As Novas Religiões Japonesas como instrumento de transmissão de cultura japonesa no Brasil

Andréa Gomes Santiago Tomita[*] []

Resumo

As chamadas Novas Religiões Japonesas (NRJ) são um legado religioso-cultural dos imigrantes nipônicos que desembarcaram no Brasil. Inicialmente restritas apenas aos integrantes da comunidade nipo-brasileira, tais religiões - pelo menos, parte delas - experimentou uma importante expansão entre pessoas sem ascendência japonesa a partir dos anos 70. A Igreja Messiânica Mundial do Brasil (IMMB) e a Perfect Liberty (PL) estão entre as NRJ; dotadas de características universais, foram "traduzidas" para a cultura brasileira. Como o artigo mostrará foi exatamente por meio dessa tradução, num sentido amplo, que se estabeleceu uma ponte não somente entre diferentes universos religiosos, mas também entre as culturas brasileira e japonesa.

Abstract

Since the 1970s, so-called "New Japanese Religions" such as the Church of World Messianity or Perfect Liberty, which were initially introduced to Brazil by Japanese immigrants, have expanded outside the Japanese colony. The article argues that this is due to a process of "translation" that not only made these Religions accessible for the Brazilian public but also served as a means of adoption of Japanese culture in a broader sense.

1. Introdução

A partir da realidade de que, com a entrada das Novas Religiões Japonesas (NRJ) em nosso país, o povo brasileiro ganhou uma nova opção de conhecer um mundo diferenciado - não só no campo da fé, mas também no campo da cultura -, acreditamos que o contato entre as culturas brasileira e japonesa corresponde a um dos grandes desafios do processo de transplantação das NRJ no Brasil.

Em nossas pesquisas sobre duas NRJ - a Igreja Messiânica (IMM) e a Perfect Liberty (PL), observamos que, a partir da prática, o adepto sem ascendência japonesa incorpora noções culturais tipicamente japonesas. Nesse caso, o uso de termos nipônicos presentes nas doutrinas das NRJ, por vezes, atua como uma espécie de reforço à incorporação de conceitos originalmente japoneses, ora provenientes da religião, ora provenientes do conjunto da cultura japonesa.

Conforme o ponto de vista e contexto, a língua japonesa, tão presente nas NRJ, pode ser tida como um possível instrumento de dominação não somente no âmbito religioso, mas também no cultural. Exatamente porque "a linguagem deve ser vista aqui como elemento integrante de uma cultura, como de uma de suas formas de manifestações mais poderosas, e não como um fenômeno isolado, suspenso num vácuo" (Azenha,1999:28).

No presente artigo, veremos que, na passagem de religiões étnicas para religiões com características universais, as NRJ adquiriram uma nova faceta: a de transmissoras de noções culturais japonesas à sociedade brasileira.

2. Penetração das NRJ no universo religioso brasileiro

O Brasil é uma nação jovem, caracterizada por imensa variedade de etnias, raças, culturas e nacionalidades. No campo da religião, embora seja conhecido como o maior país católico do mundo, possui espaço para a presença de religiões de origem japonesa, trazidas por imigrantes que aqui chegaram há quase um século.[1]

"Novos cruzamentos do Censo 2000 mostram que está crescendo a diversidade religiosa no Brasil. Pela primeira vez, a pesquisa do IBGE detectou adeptos de seis religiões orientais consideradas novas - que surgiram no século XX. Em 1991, apenas duas delas tinham fiéis autodeclarados, mas, em 2000, 151 mil brasileiros se dividiam entre as igrejas orientais Messiânica, Seicho-no-Ie, Hare Krishna, Perfect Liberty, Tenrikyo e Mahicari. O fenômeno é concentrado principalmente no Rio e em São Paulo. Do total de fiéis, 97 mil moram nos dois Estados. O Norte é a região com a menor participação dessas novas religiões: apenas 4.671 pessoas se autodeclararam adeptos de uma das seis igrejas em 2000. O censo revela ainda que a adesão a esses novos ritos é liderada pelas mulheres: para cada 100 fiéis do sexo feminino há apenas 64 homens." (Jornal O Estado de São Paulo, 24 de fevereiro de 2003)

Abaixo, apresentamos dados do Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que ressaltam o crescimento da diversidade religiosa no país.

Tabela 1: Diversidade Religiosa (no Brasil)

Ainda que os dados do IBGE sejam discutíveis do ponto de vista de estudiosos das NRJ ou da ótica das próprias NRJ, não podemos deixar de ressaltar que, gradativamente, as NRJ vêm se tornando mais visíveis no cenário religioso brasileiro.

Exceto a religião Hare Krishna - de origem oriental, porém surgida nos EUA - as demais religiões destacadas pelo IBGE são exemplos de novas religiões originadas no Japão. Em sua maioria foram fundadas na primeira metade do século XX (com exceção da Tenrikyo surgida na segunda metade do século XIX) e são religiões sincréticas, isto é, mesclam aspectos das religiões tradicionais como o Budismo e o Xintoísmo.

Na década de 80, Koichi Mori apresentou um panorama geral das NRJ no Brasil numa tentativa de ordenação da sua história e da vida religiosa dos descendentes de japoneses. Dividiu-as em dois blocos, a partir de sua penetração no seio da população brasileira. De um lado estavam aquelas que conseguiram romper a barreira da etnicidade e foram bem-sucedidas na conquista de seguidores sem ascendência japonesa: Seicho-no-Ie, Igreja Messiânica, PL, Soka Gakkai, Suko Mahikari. No segundo bloco, agrupou as que não ainda conseguiram penetração expressiva entre os não-descendentes: Tenrikyo, Risho-Koseikai e algumas seitas budistas tradicionais.

Segundo o autor, as diferenças entre os dois blocos surgiram devido a diversos fatores: conteúdo da doutrina, estratégia de difusão e época de chegada no Brasil, entre outros. Referindo-se à PL, afirmou que "ao passar da difusão da seita para a doutrinação, mudando rapidamente sua estratégia, tratou de organizar o ensino doutrinário por meio da língua portuguesa e de adaptar os ritos e princípios doutrinários às necessidades locais." E ainda que, dentre as "medidas de localização" adotadas pela Seicho-no-Ie, estava "a formação de mestres-pregadores exímios da língua portuguesa e as traduções para o vernáculo das doutrinas e publicações". Continuou, dizendo que "especial atenção foi dispensada à tradução: não se tratava de transliteração pura e simples para o português. Foram tomados cuidados para adaptar-se ao contexto brasileiro. Este tipo de 'localização' se estende aos ritos e às atividades cotidianas." (Mori, 1988:588-591)

Com relação ao processo de penetração da PL na sociedade brasileira, Nakamaki aponta a mudança do idioma japonês para o português como fator imprescindível: "A maior barreira no processo de aceitação da PL no Brasil foi a língua. Sem comunicação, a difusão seria impossível. Como disse anteriormente, no processo de mudança do japonês para o português, decerto contou-se com o esforço dos missionários japoneses, porém os descendentes nissei serviram como uma ponte muito importante neste processo. Isto não se restringe a PL. Aplica-se à Seicho-no-Ie ou à Soka Gakkai. Assemelha-se à estratégia comercial das empresas japonesas que atribui cargos de diretoria a descendentes nisseis. Por outro lado, há também organizações, a exemplo da Igreja Messiânica, que têm enviado missionários brasileiros ao Japão com freqüência a fim de se especializarem no estudo da língua japonesa."(tradução nossa) (1985:72)

Normalmente, lê-se sobre os aspectos positivos da adaptação das NRJ no Brasil. No entanto, nem sempre tudo é tão simples quanto parece. Em 1990, Paiva assinalou indícios do choque de culturas então vivido pela PL no Brasil. Embora com algumas particularidades, cremos que os pontos citados abaixo se aplicam, em maior ou menor grau, aos choques vividos por outras NRJ em processo de "abrasileiramento". São eles:

Quanto a este temor, continua o autor: "Por isso, foram recolhidos Mestres favoráveis ao abrasileiramento da PL; foram enviados novos Mestres do Japão que, com os antigos, ficam no controle da cúpula, ao passo que os brasileiros são enviados para as frentes de expansão ou para o atendimento direto dos adeptos nas igrejas locais e retirou-se certa autonomia administrativa em proveito de uma organização de alcance continental, confiada a pessoa das mais próximas ao atual Patriarca."(Paiva,1990:192).

3. Influência cultural das NRJ

Há algum tempo, Katsuzo Yamamoto (1985: Prefácio) afirmou que não seria exagero afirmar que a parte da cultura japonesa que mais vem exercendo influências à sociedade brasileira são as NRJ. Em seu estudo sobre a PL, Souza e Albuquerque afirmam que o estudo das NRJ "encaminha questões relevantes como as transformações da cultura religiosa brasileira, a nacionalização de traços culturais estranhos à nossa cultura, os sincretismos, os papéis femininos e masculinos e também uma reflexão sobre os estudos sociológicos da religião no Brasil." (1995:34)

Embora sejam poucas as referências de ordem histórica disponíveis em língua portuguesa sobre as NRJ, é fato que várias delas, bem sucedidas no Brasil, foram fortemente influenciadas por NRJ surgidas ainda no século XIX, as chamadas de "pioneiras": Omoto, Tenrikyo e Konkokyo são alguns exemplos. Como se sabe, a Seicho no Ie e a Igreja Messiânica resultaram da Omoto, religião nascida em 1892, que por sua vez, já havia sofrido influências da Tenrikyo, fundada em 1838, e da Konkokyo, surgida em 1859, ambas consideradas precursoras das NRJ (Kitagawa ,1966:222).[2]

As NR "pioneiras" - como reflexo do seu tempo - trouxeram inovações doutrinárias e exerceram forte influência em todas as demais religiões surgidas posteriormente. Embora se trate de uma visão parcial, freqüentemente se teoriza que as NRJ surgiram como resposta às crises de várias ordens, social, econômica, moral, etc., e com o propósito de atender aos anseios populares e solucionar suas angústias (Takagi:1959; Mc Farland: 1967 e outros. In: Pereira, 1992:32). Por conseguinte, o estudo das NRJ pode ser bastante útil ao aprofundamento das reações do povo japonês diante da extraordinária transição rumo à modernidade.

Por outro lado, do nosso ponto de vista, o estudo expansão das NRJ em terras estrangeiras pode trazer à tona questões de cunho religioso (inclusive doutrinárias), cultural e lingüístico. Em seu estudo sobre as NRJ no Brasil, Mori afirmou que a grande maioria das religiões de origem japonesa "enfatizam valores japoneses, sendo o povo e a cultura japonesa embelezados nacionalisticamente" (Mori, 1988:586).

Atualmente, mais de 150 anos após o seu surgimento, as NRJ (entenda se aqui no sentido amplo, ou seja, tanto as "pioneiras" quanto as mais "recentes") são consideradas pelos especialistas como as religiões mais representativas do Japão em termos de envolvimento e devoção, e já são vistas como principais e mais fortes movimentos religiosos do seu país.

Se a religião é um espelho, mesmo que parcial, da sociedade, deve se dizer que as NRJ encerram em si não apenas questões meramente religiosas, mas também chaves extremamente úteis para se compreender melhor a moderna sociedade japonesa da atualidade e o processo de como ela se formou. Nesta linha de raciocínio, cremos que o estudo das NRJ seja uma das chaves para aprofundar a nossa compreensão sobres as contribuições da colônia japonesa à sociedade brasileira.

4. O caráter universal e as atividades artístico-culturais como facilitadores da expansão no Brasil

Uma das características das NRJ, identificadas pelos estudiosos é o caráter universal de suas doutrinas.[3] Isto permite observar que, no que tange a esse caráter, são movimentos religiosos até então inéditos, e foram criados pelos japoneses justamente quando o país caminhava para a modernidade, ou para a internacionalização (Kotaki,1997:266)[4]. Esse traço universal das NRJ pode justificar a facilidade com que elas se instalaram também no Brasil. Por outro lado, uma outra característica das NRJ é a presença das mulheres tanto na liderança religiosa como no seu corpo de fiéis. Por exemplo, a religião Omoto foi fundada por uma mulher - Nao Deguchi - e a Igreja Messiânica também teve líderes espirituais mulheres (Yoshi Okada e Itsuki Okada). Em nossas investigações in loco, tanto nas unidades da PL quanto nas da IMM, pudemos contatar com um grande número de fiéis mulheres. Em ambas as religiões, mais da metade dos fiéis que responderam a nossos questionários eram mulheres.

Tabela 2: Questionários na PL e IMMB (por gênero)

  Questionários Mulheres Homens
PL 61 42 19
IMMB 65 37 28

No Brasil, o censo 2000 do IBGE, revela que "a adesão a esses novos ritos é liderada pelas mulheres: para cada 100 fiéis do sexo feminino há apenas 64 homens". Diante dessa realidade, nos parece interessante registrar uma possível ligação entre a grande adesão de mulheres às NRJ e a natureza de certas atividades das NRJ. A seguir, citamos algumas formas de contato com NRJ que não são puramente religiosas, e sim de cunho artístico-cultural, que podem ser vistas como um aspecto relevante no poder de atração das NRJ no nosso país.

Atividades artístico-culturais japonesas como a prática do ikebana, cerimônia do chá e cerâmica são objeto de grande interesse e participação das mulheres adeptas de NRJ. Naturalmente sem excluir o público masculino, pode-se afirmar que muitas adeptas das NRJ - transcendendo a questão da empatia puramente religiosa - têm vivenciado as artes ("caminhos") do ikebana e da cerimônia do chá e incorporado valores culturais tipicamente japoneses. Ou seja, no Brasil, as NRJ, além de constituir um caminho para a religião, são vias de acesso à arte e cultura japonesa. Traços universais e atividades artístico-culturais predominantemente praticadas pelo público feminino podem ser considerados alguns dos elementos facilitadores da expansão das NRJ em nosso país.

5. Processo de aculturação: a questão da marginalidade

Roger Bastide, ao analisar o processo de aculturação, criou o "princípio de corte" (1955) que é essencial na sua obra. Em suas pesquisas sobre o universo religioso afro-brasileiro na Bahia, constatou que os negros, ao mesmo tempo em que eram adeptos fervorosos do culto ao Candomblé, também eram agentes perfeitamente adaptados à sociedade moderna. Segundo ele, os negros que vivem em uma sociedade pluricultural cortam o universo social em um certo número de compartimentos isolados, nos quais têm participações de ordem diferente que, por isso mesmo, não lhes parecem contraditórias. Por esta análise, Bastide renovou a abordagem da marginalidade. Para ele, o homem marginal não é alguém que vive entre dois universos sociais e culturais, mas no interior dos dois universos, sem que eles se comuniquem (Cuche, 1999:133-134).

No caso das NRJ introduzidas no Brasil, impreterivelmente houve uma comunicação entre dois universos sócio-culturais distintos. Vejamos, pois, alguns aspectos relativos ao desafio da "convivência" de uma NRJ em nosso país. Conforme defende Fujikura, no caso da PL, houve um processo de inculturação (e não de "aculturação") a fim de que a religião pudesse ser incorporada mais facilmente pelo adepto sem ascendência japonesa. Em seu trabalho, ele cita que "inculturação" é um conceito surgido no âmbito da Teologia ou Missiologia Católica e basicamente desconhecido pelos cientistas sociais e antropólogos (1992:16). Referindo-se ao processo de inculturação da PL, ele descreve um determinado aspecto da reorganização interna da instituição: a dificuldade de organização dos membros por setores levou à introdução de várias modificações a fim de atender à realidade do povo brasileiro."Funcionamos bem a princípio, quando havia apenas japoneses, que já traziam em sua bagagem cultural o conhecimento de Kô (, associações), mas, à medida que aumentava o número de adeptos brasileiros, o sistema foi tornando-se difícil, porque o brasileiro não aceita imposições vindas de outros. É muito ciente de sua individualidade, aceita normas vindas da amizade, respeito, aceitação pessoal, mas não de um chefe com o qual mantém apenas relações na Igreja e a maior parte das vezes não tem afinidades e só deve obedecer. Adaptou-se o sistema. Hoje é mais livre e democrático. O peelista procura orientações com quem ele queira." (Fujikura,1992:74).

Na verdade, ao nosso ver, um século após o início da imigração japonesa para o Brasil - em que o uso do idioma japonês e a transmissão dos costumes e da cultura nipônica entre os descendentes de terceira ou quarta gerações são cada vez menos freqüentes - mesmo adeptos descendentes, muitas vezes, passam a ampliar sua visão sobre determinados aspectos da cultura japonesa após ingressarem em uma NRJ. Analogicamente à pesquisa de Bastide, os nikkeis adeptos de NRJ seriam como os negros - integrantes de uma sociedade pluricultural (no mínimo, a sociedade brasileira e a colônia japonesa) que necessitam "cortar" o seu universo religioso e nele ter participações de ordem diferente, sem se sentirem contraditórios ou marginais. Mas, e quanto ao adepto de NRJ sem ascendência japonesa? Haveria algum momento de marginalidade a partir do contato com uma NRJ?

Acreditamos que sim. E esta marginalidade será tanto maior segundo seu grau de familiaridade com ritos e termos desconhecidos, na maioria japoneses, que são empregados pelas NRJ.

Certa vez ouvimos o seguinte conteúdo de uma pessoa que freqüentou um Johrei Center[5] por cerca de um mês: "Senti que quem freqüenta esta Igreja precisa de uma certa preparação. Tudo é muito diferente, do nosso ponto de vista. Sinto que faltam maiores explicações sobre o altar, reverências etc. Se tivesse continuado a freqüentar, talvez até tivesse entendido melhor, mas... Talvez tenha deixado de ir porque não tinha companhia..."

Decerto, a "marginalidade" dentro das NRJ deve ter sido maior no período inicial de difusão, isto é, na época em que a maioria dos orientadores era de japoneses sem o domínio do idioma português. O número de publicações em português das NRJ também era pequeno e a tradução praticada na época, certamente, tinha suas limitações. Com relação à imagem que se faz da Igreja Messiânica no Brasil (IMMB), o pesquisador Oro apresenta-nos resultados de entrevistas feitas a membros messiânicos. Segundo o autor, os membros têm consciência de que a IMMB é uma religião japonesa. O Japão é um forte ponto de referência para os membros e simpatizantes. Em geral, os seguidores têm a seguinte imagem sobre a sociedade e a cultura japonesas:

Como pudemos ver, o universo cultural japonês esteve e está presente tanto na vida religiosa dos messiânicos quanto dos peelistas. No caso das NRJ no Brasil, o processo de (a/in) culturação ou adaptação será mais expressivo e vidente conforme se dê sua expansão na sociedade brasileira e a adaptação da política institucional de cada NRJ (inclua-se aqui, a política de tradução).

6. Identificação com o universo japonês

Em pesquisa de campo feita a fim de obtermos uma visão inicial sobre as noções culturais japonesas transmitidas pela IMMB e PL e observarmos a questão do uso de termos japoneses, aplicamos questionários com itens semelhantes. >Por meio da pergunta "Quais pontos da Igreja Messiânica/Perfect Liberty lembram o Japão? Isso é benéfico ou prejudicial à expansão da religião messiânica? Por quê?", pudemos verificar a identificação da religião com o Japão, do ponto de vista do messiânico e peelista. Observou-se que a identificação das respectivas NRJ com o Japão se deve aos seguintes elementos listados abaixo em ordem de maior freqüência:

Tabela 3 - Identificação das NRJ com o universo japonês

Igreja Messiânica Quantidade ocorrências Perfect Liberty[6] Quantidade ocorrências
Oração entoada em japonês 24 Termos japoneses 12
Altar com caligrafia em japonês 12 Presença do Oshieoyá-Samá 6
Atividades artísticas (ikebana e cerimônia do chá) 10 Arranjos e cerimônia do chá 6
Termos em japonês 6 Seiti 4
Solo Sagrado 5 Fotos 3
Fundador 4 Cumprimentos 3
Disciplina 4 Cultura 3
Oferendas 4 Indumentária litúrgica 2
Pontualidade 3 Mokkó 2
Doutrina 3 Rigorosidade 2
Reverências 2 Mestres 2
Antepassados 2 Missasaguê 1
Idioma japonês falado por membros japoneses
Oficiantes
Culto
Jardins
Natureza
Limpeza
Ordem
Obediência
Japão: país avançado
Nomes em japonês
1
(por cada elemento)
Mishirassê
Torre da Paz
Disciplina
Reverência
Humildade
1
(por cada elemento)

Verificou-se que, na IMM, a descrição das possíveis identificações com o universo japonês foram mais detalhadas do que na PL. Em nosso contato direto, sentimos que muitos adeptos peelistas não têm uma forte imagem de que sua religião seja de origem japonesa. Em ambas as religiões, a ocorrência mais freqüente esteve ligada à língua japonesa: na PL, os termos japoneses; na IMMB, a oração japonesa. Contudo, na IMMB a identificação com o mundo japonês parece ainda mais reforçada devido ao fato de todas suas unidades religiosas possuírem altares com caligrafias em japonês.[7]

Quanto à pergunta "Você é contra o uso de palavras japonesas na Igreja Messiânica / Perfect Liberty?", em que o adepto opina sobre o uso de termos japoneses, a maioria absoluta, tanto na PL quanto na IMMB, não demonstrou rejeição ao uso de termos japoneses - desde que o significado destes lhes seja compreensível. Nesse caso, a tradução se torna fundamental.

Entretanto, três adeptos peelistas se manifestaram da seguinte forma:

Adepto a: "Sou contra, pois sou brasileira."

Adepto b: "Sou contra, pois estamos no Brasil."

Adepto c: "Sou contra, pois muitos não entendem os termos e sentem vergonha de perguntar."

Na IMMB, houve as seguintes justificativas contra ao uso de termos japoneses:

Membro d: "Sou contra, pois a Igreja é mal interpretada pelas pessoas que vêm pela primeira vez."

Membro e: "Sou contra, pois sou brasileiro."

Dentre as respostas favoráveis ao uso de termos japoneses, destacamos os seguintes depoimentos peelistas:

Adepto g: "Por ser do Japão, acho muito natural."

Adepto h: "O significado às vezes não traduz o sentimento. Por exemplo, makoto."

Adepto i: "Por ser instituição religiosa japonesa, espera ouvir o quê: palavras jamaicanas? Tem que ser tradicionalmente japonesa."

E os seguintes depoimentos messiânicos:

Membro j: "Deve-se buscar uma linguagem mais acessível, mas não eliminar as palavras (japonesas) por completo."

Membro l: "O uso de palavras japonesas envolve mistério."

Membro m: "O uso de palavras japonesas chama a atenção por ser diferente."

Membro n: "Sou indiferente, mas acho que algumas palavras deveriam ser em português."

No caso da IMM, a maioria dos membros não vê problemas em orar em japonês ou usar palavras em japonês, pois lhes é ensinado que a vibração da palavra proferida nesse idioma é maior. Contudo, depoimentos como o membro j, que defende a busca de uma linguagem mais acessível, ou do membro n, que se diz indiferente, mas sugere que "algumas deveriam ser em português", são reflexos da realidade da literatura das NRJ: a necessidade de uma reflexão mais ampla sobre a tradução praticada pelas NRJ.

Visto que a maior parte da doutrina das NRJ disponível em português baseia-se em traduções, muitas vezes há termos difíceis e de pouco uso corrente. A este respeito, certa vez, em conversa com uma Mestre da PL, ouvimos que muitos peelistas, com o passar do tempo, até ampliam seu vocabulário em português devido à grande quantidade de palavras difíceis que eles se deparam durante a leitura dos livros da religião. Imaginamos que isto seja verídico, principalmente em relação às primeiras publicações traduzidas pelas NRJ.

Houve também um depoimento singular. O membro o, da IMMB, manifestou-se contra e a favor do uso de termos japoneses, ao mesmo tempo: "Acho que há termos que precisam ser unificados para atingir a universalidade e esses devem ser mantidos. Mas a maioria deveria ser em português."

Como vimos, não há por parte de peelistas e messiânicos maiores problemas quanto ao assunto. No entanto, se tal questionário tivesse sido aplicado a adeptos brasileiros nos anos 60 ou 70, possivelmente o descontentamento pelo uso exagerado do idioma japonês entre os fiéis e missionários japoneses, a utilização de preces em japonês ou a ênfase a valores culturais tidos como tipicamente japoneses como o respeito excessivo à hierarquia ou supremacia do homem sobre a mulher, entre outros, poderiam ter sido levantados como pontos negativos das NRJ.

7. Conclusão

Acreditamos que o uso de termos japoneses pelos fiéis das NRJ, além de evidenciar o desafio da tradução (em sentido amplo) das NRJ em nosso país, propicia a reflexão sobre a sua prática tradutória, do ponto de vista lingüístico. O discurso doutrinário traduzido e o ritual particular de cada NRJ (ainda) são fontes permanentes de dados culturais japoneses. Obviamente, deixam de o ser à medida que ocorre o processo de "abrasileiramento" das NRJ do Brasil. Como vimos, o adepto das NRJ busca a religião, mas encontra muito mais. Ele se depara com um mundo cultural distinto e fascinante e, por vezes, se vê convidado a mergulhar num oceano desconhecido, com possibilidade de valiosas descobertas. Decerto as "intempéries culturais" acontecerão e os questionamentos não serão poucos. Mas há quem resiste. Se não houvesse, não presenciaríamos a significativa expansão das NRJ entre brasileiros sem ascendência nipônica. A despeito de todo o "abrasileiramento" sofrido pela Igreja Messiânica e Perfect Liberty, o arsenal religioso-cultural japonês presente no universo destas NRJ pode constituir um caminho enriquecedor e instigante no estudo comparativo entre diferentes culturas.

Bibliografia

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Notas

[*] Mestre em Letras - Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

[1] A imigração japonesa ao Brasil iniciou-se em 1908 e é um fenômeno que pode ser dividido em duas etapas: anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial. Estima-se que, atualmente, existam em torno de sessenta grupos diferentes de NRJ no Brasil (Pereira 2001:101).

[2] AKASAKA. Emely E.T. (Introdução) Na bibliografia: KITAGAWA, Joseph M. Religion in Japanese History, New York / London: Columbia University Press, 1966, pp.177-261.

[3] Antes do surgimento das Novas Religiões, eram apontadas no Japão cinco maiores tradições religiosas: o Xintoísmo, o Budismo, o Taoísmo, o Confucionismo e as Crenças Populares (Minkan Shinko) (Pereira 1992:23). Dentre elas, o Xintoísmo e as Crenças Populares são nativas, porém nenhuma delas apresenta caráter "universal" ou, em outras palavras, ensinamentos que se adaptem facilmente a outros povos ou países, transcendendo as particularidades de cada sociedade.

[4] AKASAKA.Emely E.T. (Introdução) Na bibliografia: KOTAKI, Tooru. Kamigami no Mezame, Kindai Nippon no Shukyo Kakumi (Despertar dos deuses, a revolução religiosa no Japão Moderno) Tóquio: Shunshosha 278 p. 1997.

[5] Nomenclatura que designa as unidades religiosas da Igreja Messiânica desde 2000.

[6] Explicação dos termos japoneses da PL: Seiti (Terra Sagrada) , Oshieoyá-Samá (Pai dos Ensinamentos; Fundador) e mokkó (atividade física realizada pelos peelistas por ocasião de retiros espirituais na Terra Sagrada), Missassaguê (servir espontâneo), Mishirassê (advertência divina). Maiores explicações sobre termos japoneses podem ser obtidas nos glossários da PL e IMMB inclusos em nossa dissertação de Mestrado (Tomita, 2004).

[7] Segundo Rogério Hetmaneck, reverendo da IMMB , existe um Johrei Center localizado numa colônia alemã na cidade de Santa Cruz do Sul, no RS, no qual o altar não é uma caligrafia japonesa. Ele assemelha-se ao Ohikari (medalha usada pelos messiânicos). Na África, o altar também não segue o padrão brasileiro de caligrafia japonesa.