Ensino Religioso: educação pró-ativa para a tolerância

Marili Bassini[*]

Resumo

Este artigo pretende mostrar como foi desenvolvido o trabalho junto aos professores da rede pública de ensino do Estado de São Paulo para a implantação da disciplina Ensino Religioso, cujo objetivo foi o de desenvolver a tolerância entre as escolas e comunidades através do estudo da História das Religiões como patrimônio cultural da humanidade. Na primeira parte utilizamos as proposições teóricas de Roger Chartier, apresentando a diversidade cultural como uma construção e representação humanas. Na segunda parte, apontamos exemplos acerca da religião como uma construção histórica; também apresentamos atividades para o trabalho em sala de aula com os alunos.

Abstract

The article reflects upon the process of the training of teachers at public schools in the State of Sao Paulo in the field of Religious Education. The main target of the training was to develop an attitude of tolerance through historical study of Religion in the sense of the mankind’s common cultural heritage. After having summarized the approach of Roger Chartier as theoretical reference the author gives some examples of how religion should be understood as historical construction. The final part discusses the practical consequences that this understanding has for religious education at public schools.

O objetivo deste artigo é mostrar, ainda que resumidamente, como foram desenvolvidos os conceitos acerca do estudo de História das Religiões trabalhados com os professores da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo nos cursos de capacitação nas Diretorias de Ensino, como parte do projeto para a implantação da disciplina de Ensino Religioso na rede. Esse projeto foi uma parceria entre a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e a Universidade de Campinas (UNICAMP). Os textos contendo proposta conceitual e teórica foram elaborados pelos professores doutores Eliane Moura da Silva e Leandro Karnal, do Departamento de História da UNICAMP.

Ao abrir o jornal em uma manhã durante a semana, não foi difícil comprovar tudo o que desenvolvemos acerca do Ensino Religioso durante o projeto da Secretaria da Educação e Unicamp na vigência do ano de 2003. A morte do líder do Hamas[1] nos trouxe a infeliz evidência do que discutimos durante todo o projeto: milhares de pessoas estão se matando em função da religião, usando-a como desculpa para “resolver” questões políticas, econômicas e sociais.

Um estudo sistematizado acerca da História das Religiões tornou-se necessário não só pela importância que traz para a compreensão cultural da humanidade, mas porque, especialmente nos dias de hoje, ajuda a entender alguns conflitos que colocam a religião como pressuposto de intolerância. Os cursos, nas Diretorias de Ensino, tinham a duração de 4 a 8 horas, dependo do número de professores e da localização delas, haja vista que os cursos foram ministrados nas mais variadas e distantes cidades dentro do Estado de São Paulo. Nesses cursos foram desenvolvidas, na prática de sala de aula, as brochuras[2] produzidas pelos professores da UNICAMP, privilegiando sua ênfase teórica, bem como sugerindo atividades para o desenvolvimento dessa disciplina. A pluralidade cultural encontrada nessas Diretorias de Ensino, as mais variadas dúvidas e necessidades, vieram a comprovar aquilo que falávamos nas primeiras reuniões com Assistentes Técnicos Pedagógicos (ATP’s) e Supervisores de Ensino em São Paulo:[3] vivemos numa sociedade pluralizada, com diferentes culturas que devem ser entendidas nas suas diferenças e respeitadas da mesma forma.

Assim, o objetivo geral foi desenvolver estudos que levassem à compreensão do outro, em sua diversidade cultural, entendendo os valores e tradições inseridos em sua cultura. Esse, sem dúvida, foi um exercício difícil, pois todos temos nossos valores enraizados, com nosso legado cultural, e entender o “outro”, sua cultura e tradição, significava deixar de ter a nossa própria cultura como “melhor”, “correta”, e analisarmos as demais culturas em seus universos específicos. Isso significava não só aceitar a diferença como aspecto central da existência de grupos e comunidades, como também desenvolver um senso crítico capaz de distinguir as ações e atitudes de intolerância cultural e religiosa.

O respeito às outras culturas passa pelo conhecimento. Portanto, o trabalho desenvolvido visava conhecer essas culturas mediante pesquisa, relatos e textos, enfim, por meio dos mais variados materiais e vivências possíveis. Isso implicou em sérias discussões ao longo dos cursos, já que entender o pressuposto religioso do “homem-bomba”, por exemplo, não significava concordar com ele: nesse caso específico, tão explorado pela mídia, tratava-se de compreender as implicações políticas de todos os envolvidos nesse tipo de episódio. Portanto, assim como foi abordado no material produzido pelos professores da UNICAMP, o respeito à vida deveria constar como pressuposto universal, ainda que se questionasse a idéia de universalidade e de produção do discurso.[4]

Outro fator importante para o desenvolvimento do projeto foi a participação efetiva dos professores da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo. Suas experiências, empenho, dedicação, pesquisa e boa vontade, apesar de todas as dificuldades que sabemos existir no ensino público, fizeram com que nosso objetivo fosse completamente atingido. A eles, todos os créditos pelo sucesso.

A diversidade cultural

A idéia central desenvolvida em todos os encontros de capacitação dos profissionais da rede pública de ensino de São Paulo (ATP’s, diretores, professores) foi a de chamar a atenção para a diversidade cultural existente entre os vários lugares do mundo e também dentro de nosso próprio país, Estado, cidade ou bairro. Evidenciada a diversidade cultural, o passo seguinte era mostrar como isso acontecia também com as religiões. Para isso, fomos levantando exemplos de costumes, tradições, ritos e comidas, até chegarmos à noção de tempo. Não é necessário ir muito longe para observar que nossas sociedades são marcadas por diferenças culturais. A própria unidade temporal tem uma organização religiosa. No Ocidente, marcamos o tempo a partir da crença em Jesus Cristo, daí a identificação com a.C e d.C., ou seja, antes e depois ao nascimento de Cristo, o chamado calendário gregoriano. Outras culturas também têm o marco temporal baseado em suas crenças religiosas: tendo como referencial comparativo o calendário do Ocidente, os judeus estão no ano religioso de 5.764, enquanto que os muçulmanos estão em 1.382.

O calendário judaico traz como referência o cumprimento dos preceitos religiosos que estabelecem os ritos e comemorações em determinados dias do mês e do ano. Assim, o “ciclo semanal, marcado pela comemoração do shabat, [...] é determinada igualmente pelos ciclos solar e lunar, e, a cada sete ocasos, o sétimo marcava o início do shabat[5]. [...] Os dias da semana, com exceção do shabat, não têm nomes específicos, sendo designados, em hebraico, pelo original correspondente: primeiro (domingo), segundo etc. Em tempos antigos, cada ciclo mensal era determinado pelo aparecimento visível da lua nova, constatado por duas testemunhas que informavam a autoridade rabínica. Essa informação tinha de ser rapidamente repassada a todas as comunidades judaicas, para a celebração do ‘Rosh Chodesh’ – o primeiro dia do mês – e das demais festividades do mês, e isso era feito por sinais visuais (fumaça, fogo), com as inevitáveis confusões, imprecisões e atrasos que esse método suscitava. Além disso, o ciclo lunar não era múltiplo exato do ciclo solar: fora medido pelos astrônomos rabínicos em 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 3 segundos. Em relação ao ciclo anual essa discrepância se acentuava, pois o ano lunar tinha 354 dias, 8 horas, 48 minutos e 36 segundos, e o solar 365 dias, 6 horas e 48 segundos. Para se montar um calendário fixo, que serviria de referência estável a todas as datas e festividades era preciso sincronizá-lo com o ciclo anual astronômico, como marcado pelo calendário universal solar. A concepção e a aprovação desse calendário lunissolar, e 358 a.D., gerou discussões e divergências entre rabinos e especialistas que duraram um século, até a sua final implementação. O sistema de compensação, bastante complexo, baseia-se em acréscimos que variam ciclicamente, em alguns níveis diferentes. São 12 meses, contados diferentemente nos anos civil e religioso: Tishrei é o primeiro mês do ano religioso e o sétimo do ano civil, assim constituído: Nissan, Iar, Sivan, Tamuz, Av, Elul, Tishrei, Cheshvan, Kislev, Tevet Shevat, Adar. Os meses de Iar, Tamuz, Elul, Tevet e Adar têm sempre 29 dias; Nissan, Sivan, Av, Tisherei e Shevat têm sempre 30 dias; Cheshvan e Kislev podem variar entre 29 e 30 dias, de acordo com o ano, para evitar que certas festividades recaiam em determinados dias da semana (o Iom Kipur, por exemplo, não deve cair nunca na sexta-feira ou num domingo). O ciclo de ajuste do calendário solar tem 19 anos, em sete dos quais o calendário judaico intercala o 13º mês de 29 dias entre Adar e Nissan, no terceiro, no sexto, no oitavo, no décimo primeiro, no décimo quarto, no décimo sétimo e no décimo nono anos do ciclo. A contagem dos anos pelo calendário judaico tem como marco o primeiro dia ‘Rosh Hashaná’, e, como ponto de partida, a Criação do Universo por Deus, o que representa 3.760 anos a mais que os contados pelo calendário gregoriano, a partir do nascimento de Jesus. Apesar de hoje usarem o calendário universal para todos os efeitos de sua vida civil, inclusive Israel, os judeus têm as datas do calendário judaico como referência para os rituais religiosos, as comemorações e festividades.”[6]

No caso dos muçulmanos, é a Hégira que estabelece o início da era muçulmana: “Em árabe, ‘hijra’, ‘êxodo’. Emigração voluntária do profeta Maomé em 622, deixando sua cidade natal Meca para localizar-se no oásis de Yatríb, logo depois denominado Medina (cidade do profeta). Essa data, de capital importância para a história do Islã, é extremamente difícil de ser determinada com precisão. De qualquer modo, ela não só anuncia a criação do primeiro Estado islâmico do planeta – o de Medina –, como estabelece o início da era muçulmana: 15 de julho, ano 622 do calendário cristão. Além do mais, foi a partir da hégira que Maomé tornou-se um líder político, verdadeiro chefe de Estado. [...] Quando, [...] o Profeta retorna a Meca triunfante e a Caaba passa a ser o templo por excelência, as bases do Islã estava historicamente assentadas.”[7]

A atividade proposta foi a de estabelecer um marco referencial dessas três grandes religiões monoteístas. Através da comparação entre semelhanças e diferenças foi possível mostrar que a diversidade entre elas parte de pressupostos religiosos e culturais que acabam por definir sua organização, seja no tocante às festas religiosas, seja em relação às questões de organização do Estado.

Como atividade a ser desenvolvida, o professor pode estabelecer três grandes retas, indicativas do tempo cronológico, e colocar o ano inicial para cada uma das religiões (judaica, cristã e muçulmana), ilustrando com fotos e pequenos textos explicativos sobre a organização cultural de cada uma dessas religiões; à medida que a pesquisa fosse desenvolvida, a reta deveria ser completada com datas importantes na história de cada uma dessas religiões.



[8]


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Algumas questões poderiam ser respondidas no início desse exercício:

  1. O que significa o ano indicado na reta referente aos judeus?
  2. Que elementos aparecem nas figuras e o que representam para as suas respectivas religiões?
  3. A que lugar se refere a figura relacionada aos muçulmanos? Onde se localiza?

A observação das imagens permite uma investigação acerca dos significados dos símbolos, ritos e festividades, entre outras características próprias de cada religião. Uma possibilidade seria pesquisar o significado do candelabro de sete braços para a cultura judaica: "O candelabro, em hebraico 'menorah', luminária, é um dos objetos litúrgicos do judaísmo. Fabricado por Moisés segundo instruções divinas (Ex 25, 30-40), foi colocado no templo de Salomão. Desapareceu quando da conquista de Jerusalém pelos babilônios. Segunda a lenda, foi escondido e devolvido a Jerusalém pelos exilados que construíram o segundo templo. Desapareceu novamente por ocasião das guerras e foi substituído por Judas Macabeu. Em 70, quando Jerusalém foi tomada pelos romanos, os cativos o levaram para Roma, como é lembrado pelo célebre baixo relevo do Arco de Tito. Sua história posterior é incerta. Os vândalos talvez se tivessem apoderado dele em Cartago, depois da pilhagem de Roma, de onde teria sido transferido para Bizâncio. Símbolo da luz, isto é, da prioridade do espiritual, vínculo entre o céu e a terra, imagem da árvore da vida, de muitos galhos, o candelabro acompanha, pois, a história do povo judeu. Número simbólico, as sete lâmpadas representam a onisciência de Yahweh. O capítulo 25 do Êxodo descreve precisamente os seis braços e o tronco, que devem suportar cálice em forma de amendoeira, onde será queimado o óleo de oliveira. O livro de Zacarias também menciona o candelabro de sete lâmpadas e o 'Talmude' dá muitos esclarecimentos sobre a maneira de limpá-lo e acendê-lo."[10]

A partir de fotos, reportagens e curiosidades em geral é possível elencar vários temas para trabalho a ser desenvolvido em sala de aula. Um exemplo seria o das peregrinações, presentes nessas religiões e em outras também. O que precisa ficar claro é que não existem apenas as religiões apresentadas, que estão aqui por necessidade de comparação. O professor e os alunos poderiam pesquisar que outras religiões realizam esse tipo de devoção, e o significado em cada uma delas. Para o Judaísmo, na Torah, está disposta a obrigação da peregrinação: “Três vezes no ano, toda população masculina se apresentará perante o senhor vosso Deus.” (Ex 23,17)[11] Já no caso dos cristãos, sua peregrinação inicia-se no século IV, quando começam a visitar os locais santos e quando se iniciam a escavações para se buscar encontrar o túmulo de Cristo. Para os muçulmanos, a peregrinação à Meca é um gesto de solidariedade, de obrigação que elimina os pecados pessoais.[12]

A motivação da peregrinação, bem como os locais cultuados, tornam-se pontos de discussão e pesquisa na sala de aula. Quando o aluno é incentivado a procurar respostas e, a partir delas, consegue, autonomamente, chegar à conclusão de que as culturas são diferentes - e que não existe uma certa ou errada -, uma atitude de respeito à diversidade e à diferença começa a surgir como parte do processo de aprendizado, tornando possível uma ação pró-ativa para a tolerância. Esse deve ser o objetivo do Ensino Religioso nos bancos escolares: quebrar resistências, informar, desenvolver o senso crítico e, sobretudo, suscitar o respeito por outras religiões e culturas.

Muito interessante é associar o estudo de História das Religiões com outras disciplinas como História, Geografia, Filosofia e Ética, entre outras. Trata-se de transformar o estudo das religiões em tema transversal. O professor de Geografia poderia participar desenvolvendo um amplo mapa, com escalas e medidas corretas, localizando as regiões de peregrinação no mundo. O professor de História mostraria como algumas cidades se transformaram em centros de peregrinação (como é o caso de Aparecida do Norte, em São Paulo, e de Fátima, em Portugal, entre outras) e o momento histórico em que isso aconteceu. Filosofia e Ética poderiam fazer parte dos temas transversais a serem trabalhados.

A diversidade cultural pode ser trabalhada, ainda, mostrando as diferenças lingüísticas dentro do nosso próprio idioma, apontando as diferenças regionais dentro de um Estado (como é o caso da letra “r” no Estado de São Paulo, que recebe forte entonação em algumas regiões e em outras não) e entre os Estados. O importante é frisar, sempre, que as diferenças são questões culturais, assim como as roupas, comidas e gostos, enfim.

A religião como uma construção histórica

Longe de questionar a existência ou não de Deus ou deuses, o objetivo dessa parte do curso foi identificar como, historicamente, uma realidade social é construída e entendida. Os variados aspectos das religiões, os fenômenos religiosos que geram crenças, ações, instituições, condutas, ritos, mitos, entre outros, e que, muitas vezes, são usados como base de desentendimentos entre as civilizações e acabam gerando conflitos. A necessidade de mostrar como alguns conceitos foram construídos, historicamente, em sociedade, visava, sobretudo, analisar criticamente a sua constituição e destituí-los de um caráter “natural”, com a idéia de que “sempre existiu”.

O primeiro passo foi desconstruir alguns conceitos como, por exemplo, a idéia de sincretismo. Tudo isso porque esse conceito pressupõe a existência de uma religião “superior”, “pura”, que influenciaria as outras, marcando com seu legado cultural às outras religiões subentendidas como “inferiores”. A fim de exemplificar[13] essa idéia trabalhei com a história do Dilúvio: “Um cônsul inglês descobre em 1845, em Nínive doTigre (ao norte do Iraque), as ruínas do palácio do rei Assurbanipal. O soberano, cujo reino se estendia até o Egito, reinou de 669 a 631 antes de nossa era e organizou uma enorme biblioteca que reunia as grandes obras da literatura assírio-babilônica. Entre as 5 mil tabuinhas não atingidas pelo incêndio que destruiu o palácio, um arqueólogo encontrou um texto surpreendente em acádio, composto no fim do segundo milênio e que faz parte da ‘Epopéia de Gilgamesh’. Chegaram até nós duas recensões acádias e uma versão suméria, cujas semelhanças com a narração bíblica do Dilúvio são surpreendentes. O herói chama-se Utnapishtim, tão sábio quanto o Noé da Bíblia. Ele fica sabendo que o deus do ar, Enlil, exasperado pelo barulho humano ensurdecedor, decidiu inundar a terra, mas o deus Ea, que o protege, adverte-o assim: ‘Destrói tua casa e constrói um barco; abandona as riquezas, procura somente a vida’. Utnapishtim constrói uma arca, em que embarca animais; solta pássaros quando baixam as águas, oferece um sacrifício, e Enlil se deixa dobrar. Utnapishtim e sua mulher são transportados a um lugar mítico ’na embocadura dos rios’. As semelhanças entre as duas narrativas apresentam muitas questões aos exegetas, que reconhecem a influência do texto da Suméria sobre o da Bíblia; este último resultaria da fusão de dois relatos, um composto no século X ou VIII e outro no século VI a.C., mas a tendência dos especialistas, hoje, é de ‘rejuvenescer’ a Bíblia. A diferença de espírito e de inspiração, a despeito das convergências, é considerável: Yahweh é o deus único da Bíblia, que se indigna com o “pecado” dos homens, enquanto o deus Enlil é sobretudo ciumento; além do mais, a Bíblia acentua a eleição de Noé, homem justo, e a aliança com ele. Houve o dilúvio? As cheias do Tigre e do Eufrates, alimentadas pela neve que derrete, fertilizam a região, mas certamente, e muitas vezes, submergiram a planície, levando casas e rebanhos, devastando tudo; devem ter deixado vestígio na memória dos homens”[14].

A idéia é mostrar que não existe nada “puro”, que o que temos é resultado da ressignificação feita a partir do contato das culturas, além de mostrar que outros povos se organizaram de maneira diferente da nossa. Todas as culturas envolvidas, submetidas ao contato com outras, acabam influenciadas. Não existe apenas uma única interpretação única ou verdadeira que influencia, enquanto outras crenças são influenciadas.

Algumas questões poderiam ser elaboradas, após a leitura do texto:

  1. Que elementos no texto indicam uma sociedade diferente da cristã?
  2. que quer dizer a expressão “antes de nossa era”?
  3. Quais as semelhanças com a narração do dilúvio da Bíblia? E as diferenças?

Algumas atividades poderiam ser desenvolvidas a partir do texto:

  1. Localização dos lugares citados no texto.
  2. Características desses lugares: que países estão localizados atualmente naquele território? Quais são suas características culturais?
  3. Qual a religião predominante atualmente dos lugares citados no texto?
  4. Que tipo de resposta o texto propõe ao Dilúvio?

Esses são alguns exemplos de como um trabalho poderia ser desenvolvido para desconstruir a idéia de “sincretismo”. A partir disso, o professor poderia trazer elementos da cultura e religião indígena, da cristã, das religiões africanas.

Outro conceito a ser trabalhado é o de “seita”. Ele também vem carregado de preconceito, uma vez que em nossa cultura adquiriu o significado de algo inferior, menor, sem muita importância. Ora, no que se refere ao estudo cultural das religiões, sem valorizações de poder ou hierarquias, tudo é fenômeno e movimento religioso. Dizer que algum desses movimentos é religião ou seita parte sempre de uma visão de dominação. O importante é quebrar o preconceito em relação a todas as manifestações religiosas e tratá-las como manifestações culturais, que têm significado e importância dentro de suas culturas.[15]

Outra conceito comum e que também foi desconstruído ao longo dos cursos foi o de “essência”. Seguindo o arcabouço teórico desenvolvido pelos professores da UNICAMP não é possível aceitar a idéia de que todas as religiões teriam uma “essência” religiosa comum. As crenças religiosas deveriam ser entendidas no interior de seus universos históricos, dentro de sua cultura, com seu universo mental específico.[16] O advento do monoteísmo, primeiramente no Egito durante o governo de Amenófis IV, por volta de 1375 a.C., revela que muita coisa aconteceu antes do surgimento da idéia de um único Deus. Aliás, o deus único dos judeus se diferencia dos demais por exigir de seus seguidores um comportamento ético, exclusivamente em função dele.[17] Portanto, não é uma inovação dos judeus o monoteísmo, mas sim a exigência de um comportamento ético, de um código de ética, diferentemente do que havia na época.

Portanto, não existe a idéia de algo “natural”, de uma “essência” religiosa do Homem, ou seja, ele não nasce um ser religioso: isto é uma construção social e cultural. As noções construção e representação são as que utilizamos para o estudo da história dos fenômenos religiosos, uma vez que devemos estar atentos para “a maneira através da qual, em diferentes tempos e lugares, uma determinada realidade social é construída, pensada e lida.”[18] Assim, “tentativas de decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.”[19]

Uma possibilidade de trabalho com os alunos é pesquisar como cada cultura, cada religião, trata o universo da vida e da morte. O antigo Egito pode ser um excelente tema desse trabalho. Como concebem a idéia da vida e da morte, as representações, os símbolos criados, o significado das pirâmides, a mumificação, etc. Além de ser um tema instigante, que aguça o imaginário das pessoas nos dias de hoje, ajuda a desenvolver a idéia de que o mundo nem sempre foi assim e que está longe de ser uma organização de ordem divina; logo, os conflitos, as guerras e as mortes causadas são produto da intolerância desenvolvida pelos homens e não pelas religiões. É a interpretação feita por alguns grupos que gera problemas e causa confrontos entre as pessoas, e não os pressupostos religiosos desenvolvidos ao longo dos anos, na gênese das religiões. Vejamos a criação egípcia relativa à morte: “‘Que vos seja prestada homenagem, deuses que estais na corte das justiças. Vim à vossa morada, sem mal e sem iniqüidade, e não há ninguém a que eu tenha prejudicado [...] Livrai-me, pois, protegei-me, não testemunheis contra mim diante do grande deus Osíris’. Essa oração do morto encontra-se num papiro de Neferubenef e data do Novo Império, por volta de 1152 a.C. Osíris, deus da vegetação e do mundo subterrâneo, assistido por Thot, preside o tribunal em que se sentam 42 divindades, e diante do qual comparece o defunto. Este anuncia os pecados que não cometeu: ‘Não matei, nem roubei ...’ Esta “confissão negativa” forma o 125º capítulo do Livro dos Mortos. E após ter indicado todos os crimes que não cometeu, o defunto conclui: “sou puro”. Depois disso, ele deve enfrentar a prova decisiva, a pesagem das almas: sobre o prato da balança, o coração de Neferubenef, e sobre o outro, a pena de avestruz, símbolo da deusa da verdade e da justiça, Maat. Anúbis, deus da mumificação, verifica de que lado pende a balança. Se o coração for tão leve quanto a pena, Neferubenef passará pelas portas do reino de Osíris e provará com os justos os prazeres com campo ‘yarou’; os maus, por sua vez, se tornarão presa do monstro Ammit, devorador dos mortos.”[20]

Nesse momento do trabalho poderia haver a participação do professor de Artes, indicando as características da pintura egípcia. Um painel poderia ser montado com as características, representações e compreensão de diferentes religiões sobre a morte e o destino após a morte. Como são os ritos, o que as figuras representam, se há uma alma. Podem ser sugeridas pesquisas sobre religiões pré-colombianas (de astecas, incas e maias), Budismo, Espiritismo, religiões indígenas e afro-braslileiras, entre outras.

Algumas figuras poderiam ser sugeridas pelo professor no início do trabalho. Damos algumas sugestões:

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Detalhe da pesagem das almas[22]


Cabeça do Deus da Morte de um altar de pedra Maia encontrado em Copan, Honduras (c. 500-600, 37 x 104 cm, Museum of Mankind, Londres).[23]

Outras sugestões de atividades pesquisa podem partir da observação de imagens acerca da diversidade cultural. Durante os cursos foi possível perceber que, quando falamos de religiões antigas, suas características, especificidades, observando figuras e discutindo possibilidades de trabalho a partir delas, a resistência e o preconceito em relação a alguma cultura ou religião podem ser vencidos. Quando chegávamos aos dias de hoje, as resistências estavam vencidas e a religião, cultura, tradições, ritos de cada um de nós passavam a ser “mais um” dentro da história. Não eram os mais importantes, nem os melhores, eram simplesmente mais um dentro de uma infinidade de coisas criadas pelo Homem, vivendo em sociedade, ao longo dos anos. Assim, observar as culturas indígena, a africana, a européia se transformava em trocas culturais fantásticas.

Máscara do Alaska para ritual de dança (madeira pintada, c. 1880, 37 x 25,5cm. Museu Staatliche, Berlim).[24]

Tlaloc – Deus da Chuva Asteca – séculos XIV –XV (em pedra, 40cm de altura. Museu Staatliche, Berlim[25]

Optamos, como atividade didática, trabalhar com imagens para facilitar o desenvolvimento das atividades, quebrando resistências e despertando ações pró-ativas de tolerância e respeito à diversidade.

Bibliografia

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário Histórico de Religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, 1991.

DELEMEAU, Jean. De religiões e de homens. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

GOMBRICH, E. H. The story of art. Phaidon, 1998.

KARNAL, Leandro. SILVA, Eliane Moura da. O Ensino Religioso na Escola Pública do Estado de São Paulo, nº 1, 2, 3, 4 e 5”. São Paulo: Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – Secretaria da Educação, 2003.

PINSKY, Jaime. PINSKY, Carla B. (org.), História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.

Sites

http://www.cosmo.com.br/redacao_web/oriente/fixas/grupoisl.shtm

http://www.corbis.com.br

Notas

[*] Doutoranda em História Cultural pelo Departamento de História, do IFCH, da Universidade de Campinas. Mestre em História Cultural pelo mesmo departamento.

[1] Grupo militante islâmico criado em 1987 pelo xeque Ahmed. Seu braço militar, a brigada Izz el-Deen al-Qassam, promoveu uma série de atentados suicidas a bomba em Israel no ano de 1996. Rival da Fatah (maior facção da Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, e a principal corrente política de Yasser Arafat), o Hamas fez oposição a diversos acordos de paz assinados por Arafat com Israel, alegando que ele não deveria fazer concessões de território. In: http://www.cosmo.com.br/redacao_web/oriente/fixas/grupoisl.shtm

[2] KARNAL, Leandro. SILVA, Eliane Moura da. O Ensino Religioso na Escola Pública do Estado de São Paulo, nº 1, 2, 3, 4 e 5. São Paulo: Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – Secretaria da Educação, 2003.

[3] Várias foram as reuniões realizadas em São Paulo a fim de promover o encontro entre os Assistentes Técnicos Pedagógicos (ATP’s) e Supervisores de Ensino como os professores autores da Universidade de Campinas. Nessas reuniões estava também a equipe de capacitadoras, da qual eu fazia parte, cuja função foi percorrer o Estado oferecendo cursos diretamente aos professores que ministravam as aulas aos alunos da rede pública.

[4] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

[5] O ocaso seria sinalizado pelo aparecimento de três estrelas no céu.

[6] AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário Histórico de Religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 74-5.

[7] Idem, ibidem. p. 182-3.

[8] Esta imagem, unicamente, foi retirada do site http://www.corbis.com.br

[9] As imagens foram retiradas do CD organizado para o trabalho da disciplina Ensino Religioso pelos professores da Unicamp.

[10] DELEMEAU, Jean. De religiões e de homens. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 115.

[11] Idem, ibidem. p. 11.

[12] Idem, ibidem. p. 11.

[13] É de grande importância trabalhar com vários exemplos em sala de aula. Além de se tornar mais fácil para os alunos entenderem, a aula se torna mais dinâmica, mais atrativa e desperta a curiosidade. Outro ponto importante é que, como falamos de elementos abstratos, o exemplo se torna necessário para que os alunos consigam formar o conceito.

[14] DELEMEAU, Jean. Op. Cit. p. 19.

[15] KARNAL, Leandro. SILVA, Eliane Moura da. O Ensino Religioso na Escola Pública do Estado de São Paulo, nº 1,. São Paulo: Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – Secretaria da Educação, 2003. p. 12.

[16] Idem, ibidem. p. 12.

[17] PINSKY, Jaime. PINSKY, Carla B. (org.) História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 15-28.

[18] KARNAL, Leandro. SILVA, Eliane Moura da. Op. Cit. p.13.

[19] CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, 1991. p. 177.

[20] DELEMEAU, Jean. Op. Cit. p. 20.

[21] Papiro Hunefer – o Deus Thot e o julgamento dos mortos, XIXª Dinastia, c. 1250 a.C., British Museum, Londres. VVAA, Musée du Louvre, Könemann, 2001.

[22] GOMBRICH, E. H. The story of art. Phaidon, 1998.

[23] Idem,ibidem.

[24] Idem, ibidem.

[25] Idem, ibidem.