, France, secularism, multiculturalism

Introdução

Nas últimas décadas, as sociedades da Europa Ocidental vêm se deparando com um pluralismo recém-reforçado graças à presença maciça de muçulmanos e, de forma mais geral, ao amplo processo de globalização. Essa nova realidade coloca em questão as identidades nacionais desses Estados que, supunham-se, até então, caracterizados como neutros e liberais.

Na França, por exemplo, depois de um período de abertura à diversidade cultural (durante as décadas de 1970 e 1980), um novo debate social emergiu ao redor do tema do “secularismo”, oscilando entre duas posições opostas. Por um lado, um secularismo extremo mantém as identidades religiosas na esfera privada, ajudando a preservar a liberdade individual e a sociedade civil como um todo das pressões exercidas por grupos religiosos. Essa posição é identificada por seus defensores como o “verdadeiro” secularismo, e está intimamente ligada ao termo laïcité[1]. Por outro lado, o secularismo oferece um lugar de destaque na esfera pública às identidades religiosas, permitindo-lhes participar de questões de moral pública. A essa posição também se aplica o termo francês laïcité, mas se lhe destaca a tendência histórica liberal em relação à religião – especialmente porque sua evolução contemporânea permite relacioná-la a outras formas de comprometimento associativo e cultural. Nesse caso, a laïcité é comumente associada ao multiculturalismo.

A partir dessas constatações, o que se propõe, portanto, é analisar os fatores nacionais e internacionais desse crescente debate sobre o secularismo, expressado aqui como “laicïté vs multiculturalismo” – ainda que esta formulação tenda a adotar a “laïcité francesa” como oposta ao “multiculturalismo anglo-saxão”. Em primeiro lugar, destaca-se, em um breve panorama histórico, o contexto desse debate a partir da discussão acerca das posições respectivamente de judeus e muçulmanos na França antes da Segunda Guerra Mundial. Em seguida, coloca-se a questão: como o multiculturalismo e a globalização desestabilizaram os processos de secularização e as “antigas” identidades nacionais?

I. Judeus e muçulmanos na França antes da Segunda Guerra Mundial: pluralismo religioso limitado

Um arcabouço legal para o pluralismo religioso foi estabelecido na França do século XIX; mais precisamente, durante o período de Restauração (1814-1839). Entretanto, esse arcabouço plural - que incluía protestantes e judeus na sociedade francesa predominantemente católica oferecendo-lhes direitos iguais -, mostrou algumas limitações, tanto em termos legais quanto factuais. Era, portanto, um pluralismo religioso limitado.

Para os judeus, a igualdade legal completa só veio em meados do século XIX. Entre os exemplos dessa longa batalha judicial, destaca-se um decreto napoleônico discriminatório para com os judeus (na verdade, dizia respeito apenas aos judeus da Alsácia, mas eles compunham a maioria da população judaica da França), promulgado em 1808; o chamado “decreto repugnante”, que foi revogado apenas em 1818. Além disso, os rabinos passaram a ser pagos pelo Estado (como outros clérigos) apenas em 1831, e dos judeus se exigia um juramento de fidelidade ao Estado nos tribunais até 1846.

Durante o Segundo Império e a Terceira República, os judeus passaram por um processo de melhoria socioeconômica e ganharam acesso a posições civis no exército, ao judiciário e a posições no governo. Mas eles seguiram sofrendo discriminações sociais contínuas até o final do século XIX, e dois grandes choques colocaram em debate sua integração social: o Caso Dreyfus (1894-1906) e, mais ainda, o Governo de Vichy[2].

O Caso Dreyfus ocorreu em um momento de fragilidade da República. O antissemitismo uniu antimodernistas católicos, patriotas antigermânicos (principalmente no Exército) e movimentos de esquerda anticapitalistas. A batalha ideológica transformou-se em uma oposição entre duas concepções da identidade francesa; uma visão monolítica da França católica – que evidentemente excluía os judeus – vs um regime republicano. Felizmente para os judeus, apoiados por um novo grupo de “intelectuais” (entre eles Émile Zola, o sociólogo Émile Durkheim e o anarquista franco-judeu Bernard Lazare), os ideais de justiça e igualdade sobrepuseram-se à concepção “étnica” da identidade francesa. Essa vitória levou os judeus a uma adesão reforçada à República. Eles continuaram a se envolver na construção de um Estado fortemente centralizado, cuja autoridade deveria protegê-los das forças do antissemitismo (BIRNBAUM 1992). Além disso, também nessa época, os judeus sofreram outro golpe de sorte: eles foram inesperadamente beneficiados pelas das Leis de Separação entre a Igreja e o Estado (1905), que removeram o monopólio legal do Consistório e permitiram a criação de uma congregação reformada independente, fundada por intelectuais abertos que aspiravam à contenção da assimilação[3]. Mais ainda, um renascimento cultural judaico apareceu na década de 1920, moldando um novo sentimento de orgulho judeu entre os intelectuais e as esferas associadas.

Entretanto, essa boa onda histórica não impediu que o antissemitismo florescesse novamente alguns anos depois, no contexto da crise econômica e da França de Vichy, como é chamado o governo francês durante a ocupação nazista, que conseguiu legalmente expulsar os judeus do cenário nacional por quatro longos anos. Opondo-se ao princípio do pluralismo, a crise de Vichy mostrou as marcas contínuas de uma concepção católico-racial da identidade francesa. Pela segunda vez, os valores republicanos foram postos em xeque, e pela segunda vez, felizmente, os judeus encontraram interesses em comum com a Resistência Francesa, assim como com numerosos franceses não-judeus que os ajudaram a escapar da deportação. A vitória final sobre o nazismo e o governo de Vichy permitiu que os judeus se reintegrassem à França a partir da base comum dos valores republicanos. Trinta anos mais tarde, frente à irrupção de um antissemitismo renovado e aos julgamentos de personalidades altamente envolvidas no Governo de Vichy, eles quebraram o silêncio[4].

Em relação aos muçulmanos, foi na Argélia Colonial que sua condição desigual tornou-se evidente, quando contraposta ao status legal dos judeus. Depois da incorporação da Argélia ao Estado Francês (três Departamentos franceses foram constituídos em 1858), os judeus argelinos, mas não os muçulmanos, receberam a oferta de cidadania completa pelo “Decreto Crémieux” (1870). Essa exclusão dos muçulmanos contradisse o princípio do pluralismo religioso, e, como sabemos, mesmo se os muçulmanos se convertessem ao Catolicismo, mantinha-os “súditos” inferiores e não cidadãos franceses completos.

Se a maioria dos judeus argelinos aceitou sua distinção de outros “indigènes” (“indígenas”), não foi sem ambivalência. Eles de fato estimavam sua nova emancipação de uma condição “dhimmi”/protegida, mas continuavam se sentido próximos dos muçulmanos por conta de sua forte religiosidade comunitária. Além disso, com o reforço do antissemitismo europeu – durante o Caso Dreyfus e o Governo de Vichy[5] – os judeus descobriram interesses em comum com os muçulmanos e a maioria deles, de fato, escolheu deixar os partidos republicanos. Entretanto, apenas alguns lutaram abertamente por direitos iguais para os muçulmanos (STORA 2006). Sua própria fragilidade política pode ter sido determinante nessa hesitação e, mais tarde, em sua escolha final em favor da França e de seus ideais, quando a França finalmente teve de deixar a Argélia em 1962.

Um padrão de integração denominacional

A partir do momento em que os judeus (ou “israelitas”, como passaram a ser chamados no século XIX) foram considerados um grupo religioso, exigiu-se que se integrassem à sociedade com base em um “padrão denominacional”. A identidade global judaica – associada à concepção pré-moderna de “nação” – transformou-se em religião, termo que implicava em uma adesão individual à fé (crenças) e às práticas. Baseando-se na distinção entre regras religiosas e civis, a prática judaica passou então a constituir apenas uma esfera da vida judaica, organizada dentro de uma instituição separada, o “Consistório”, com seus dois líderes: um Rabino Chefe para as questões espirituais e um Presidente para a gestão administrativa.

Uma terceira característica pode ser adicionada a esse panorama: nas últimas décadas do século XIX, quando a “unidade social” da religião foi posta em questão e uma moral autônoma e secularizada foi elaborada independentemente (“morale laïque”), a religião viu-se cada vez mais confinada à esfera privada. Isso significou restrições à religião na esfera pública e na interferência na vida política, ainda que não tenha havido uma proibição legal absoluta.

Esse padrão denominacional pode, portanto, ser visto como consistente com o “modelo jacobino”, que dita que a única identidade que pode ser declarada na esfera pública pelos indivíduos ou pelos grupos é a identidade nacional. A afiliação religiosa ou a pertença regional são consideradas, dessa forma, identidades “secundárias”, de maneira alguma relevantes no campo da vida política. Essa hierarquia ideológica é a base para o princípio individualista da República Francesa, onde nenhum corpo comunitário pode interferir na relação entre o Estado e o indivíduo[6].

II. Aceitando a diversidade. Mudanças na tradição política francesa dentro da comunidade judaica depois da Segunda Guerra Mundial

Como vimos antes, um renascimento cultural judaico se espalhou pela França na década de 1920, como resultado do Caso Dreyfus e encorajado pela forte identidade judaica dos imigrantes da Europa Oriental. Esse “Réveil Juif” (“Despertar Judeu”) – note a volta do adjetivo “Juif” como uma fonte de orgulho – floresceu essencialmente no mundo literário, na imprensa e nos movimentos jovens. O apoio de alguns autores ou líderes esquerdistas ao sionismo foi outra expressão desse novo orgulho judaico.

Apoiando a causa de uma “terra pátria” para seus irmãos perseguidos, esses judeus franceses tentaram constituir uma identidade secular de esquerda na França, sem lhe dar uma expressão judaico-nacional dentro da esfera política francesa. Eles ligavam sua atitude pró-sionista a um forte sentimento de pertença à França (CHARBIT 2005; MALINOVICH 2008).

Na verdade, porém, esse renascimento franco-judaico, que também compreendeu o desabrochar de uma vida associativa judaica, teve de focar seus esforços na renovada batalha contra o antissemitismo que se desenrolou durante a década de 1930 e o Governo de Vichy. Entretanto, a existência de numerosas associações judaicas seculares pode ser vista como um cenário quase-político que, mais tarde, favoreceria uma primeira mudança em direção a alterações institucionais e políticas dentro da comunidade judaica.

Os primeiros passos em direção a mudanças dentro da comunidade judaica

Ainda que a reintegração dos judeus na sociedade francesa pós-guerra tenha acontecido de acordo com o padrão denominacional previamente estabelecido, uma primeira e limitada mudança nesse padrão denominacional aconteceu no plano institucional, com a constituição em 1943 (oficialmente em 1944) de um corpo político judaico, a federação de todas as organizações judaicas, incluindo o Consistório, o Conselho Representativo dos Judeus na França (em francês, CRIF)[7].

Por que uma “mudança” limitada? Porque se decidiu que o chefe do CRIF seria, por direito, o Presidente do Consistório. Destarte, o corpo religioso permaneceu formalmente o principal guarda-chuva sob o qual se agrupavam os judeus franceses, preservando a definição religiosa da identidade judaica e a centralidade (ainda que não o monopólio) do Consistório enquanto sua instituição representativa. O CRIF devotou-se a resolver questões relacionadas ao confisco de propriedades e a lutar contra o antissemitismo, mas sua influência foi bastante limitada até a década de 1970.

Outra nova instituição secular foi criada em 1949, o Fonds Social Juif Unifié ou Fundo Social Judeu Unificado (FSJU), devotado ao trabalho social e cultural entre os judeus. Ele teria impacto cada vez maior na vida cultural judaica, já que passou a coordenar e a levantar fundos para criar diversos “Centros Comunitários Judaicos” baseados no modelo norte-americano: locais em que há prevalência de as atividades seculares culturais e políticas.

Durante as décadas de 1950 e 1960, fatores intelectuais e demográficos também preparam o terreno para um distanciamento maior do padrão denominacional. A chamada École d’Orsay, uma espécie de centro de aprendizado judaico que funcionava como uma comunidade liderada por um líder carismático (Léon Askenazi), foi fundada em 1947 pelos líderes do Movimento Escoteiro Judaico (Eclaireurs Israélites ou Escoteiros Israelitas). Na verdade, essa escola funcionaria durante seus 20 anos de atividade, como espaço de treinamento para muitos líderes institucionais futuros. Além dessa “escola” informal, uma revitalização intelectual judaica também se desenvolveria ao redor das figuras do filósofo Emmanuel Lévinas e outros pensadores judeus (tais como André Néher), que organizavam encontros anuais entre intelectuais judeus francófonos desde 1957[8]. No plano demográfico, a chegada, depois da Independência da Argélia, de quase 200 mil judeus norte-africanos, envolveu uma profunda transformação na comunidade judaica, cuja população dobrou; a reconstrução de muitas comunidades locais, enfim, implicou em uma nova visibilidade judaica na sociedade francesa.

Destarte, a chegada desses judeus “sefarditas” constitui apenas um dos fatores de explicação do renascimento judaico da década de 1970, e não o único, como comumente se pensa. Mais ainda, deve-se notar que um renascimento similar aconteceu durante o mesmo período em outros países (Inglaterra, Estados Unidos) onde os judeus sefarditas não estavam presentes.

O renascimento judaico da década de 1970: um distanciamento do padrão denominacional

O distanciamento do padrão denominacional que aconteceu durante a década de 1970 pode ser ilustrado por diversos fenômenos, tanto políticos (expressões públicas de solidariedade para com Israel depois da Guerra dos Seis Dias, luta contra a negação do genocídio judaico) quanto culturais (festivais de cultura judaica e israelita, interesse renovado na História judaica e em seu folclore, desenvolvimento de Estudos Judaicos em universidades e no setor de publicação), assim como uma nova expressão pública religiosa de grupos ortodoxos (COHEN 1993, 2000).

Esses processos podem ser sintetizados em três características principais, ainda hoje relevantes. Primeiro, a identidade judaica não é mais exclusivamente religiosa, mas abertamente cultural e/ou política também. Pode-se notar aqui a diversidade e a complexidade dessa análise identitária: a solidariedade para com Israel não se configura como uma defesa exclusiva de uma existência na diáspora e consequente surgimento de uma cultura da diáspora; o envolvimento secular não é contraditório com algumas práticas religiosas, algumas vezes deliberadamente adotadas de forma seletiva e secular. Segundo, ainda que os judeus sejam oficialmente considerados um grupo religioso representado pelo Consistório, os “interesses judaicos” em outros domínios que não o do religioso são reconhecidos de facto a partir de duas outras instituições. Em primeiro lugar, o CRIF, cujo papel político autônomo foi afirmado com sua reorganização institucional em 1977 e 1981, que submeteu as vagas no conselho diretor a eleições realizadas pelas associações federadas, tirando o direito de escolha das mãos do Presidente do Consistório. Esse papel político cresceu quando o primeiro presidente eleito, Théo Klein, institui um “Jantar CRIF” anual em 1985, regularmente convidando o primeiro-ministro do governo constituído[9]. Além de seu corpo político, o FSJU informalmente tomou o lugar de uma instituição cultural representante vis-à-vis autoridades públicas (no domínio escolar, por exemplo, ainda que o FSJU não seja o maior fundador das numerosas redes escolares). Terceiro e último, se o Consistório, enquanto instituição religiosa mainstream, ainda inclui a maioria dos judeus na França, ele vem hoje sendo claramente desafiado por outros grupos religiosos, tanto ortodoxos quanto reformados. Consequentemente, ainda que ele permaneça como a instituição religiosa parceira oficial, outros corpos religiosos de fato têm seus próprios contatos com autoridades políticas francesas.

Uma pluralidade de modelos identitários judaicos, uma pluralidade de instituições representativas e uma pluralidade de instituições religiosas: essas são as mudanças tríplices que ainda hoje estão em efeito dentro da comunidade judaica organizada. Esse princípio de organizações separadas delineando os três principais domínios (religião, cultura e política) é normalmente aceito – apesar da nova competição pela liderança judaica que recentemente se desenvolveu, como nós veremos a partir daqui – e pode-se dizer que expressa a secularização do todo da vida comunitária judaica, bem como sua diversidade. Essas profundas mudanças na vida judaica organizada não poderiam ter ocorrido, porém, sem uma mudança simultânea dentro da sociedade francesa e da tradição política francesa.

Mudanças dentro da sociedade francesa e da tradição política francesa

Muitos movimentos pragmáticos em direção a um pluralismo religioso alargado podem ser vistos antes e depois da Segunda Guerra Mundial, com arranjos administrativos facilitando práticas religiosas para algumas minorias (MESSNER 1993; BASDEVANT-GAUDEMET 1996; MACHELON REPORT). A eles, seguiram-se, como em outras sociedades ocidentais na década de 1960, uma profunda mudança cultural em direção à diversidade cultural. Críticas à “uniformidade cultural” do “modelo jacobino” se originaram em movimentos regionalistas. Além disso, uma moralidade individualista se desenvolveu a partir da recusa a todas as formas de autoridade (em família ou na escola). A secularização continuou, conforme normas católicas foram gradualmente deixadas de lado nos domínios da vida familiar e sexual (leis estabelecendo igualdade entre homens e mulheres, permitindo contracepção, aborto). A diversidade em si se tornou um valor, mais tarde formulado no slogan “direito à diferença”.

Essas mudanças na tradição política francesa em direção à afirmação pública das minorias permitiram que os judeus adotassem uma concepção global de sua identidade, indo além do padrão denominacional anterior para definirem seu lugar na sociedade francesa. Pode-se também falar em um modelo “ético”.

III. Debatendo o multiculturalismo. Da década de 1980 à década de 2000: em direção ao medo da fragmentação social

Nas últimas décadas do século XX, duas grandes mudanças levaram a uma nova percepção da diversidade como um risco potencial para coesão social: a presença dos muçulmanos na França – e nas sociedades ocidentais no geral – e a globalização, que implica em trocas reforçadas entre o “Norte” e o “Sul”. Essa agitação multifacetada – migração de mão-de-obra, deslocamento de empresas, turismo de massa, nova tecnologia e comunicação de massa, etc. – envolve um novo entrelaçamento das sociedades secularizadas e não-secularizadas, bem como questões religiosas e políticas.

Mais ainda, habitantes das ex-colônias se tornaram uma parte constituinte dos Estados que foram antes suas metrópoles. Essa mutação radical implica em outra confusão, um tipo de contragolpe histórico, com a explosão das memórias desses “outros” dentro da narrativa nacional normativa. Como consequência, o lugar dos judeus na França foi, de alguma forma, desestabilizado. Isso não quer dizer que sua integração seja questionada, mas sim que eles não são mais o “outro” histórico de uma sociedade majoritariamente cristã.

A religião e a política interligadas nos cenários nacional e internacional

O estabelecimento de famílias árabes imigrantes na sociedade francesa e a persistente discriminação contra elas levaram-nas não apenas a uma nova percepção de si próprias como grupo religioso, mas também a uma “politização” do Islã, reforçada pela emergência de um Islã político radical no cenário internacional. Enquanto tal politização pode também ser vista entre os judeus, ela não é, de forma alguma, um processo similar.

Em direção ao padrão denominacional versus a politização do Islã

Com o estabelecimento de famílias árabes imigrantes desde a década de 1970, a diversidade foi primeiramente concebida ao redor do padrão cultural, associado aos ideais esquerdistas (François Mitterand foi eleito Presidente em 1981). O slogan do “direito à diferença” foi adotado pelos jovens árabes durante sua primeira “Marcha pela Igualdade”, em 1983, e pela associação antirracismo “SOS-Racisme”, criada em 1984 por judeus e magrebinos, muitos dos quais socialistas. Mas a discriminação persistente contra os magrebinos (notavelmente nos campos socioeconômico e da habitação), assim como as constantes queixas de brutalidade policial (que levaram a recorrentes motins urbanos), colocaram em dúvida esse “direito” e, gradualmente, surgiu outro slogan: o “direito à similaridade” – ou seja, identidade indivisível na esfera pública.

O primeiro movimento de retorno ao “modelo republicano” estava associado a um novo objetivo político: a construção de um “Islã francês”. Com a primeira tentativa de organizar o Islã em uma moldura religiosa institucionalizada em 1990 pelo socialista Pierre Joxe, a afiliação religiosa começou a parecer-se mais com uma identidade coletiva legitimada do que com uma etnicidade[10]. Um padrão denominacional foi então proposto aos imigrantes e suas crianças, enquanto percebia-se naquela época, entre os judeus, que ele era ultrapassado. Mas esses “muçulmanos” secularizados não queriam que lhes fosse atribuída uma identidade religiosa (BROUARD & TIBERJ 2006), e algumas vozes perguntaram publicamente se religião seria o termo mais adequado para “muçulmanos”. Referindo-se ao CRIF judaico e à existência de judeus seculares, eles criaram associações muçulmanas seculares, dessa forma reclamando outro espaço de legitimidade para sua representação.

Na realidade, a referência islâmica tornou-se, para algumas pessoas, um meio de realizar uma busca por identidade pessoal (muitos líderes da “Marcha pela Igualdade” tornaram-se ativistas religiosos já em 1985) e associações muçulmanas recém-criadas assumiram o controle da antiga briga contra a discriminação. Além disso, o governo francês não conseguiu atingir seu objetivo de criar um “Islã francês” e com frequência precisou se voltar a governos estrangeiros muçulmanos (especialmente na África do Norte) para poder controlar esses novos ativistas. Interesses políticos, destarte, interferiram o tempo todo no processo de criação de um corpo representativo do Islã francês, objetivo finalmente alcançado em 2003, sob pressão do então Ministro do Interior Nicolas Sarkozy[11]. Esse processo múltiplo de “politização do Islã” aumentou com o crescimento do partido de extrema-direita (Frente Nacional) durante a década de 1980, que denunciou o suposto perigo do Islã para a identidade nacional francesa. O tema da imigração ainda continua a ser uma questão política ligada ao Islã tanto à direita quanto à esquerda do espectro político francês, com líderes políticos buscando conquistar o “voto muçulmano”.

A emergência de um Islã político e seu impacto nas sociedades europeias

Como sabemos, partidos islâmicos chegaram ao poder ao mesmo tempo no Irã e no Afeganistão (1978). Esse fato teve graduais consequências dentro das sociedades europeias. O início do terrorismo islâmico internacional mostrou a realidade de um Islã político e violento, o que se “confirmou” no Caso Rushdie (1988) e mais tarde pelo terrorismo do Al Qaeda. As revoltas palestinas contra a ocupação israelense também passaram a se expressar cada vez mais de formas religiosas. Essas variadas causas religiosas e políticas foram, de certa forma, “reunificadas” pelos líderes do Al Qaeda em uma luta islâmica contra o “mundo ocidental”, ganhando ocasionais seguidores dentro das sociedades europeias[12].

Se comunidades muçulmanas em diáspora podem ajudar a desenvolver um novo sentimento de solidariedade transnacional – diferente da pertença anterior dos primeiros migrantes – elas também podem dar espaço para tendências islâmicas radicais, mesmo que isso constitua um fenômeno minoritário. Na França, gerações muçulmanas jovens aspiram à sua incorporação à sociedade francesa, mas são, algumas vezes, vistas com suspeita. Ainda que a maioria delas seja secularizada e individualmente integrada, o ativismo religioso de algumas organizações islâmicas ou de seus líderes gera o medo de uma comunidade transnacional (global) ambivalente: é a Umah, uma “comunidade de crentes” espiritual ou um grupo político transnacional que opõe lealdade à nação francesa.

Dentro da comunidade judaica francesa: o impacto da política israelense e da radicalização religiosa

Durante as décadas de 1970 e 1980, tendências fundamentalistas similares apareceram na esfera judaica. Mas não na mesma escala e sem colocar em perigo o democrático Estado de Israel ou a integração de judeus franceses. Além disso, essas evoluções não envolveram nem a emergência de um terrorismo judaico internacional nem uma ameaça aos países da Europa Ocidental.

A recuperação de territórios “sagrados” por Israel durante a Guerra dos Seis Dias (1967) favoreceu um renascimento religioso focado no novo slogan político-religioso do “Grande Israel”. Um sionismo religioso ligado a partidos de direita ganhou cada vez mais influência nas esferas governamentais (a primeira vitória do partido de direita, o Likud, aconteceu em 1977), aumentando a legitimidade religiosa da colonização dos territórios ocupados. Esses desenvolvimentos levaram a crescentes conflitos em Israel acerca dessas colônias e das justificativas das operações militares desde a guerra do Líbano, em 1982. Eles, de fato, tornaram-se uma questão controversa dentro e fora da comunidade judaica. Daqui deriva que a solidariedade judaica para com Israel, que fora anteriormente consensual entre os judeus e encorajada por simpatia pela sociedade francesa mais ampla, tenha-se tornado mais complexa e problemática. O papel político do CRIF cresceu e se configurou para alguns como um lobby pró-Israel.

Nos últimos anos da década de 1980, também ocorreram mudanças dentro da esfera religiosa francesa. Um novo rabino-chefe, ligado a círculos ultra-ortodoxos, foi eleito em 1987 (tomando posse em 1988). Ele começou a integrar alguns de seus membros ao Consistório ou associá-los a ações públicas. Essa radicalização religiosa destacou o caráter “sectário” (religiosamente exclusivo) do Consistório, e foi provocada notadamente pelo surgimento de novas organizações “judaicas seculares” (de 1989 em diante). Pode-se analisar essa polarização como uma batalha clássica entre movimentos anticlericais e grupos religiosos radicais. Mas isso também mostra um tipo de politização do campo judaico francês, já que o rabino-chefe compete hoje com o CRIF pela liderança judaica. Desta forma, enquanto a distribuição anterior de papéis entre as instituições judaicas não permitia lugar proeminente a nenhuma delas e de alguma forma restringia a implicação política do CRIF, a competição atual, ao contrário, acirra a percepção de uma entidade judaica coletiva forte cuja natureza pode ser tanto política quanto religiosa[13]. Isso pode ser visto como um passo político em direção à etnicidade, um passo que vai além do antigo ativismo cultural ou religioso e configura uma tendência bem distante do padrão denominacional e do “franco-judaísmo” de antes.

O uso dos véus: multiculturalismo contra laïcité?

O primeiro caso sobre o uso do véu ocorreu em outubro de 1989 e gerou diversas questões. O “antigo” debate dizia respeito primeiro a dois princípios associados a laïcité francesa, mas que subitamente pareceram contraditórios: a garantia da liberdade religiosa ou a “neutralidade religiosa” da esfera pública, impondo identidades “invisíveis”? Quando esse último princípio tornou-se globalmente consensual, não houve nenhuma grande reclamação que o contradissesse em escolas públicas (ainda mais porque as expressões religiosas de fato diminuíram com o processo mais geral de secularização). Entretanto, desde a década de 1970 os direitos individuais ganharam seguidores em muitos domínios, incluindo o da liberdade de expressão dos alunos na escola. Para aqueles que estavam mais acostumados a movimentos jovens de cunho político, o surgimento de expressões religiosas na escola surpreendeu e opôs posições, seja a favor de uma liberdade completa (mesmo que contrária à opção secular de quem a defende) ou a favor de uma laïcité estrita – que apareceu, àquela época, pela primeira vez, em oposição aos direitos individuais. Quando o primeiro-ministro Jospin pediu a opinião do Conselho de Estado sobre o caso, este lhe respondeu afirmando o princípio da liberdade de expressão religiosa para os alunos, mas não para os professores, enquanto funcionários públicos, aumentando, assim, a confusão.

Um segundo e novo debate também foi iniciado ao redor da questão da emancipação. Esse debate foi emoldurado em termos de gênero – o véu significa uma escolha real ou a inferioridade das mulheres? – ou em termos mais gerais: como uma escolha individual pode levar ao envolvimento religioso, contradizendo nosso esquema de modernização baseado no princípio da libertação progressiva dos valores e das normas religiosas? Se movimentos de identidade anteriores baseavam-se numa escolha individual oposta à “uniformidade jacobina”, essa nova forma de “diferenciação” baseada em identidades herdadas não se configurou claramente como um passo “progressivo”, já que pareceu encorajar identidades “arcaicas” e holísticas. Em outras palavras, a questão era: em nome do multiculturalismo, seria possível imaginar diferentes formas de emancipação? Essa questão perturbadora levou alguns ativistas da laïcité a se oporem ao multiculturalismo, quando outros, por outro lado, destacaram os complexos processos de individualismo em diferentes culturas e sociedades[14].

Os casos ao redor do uso do véu foram analisados também como uma questão mista, política e religiosa. Eles foram relacionados pela opinião pública (com ou sem razão) aos movimentos políticos islâmicos internacionais que tentaram re-instalar (ou reforçar) a lei religiosa (a Sharia) nos países muçulmanos. A então renovada questão da laïcité garantindo liberdade religiosa individual tomou a dianteira, opondo-se a pressões hipotéticas de grupos religiosos e políticos sobre indivíduos muçulmanos e sobre a sociedade francesa. Ainda que essa realidade não tenha ainda sido estudada de forma estatística, o suposto crescimento da influência dessas pressões internacionais adiciona motivos para a reavaliação dos “princípios da laïcité”.

Uma percepção étnica crescente da sociedade francesa e o retorno à laïcité restrita

O já conflituoso cenário internacional passou por uma piora dramática no início do novo milênio, com repercussões políticas na França. O renovado conflito entre palestinos e israelenses (a “Segunda Intifada”, desde o outono de 2000) e a Conferência de Durban em setembro de 2001, quando países árabes concentraram suas árduas críticas em Israel, imediatamente seguida do ataque terrorista contra o World Trade Center no dia 11 de setembro, cristalizaram antigas oposições entre judeus e muçulmanos franceses. Slogans antissemitas foram ouvidos durante demonstrações pró-Palestina, ataques físicos aumentaram contra judeus e edifícios judaicos, a ponto de o medo da fragmentação social se tornar uma dramática preocupação. Somado às visíveis contradições do multiculturalismo (também relacionadas aos novos debates que surgiram na Inglaterra depois do ataque terrorista de julho de 2005), esse medo colocou em questão a antes positiva atitude francesa em relação à celebração da “diversidade”.

Mais ainda, enquanto a incorporação da memória do Holocausto na memória nacional francesa foi vista como uma forma positiva de repensar um período bastante discutido da História da França[15], novas reivindicações de ativistas muçulmanos acerca de reconsiderações sobre a dominação colonial soaram como uma acusação contra a França como um todo e provocaram fortes oposições. Enquanto as discriminações antimuçulmanas continuaram, a ideia de “privilégios”, atribuídos aos judeus pela sociedade francesa e autoridades públicas tornou-se mais ou menos espalhada nos meios muçulmanos. Poderíamos falar de “ciúme” em relação a um povo “bem integrado” e “bem sucedido”?[16] Um ressentimento antigo e, provavelmente, inconsciente, pode ter nutrido esse ciúme em relação ao status privilegiado que os judeus adquiriram na Argélia durante o período colonial com o Decreto Crémieux. Nesse clima, enquanto muitos judeus achavam que um novo antissemitismo emergia (uma “judeufobia”, de acordo com alguns cientistas)[17], os muçulmanos falavam em “islãfobia” para qualificar suas próprias inúmeras discriminações. Uma competição entre vítimas se desenvolveu então e piorou com o pedido de reconsideração sobre o tráfico negreiro por parte dos países europeus[18].

A percepção étnica da sociedade francesa, desta forma, aumentou e foi implicitamente confirmada por iniciativas positivas tais como a criação, em 2004, por um rabino, da Associação da Amizade Judaico-Muçulmana e seu “Ônibus da Fraternidade”. A atitude positiva em relação à “diversidade” poderia ter permanecido o slogan para alguns passos políticos (por exemplo, a criação do Conselho Francês para Culto Muçulmano, no verão de 2003), ou a verdadeira preocupação dos novos governantes, mas ela também teve de enfrentar forte oposição em relação a qualquer compreensão de grupos “étnicos” dentro das fronteiras nacionais.

Na realidade, sinais religiosos e especialmente o véu muçulmano se tornaram o centro da batalha ideológica dessas querelas “étnicas”. Novos casos envolvendo o uso do véu levaram o governo francês a criar, em julho de 2003, o “Stasi Comittee on Laïcité” (“Comitê Stasi de Laïcité”), que publicou um relatório com 25 propostas no final do ano[19]. Mas apenas uma foi adotada: uma nova lei proibindo qualquer símbolo religioso “conspícuo” na escola (março de 2004), que tem sido constantemente vista como tendo um único propósito: suprimir o uso do “véu islâmico”.

Na prática, as interpretações dessa lei agora vão muito além de sua expressão estrita. A proibição do uso do véu na escola é constantemente vista como uma proibição geral, com vários casos de mulheres excluídas de cartórios durante celebração de matrimônios ou de lugares de trabalho (privados e públicos). Outros casos de desigualdade em relação aos muçulmanos têm sido vistos: enquanto os Prefeitos frequentemente concordam com o aluguel de terras municipais a preços modestos para grupos religiosos (católicos, protestantes, judeus e mesmo muçulmanos) que querem construir templos, membros de um partido nacionalista (dissidente da Frente Nacional) desafiaram o direito dos muçulmanos a se beneficiarem dessa vantagem em três cidades (Marselha, Roubaix e Montreuil); o processo judicial foi baseado, diz-se, numa interpretação estrita da Lei de Separação de 1905, que proíbe qualquer tipo de ajuda financeira a grupos religiosos por parte de autoridades públicas[20].

Outros casos recentes colocam em questão o apoio financeiro estatal anteriormente dado a atividades sociais de grupos religiosos (“Campos da Juventude” de católicos, protestantes, muçulmanos e judeus); isso levou a Federação Protestante Francesa a endereçar um protesto, em 2006, à nova autoridade francesa oficialmente estabelecida para lutar contra a discriminação (Halde)[21]. Em relação particularmente aos judeus, arranjos individuais anteriores facilitando práticas religiosas foram colocados em questão (uso do kippa na escola, permissão para faltar aos sábados[22]). Colocando as exigências dos muçulmanos em paralelo, assume-se implicitamente que os pedidos dos judeus, que foram anteriormente garantidos com base na acomodação prática individual, agora poderiam ser vistos, em última instância, como uma ameaça aos valores republicanos e à unidade nacional.

Os antigos processos de alargamento do escopo do pluralismo estão, portanto, sendo colocados em questão, opostos à compreensão liberal do secularismo praticada de 1905 até a década de 1980. Devido a sua longa e rica história, o secularismo francês é um espaço complexo e múltiplo de memória. Quando colocado frente a frente com mudanças radicais em relação à natureza do espaço público, no contexto das tensões políticas internacionais, alguns ativistas da laïcité tendem a lembrar das “velhas batalhas” do regime republicano contra a Igreja Católica e clamam por uma nova vigilância para com todos os pedidos religiosos.

Conclusões

Do pluralismo religioso à diversidade cultural: a França enfrenta o medo da fragmentação social

A visão histórica panorâmica primeiro nos mostrou o progressivo alargamento do pluralismo religioso em relação à única religião não-cristão presente na França no século XIX, o Judaísmo. Mas o não respeito desse princípio no que diz respeito aos muçulmanos na Argélia Colonial demonstrou a relutância de uma França culturalmente (religiosamente) cristã, quando frente a “outros” que estavam numa posição demográfica que lhes possibilitaria oporem-se a seu poder colonial se tivessem direito à cidadania plena. Os judeus argelinos (entre 15 e 20 mil pessoas em 1831), por contraste, receberam o mesmo status político que os judeus franceses, a saber, aqueles de um cidadão francês que goza de plenos direitos. Entretanto, as duas maiores crises que colocaram em perigo seu lugar dentro da estrutura nacional e até mesmo os excluíram por alguns anos (o Caso Dreyfus e o Governo de Vichy) mostraram a persistente concepção de uma identidade francesa católica. Quando a França do pós-guerra os reintegrou, a aceitação explícita do secularismo pela Igreja Católica assegurou o regime republicano, que começou a ampliar seus princípios de pluralismo religioso e a incluir outros grupos minoritários. Mais tarde, o contínuo processo de secularização, assim como o bem-estar econômico e o individualismo moral permitiram uma abertura da sociedade francesa à diversidade cultural.

A persistente discriminação contra imigrantes árabes-muçulmanos, porém, colocou em dúvida a eficiência do modelo do “direito à diferença” como meio de integração. O desejo de retornar ao “modelo republicano” e de considerar os imigrantes e seus filhos como “muçulmanos”, de acordo com o antigo padrão denominacional, foi então reforçado na opinião pública por novos fatores: o surgimento do Islã político tanto no cenário internacional quanto no cenário nacional, assim como o crescente impacto dos conflitos religiosos e políticos no Oriente Médio nas relações entre os judeus e os muçulmanos franceses. O medo da fragmentação social a partir de diferenças “étnicas” ou religiosas resultou, desta maneira, em um novo debate sobre a laïcité enquanto realidade oposta ao multiculturalismo, termo que se tornou sinônimo de “separatismo”.

Multiculturalismo em um mundo global vs secularização em “velhas” identidades nacionais

A secularização implica não apenas na limitação da religião à esfera específica da realidade social de cada um e o declínio da prática religiosa, mas também na possível transformação de alguns símbolos e celebrações religiosas em festivais seculares ou sinais patrimoniais. Esses processos de secularização hoje em dia são questionados pela globalização e pelo crescimento de um Islã radical.

Com a globalização, as sociedades ocidentais desenvolveram relações íntimas com sociedades não-secularizadas a partir de onde imigrantes podem ou fazer parte do processo de secularização de suas estruturas nacionais (esse parece ser o caso da maioria deles), ou não. Destarte, símbolos secularizados como a árvore de Natal, por exemplo, podem agora ser considerados “não neutros” e relacionados ao seu contexto cristão, como é o caso em vários países do Ocidente (França, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, etc.). Em reposta, a opinião pública pode reconsiderar esse símbolo ou como parte de uma identidade coletiva comum – e defender seu uso – ou como a sobrevivência de um símbolo religioso que deve ser removido para não ofender os recém-chegados – isso foi feito, por exemplo, com a transformação dos desejos de “Feliz Natal” em desejos de “Boas Festas”.

Desta maneira, sinais “religiosos” podem ser usados por sociedades ocidentais como parte de seu contexto cultural, definindo uma identidade mais ou menos nacional (assim como no plano local ou europeu), incluindo ou em conflito com as culturas imigrantes. Essa possibilidade de conflito pode, por sua vez, ser explorada pelo Islã político radical, especialmente (mas não apenas) quando a integração de imigrantes muçulmanos é difícil e até mesmo falha (por conta de discriminação, crise econômica ou pelas enfraquecidas capacidades de integração do Estado). Confrontando essa proposta alternativa para uma identidade transnacional muçulmana, o debate sobre “símbolos religiosos” se transformou em um debate sobre “identidade nacional”. Identidades religiosas globais se tornaram uma estrutura competidora possível para aquelas dos Estados Nacionais.

Em um mundo global, o multiculturalismo desestabiliza “velhas” identidades nacionais. Ele coloca em questão a suposta neutralidade dos Estados liberais modernos que foram construídos no mundo ocidental – especialmente na França, onde o modelo político de uma nação construída sobre bases cívicas “encobriu” a realidade social de uma maioria cultural católica. Desta forma, se nós pretendemos preservar a existência de uma estrutura nacional, como podemos elaborar novos “compromissos” em um contexto de um mundo global conflituoso? Como podem as democracias continuar a manter e administrar seu pluralismo existente – que inclui o direito de cada indivíduo a sair de seu grupo primário – contra ataques extremistas e identidades radicais?

Bibliografia

ALBERT-COHEN, P. 1977. The modernization of French Jewry: Consistory and Community in the Nineteenth-Century, Waltham, Mass: Brandeis Univsersity Press.

BASDEVANT-GAUDEMET, B. 1996. Le Statut juridique de l'islam en France, Revue de Droit Public, pp.355-385.

BAUBEROT, J. 2000. Histoire de la laïcité en France. Paris: PUF (4th reissue, 2007).

BERKOVITZ, J.R. 1989 The Shaping of Jewish Identity in Nineteenth-Century France. Detroit: Wayne University Press.

Birnbaum, P. 1992. Les Fous de la République. Histoire politique des Juifs d’Etat, de Gambetta à Vichy. Paris: Fayard.

BROUARD, S.; TIBERJ, V. 2006. Français comme les autres? Enquête sur les citoyens d’origine maghrébine, africaine et turque. Paris: Presses de Sciences Po.

CHARBIT D. 2006. Déclinaisons du franco-judaïsme. In Biale, David (ed.): Les Cultures des Juifs. Une nouvelle histoire. Paris: éditions de l’Eclat pp.1003-1042.

CHAUMONT J-M. 1997. La Concurrence des victimes : génocide, identité, reconnaissance. Paris: La Découverte.

COHEN, M. 1993. Les Juifs de France. Affirmations identitaires et évolution du modèle d'intégration, Le Débat, n° 75, mai-août, pp.101-115.

__________. 2000. Les Juifs de France. Modernité et identité,Vingtième Siècle. Revue d'Histoire, n° 66, avril-juin.

Commission Stasi. 2003. Commission de Réflexion sur l'Application du Principe de Laïcité dans la République. Rapport au Président de la République, 11 Décembre 2003. http://www.ladocumentationfrancaise.fr/cgi-bin/brp/telestats.cgi?brpref=034000725&brpfile=0000.pdf

GHILES-MEILHAC, S. 2007. La Politique étrangère du Conseil Représentatif des Institutions Juives de France, La communauté juive organisée: une force diplomatique? Mémoire de Master 2 d’Histoire, EHESS.

GRAETZ, M. 1996. The Jews in Nineteenth-Century France: From the French Revolution to the Alliance Israelite Universelle. Stanford: Stanford University Press.

HERMON-BELOT, R. 1999. L’Emancipation des juifs en France. Paris: PUF.

HYMAN, P. 1998. The Jews of Modern France. Berkeley: University of California Press.

LAURENCE J.; VAÏSSE, J. 2007. Intégrer l’Islam. La France et ses musulmans: enjeux et réussites. Paris: Odile Jacob.

MALINOVICH, N. 2008. French and Jewish. Culture and the Politics of Identity in Early Twentieth Century France. Oxford-Portland: The Littman Library of Jewish Civilization.

MAYER, N. 2005. Les opinions antisémites en France après la Seconde Intifada”, Revue internationale et stratégique, n° 58 (été 2005).

MESSNER, F. 1993. Laïcité imaginée, laïcité juridique. Les évolutions du régime des cultes en France, Le Débat, n° 77, nov-déc., pp.88-94.

MACHELON Report 2006. Commission de réflexion juridique sur les relations des cultes avec les pouvoirs publics, septembre.

STORA, B. 2006. Les trois exils des Juifs d’Algérie. Paris: Stock.

TAGUIEFF, P-A. 2002. La Nouvelle judéophobie. Paris: Fayard-Mille et une nuits,

WEIL, P. 2004. Qu’est-ce qu’un Français? Paris: Grasset, Folio-Histoire (1ère éd. 2002).

WIEVIORKA, Michel 2005. La Tentation antisémite. Haine des Juifs dans la France d’aujourd’hui. Paris: Robert Laffont.

Notas

[*] Tradução: Tatiana Machado Boulhosa. Versão original: Jews and Muslims in France: Changing Responses to Cultural and Religious Diversity. In Grill, Ralph, (ed.): Legal Practice and Cultural Diversity, London: Ashgate 2009, pp.219-236.

[**] Socióloga da religião e laicização e membro titular do GSRL.

[1] O termo francês laïcité pode ser traduzido, em português, como laicidade. Entretanto, sua tradução faz com que o leitor perca de vista sua própria definição (separação estrita do Estado e da Igreja na França contemporânea) e seu relacionamento com os termos de que a autora dispunha em inglês, já que laïcité raramente é vertido para essa língua como laicity ou laicism, embora os termos existam, pois se relaciona mais intimamente ao termo secularity ou secularism (secularidade ou secularismo) (N.T.).

[2] Para uma história do Judaísmo francês durante o século XIX e início do século XX, ver: ALBERT-COEHN 1977, BERKOWITZ 1989, GRAETZ 1996, HYMAN 1998, MALINOVICH 2008, HERMON-BELOT 1999.

[3] Em termos gerais, a Lei de Separação suprimiu o status desigual entre as religiões “reconhecidas” e não-reconhecidas (essencialmente pequenos grupos protestantes), criando uma nova situação plural.

[4] Na década de 1970, a memória desse período dramático sustentou um novo ativismo judeu, primeiro condenando a França em geral por seu antissemitismo, e então requerendo que ela levasse em consideração essa condenação moral dentro da memória nacional da França.

[5] A revogação do Decreto Crémieux foi mantida até 1943, um ano depois dos Alliados chegarem à África do Norte. Ver Weil (2004, cap. “Les crises ethniques de la nationalité française”).

[6] O caso da Alliance Israelite Universelle pode parecer contrário a esse modelo. Fundada em 1860 por acadêmicos e intelectuais judeus para defender seus “irmãos” perseguidos na Rússia e no Oriente Médio, essa organização interveio no cenário internacional. Dessa forma, ela foi analisada por Graetz (1996) como uma expressão renovada da consciência do povo judaico, um “proto-sionismo”. Mas esse ativismo político também pretendia promover o modelo francês de emancipação e sua cultura universalista fora da França, especialmente entre os judeus. Ao fazer isso, ele também apoiou os interesses da França em colônias ou protetorados. Essa síntese ideológica entre patriotismo francês e comprometimento judaico é conhecida como “franco-judaísmo”.

[7] O primeiro nome completo do CRIF era “Conseil Réprésentatif des Israélites de France” (“Conselho Representativo dos Israelitas na França”), mas organizações de imigrantes pressionaram para que houvesse uma mudança pra “Judeus da França”, mantendo a mesma abreviação. A partir de então, ele se tornou o “Conseil Réprésentatif des Institutions juives de France” (“Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França”).

[8] Colloque des Intellectuels juifs de langue française ou Colóquio dos Intelectuais judeus de língua francesa.

[9] Entre outros fatores dessa crescente influência política do CRIF, pode-se invocar o envolvimento de Théo Klein na resolução do caso “Auschwitz Carmelita” (1985-87), quando católicas queriam manter seu convento carmelita dentro do Campo de Auschwitz. Boas relações com líderes religiosos das igrejas católicas da França e da Polônia ajudaram a resolver esse problema. Ver GHILES-MEILHAC 2007.

[10] Joxe criou o “CORIF” (Conselho Organizacional e Reflexivo para o Islã na França) apenas um ano depois do primeiro “caso do véu”. Em 1989.

[11] Sarkozy insistiu que o primeiro presidente do Conselho Francês para Culto Muçulmano (CFCM) deveria ser o reitor da Mesquita Franco-Argelina de Paris, Dalil Boubakeur, por razões políticas (ligações com o governo argelino) e religiosas: Boubakeur pertence, supostamente, a uma ala “reformada” do Islã.

[12] A Queda do Muro de Berlim, em 1989, terminou uma polarização mundial contra a ideologia comunista, mas também abriu caminho para outras expressões de confrontos ideológicos, em termos religiosos ou de “civilizações”.

[13] A competição cresceu durante os últimos anos, levando o CRIF a se envolver em questões religiosas (encontros com muçulmanos, católicos e budistas), enquanto que o rabino chefeorganiza encontros e viagens populares a Israel para apoiar sua política de colonização nos territórios ocupados.

[14] Esses ativistas aproximam-se de perspectivas pós-coloniais ao recusarem o modelo exclusivo da modernização ocidental.

[15] Foi em 1933 que o presidente Mitterrand decidiu estabelecer uma nova celebração nacional relacionada à memória da participação francesa através do Governo de Vichy no Genocídio Judaico; o Presidente Chirac foi além em 1995, quando oficialmente reconheceu a “culpa coletiva” do Estado francês.

[16] O assassinato do jovem judeu Ilan Halimi por uma “gangue bárbara”, em 2006, revelou esse ciúme em relação aos “ricos”, como estava escrito nas cartas da gangue.

[17] Taguieff (2002) inventou o termo “judeufobia” para designar a forma sob a qual o antissemitismo se esconde atrás do “antissionismo” e das críticas à Israel. De acordo com pesquisas científicas, a maior parte dos ataques foi atribuída a árabes/muçulmanos, mas eles não foram necessariamente considerados antissemitas. Devido a sua relação íntima com os períodos de assaltos israelenses a palestinos, alguns cientistas, como Mayer (2005) insistiram nas frustrações econômicas e sociais de jovens não integrados. Laurence e Vaisse (2007, cap. 9) forneceram uma boa síntese desses estudos, concluindo, entretanto, por um antissemitismo “estrutural” persistente.

[18] Chaumont (1997) foi o primeiro a falar de uma “competição entre as vítimas”.

[19] Commission Stasi (2003).

[20] Em um dos casos (Marselha), o prefeito e a associação muçulmana negociaram um novo preço; nos outros dois caos (Montreuil, Roubaix), as associações muçulmanas apelaram da decisão judicial; os casos ainda não terminaram.

[21] Até hoje, nenhuma resposta apropriada foi dada.

[22] A semana escolar francesa dá dois dias de folga aos alunos: quarta-feira e domingo (N.T.).