Conversão ao pentecostalismo e alterações cognitivas e de identidade

Hulda Stadtler []

Resumo

O principal objetivo de minha tese de doutorado foi analisar a formação de identidade e sua relação com alterações cognitivas após a conversão para o Pentecostalismo; quer dizer, estabelecer, um geral, mas complexo conjunto de teorias cognitivas que ajudassem a explorar alguns caminhos nos quais nós podemos entender a noção de pessoa que está na base dessas alterações cognitivas.

Após a conversão as pessoas percebem-se a si mesmas como mudadas em pelo menos dois diferentes aspectos: a) traços de personalidade (temperamento por exemplo), e b) identidade social (incluindo vínculos comunitários, sentimentos de pertinência, papéis desempenhados, percepções do mundo para fora do grupo religioso, etc.). Razões pessoais para a conversão podem ser consideradas como pontos de partida especiais para compreender os vínculos entre mudanças nas concepções de si mesmo e a aquisição do que Gilberto Velho (1985) descreveu como um novo "sistema cognitivo". Alterar a concepção particular de si mesmo leva a uma crescente reavaliação do "estar-no-mundo", além de uma complexa construção de explanações para os eventos que ocorrem no mundo. No caso do Pentecostalismo, a possibilidade de tornar-se um membro especial do povo de Deus - como um profeta, por exemplo - deflagra uma "revolução simbólica" (Rolim, 1979), e um tipo específico de reestruturação cognitiva (Vygotsky,1962; Luria, 1976).

Pentecostalismo gera mudanças em todos os aspectos das vidas das pessoas, e essas mudanças são consideradas positivamente tanto pelos seguidores quanto pelos outros. Existem, de acordo com os crentes duas formas de explicar as mudanças após a conversão. De acordo com os carismáticos católicos as alterações são resultado do abandono de comportamentos prévios pela intervenção do Espírito Santo. De acordo com os de Assembléia de Deus pela adoção do modelo de personalidade e comportamento do próprio Cristo. Minha observação direta, entretanto, mostra que as experiências de conversão e alterações no comportamento variam mais claramente entre os grupos de privilegiados e não-privilegiados dentro de uma mesma experiência religiosa. Cristãos que vem de experiências de baixa condição de vida e baixo background educacional precisam de experiências mais concretas como deixar de fumar, beber, e outras para transferirem a aprendizagem de conceitos complexos de mudança na vida por imagens cotidianas concretas dessas mudanças e de seus resultados. A experiência dos mais abastados é mais subjetiva e abstrata e são as imagens do que vêem que se transformam em conceitos de mudança - padrões, categorias, e modelos. Muitas delas, incluem questões de gênero e poder, e background social como um todo.

Argumento, tendo meus dados como base, que tanto conversão quanto a experiência de primeira vocalização[1], conduz a um processo de reestruturação cognitiva[2] em direção a ideologia do movimento (doutrinação) que pode ser observado na maneira como as pessoas convertidas constroem argumentos e raciocinam. Encontrei, por exemplo, que freqüentes "falantes em línguas espirituais" estão, de fato, mais significativamente envolvidos com as atividades de suas igrejas e que recorrem mais sistematicamente às doutrinas para explicar eventos e fenômenos. A principal questão cognitiva sobre a qual me debrucei foi estudar a relação entre razão e crença baseada em processos cognitivos tais como inferência e interpretação. Aprofundei a compreensão de como os crentes mantém razão e crença juntamente quando confrontados com evidências contrárias, e como essa possibilidade está vinculada com alterações na percepção de si e afiliação. Meu trabalho sobre cognição e simbolismo religioso beneficiou-se tanto de teorias psicológicas como as de Piaget, Vygotsky e Luria, quanto de abordagens antropológicas que localizavam desenvolvimento cognitivo em consonância com o contexto social (Sperber, 1974; Levy-Bruhl, 1966, Boyer, 1993), além das teorias sociais que traçam padrões de desenvolvimento cognitivo como funções da interação (Durkheim, 1963; Marx, 1970). Todavia, algumas das teorias foram priorizadas por argumentarem em favor de uma reestruturação da mente após determinados tipos de experiências sociais as quais entram em acordo com minhas conclusões. Essas formas de comportamento (vocalização e raciocínio) revelam, por seu turno, o nível real de comprometimento cognitivo do convertido. Além do mais, o principal foco da pesquisa emergiu da observação de que, a despeito do reconhecimento de certas contradições nos credos, as pessoas não alteram suas crenças, e tais contradições não representam qualquer problema de dissonância cognitiva para as inconsistências das crenças, como Festinger (1957) quis demonstrar em outras situações. Partindo dessas observações, confrontei Pentecostais com idéias opositivas sob dois diferentes grupos de experimentos (raciocínio formal e raciocínio cotidiano) com o objetivo de observar suas reações argumentativas quando suas crenças e expectativas falhavam. Os resultados são complexos e variados, mas eu posso dizer que quando tratamos de níveis elevados dos domínios cognitivos (argumentação),no mesmo sentido que lhe dão Luria e Vygotsky, os crentes categorizam experiências e eventos de acordo com suas concepções particulares de si mesmo enquanto pessoas, baseadas no sistema cognitivo do grupo a que pertencem.

Quando a História Pessoal Coincide com o Tópico de Pesquisa

A contribuição inicial que darei a este artigo será apresentar as experiências que me levaram ao campo da antropologia. Na segunda metade deste artigo pretendo dar ênfase a algumas coisas "notáveis" componentes de minha tese de doutorado ressaltando implicações metodológicas para a compreensão de certos fenômenos tais como fazer trabalho de campo dentro do seu próprio contexto cultural ou de sua própria comunidade religiosa.

Antes de meu primeiro treino no campo antropológico, trabalhei como psicóloga em um hospital psiquiátrico, mas tal experiência levou-me a compreender que não poderia mais continuar como psicóloga. A incapacidade dos médicos e assistentes de saúde em perceber diferenças no comportamento dos pacientes - religioso e mental - aproximaram meu comportamento das vulnerabilidades dos pacientes, o que gerou algumas contratransferências (para usar um termo psicanalítico). Foi assim que antropologia veio derramar-se como um bálsamo em minha vida acadêmica, justo pela minha impossibilidade de manter-me apática as condutas religiosas distintivas dos pacientes, entre saúde mental e comportamento religioso, imperceptíveis aos demais.

I. Acredito que não é possível transcrever qualquer história social no vácuo. Não faz a menor diferença o nível de consciência ou não que pesquisador e leitores tenham da contaminação presente na compreensão de "fatos" ou "realidade", e que valores ou experiências passadas possam trazer, mas não se pode mais ignorar que ambos, escritor e leitor, estão inevitavelmente afetados pelas pressuposições e crenças que cognitivamente adquiriram. A importância desse reconhecimento traz conseqüências práticas e teóricas para a pesquisa antropológica. Só para abrir um parêntesis, durante os três anos em que participei de discussões metodológicas sobre as pesquisas de colegas, e a minha própria, não houve uma só que não se questionasse as pressuposições das quais partíamos e que levariam inevitavelmente a conclusões previsíveis. Então para que o campo?

II. Meu próprio rito de passagem em antropologia resultou da busca por uma melhor explicação do que observei entre psiquiatras e pacientes, particularmente no que se referia as experiências religiosas destes, tidas como "delirantes", por parte da equipe de trabalho. Foi assim que fechei meu interesse pela psicologia clínica positivista. Eu não conseguia aceitar que o mesmo tratamento fosse aplicado a diferentes condutas dos pacientes - nominalmente, crença e doença mental, racionalidade e loucura, misticismo e alucinação. Do ponto de vista dos médicos, se alguém foi considerado como "mentalmente insano", não há parte saudável em seu mundo mental e cognitivo, especialmente quando isto envolve crença religiosa.

Durante minha experiência como psicóloga eu fiz parte, ativamente, de um grupo de universitários protestantes e, é certo, eu não podia aceitar a confusão entre crer e ser mentalmente doente. Minha própria experiência não é a referência direta dos argumentos que vou construir mas, é sem dúvida, seu suporte. Desde o último ano de psicologia eu conhecia que nosso código profissional considerava que religião não deve ser problema para psicólogo se envolver como prática profissional. Os psicólogos estão quase que proibidos de abordar os clientes por esta via. Esse tipo de positivismo tem causado muitas incompreensões e problemas profissionais devido as pressuposições assumidas sobre a vida mental dos clientes.

III. Um outro aspecto é que psicólogos não podem com liberalidade intervir nos tratamentos prescritos por psiquiatras. Considero a limitação razoável quando se trata de problemas mentais profundos que exigem conhecimentos para os quais não fomos treinados ou não nos é legalmente permitido, como medicações. Contudo, não é razoável assumir essa postura quando se trata de outros tipos de comportamento. No Brasil, por exemplo, nossas leis não permitem discriminação de credo, mas do meu ponto de vista experiências discriminatórias não são apenas possíveis dentro dessas instituições mas, de fato, quase que institucionalizadas. O comportamento religioso dos pacientes é incluído, muitas vezes erroneamente, como parte dos distúrbios mentais e sua prática suspensa por camisas de "força química".

Como os exemplos abaixo pretendem demonstrar, os pacientes parecem ter mais discernimento que os médicos sobre seus diferentes estados mentais. Eles próprios oferecem aos médicos soluções para seus problemas fornecendo informações e razões para seu "comportamento real". Algumas vezes um paciente pode dizer: "doutor, pode dar-me algum remédio? Não estou me sentindo muito bem hoje". Nestes casos os pacientes estão dizendo que eles estão sentindo-se mentalmente perturbados e que não são hábeis para refrear pensamentos obsessivos ou outros sem auxílio técnico. Em outras ocasiões os pacientes podem dizer: "doutor será que posso ter um cigarro, uma vela, ou outra coisa qualquer para acalmar meu santo? Meu santo não está em paz hoje". Isto indica que seus distúrbios são, de fato, resultantes do não desempenho de suas obrigações religiosas por longo tempo. Os pacientes também propõem, como tratamento mental, outros tipos de rituais e nisto os pentecostais assumem papel importante quando invadem os hospitais. Contudo, tais discernimentos são tratados tanto pela instituição como pelos médicos e a equipe como parte da insanidade. Nesse caso pacientes, normalmente, recebem uma dupla dose de seu "controle mental químico". Mas não é difícil flagrar pacientes cuspindo fora a medicação. Para mim isto é sinal de saúde mental, racionalidade, e autonomia. Porque para os pacientes, atos rituais são tão eficazes em relação ao que percebem ser o problema espiritual, quanto o medicamentoso é em relação a insanidade. Mas os médicos não parecem treinados para distinguir ou compreender a extensão cognitiva do que está sendo trabalhado. Problemas, mental e religioso, parecem possuir frágeis laços e , assim, eu não podia compreender porque os médicos podem reconhecer conceito tal como o "mental", mas não "espiritual". Talvez pelo seu limitado treinamento em cognição humana. Como podem acreditar na existência do impalpável mental mas não no espiritual? Como podem, por exemplo, medicamentos modificar dimensões perceptuais religiosas? Como podem acreditar que a medicina pode fazer qualquer coisa, neste caso, além de exercer o controle de um tipo tão específico de comportamento?

A maioria das pessoas internas nestes hospitais vêm de algum background religioso (Xangô, Candomblé, Pentecostalismo, Catolicismo popular, etc.), basta ler alguns poucos trabalhos dos nossos antropólogos/psiquiatras para comprovar. Algumas vezes os pacientes expressam-se a partir de suas experiências religiosas através de um discurso desarticulado. Mas, a despeito da articulação ninguém dedica atenção as construções deles, embora algumas vezes os pacientes atinjam pontos neuvrágicos da incompreensão e desconhecimento: "doutor, o senhor não entende. Eu tenho que realizar minhas obrigações religiosas, é o santo". Se há algo doente, então, isto inclui todo o contexto cultural mais amplo.

Os discursos entre pacientes e equipe hospitalar são suficientemente provocativos para que eu possa resistir a pensar longamente sobre esses assuntos preconcebidos de loucura e irracionalidade. Eles expressaram por algum tempo meus próprios problemas existenciais. Os pacientes estão inegavelmente internos em um hospital psiquiátrico e isto indica que são mentalmente doentes. Não pretendo negar esse fato, mas do meu ponto de vista duas diferentes coisas estão recebendo um único tratamento. O raciocínio psiquiátrico retém esta premissa básica a despeito de qualquer evidência contrária (no mesmo sentido usado por Evans-Pritchard (1976), um verdadeiro traço de comportamento cognitivo "oracular"). Deixe-me dar um exemplo concreto da imutabilidade das pressuposições psiquiátricas a respeito dos discursos religiosos:

PA: "Doutor Pedro, a Virgem Maria sugeriu-me para pedir ao senhor para me dar um laxativo para esse aperto aqui..."(aponta a barriga)

DR: (numa atitude aparentemente respeitosa) "Eu não tenho laxativos aqui José, mas vou mandar buscar um para você. Por favor vá, eu tenho muitos outros trabalhos para fazer" (o paciente deixa a sala feliz e sem insistir).

DR: "Claro que dou, se a Virgem Maria vier limpar o resultado!"

Essa última frase parece ser o que realmente o médico pensa não apenas sobre o paciente, mas sobre seus argumentos referendados pela Virgem Maria. Nenhum outro questionamento clínico é feito. Não vou discutir a atitude do médico porque não há argumentos contra valores e pressuposições. Quero só ressaltar o que observo a partir do episódio. Pareceu-me legítimo que o paciente estivesse buscando alguma coisa para aliviar algo que sentia em seu corpo, e tentou assim convencer o médico através da referência a alguém que ele, paciente, acredita estava acima dos dois, enquanto autoridade. Talvez uma outra construção da frase desse ao paciente um caráter de maior sanidade. Por exemplo, "doutor, em nome da Virgem Maria, pode me dar um laxativo porque tenho problemas na barriga? ou pelo amor de Deus...? Quantos de nós diríamos isto? O problema que se forma é que, a partir desses desencontros e estratos de discursos fortuitos, um médico pode julgar o estado mental e a melhoria do paciente. E, apesar de expressar meu descontentamento com esses padrões subjetivos e pouco analíticos de julgar o grau de loucura do outro, eles continuavam a ser usados e desconsiderados. Isto, porque, possuo dois outros referenciais de análise para meus argumentos que a grande maioria da equipe não possuía - cognitivista e religioso.

Muito freqüentemente presenciei pessoas psicossocialmente adaptadas virem para a igreja e reportarem algum tipo de mensagem especial que eles acreditavam ter recebido do mundo espiritual. Um de meus entrevistados, por exemplo, contou-me que durante seu processo de conversão do Xangô para o Pentecostalismo, ele ouvia vozes acusativas vindas de seus antigos orixás até o dia que tudo foi resolvido, como milagre, por Jesus. Hoje essas experiências, que são clinicamente tidas como alucinatórias, cessaram. Um outro contou-me sobre o processo de conversão de seu mais endiabrado filho. Ele sempre orou a Deus pela conversão desse filho, mas era uma tarefa árdua convencê-lo. Certa vez, porém, seu filho metido a valentão, foi com alguns amigos para uma festa de rua em um bairro barra pesada. Eles caminhavam em uma área perigosa da periferia de Recife. Repentinamente alguém segurou os ombros do rapaz e sacudindo-o disse-lhe: "se você passar desta rua você é um homem morto". O rapaz sentiu, ouviu, mas não viu ninguém e embora com medo continuou a andar. Novamente a voz repetiu em seus ouvidos: "se passar desta rua você é um homem morto". Falou para os amigos apavorado mas ninguém acreditou nele e nem quis voltar. Ele deixou os amigos zombando e começou a caminhar aterrorizado de volta para casa. Todas as palavras de seu pai vieram em sua cabeça e ele lembrava dos ensinamentos sobre a Bíblia e, etc. Então ele parou e orou para Jesus: "se você me levar a salvo para casa eu vou me entregar na igreja". Seu pai conta que quando o rapaz chegou em casa ele pensou que estava bêbado pois chorava desvairadamente. Contou sua história e para alegria do velho se converteu e modificou todo o seu comportamento "louco". Faço questão de dizer louco pois esta era a perspectiva de seu pai sobre o comportamento anterior do filho. Muitos outros comportamentos "loucos" ocorrem se assim pretendemos classificá-los: visões, vocalizações, mudanças radicais, alterações de raciocínio, etc.

Mostrando vídeos a psiquiatras desses pequenos relatos e condutas, eles trataram a todos pelo mesmo "raciocínio oracular" que acusam os crentes. Registrei algumas dessas entrevistas, e as opiniões gerais sobre comportamento religioso não distam muito do que podemos encontrar na literatura psicológica. Contudo, se pretendemos saber mais a respeito do comportamento religioso e das experiências dos pacientes então precisamos explorar os dois lados deste fenômeno. Então tomei como proposição para minha tese determinar como psicologistas e igrejas possuem definições conflituosas da mesma situação. Pretendo demonstrar que partes do sistema cognitivo dos pacientes possuem "esquemas culturais" cujas bases podem tornar-se eficazes quando empregadas para tratamento dos aspectos psicológicos comprometidos. Em outras palavras, eu penso que embora sendo pacientes psiquiátricos suas considerações religiosas podem ser tratadas em um trajeto terapêutico mais interessante e cognitivamente abrangente. Considerando no lado metodológico, essa é uma razão para que eu também defenda que o trabalho de campo deve partir de alguma experiência prévia mais adequada que simples entrevistas. Muitos de meus insights foram conseqüências do trabalho de campo por si mesmo, mas muitos outros surgiram dos registros em minha memória de como agir em certas situações. A partir dessas observações concluí que ter maior familiaridade com ambas as áreas do tópico de pesquisa, pode ser útil em termos de maior objetividade metodológica para trabalhos que incluem condições psicossociais. Considerei, então, que antropologia poderia ajudar-me nesse sentido.

IV. Das observações das interações referidas acima direcionei-me para explicações que expressassem minhas discordâncias com tal comportamento cognitivo "oracular", tanto o meu próprio, como de psiquiatras, e de crentes.

Nos primeiros anos de pesquisa, observação participante representou mais que uma atitude metodológica para obter dados realísticos sobre a experiência de "falar em línguas" entre os pentecostais. Ela tornou-se minha própria experiência pentecostal, e isto gerou uma conexão forte entre o trabalho de campo e os resultados do trabalho de campo. Eu estava em um culto pentecostal como "uma boa observadora participante" e assim dirigi-me para a frente do grupo junto com outros e solicitei que os pastores impusessem suas mãos sobre minha cabeça para que recebesse o batismo do Espírito Santo, tal qual estava sendo pregado. Eu pensava, se sou de qualquer modo uma crente, e se é verdadeira a experiência do que os crentes chamam "batismo de fogo" eu quero comprová-lo. Mas nada ocorreu durante aquele momento. Fui então para casa pensando sobre o que dizer quando escrevesse em meu trabalho. Para completar minhas dúvidas, 90% dos casos de glossolalia que já havia analisado poderiam ser considerados casos de aprendizagem por instrução. Porém, por outro lado, 10% dos casos vistos, não poderia incluir sob a mesma análise qualitativa, porque eu não encontrava qualquer dissonância entre o discurso dos falantes sobre suas experiências espirituais e o comportamento diretamente observado. Após três ou quatro horas de volta a minha casa, esquecida do que havia ocorrido durante o culto, eu combinava, no telefone, com outros crentes para ir participar de um novo culto. Subitamente, após desligar o telefone, meu corpo começou a tremer e eu passei a sentir uma espécie de dor psicológica profunda como se buscasse em vão perdão por uma culpa desconhecida. Daí comecei a chorar e chorar sem que pudesse controlar o choro. Penso que gastei uma boa meia hora desse modo, e o choro não parecia com nada que eu houvesse experienciado antes. A única coisa que me veio a cabeça foi perguntar: o que é isto meu Deus? A palavra Deus, provavelmente dita de modo automatizado, expandiu-se de modo impressionante em minha mente e ecoava sem parar. Eu repetia, Deus, Deus , Deus, sem poder conter a extensão pulsante desta idéia. Então, uma alegria profunda tomou conta de meu corpo como ondas de energia e eu sentia calor e frio alternadamente. Mas o sentimento era bom, muito bom como se houvesse um mar de alegria e ondas dentro de mim. Após algum tempo dirigi-me ao banheiro para olhar meu rosto no espelho, muito embora ainda estivesse chorando. A visão chocou-me, meus olhos eram duas pedras de sangue embora eu conseguisse ver perfeitamente. Decidi telefonar para uma médica amiga. Ela apareceu pouco tempo depois e não conseguia entender porque meu quadro clínico pareceu-lhe perfeitamente normal. Fui a um hospital de olhos pois não era a especialidade de minha amiga. O médico examinou-me clinicamente, em seguida observou cuidadosamente meus olhos e a pressão, mas não encontrou qualquer razão fisiológica para aquilo. A pressão era mais que normal. Voltei para casa com um tampão em um dos olhos e com a recomendação de que nada fizesse que envolvesse esforço visual durante uma semana. Tudo desapareceu tão rápido quanto surgiu, menos um pequeno derrame que marcou a experiência por uns dois anos.

A Desfamiliarização do Tópico de Pesquisa

Para dar alguma solução as interferências da experiência pessoal sobre os resultados da pesquisa, particularmente pela subjetividade do tópico - crença e racionalismo entre pentecostais -, iniciei por transformar meus dados em algo não familiar (o que leva, ingleses, ainda hoje, a fazerem trabalho de campo antropológico para fora de sua própria cultura).

V. Para reduzir a influência da pesquisadora sobre o trajeto de análise do trabalho de campo, a pesquisa conteve metodologia antropológica unida a métodos de psicologia clínica, além do método de feed-back da antropologia visual (utilização de vídeo para submeter a análise aos próprios praticantes). Contudo, não quero desconsiderar que a análise de dados fique assim completamente livre de pressuposições do pesquisador/a. Os dados foram vistos e revistos muitas vezes. Uma forma de demonstrar como os dados ainda podem sofrer influência pode ser exemplificado através das questões de uso de linguagem. Meu trabalho de campo para tese de doutorado foi no Brasil, portanto em minha própria língua, contudo a tese devia ser em bom inglês. Eu sempre tinha a tendência de achar que os dados por si mesmos pareciam muito óbvios, mas nunca era o caso quando um inglês lia o texto. Linguagem, por si, parece requerer interpretação, e os "significados" podem representar uma compreensão muito específica e automática obstruindo assim a visão do "diferente", o que me leva a repensar a situação entre médicos e pacientes ainda que sob o mesmo contexto cultural. Por exemplo, eu tive que repensar os dados em inglês, e isto trouxe mais problemas para a objetividade. Embora repensar poderia trazer melhor sentido para os dados, isto também, permite a introdução de novos significados. Em resumo, tornar o que eu penso ver, como óbvio para outros.

Não tenho condições de ser muito extensiva aqui sobre a pesquisa, portanto vou concentrar-me em pontuar seus objetivos, dois dos métodos usados, e a relação entre métodos e os insights provocados pela minha experiência.

A questão cognitiva central foi estudar a relação entre raciocínio e crença baseada em processos cognitivos tais como inferência e interpretação. Busquei aprofundar como crentes podem manter simultaneamente razão e crença quando as crenças eram confrontadas com evidências contrárias.

Considerando meus objetivos decidi submeter inicialmente alguns crentes a um experimento com formas silogísticas. O experimento requeria algumas vezes que a solução do problema levasse a conclusões contrárias aos princípios doutrinários do grupo[3]. Porque conhecia exatamente que tipo de premissas eu estava prestes a submeter os crentes, enquanto construía o experimento mantinha-me atenta às minhas próprias dificuldades ou sentimentos de culpa. Talvez dois exemplos deixem transparecer as dificuldades:

  1. Se alguém ora não pode perturbar as autoridades.
    Jesus orava.
    Portanto, Jesus não perturbava as autoridades.
  2. Tudo que Deus fez é bom.
    Deus fez o diabo.
    Portanto, o diabo é bom.

Porque eu conhecia bem as doutrinas, eu também sabia quais eram as premissas suficientemente provocativas de condutas cognitivas dissonantes entre crença e razão. Meus insights para construção do experimento foram essencialmente baseados em minha própria história. Em certo sentido posso assumir a metodologia como um tipo do que os analistas chamam "contratransferência". Lancei de volta sobre os entrevistados aquilo que eram "certezas culturais" apreendidas na experiência religiosa, mas que não estavam longe de serem dúvidas privadas. Então organizei duas listas de silogismos (treino e teste) relacionando-as às expectativas da análise. Por exemplo, a lista de silogismos teve quatro diferentes modelos: Válido e concordando com a crença, válido mas discordando da crença, inválido e concordando com a crença, inválido e discordando da crença. Isto equivale a dizer que 50% deles é consonante e 50% deles é dissonante, cognitivamente falando, com relação as crenças. Válido e inválido representam as duas condições em que um silogismo é formalmente considerado. Tentando simplificar eu posso dizer que um silogismo é válido quando alguém pode retirar uma conclusão a partir das premissas; e é invalido quando as premissas não lhe permitem concluir nada objetivamente. A organização do experimento foi feita de modo a permitir que se os crentes respondessem aos problemas com base apenas nas doutrinas o resultado formal do experimento seria de 50% de respostas corretas por causa das construções cognitivamente consonantes. E este foi, em breve, precisamente o resultado que obtive. Para checar os casos que envolviam crença e crentes, construí um pré-teste que não envolvia em sua primeira metade crenças e comparei com sua segunda metade envolvendo crença, e algumas vezes pedi aos próprios crentes que construíssem silogismos. O fato dos crentes terem sido submetidos a um treinamento não alterava os resultados em relação a comparação entre pré-teste e teste envolvendo crenças, exceto a nível verbal. Quando em teste os crentes diziam formalmente válido, mas teologicamente, doutrinariamente inválido. Mas o resultado formal era idêntico em termos de freqüência nos erros. Por outro lado, analisei o resultado dos crentes comparativamente, com um grupo controle. O grupo era constituído por universitários com influência partidária e acadêmica fortemente materialista. O resultado foi que a categorização dos dados do grupo controle demonstrou que as performances mantinham os sistemas cognitivos nos quais os sujeitos consolidaram sua experiência, do mesmo modo que a condição oracular dos crentes e psiquiatras. Ridicularizavam as crenças e assim podiam liberar-se dos bloqueios religiosos para solucionar materialisticamente os problemas. Porém, muitas vezes fracassaram quando construindo silogismos cujas premissas para serem usadas envolviam descrenças políticas.

Contudo, não estava interessada nem nos aspectos quantitativos desses experimentos, nem na capacidade dos crentes de serem ou não serem racionais. Meu interesse era qualitativo, queria observar como as pessoas de modo geral manejam situações que vão contra as suas crenças ou pressuposições. Para isto eu precisava dessa dimensão metodológica que protegia, um pouco mais, meus dados de minhas próprias pressuposições. As reações dos crentes para com os problemas silogísticos dependem do nível de oposição que estes retém em relação às crenças. Quero dar mais um exemplo de campo para ilustrar o grau dessas reações ao mesmo tempo que conduz a perceber a não exclusividade entre razão e crença. O exemplo é de uma mulher quase analfabeta da Assembléia de Deus. O silogismo abaixo foi usado e ele é formalmente tido como válido mas contrário às crenças:

Qualquer um que diz: meu pai e eu somos um é louco.
Jesus diz: meu pai e eu somos um.
Conseqüentemente, Jesus é louco.

Diálogo:

Genesy: (Lê o silogismo e diz) Não, não, e não. Negativo!

Hulda: Por que?

Genesy: Só se existe algum Jesus mundano! outro alguém! Mas, o Jesus que eu penso? O Cristo? O Filho vivo de Deus? Não, isto não pode ser!

Hulda: Então... o que é que diz aqui? Na primeira sentença, por favor! Eu quero saber se você está respondendo pelo que você conhece, pelo que nós conhecemos da Bíblia, ou se você está respondendo pelo que está dizendo aqui?

Genesy: Mas, como pode ser? o nome de Jesus está aqui, o Jesus que eu me refiro é o Jesus Cristo o Filho vivo de Deus. Mas se aqui fosse Pedro, Paulo, Maria, Genesy,... Fernanda; ou outro nome... e fosse dito que... embora nós saibamos... porque Ele e eu somos só uma pessoa, porque nós somos o Corpo de Cristo vivo, um corpo para ser um só. Mas, se Jesus está aqui eu não posso dizer que, só se fosse outro Jesus.

Hulda: Está bem. E se eu tirar o nome daqui. Se eu disser, aqui não tem Jesus, tem Benedito. Quem diz eu e o pai somos um é louco. Benedito diz eu e o pai somos um. Qual seria nossa conclusão agora?

Genesy: (deu uma gargalhada) Eu precisava conhecer Benedito e seu pai , ha, ha!

Hulda: Você?

Genesy: (outra gargalhada) Eu preciso saber, conhecer os dois, né? (risos). Eu não posso dizer nada porque eu não conheço nenhum dos dois.

Hulda: É necessário conhecê-los para saber se você pode concluir isto aqui?

Genesy: Claro! (risos). Mas por aqui, o Cristo que eu conheço não posso dizer isto que Êle era louco, não tem a menor chance de eu dizer isto.

Hulda: Mas eu mudei a frase com outro nome!

Genesy: Você quer que eu diga que Jesus é louco! Êle não é.

Hulda: Não, não Genesy, eu estou sugerindo outra pessoa, outro nome, Benedito. Estou falando agora que foi Benedito.

Genesy: Mas eu não conheço nenhum Benedito! (riso)

Hulda: E isto é necessário? Não foi o caso do problema sobre Maria?

Genesy: Não.

Hulda: Você conhecia Maria?

Genesy: Não.

Hulda: Então como você sabia que a casa dela era branca?

Todas as casas desta rua são brancas. Maria mora nesta rua. Então, a casa dela é branca. Você a conhecia?

Genesy: Porque você disse (risos).

Hulda: Eu? Não, eu não disse nada, você concluiu isto. Eu disse só que as casas da rua eram brancas e que Maria morava nesta rua. Você concluiu que a casa dela era branca.

Genesy: riu, riu, riu...

Hulda: Então, eu estou dizendo algumas coisas sobre o que Benedito disse e você está dizendo que não pode concluir nada porque nem conhece Benedito e nem o pai dêle. Então como você pode dizer sobre a casa de Maria?

Genesy: Bem, (risos), é a última coisa que vou dizer, a casa de Maria é a casa de Maria, e Benedito... bem, que eu saiba quem disse "eu e o pai somos um" foi só o Filho de Deus, Jesus. Conseqüentemente, eu, Genesy nunca direi que Ele é louco.

De fato, Genesy tomou o silogismo como uma conspiração para que ela traísse suas crenças e atormentá-la. Dizer que Jesus é louco destitui Genesy de seu concito de si mesma. O que torna a tese de Durkheim e Mauss a respeito da relação entre concito de pessoa é classificação do mundo defensável. Claramente ela entendia a tarefa formal. Mas, porque esta requeria uma conclusão extremamente forte contra suas crenças pessoais e identidade, ela modificou as regras do jogo (como muitos outros fizeram). Por um lado, eu ficava feliz de ver que o método surtia os efeitos esperados; por outro eu via a capacidade de razão e crença caminharem juntas. O resultado mostrava que não apenas o pessoal semi-analfabeto pode guardar crenças que parecem irracionais, todos podem manter a razão em algum nível, mas que podia concluir que o raciocínio depende essencialmente do conteúdo do material a ser raciocinado. Torna-se ainda mais difícil quando alguma declaração pode aparecer publicamente contrária as crenças. Em resumo, raciocínio depende do conteúdo para raciocinar. Os caminhos utilizados pelas pessoas para manejar o conflito entre estas duas instâncias da cognição são variados, e o de Genesy foi um exemplo. Outros diziam vou responder isto formalmente e teologicamente, ou melhor, como creio que é verdade, mas a estratégia não alterou os resultados.

Crenças Culturais e Dúvidas Privadas

Em um segundo momento do trabalho eu gravei um certo número de dados em material audiovisual. A partir deste material audiovisual escolhi três principais grupos de imagens para usar em situação de feed-back visual em condições de confronto das crenças, semelhantemente aos silogismos. Minhas idéias sobre o que gravar também vieram de minha própria experiência como participante do grupo religioso. Era preciso escolher as melhores situações para confronto experimental. Durante as gravações dos episódios eu cheguei bem perto por prever que determinadas situações seriam sem dúvida uma espécie de "bloqueio" para os crentes justificarem a posteriori. Como crente eu podia mover-me livremente nos eventos. Também sabia quando era hora de parar. Após as filmagens sentei com um amigo para gravar um vídeo falando sobre o que eu mesma queria com tudo aquilo. Assim fomos capazes de recolher algumas imagens fundamentais para os objetivos da pesquisa. Por outro lado, como ambos éramos crentes, as imagens escolhidas são, como já disse, uma espécie de contratransferência no trabalho de campo. Em outras palavras, elas são nossos próprios nós.

Transe e possessão

1. A primeira situação de feed-back. O primeiro grupo de imagens mostra exatamente uma mulher jovem que entrou em um aparente estado de transe espiritual durante um grande evento promovido pela Assembléia de Deus (9000 pessoas no Geraldão). A mulher veio a ficar estendida no chão enquanto o pastor pregava contra a influência do mal na vida das pessoas. Inicialmente ela deitou-se entre sua mãe e uma amiga. Depois um grupo de homens formou um círculo em torno dela para protegê-la dos olhares dos curiosos. A mulher não fazia tumulto, dançava, ou dizia nada, apenas gerava alguns gemidos abafados em sua boca respondendo a alguns comentários de sua mãe. Não usou linguagem verbal para responder nada, nenhuma dança, tremor, qualquer distúrbio grande de motricidade, e não reagia as perguntas que fazíamos. Ficou quieta alguns minutos e , por si mesma, foi abrindo os olhos lentamente, olhando em volta, levantando com a ajuda de sua mãe e da amiga. O comportamento da mãe era mais agitado, enquanto a moça desempenhava o papel de "possessa" ou em "transe espiritual". Chamou minha atenção o que dizia a mãe. Ela pedia aos homens que livrassem sua filha do demônio enquanto me dizia que ela não era muito boa da cabeça (talvez a câmera assustasse). No vídeo podemos ver claramente todos os passos do fenômeno, desde a queda da mulher até seu levantar. As reações do pregador foram aqui e ali filmadas, e ao fundo permaneceu seu discurso desligado do comportamento particular da mulher. Ele não se dirigiu a ela até que ela se erguesse. Fato que chamou a atenção por duas questões: primeiro fazer algo após ela se erguer era mais seguro(?) ; segundo, poderia haver discernimento entre possessão e histeria(?). O fato é que após se erguer ela recebe atenção direta do pastor que ora por libertação espiritual para a moça. Mas não era convincente que ele acreditasse ser este o problema.

2. A segunda situação de feed-back. O segundo grupo de imagens ou vídeo mostra um outro evento Pentecostal (2000 presentes). Neste evento muitas pessoas manifestam possessão durante um período extremamente emocional de apelo, pregação e músicas, enquanto o pastor falava contra os demônios que tomavam conta das vidas das pessoas nos cultos afro-brasileiros. Cada possesso recebeu auxílio de um ou dois membros do grupo e cada "espírito" de orixá foi identificado pelo pastor através dos gestos e da conduta das pessoas. Para confirmar ele pedia ao espírito que se auto-identificasse confirmando assim sua interpretação. Daí o pastor inicia a explicar para a audiência o que aqueles demônios faziam nas vidas das pessoas, como mudavam seu comportamento, e como geravam problemas para eles todos. Neste episódio a fala do pastor destinava particular atenção a dicotomia existente entre os desígnios de Deus e o do diabo, e todas as coisas eram explicadas por meio da dicotomia dessa relação, inclusive as doenças. O pastor desafiava qualquer explicação psicológica ao mesmo tempo em que expulsava o mal do corpo das pessoas como demonstração do poder de Cristo. Sob suas ordens as pessoas saiam dos estados de transe quase imediatamente, ele fazia perguntas e dava ordens aos demônios através de condutas ritualísticas. Após a expulsão as pessoas eram entrevistadas e contavam como estavam e o que Jesus acabava de fazer por elas.

Pretendia que essa exposição inicial dos dois episódios filmados venha a clarificar a perspectiva em que vejo esse experimento e experiência. Entrevistei os crentes sobre os vídeos, e alguns dos atores sociais. As entrevistas gravadas com psiquiatras, onde estes comparavam essas imagens entre si, representam um esforço extra para esclarecer meu ponto de vista antropológico em comparação com o dos pentecostais e o psicológico. Em suma, minha perspectiva antropológica foi corroborada muito mais pelos pontos de vista dos crentes sobre seus próprios comportamentos que pelos psicológicos, especialmente porque os pentecostais apontaram diferenças de padrão comportamental que eu também percebo entre os dois grupos de imagens. Levanto abaixo algumas das observações que demonstram essas diferenças.

Do ponto de vista psiquiátrico embora esses dois episódios filmados tenham configurações diferentes eles, de fato, originam-se de uma mesma fonte - problemas mentais. Para estes ambos representam experiências de histeria, comportamento histérico muito comum as pessoas que buscam esse tipo de experiência religiosa. As diferenças percebidas eram tidas apenas como variações na configuração. Os entrevistados prendiam-se particularmente a análise dos médiuns sem prestar qualquer atenção ao contexto ou ao grupo onde o fenômeno estava ocorrendo. O ponto de vista sobre histeria não é muito diferente do que encontramos na literatura psicológica na qual esses profissionais recebem treinamento. Nenhum deles fez qualquer comentário original. Mas não há como negar que os vídeos apresentam situações bem diferentes de comportamento e não apenas problemas de configuração. De qualquer modo, mesmo para psicologistas são as diferentes configurações comportamentais que deveriam levar a diferentes conclusões e tratamentos.

Penso que estamos lidando com três diferentes tipos de fenômeno. Um que represento pela mulher em "transe" no primeiro vídeo e que considero psicológico. Outro, que represento pela condição complexa de transe em grupo e somada ao contexto, que considero como um fenômeno socio-cultural. Mas, existe ainda um terceiro que não se incluiu no objetivo do trabalho, referente ao aspecto teológico envolvido nos fenômenos observados. Uma das razões que aponto para considerarmos essa terceira perspectiva está no alto fluxo de pessoas dos grupos afro-brasileiros para o pentecostalismo e nas alterações comportamentais que tal vivência gera desde seu início. Refiro-me a uma possibilidade de que o fluxo represente um encaminhamento de maior desestruturação cognitiva, psicológica e de identidade para contextos, onde esses níveis de estrutura já trabalhados, encontrem-se com uma ordem mais delimitada. Algo como intervenção na crise, terapia de apoio, e psicanálise religiosa. Os afro-brasileiros e espiritualistas, junto com neo-pentecostalismo estariam mais associados com os primeiros passos e tratamento das aflições e crise, e os regimes tradicionais do pentecostalismo com o nível de ordem nas prateleiras da mente da experiência espiritual. Não há qualquer conotação evolucionista no que digo sobre o fluxo religioso, pois essas experiências não seguem uma ordem rígida devido a suas relações com a perspectiva imaginária da cognição. Nessa experiência religiosa, vai-se ao fundo de um poço altamente desestruturado mais rico de metáforas dignas de uma "esfinge" (inconsciente junguiano), e retorna-se a superfície paulatinamente ordenando, desempoeirando e reestruturando as prateleiras cognitivas, controlando as sensações de ser-se possuído por algo externo, enquanto parte da cognição, o imaginário, altamente simbólico e metafórico, serve de referência em sua complexidade condensatória de imagens como é o caso dos sonhos e visões. Assim, os crentes vão aprendendo a transformarem imagem em conceitos e conceitos em imagens, ou seja reversibilidade imaginal-verbal, verbal-imaginal como na psicanálise dos sonhos.

Na minha visão, o primeiro episódio grava uma mulher em uma conduta que enquadra-se perfeitamente no que os psicologistas consideram histeria. A forma como a mulher passa a demonstrar seu estado de transe, como entra e sai dele, os sinais um pouco fabricados de seu corpo, suas reações com relação ao comportamento de sua mãe, sua infelicidade depois de tudo (ela chora), as preocupações com relação a sua doença mental versus seus problemas espirituais, etc. Segundo depoimento de sua mãe e da amiga, tal conduta sempre aparece quando a moça vai a grandes eventos públicos. Em resumo, a configuração de seu comportamento pareceu-me uma conduta psicológica para qual eu não me disponho a levantar hipóteses agora. Talvez um meio a salvo de resolver dificuldades contra a conduta cognitiva e moral rígida de sua mãe através da mesma perspectiva oracular-mística que a mãe apresenta. Nesse episódio nenhum entrevistado fala em possessão como pode-se ver no segundo vídeo. Um outro fato importante é que a moça não apresenta nenhuma reação de alívio ou manifestação de mudança após o quadro como um todo, negando assim a eficácia do ritual religioso para sua conduta. Assim esperava sua mãe, que a expulsão de algo externo a moça e uma real conversão modificasse o quadro. Mas isto não vem ocorrendo por longos anos (entrevista).

No segundo vídeo, percebo o comportamento das pessoas num trajeto completamente diferente. Argumento em defesa de uma influência social bem mais explícita. É quase como uma unidade grupal reagindo em resposta aos apelos do pentecostalismo. O quadro que se verifica, como numa representação teatral, reproduz o processo social que está centralmente dirigido ao processo histórico de disputas entre diferentes grupos e religiões populares no Brasil. Durante o transe nós podemos ver todos os médiuns movendo-se, cada qual com seu padrão, mas coletivamente guiados pelos contínuos apelos e investidas do pastor. Cada médium responde ao pastor através de distintos padrões de comportamento, distintos nomes, incorporando dança, tremores, falas , choros, e especialmente identificações com certas entidades afro-brasileiras. Cada pessoa desempenhava diferentes padrões de acordo com a entidade recebida, o modo como entravam em transe possuía ressonância nos chamamentos do pastor pelos nomes das entidades conhecidas e a forma como saiam do transe vinha como resposta imediata a expulsão que o pastor promovia em nome de Jesus. Diferentemente da moça do primeiro vídeo, após o estado de transe os médiuns respondiam com alegria, falavam em libertação espiritual, cura de algum tipo de dor, etc. Após o culto, alguns médiuns confirmavam que foram treinados em grupos afro-brasileiros e aprenderam a se comportar no transe de acordo com a entidade recebida. O comportamento da audiência e dos médiuns não parecia dois lados desvinculados de uma situação, como pareceu o comportamento isolado da moça no primeiro vídeo, o ritual de purificação daqueles médiuns parecia uma conduta coletiva, um todo. Os líderes também dedicavam direta e total atenção aos possessos desde sua origem até a expulsão do que consideram o mal ou demônio. Nesse contexto ninguém foi tratado como indivíduo isolado. Seus problemas são gritados para a audiência e esta, por seu turno, sugere e opina sobre o que está ocorrendo ainda que seja óbvio a brincadeira de "boca de forno" que pode-se perceber sob a ideologia pregada. As pessoas são todas tratadas como prisioneiras do inimigo, do demônio, de onde todo o mal procede. No primeiro episódio a moça era personagem única com um comportamento com uma configuração muito particular no meio de milhares. O pastor não dispensou direta atenção ao seu problema. No segundo episódio os médiuns não possuem personalidades próprias, são enfrentados diretamente como dominados pelo mal.

Diferentemente dos psicologistas, as opiniões dos crentes reforçaram algumas suposições. Eles viam o primeiro episódio como "tem algo errado com a mente dessa moça", mas no segundo diziam "há a presença do diabo aí", esses possuem problemas espirituais. Sempre que os crentes reconheciam uma das situações de feed-back como mais relaciona com experiência religiosa, eles enfocavam suas análises sobre o comportamento dos médiuns: "essas pessoas estão de fato possuídas". Este é um meio de transparecer coerência entre o sistema cognitivo crido e a auto-percepção como crente. Mas, sempre que a experiência era reconhecida como não familiar ao seu grupo, os crentes focalizavam a análise na conduta dos líderes ou do pastor. Eles mudavam seu foco para questões mais familiares, avaliando assim o que um crente verdadeiro não deve fazer em certas situações.

Cura e frustração: quando as certezas culturais sobrepõem-se as dúvidas privadas.

3. Um buraco na fé. Um terceiro episódio foi usado para experiência de confronto em condição de feed-back. O vídeo mostra uma mulher paralítica vindo em uma cadeira de rodas, em busca de cura, para um evento pentecostal. Ela esperava que durante o evento, por fé em Jesus Cristo, seria curada e, em um dado momento chega a erguer-se nas pernas. Com este ato ela prova que crer em sua cura, condição, para os pentecostais para se ter um milagre, mas não consegue andar. Ela chora muito, como qualquer um que seja profundamente frustrado. Neste evento a contradição entre crença e expectativa torna-se evidente. Uma cura ocorre se alguém tem fé diz a doutrina. Esta mulher teve fé mas não foi curada. Mas o evento não foi assimilado pelos crentes como uma contradição. Os crentes redimensionaram as conclusões que me apresentaram assumindo como erro pessoal de interpretação.

Mostrei o vídeo em duas metades. A primeira ia até onde a mulher levanta, a segunda mostrando sua frustração em não poder andar. Entre uma e outra metade perguntei a católicos e protestantes o que ocorreria em seguida. Considerei esse episódio como um exemplo do cotidiano pentecostal. Para minha surpresa, mesmo aqueles que diziam que a mulher seria curada nunca apontavam tal possibilidade como uma certeza. Inúmeras outras entrevistas sobre cura e milagres também traziam mais certeza sobre episódios que os crentes "ouviram falar" que sobre aqueles possíveis de serem presenciados. Concluí que, contrariamente ao que os pentecostais dizem, crer sempre inclui níveis de dúvida, e nunca é a certeza absoluta do que não se pode prever. O mesmo tipo de raciocínio encontrei entre o grupo controle quando afirmava de algum episódio de honestidade praticado por algum político cuja imagem geral é de corrupção.

Sumarizando, é muito complexo resolver etnograficamente a aparente distinção entre processos de raciocínio e crenças observando-se o modelo cotidiano de raciocinar. O argumento que possuo é que crenças estão sempre presentes nas formas como as pessoas ordenam os raciocínios. As ações simbólicas são sempre interceptadas por "razões-de-ser" que geram uma vasta concepção entre racionalização e compromissos pessoais com as crenças. Argumentos de especificidade de domínios entre estas instâncias cognitivas não são muito convincentes quando comparamos o comportamento cognitivo das pessoas no dia-a-dia. Além do mais existem alguns problemas de configuração e construção para serem resolvidos entre simbolismo religioso e outros tipos de conhecimento que não será possível explorar aqui (ex. as visões). O caminho que encontrei foi trabalhar com os processos de assimilação (no sentido piagetiano) das contradições dos compromissos cognitivos das pessoas em geral.

Conclusão

Sugiro que o ponto inicial das alterações cognitivas é estar convencido por um novo "sistema cognitivo" que além de promover uma identidade forte é mais poderoso para explicar as adversidades da vida cotidiana. Acredito que essas alterações têm origem nas alterações da concepção de pessoa geradas por mensagens religiosas poderosas cuja assimilação desobstrui a cognição na direção do sistema ideativo do grupo. Isto fica demonstrado quando os crentes recorrem sistematicamente as doutrinas para raciocinar sobre problemas formais e do dia-a-dia. Isto, entretanto, não ocorre apenas com os crentes, os dados demonstram que outros grupos fazem o mesmo tipo de raciocínio vinculado. Existe um lado pouco explorado nas mudanças cognitivas que esses movimentos religiosos promovem. Pentecostalismo, por exemplo, trabalha para transformar as mentes das pessoas através da reconstrução, com elas, da realidade (raciocínio), e isto provoca, por sua vez, mudanças nas formas de interação dos seguidores com o mundo ao redor.

Precisamos reconhecer que religião desde suas formas iniciais tem sido fortemente a combinação de modelos explicativos para com eventos e coisas da vida em geral, freqüentemente apontando para uma cosmologia combinatória do intelectivo com as crenças (mesmo em nosso caso ocidental). Embora muitos teóricos queiram demonstrar que esses são modelos distintos de pensamento, outros afirmam que no simbolismo religioso existe, sem dúvida, uma larga capacidade para o raciocínio formal (Levy-Bruhl, 1910; Levi-Strauss, 1966; Sperber, 1984).

Ressalto extremamente a conclusão, a partir dos dados que racionalidade, no caso de solução de problemas, precede a escolha do crente pela explicação religiosa. Contudo, os crentes constroem, principalmente no dia-a-dia, argumentos que não são suscetíveis de serem nem confirmados ou desconfirmados. Não existe, também, qualquer sinal externo de dissonância cognitiva quando há evidências em contrário às expectativas, pelo contrário, isto gera novas hermenêuticas. O "modelo intelectual" está marcado pela distinção metodológica entre razão e crença e por experiências controladas as quais preocupam-se com a exclusão do "inapropriado" e da influência pessoal na construção do conhecimento. Contudo, na experiência religiosa e na do dia-a-dia, conhecimento que interfira sobre as crenças é o que parece ser controlado, conseqüentemente as crenças funcionam estruturalmente como filtros.

O discurso dos crentes, o que estou chamando de "argumentação" ou "explicação", em situação de solução de problema, pode ser explorada para revelar modelos culturais que embasam o raciocínio dos falantes ou, o que venho assumindo através da sugestão de Evans-Pritchard como "raciocínio oracular". Essa pesquisa sugere que os "esquemas culturais" (D'Andrade, 1973) que podemos inferir das construções de argumentos (raciocínio) das pessoas estão relacionados com seus comportamentos de modo complexo. As pessoas utilizam-se de esquemas culturais para negociar compreensões e efetivar fins sociais. Os próprios crentes consideram que estão raciocinando bem, sempre que seus processos de argumentação estão baseados sobre suas pressuposições culturais, este fato corrobora a hipótese de que existe uma relação estreita entre resolução de problemas, raciocínio e afiliação. E é necessário compreender as metáforas nas falas nas quais os argumentos foram originados para revelar o esquema comum básico compartilhado e sua relação com essa afiliação e identidade.

Bibliografia

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Notas

[1] Falar em línguas-espirituais, como consideram os pentecostais que receberam este nome justo pelo evento apostólico de Pentecostes em Atos 2: 1-4.

[2] O conceito de "reestruturação cognitiva" parece ousado mas, devido ao referencial estruturalista, com um certo sentido Kantiano de schemata que uso aqui (Piaget, 1971; D' Andrade, 1973; Luria, 1976) , defendo mesmo alterações profundas na cognição e não apenas a penso como uma questão de adesão ideológica (Williams, 1983) .

[3] Alguns silogismos foram tomados por empréstimo, com autorização da tese de mestrado de Clara Santos.