Editorial - REVER número 3, ano 6, 2006

Religião e Arte

A preocupação com as maneiras como a religião se aproximou ou se distanciou das obras de arte não é nova. Ela se estende desde as origens do pensamento ocidental, na Grécia clássica e, por caminhos e descaminhos, chega aos nossos dias. É a história de ódios e paixões que a fé devotou à imagem e à representação. A estética foi vista muitas vezes como o canal de expressão da experiência religiosa, mas, em outras tantas ocasiões, foi entendida como um substituto à própria religião. De qualquer forma, a arte nunca deixou de ser uma das linguagens que mais contribuições trouxeram para formação, difusão e expressão do pensamento religioso.

O Cristianismo, das três religiões monoteístas, foi a única que se colocou o problema da imagem. Tanto no Judaísmo quanto no Islã a imagem tem seu estatuto determinado pela lei: existe uma interdição generalizada para qualquer representação figurada dos seres criados. A arte sacra e a religiosa nessas duas religiões prescinde das esculturas e das pinturas, ambas percebem que a intenção de toda obra de arte é representar a Deus. E, segundo elas, Deus não pode ser representado.

Também para o Cristianismo sempre valeu o interdito da construção de imagens de Deus. No entanto, reconheceu-se logo cedo que o Homem, feito segundo a imagem e conforme a semelhança de Deus, e que tinha perdido essa imagem e semelhança por ocasião do pecado original, acabou reencontrando esses atributos na obra e na pessoa de Jesus Cristo. Em Cristo, restaurou-se uma relação de semelhança entre a imagem terrestre e a celeste. Nesse particular, a teologia cristã desenvolveu-se na tentativa de determinar o que era, de fato, a imagem de Deus no Homem. O Cristianismo então, de um lado reconheceu a imaterialidade do espírito (e Deus, afinal, é espírito), mas de outro tinha o homem feito a imagem de Deus e Jesus Cristo, imagem de Deus por excelência. Aqui, pois, residem as causas das divergências.

Os protestantes com sua religião altamente racionalizada, centrada num ascetismo ético intramundano, rejeitam a arte como caminho salvífico por não verem nessa possibilidade nada além de magia e superstição; porém a mais irracional religiosidade, a experiência mística, também é hostil à arte que, pela forma busca alcançar as esferas do Sagrado. Diz Max Weber que “a forma é infortunada e inexpressível ao místico, porque ele acredita precisamente na experiência de fazer explodir todas as formas, e espera, com isso ser absorvido pelo Uno, que está para além de qualquer tipo de determinação e forma”.[1] Nesse sentido, tanto para o religioso místico quanto para o asceta puritano, a arte figurativa se acerca perigosamente da idolatria e do engodo; então, para eles, as imagens e alegorias dos assuntos religiosos surgem como blasfêmias.

Por essa brevíssima reflexão, vê-se que religião e arte têm uma relação que há muito deixou de ser ingênua e não se sabe quem se aproveitou de quem no decurso da história. Se a religião se valeu da arte para difundir-se, é certo também que a arte se valeu da mística religiosa para firmar-se. Dessa simbiose nasce um campo de pesquisa e conhecimento dos mais profícuos, variado, plural, multidisciplinar e que flerta com a razão e a beleza ao mesmo tempo.

Neste número da Rever o leitor encontrará na seção temática quatro artigos. O primeiro deles analisa a relação da poesia de Patativa do Assaré com a religiosidade presente no Norte e Nordeste do Brasil. De que maneira a religião se torna um veículo para uma mensagem de resistência e luta face às vicissitudes sociais, econômicas e ambientais da região. O segundo artigo trabalha com as raízes religiosas presentes na poesia de dois grandes autores da música popular brasileira: Alceu Valença e Caetano Veloso. São dois compositores exemplares e o artigo aponta para uma janela de onde se pode divisar a alma religiosa presente no imaginário do brasileiro. O terceiro artigo amplia o espectro das expressões estéticas e mostra o cinema, chamada de “a sétima arte”, como portador de religiosidade. O artigo tem especial interesse porque trabalha um filme iraniano e retrata o cotidiano do Islã em sua dimensão mítico-poética. Com a interdição teológica da representação de imagens, o artista islâmico encontra no cinema um canal de comunicação com o seu público impossível de ser visto em outras formas de arte. Por isso, para quem se interessa pelas relações entre religião e arte no Islã, encontrará na filmografia de diretores muçulmanos como Majid Majidi, outros horizontes de pesquisas não oferecidos pela caligrafia ou arquitetura islâmica. Finalmente, o quarto texto faz uma análise da literatura e elege a história de Frankenstein como o paradigma da modernidade e busca ali a dimensão religiosa por detrás do conto e seus personagens.

Na seção “Intercâmbio” o leitor encontrará dois textos: o primeiro, em inglês, trata das questões de gênero para além das relações binárias de macho-fêmea, presentes nas narrativas do Budismo no contexto indiano. O segundo artigo traz uma reflexão sobre a emergência da religiosidade na clínica psicológica e de como o psicólogo pode dar encaminhamentos positivos para essas emergências em favor do seu paciente.

O tema central desse número da Rever com certeza não chegou nem perto de dar conta do amplo espectro das formas de arte e de suas interações com a religião. Há ainda muitas outras expressões artísticas, teatro, pintura, escultura, arquitetura, histórias em quadrinho, grafites, instalações que poderiam estar presentes aqui e com certeza exigem que retornemos a este tema em futuro próximo.

A arte, assim como o esporte, o erotismo e o humor nem sempre foram vistos com bons olhos pelos mais ortodoxos e fundamentalistas de todas as religiões. Talvez porque esses intuíram que tais expressões do espírito humano são, em alguma medida, concorrentes da religião ao também permitirem que o ser humano vislumbre alguma coisa que está para além dos sentidos.


Edin Sued Abumanssur

Nota

[1] Cf. Max WEBER Rejeições religiosas do mundo e suas direções, [1915]. In: Ensaios de Sociologia (H.H. Gerth e C.Wright Mills orgs.). Rio de Janeiro: LTC, 1982, pp.371-410, especialmente p.392.