Jesus, a Galiléia e o Império: protesto e ação contra a desordem mundial ontem e hoje
Entrevista[*] com Richard Horsley[**]

Jorge Claudio Noel Ribeiro Júnior[***] []

RH - Quando estudamos Jesus apenas o comparamos aos fariseus e saduceus, mas estes eram intelectuais, uma pequena parte da população. O que dizer dos 95% das pessoas que moravam em vila? Elas produziram movimentos que conhecemos através da história. Quero pesquisar sobre os movimentos populares porque nos conectam mais proximamente a Jesus.

Quais são esses movimentos populares?

RH - Na Galiléia e na Judéia do tempo de Jesus, com freqüência movimentos queriam romper a ordem vigente e alguns eram bandidos comuns. Eram como Robin Hoods que davam apoio ao povo. O banditismo ocorre em muitas sociedades.

Mais característicos da Galiléia e da Judéia eram os profetas e messias populares, de que temos muitos exemplos, e que eram proclamados reis e lideravam rebeliões.

Esses movimentos eram frequentes?

RH - Não sabemos, porque as fontes eram limitadas. Mas muitos movimentos messiânicos aconteciam ao longo do tempo. Herodes, um rei cruel, morreu e em seguida ocorreram muitas proclamações de reis populares. Os movimentos proféticos aconteceram um pouco mais tarde, no tempo de Jesus.

Havia conexão entre os profetas e os bandidos?

RH - Os bandidos não faziam conexão com outros movimentos, com uma exceção: quando o bandido era muito conhecido, sua família também era conhecida. Na Galiléia, o filho de um bandido famoso se tornou um messias popular na época em que Jesus nasceu. Seu nome era Judas, filho de Ezequias. Esses messias se inspiravam nas histórias do jovem Davi ou do jovem Salomão. Lembremos que a Bíblia hebraica relata que os judeus sofriam o jugo dos filisteus, que roubavam suas colheitas. Davi e seus companheiros se refugiaram nos morros onde formaram um grupo de bandidos e em torno deles as pessoas se agruparam e tornaram Davi seu rei para lutar contra os filisteus. Assim, o povo se lembrava de histórias como esta.

Quando vieram os romanos e impuseram seu domínio, eles recuperaram essas histórias e nelas apoiaram seu movimento.

Davi então foi uma referência sempre utilizada?

RH - Sim. Mas era o jovem Davi e não o rei imperial, que ficava à vontade com suas concubinas e se apoiava em seu exército profissional e no Templo.

Houve então uma reinterpretação do mito?

RH - Sim, os pais contavam aos filhos essas histórias e naturalmente os movimentos as recuperavam.

E como isso tudo se relaciona a Jesus?

RH - Ocorreram ao menos três movimentos no tempo em que Jesus nasceu. Esses messias se chamavam Atronges, na Judéia; Simão a leste do rio Jordão; Judas na Galiléia. E havia outros que nunca "apareceram nos jornais". Duas gerações depois, durante os anos 60 do primeiro século, apareceu Simão Bar Giora, que ficou mais famoso porque os romanos o capturaram e o levaram a Roma para uma procissão triunfal, em que eram apresentados os rebeldes acorrentados, depois publicamente executados. Simão foi apresentado como o "Rei dos Judeus". Da mesma forma, houve diversos movimentos proféticos em torno de algum "novo Moisés" ou "novo Josué". Esses grupos se reuniam à beira do Jordão esperando que as águas se dividissem. Ou subiam o morro e viam Jerusalém do alto e o profeta dizia que quando desse o sinal os muros cairiam, tal como Josué fez na batalha de Jericó.

Pois no tempo de Jesus, essas idéias corriam e todos as conheciam. Essas idéias eram referência para Jesus e seus seguidores.

Quais as diferenças e semelhanças entre Jesus e esses heróis?

RH - No Evangelho de Marcos, Jesus é apresentado como renovador de Israel e, tal como Moisés, ele atravessa o mar e dá alimento no deserto. Jesus era como um novo Moisés e, também como um novo Eliseu, faz curas. Jesus chama 12 discípulos, ele cura uma mulher com hemorragia durante 12 anos e uma garota de 12 anos, número que remete às 12 tribos Israel. Jesus apresenta seus ensinamentos como a Aliança de um novo Moisés. Essa é a imagem que Marcos quer passar. Todas essas passagens e também os gestos dos profetas do tempo de Jesus remetem à idéia da renovação de Israel: assim, Jesus e esses profetas são muito semelhantes. Mas há uma diferença, pois os profetas conduzem seus seguidores para fora das comunidades, para o deserto, enquanto Jesus entra nas vilas e também envia seus discípulos para as vilas, para pregar e curar. Jesus faz seu ensinamento de Aliança nas vilas e renova assim as comunidades, ambiente em que as pessoas cuidavam umas das outras.

Havia assim a percepção de que o novo mundo se ancorava no antigo?

RH - Sim, as pessoas sofriam a escravidão, a opressão e impostos pesados. Jesus vinha renovar as tradições e, ao invés de as pessoas se entregarem ao desânimo, deveriam lutar juntas e cooperar umas com as outras de modo a manter a comunidade unida e se defender da exploração dos romanos através de Herodes.

E isso era novo?

RH – Sim, o que Jesus fazia era novo, como um novo tipo de profeta. Ele fazia coisas que os outros não faziam. Jesus inclusive marchou para Jerusalém, onde enfrentou os legisladores. Essa entrada triunfal ocorreu no Domingo de Ramos, quando se fazia um festival e havia multidões com milhares de pessoas, o que representava um tipo de proteção contra as autoridades. Foi como uma demonstração messiânica contra o poder romano e do sumo sacerdote. Jesus chega montado num burrinho, cumprindo a profecia de que seu rei chegaria triunfante mas humildemente montado nesse animal, como um camponês. Jesus é um messias popular, ao alcance da saudação do povo e protagoniza um sinal do poder popular, um aviso de que "não mexam muito conosco; vejam o que podemos fazer, se quisermos". Não é uma ação revolucionária, mas é um protesto encoberto pelo anonimato e pelo festival religioso.

Jesus era um revolucionário social, um líder espiritual, ou o quê? Como ele via a si mesmo?

RH - Jesus não é um revolucionário político que convoca à revolta, ao contrário dos outros messias que lutavam com armas contra as tropas romanas. Mas ele é um revolucionário social enquanto organizava as comunidades e mantinha as pessoas unidas; também é um revolucionário espiritual, que não se pode separar do social. O poder de seu Espírito inspira as pessoas a agir localmente juntas. Veja como é econômica a oração do Pai Nosso em que Jesus pede que "venha a nós o vosso reino", "dá-nos o pão" e "cancela nossas dívidas". Isso é revolucionário! Esse é o pacto tradicional de Moisés, que não era mais observada pelas elites, que cobravam juros, escravizavam as pessoas por suas dívidas. Jesus era um revolucionário.

No sentido de que dava poder ao povo

RH - Exatamente, "power to the people"! Os Evangelhos chamam a isso "atos de poder", e não milagres ou magia - curas, exorcismos. Não são sinais, pois, em si, são crescimento em poder através de Jesus Cristo, como canal espiritual, pelo qual as pessoas não têm mais o demônio nelas nem a paralisia. Isso se aplica a indivíduos e a comunidades que adquirem poder.

Qual a diferença entre o Jesus das escrituras e tradições e o “Jesus real”?

RH - Você quer dizer o Jesus histórico, certo? Pois os estudiosos europeus e norte-americanos estão em busca do Jesus histórico e tentam chegar bem perto do Jesus real. O problema é que querem ler a Bíblia nos detalhes, numa abordagem positivista. Procuram descobrir o que Jesus disse realmente.

Mas eu tenho uma postura diferente deles, e penso que o mais perto que podemos chegar de Jesus é o evangelho mais antigo, de Marcos, e os discursos coincidentes em Mateus e Lucas. As vezes chamamos a isso de Versão Q, de Quelle, que significa "fonte".

Nosso entrevistado também escreveu este livro Arqueologia, história e sociedade na Galiléia: o contexto social de Jesus e dos rabis e sobre essa obra vamos conversar

RH - Havia muito interesse em torno da Versão Q porque os pesquisadores diziam "esse é o material mais antigo, que nos leva diretamente a Jesus". O problema é que separam Jesus das pessoas a quem ele se dirigia, e aí não acontecia comunicação... Mas se você olha para o material coincidente nos evangelhos de Mateus e de Lucas, em que Jesus envia os discípulos em missão, diz para não se preocuparem com o dia de amanhã, amarem os inimigos, é preciso perceber um significado mais amplo do que Jesus dizia a partir da conexão dele com seus seguidores e não se pode separar Jesus deles. Essa é uma falsa questão. Não se pode saber quem é uma pessoa sem levar em conta sua família, seus amigos. Jesus não está sozinho, não é uma figura isolada. Temos de entendê-lo em seu contexto local e histórico. Essa relação dá uma visão melhor acerca das preocupações de Jesus e que foram continuadas por seus seguidores à medida que contavam e recontavam seus discursos. Também devemos compreender que essa relação se dava num contexto histórico e arqueológico da sociedade da Galiléia. Os estudos bíblicos procuram decifrar conceitos muito amplos. Por exemplo, o que é judaísmo? Soa como budismo, hinduísmo - será uma religião? Espere aí, mas era também uma sociedade, como o Brasil, e é preciso saber o formato peculiar da sociedade em que Jesus estava inserido. O evangelho diz que Jesus entrava nas vilas, nas sinagogas. Ora, "sinagoga" significa assembléia da vila, uma forma de autogoverno, em que as pessoas se reúnem para rezar, para resolver problemas como o fornecimento de água. Era aí que Jesus falava e para onde enviava os discípulos, lá onde as pessoas realmente viviam. É preciso ler conjuntamente as fontes históricas e as provas arqueológicas e fazer as perguntas sobre a estrutura social. Claro, não eram as grandes cidades, como São Paulo, onde os legisladores viviam e o povo jamais chegava. Jesus só foi lá no final de sua vida, quando foi torturado. Meu livro procura dar uma compreensão mais precisa de como era a Galiléia.

Quais as principais características dessas sociedades?

RH - Pois, 95% da população viviam em centenas dessas vilas; eram muito pobres e quase não tinham o que comer. Isso era devido a impostos altos, o que os empobrecia mais e os obrigava a abandonar a terra ou dividir as colheitas. As elites enviavam para essas vilas seus agentes de cobrança. Elite e povo não gostavam um dos outro, era uma sociedade absolutamente dividida, com extrema distância de pobreza e riqueza.

Qual é o problema entre Jesus e o império?

RH - Esse livro responde ao que aconteceu em 11 de setembro de 2001, em Nova York e no Pentágono, em Washington DC. Pensemos no simbolismo envolvido aqui. Os aviões atingiram as torres do International Trade Center, símbolo do capitalismo global, e também o Pentágono, símbolo do poder militar que protege o sistema econômico global

E foram utilizados aviões, símbolos do consumismo...

RH - Isso, isso! Quando vi esses eventos, pensei: "Atenção aí. O povo americano vai responder; mais importante, o governo vai fazer algo que será muito difícil". Há algo de que os outros países não se dão conta: meu país se vê não apenas como "o Novo Israel", mas como "a Nova Roma" - essa identidade está muito entranhada na cultura e história norte-americanas. Isso vem do tempo de Thomas Jefferson. Os prédios públicos da Capital seguem um padrão romano clássico: é a Nova Roma! Os líderes norte-americanos sempre falaram nesses termos. Inicialmente não havia essa intenção, mas gradualmente passou-se a falar em toda parte que éramos o "Império da Liberdade","da Virtude" ou "das novas possibilidades para o povo".Durante muito tempo se falou em Destino Manifesto, havia o senso de que os EUA são o novo lugar onde se realiza a Antiga Roma. Isso tudo aflorou em 11 de setembro, com a Administração Bush e setores conservadores que ocupam altas posições no governo. Se você pergunta às pessoas comuns se querem o país como Império, elas dirão que não, e que isso as embaraça. Mas essa idéia está profundamente enraizada no país, e suas igrejas sempre deram apoio a ela.

Igrejas protestantes e católicas?

RH - Protestantes e católicas, sobretudo as protestantes. E não só a Direita Cristã. As igrejas tradicionais sempre foram a favor da invasão de Cuba, das Filipinas, de se apropriar de metade do México. Essa idéia do Império estava profundamente arraigada em nós e tomamos contato com isso em nós por ocasião do 11 de setembro. A administração Bush e outros setores queriam as bênçãos de Jesus para a retaliação aos ataques.

Trata-se, então, de uma camada profunda de mentalidade imperial

RH - Sim, mentalidade imperial que coincide diretamente com a interpretação norte-americana da Bíblia. Oficialmente há separação entre política e religião. Diz-se que "Jesus é religioso, e não político".

Poderia dar exemplos desse ponto de vista?

RH - As igrejas cristãs consideravam que, assim como elas, o governo dos EUA é missionário e juntos têm a missão de civilizar o resto do mundo. Os missionários acompanhavam os navios de guerra para civilizar os povos e as igrejas aceitaram quando o presidente Roosevelt declarou que às vezes é preciso empregar a força nessa tarefa. As igrejas questionaram muito pouco essa idéia. Mais importante é dizer "Deus abençoe a América" e apresentar as Escrituras ao governo, o presidente, especialmente em tempo de crise. Eu estava com medo de que essa atitude ocorresse. E pensava: "Espera aí, eu estudo Jesus e sei que ele foi crucificado pelos romanos, que era uma forma de castigo para agitadores da ordem imperial romana. Eu sei que a história de Jesus começou com o decreto de César de que todo mundo deveria pagar tributo, o que forçou Maria e José a ir a Belém. César Augusto proclamava que traria a paz ao mundo, mas o menino Jesus nasceu numa manjedoura e os anjos anunciavam 'este é que é o salvador contra o salvador imperial’. Desde esse momento até sua crucifixão, Jesus não esteve a favor de Roma e sim contra ela, foi um desafio a Roma. É preciso investigar isso mais profundamente".

Então há dois tipos de Jesus: o norte-americano e o verdadeiro...

RH - É, o Jesus do resto das pessoas, no Brasil e nos demais países.

Quando Jesus foi contra o império romano?

RH - Claro, talvez o primeiro passo seja indicar como os romanos conquistaram a Judéia e os efeitos disso.

Essa região era importante para os romanos?

RH - Sim, pois Judéia e Galiléia estavam na fronteira com o Oriente, uma base para a conquista e controle dessa situação. Só recentemente a história tem sido mais honesta acerca dos métodos romanos, que eram totalmente brutais. Eles destruíam e queimavam vilas sistematicamente, massacravam e escravizavam as populações e crucificavam a quem resistia em execuções públicas com o objetivo de aterrorizar os povos e submetê-los. Os romanos fizeram assim na Galiléia, perto de onde Jesus nasceu. A partir de Kossovo, da Bósnia, percebemos o quanto essas ações deixam traumas: as pessoas são mortas, seus parentes são executados. Chamamos a isso de trauma coletivo. Jesus cresceu nesse ambiente, em Nazaré. Os romanos implantavam ditadores, tal como os EUA fizeram com Somoza na Nicarágua, Ferdinando Marcos nas Filipinas, ou o Xá do Irã. Os romanos implantaram ditaduras militares na Judéia, os americanos ainda fizeram isso no Brasil, no Chile com Pinochet, na Indonésia. É numa situação assim que Jesus cresceu e desenvolveu seu ministério. As pessoas sabiam que os romanos mantinham o Sumo Sacerdote no poder. Jesus sabia disso, e o primo dele também, e perdeu a cabeça por ter profetizado contra o líder local apoiado pelos romanos. Em função disso, a vida das pessoas se desintegrava, elas ficavam doentes, tinham paralisia de medo de enfrentar os romanos. No caso da possessão demoníaca, qual era o nome do demônio? Era "legião", ou tropa romana. A primeira ação de Jesus foram curas, exorcismos, para liberar os efeitos do imperialismo, dos quais o primeiro era o medo. Sua mensagem era "o filho de Deus está aqui para trazer esperança" e suas manifestações tornavam as pessoas esperançosas. Um indício claro é que Jesus vai às vilas para fazer a pregação de uma renovação da Aliança e de novos comportamentos como amar os inimigos fazer o bem entre os vizinhos, cuidar uns dos outros, não julgar; Jesus mantinha as pessoas juntas para reconstruir as comunidades. Isso tudo ajudava o povo a combater os efeitos do Império. Mas Jesus também marchou até Jerusalém, onde os romanos mantinham no poder seus aliados, como o Sumo Sacerdote, o governador. Eles deviam seus empregos aos romanos e os obedeciam em tudo. A religião oficial estava muito próxima do poder. Ao chegar a Jerusalém, Jesus fez três coisas, pelo menos. Ele lidera uma manifestação messiânica ao desfilar em meio a um festival que atraía multidões, cumprindo a profecia de Zacarias 9,9 de que o rei viria em triunfo, mas humilde e montando um burrinho. Um messias camponês que representava o poder do povo. O povo emitia a mensagem: "Olhem o que está acontecendo, é melhor vocês aí de cima tomarem cuidado". Tentamos fazer isso hoje, em manifestações, comícios. A segunda coisa que Jesus fez foi pronunciar profecias de que Deus condenava os legisladores de Jerusalém, o Sumo Sacerdote e o Templo, para onde ele foi, expulsou os vendilhões e, como Jeremias, emitiu a condenação divina contra os que exploram o povo para enriquecer e enfeitar o Templo com ouro e para manter o estilo de vida da elite. Ele condenou o sumo Sacerdote e os escribas que devoram casas do povo e exploram as viúvas. Além disso, e não lemos habitualmente o Evangelho desse modo, algo acontece quando os fariseus querem pegar Jesus em contradição e lhe perguntam se deviam ou não pagar o tributo a César. Jesus os remete aos dez mandamentos: qual é o primeiro? "Não tenham outros deuses senão a mim". Naquele tempo, César era deus. Segundo mandamento? "Não façam imagens de outros deuses e não lhes façam oferendas". Pois durante a infância de Jesus, alguns fariseus organizaram a resistência contra o tributo, considerado ilegal, porque só há um Deus e não consideramos César nosso senhor. No entanto, mais tarde eles fizeram essa pergunta a Jesus, mas só para montar uma armadilha, pois sabiam que não se devia pagar o tributo. Se Jesus respondesse que não se pagasse tributo a César, os fariseus o entregariam aos romanos, como rebelde. Jesus parece sem saída, mas ele é esperto... Preste atenção no que ele diz: "Dai a César o que pertence a César e a Deus o que pertence Deus". A chave está na palavra "pertence" porque todo mundo sabia o que era de César: nada! O que é de Deus? Tudo! Assim, Jesus dizia que não reconhecia o tributo a César. Nos EUA temos a separação entre igrejas e Estado. As pessoas pagam imposto ao governo e dão dinheiro para sua igreja. No império romano, tudo pertencia a César. Esse episódio mostra que Jesus era um líder da resistência ao império. Qual a conseqüência disso? Ele foi preso e crucificado como um líder rebelde.

Voltando a 11 de setembro. Nos EUA, como convivem o Jesus do sistema e o Jesus da resistência?

RH - Não convivem! O Jesus do sistema é representado pela Direita Cristã, que esteve muito próxima da gestão Bush e do Partido Republicano, embora comecem a surgir fissuras. Por outro lado, as principais igrejas - como a Presbiteriana, Metodista, Batista, Luterana - não estão tão ansiosas para apoiar o imperialismo e estão muito mais críticas em sua pregação e apresentando o Jesus dos Evangelhos que era contra o império americano.

Como vê o panorama religioso nos EUA atualmente?

RH - Está começando a mudar um pouco. O grupo denominado "evangélicos" se apóia muito na Bíblia numa leitura muito literal e se dedica intensamente ao que eles mesmos pensam que a Bíblia diz. Mas eles vêem que a Bíblia fala de justiça e dos pobres. Assim, mesmo evangélicos que são contrários ao aborto e ao casamento gay querem ser fiéis à Escritura em assuntos de justiça com o pobre e em assuntos sociais mais amplos e parecem estar repensando suas posições políticas. As igrejas tradicionais estão um pouco intimidadas, porque, enquanto seus líderes fazem pronunciamentos fortes, elas estão perdendo fiéis para as "mega-igrejas" evangélicas, do mesmo modo como aqui no Brasil.

Isso parece acontecer também no hinduísmo. As grandes religiões estão perdendo fiéis em muitos países.

RH - Sim, isso acontece com as igrejas estabelecidas e as lideranças são mais progressistas que as pessoas comuns que pertencem a elas.

Ouvindo sua fala, fiquei pensando se o senhor é socialista, um crente, um teólogo da libertação?

RH - Aprendi muito com a Teologia da Libertação, brasileira e latino-americana. Eu me lembro dos anos 70-80, quando comecei minha carreira como pesquisador do Novo Testamento e via a Teologia da Libertação reinterpretando a escola tradicional que era muito conservadora e mostrando que podia fazer algo novo, melhor. Assim, eu também faço novas questões, busco a história social e vejo que religião e política não podem ser separadas, que o texto bíblico e em particular o Evangelho tem implicações políticas e econômicas. Essas tendências deságuam em posições socialistas, afinal o cristianismo primitivo apresentado nos Atos dos Apóstolos e o socialismo têm algo em comum, cooperam entre si. O Antigo Testamento proíbe cobrar juros, o que não é nada bom para o capitalismo, para Wall Street. Há tensões porque vivemos no mundo real e precisamos nos comprometer com um mínimo de justiça que garanta alimento para os pobres e sobrevivência para a humanidade. A crise ecológica mostra que a criação divina está mergulhada em desordem.

Diante disso, o senhor tem esperança?

RH - Sim, eu penso que sou um otimista porque estou convencido de que as pessoas podem organizar-se, ainda temos direitos políticos, como no Brasil. Talvez as igrejas sejam boas organizadoras das bases para cooperar com a organização política da sociedade.

Notas

[*] Entrevista original concedida à TV PUC, agosto de 2008.

[**] Professor nas áreas de línguas clássicas e da religião da University of Massachusetts, Boston, EUA

[***] Professor do Departamento de Ciência da Religião, PUC-SP.