Simbolizando a Distância: Conversão ao Islã na Alemanha e nos Estados Unidos

Monika Wohlrab-Sahr []
tradução por Leda Maria Perillo Seixas []

1. Mercados Religiosos – Escolha racional?

Tornou-se moda em sociologia da religião falar de religião em termos de mercado. Especialmente os sociólogos americanos têm advogado teorias de um mercado religioso, de capital humano religioso e de "escolha racional", e, em alguns casos, têm mesmo propagado esta abordagem como o "novo paradigma" em sociologia da religião. Este "novo paradigma" destina-se a tomar o lugar da teoria da secularização, que tem sido a abordagem teórica predominante na sociologia da religião por um longo período (ver Warner, 1993). É surpreendente, entretanto, como no contexto deste debate, antigas afirmações teóricas são reinterpretadas e assumem um significado completamente diferente. Visto que o diagnóstico de uma pluralização da cosmovisão era, na visão de Peter L. Berger (Berger, 1988), um elemento central dentro da teoria de secularização, no recente debate americano o mesmo diagnóstico tornou-se o principal argumento contra tal teoria. A pluralização de Berger implicava que conteúdos religiosos tornam-se relativizados e perdem seu antigo status objetivado. No recente debate, este problema não é nem ao menos mencionado. Ao contrário, um estoque pluralístico de "commodities" religiosas é considerado como uma garantia para uma demanda expressiva (ver Stark/Iannacone, 1994; Iannacone/Finke/ Stark, 1997; Finke/Stark, 1988 et al.). Se tomarmos como garantidas as necessidades religiosas constantes, esta abordagem pressupõe um agente religioso, que tenta perceber o capital religioso humano, que ele reuniu ao longo de sua prática e socialização religiosas. Por esta razão, como podemos ler nos artigos de Lawrence Iannacone (1990), este agente religioso "racional" tende a procurar contextos, que correspondam otimamente com sua competência religiosa. Se ele tivesse que passar por algumas mudanças – por exemplo, se ele se convertesse – ele não ficaria muito longe de suas origens, e ele faria isso enquanto jovem, para ter seu investimento amortizado. Ele procurará uma esposa com a mesma filiação religiosa, ou – se sua esposa adota uma religião diferente e tem um comprometimento mais forte do que o dele – ele se converterá à religião dela (e vice-versa). Sempre tentando minimizar custos e conflitos. Olhando para o lado do fornecimento do mercado religioso, esta abordagem afirma que um estoque diversificado e a competição religiosa, paralelamente estimulam positivamente a demanda religiosa: "quanto mais pluralismo, maior a mobilização religiosa da população" (Finke/Stark, 1998: 43). O debate sobre esta abordagem – com contribuições de historiadores e sociólogos (ver Bruce 1999a) – tem sido principalmente sobre a interpretação de dados empíricos e sobre as implicações para a teoria da secularização. Foi somente em 1999 que Steve Bruce, em seu livro "Choice and Religion" (Bruce 1999b) levantou uma objeção referente aos fundamentos teóricos desta abordagem e ao modo como ela concebe seu tema "religião".

Certamente não é enganoso interpretar em termos de mercado religioso a situação religiosa nos países da Europa ocidental, e considerar o comportamento religioso como sendo influenciado mais por escolha individual do que por tradição e imposição sociais. Devido especialmente ao crescimento da mobilidade regional e à influência da midia, novas commodities religiosas são oferecidas no mercado de cosmovisão e há – maior ou menor – demanda para elas. Ambientes religiosos, que antigamente costumavam ser fechados – como na Alemanha ou na Holanda – desintegraram-se em grande extensão, e nos anos 60, percebemos um processo de rápida destradicionalização (ver Jagodzinski/Dobbelaere, 1993) no campo da religião, bem como em outros campos. Desde então, até no catolicismo, a freqüência às igrejas declina rapidamente; mesmo entre os membros da igreja a aceitação dos tópicos centrais das crenças confessionais diminuiu muito, e, no topo disto, mais e mais pessoas tiveram por opção abandonar a religião como um todo. A filiação religiosa em geral parece não mais ser definida pela tradição, imposição social e processos de herança social. Ela realmente se abriu para as preferências pessoais, com o efeito de que mais e mais pessoas não apenas fazem suas escolhas dentro do mercado religioso, mas também optam contra a religião em geral.

Mas estas circunstâncias não fazem da religião uma commodity como outras commodities que nós, como clientes, escolhemos. Este não é o caso, especialmente quando não apenas variedades de religião, mas a opção pela religião em geral está à nossa disposição e tem que ser explicada por cientistas sociais. A abordagem da escolha racional ignora explicitamente as diferenças entre as várias commodities do mercado. A "essência" da religião – aponta polemicamente Lawrence Iannacone (1990) – não tem mais interesse do que a essência de uma maçã.

Certamente não é necessário meditar sobre a essência das coisas se você distingue entre comprar comida ou optar por um sistema simbólico que acentua tópicos de significado fundamental e a relação entre imanência e transcendência. Em sua crítica à escolha pela abordagem racional, Steve Bruce ressaltou que a religião – como o amor – está intimamente conectada à identidade pessoal. E mesmo se nós nos encontramos nos mercados de casamento e mercados de cosmovisão, os comprometimentos que produzem efeitos, os motivos que nos guiam, e as idealizações que funcionam, em muitos aspectos não combinam com o comportamento de um agente "racional" no mercado, tentando maximizar seus benefícios. Lidar com orientações religiosas sob uma perspectiva sociológica, só pode estar de acordo com seu objeto se ela for capaz de imaginar aquilo que Alfred Schütz chamou de "Weilmotiv" ou "motivo pelo qual" (Schütz, 1960:123). Em resumo, é preciso imaginar também o background do qual o agente é proveniente, quando ele ou ela confrontam uma situação específica de escolha com uma variedade de possibilidades de opcões.

2. Conversão e Pluralização

Não há dúvidas que o fenômeno da conversão, do qual tratarei a seguir, é, em si mesmo, parte de um processo de pluralização do cenário religioso e cultural. E se não quisermos nos referir a um simples modelo de lavagem cerebral – a conversão não pode ser compreendida sem considerarmos os atos de uma escolha religiosa. Isto é especialmente verdadeiro em relação ao fenômeno com o qual darei atenção aqui: as conversões para o Islã de nativos alemães e americanos (ver Wohlrab-Sahr, 1999).

Estas conversões não poderiam acontecer sem um processo de pluralização, que cria, em primeiro lugar, as pré-condições para se ter um escolha religiosa. Em geral, é a presença de muçulmanos em um país que introduz o Islã como uma possibilidade de escolha: pode ser um colega de trabalho, um atual – ou ex – marido, um amigo, o amante da mãe de alguém, ou um proeminente representante da comunidade muçulmana local. E deve haver um contexto social que torne a escolha religiosa possível, no sentido de permitir pensar sobre a conversão a uma religião, o que parece estranho a muitas pessoas nas sociedades ocidentais. Por esta razão, os muçulmanos convertidos submetem-se positivamente a uma situação pluralística que lhes permite desviar das orientações e comportamentos religiosos da maioria. Uma mulher muçulmana alemã, por exemplo, que costumava nadar em um lago de Berlim, completamente vestida e usando o véu, na entrevista, refere-se explicitamente ao exemplo daqueles que nadam nus bem ao lado dela. "Se eles ousam, (...) eu ouso também" (citado em Wohlrab-Sahr, 1999: 160), diz ela. Uma jovem mulher da Alemanha Oriental comenta sobre sua recente orientação muçulmana com as seguintes palavras: "Eu não consigo mais me imaginar completamente sem nada[*]... Porque, de alguma forma, ... nós talvez precisemos disto, pertencer a alguma coisa. (...) Certamente não é irrelevante a coisa à qual você pertença, mas você poder escolher aquilo você gostar" (324 s).

Mas mesmo se "você puder escolher aquilo você gostar", as commodities oferecidas no mercado religioso não são completamente arbitrárias, mas possuem conotações sociais e históricas específicas. Estas conotações – disponíveis no estoque de conhecimentos de determinada sociedade sob a forma de tipificações – transformam-se em parte da definição da situação do possível convertido. Converter-se ao budismo tem uma conotação diferente da conversão ao Islã. Aqueles que se convertem ao Islã entram no contexto de uma história de polarização, que tem durado por centenas de anos. Mesmo na imaginação histórica das nações européias, especialmente nas narrativas míticas sobre suas origens, o Islã é primariamente referido como "a antítese e negação absolutas da Europa" (François/Schulze, 1998: 25), contra o qual a única opção possível era o combate. Sem se considerar – como mostra Etiene François e Hagen Schulze – se estes países tiveram uma experiência concreta com países islâmicos ou não.

Especialmente desde que a anterior polarização oriente-ocidente foi descartada, a polarização entre o Islã e o Ocidente foi reavivada. No nível das distinções simbólicas, o Islã, em um certo grau, assumiu o papel que o comunismo exerceu por um longo período[1].

Queiram eles ou não, os convertidos participam desta história de polarização. Em muitos aspectos, seu comportamento contradiz as afirmações sobre a abordagem do capital humano religioso, uma vez que eles se transformaram em uma religião, o que em muitos aspectos não se conecta com a competência religiosa que eles tinham conquistado. E sua escolha produz uma soma enorme de conflitos e "custos". A vida que eles vinham vivendo, os relacionamentos sociais que eram relevantes, os lugares que eles freqüentavam – a muitas destas coisas eles não podem mais recorrer após a conversão. Que sentido possui este tipo de escolha religiosa? Sob a perspectiva da abordagem da escolha racional, nós teríamos que aceitar casamentos bi-culturais, o ajustamento a um esposo com uma fé religiosa mais forte – na maioria dos casos um homem muçulmano - , a tentativa de evitar conflitos no casamento e de harmonizar a apresentação pública da família como um background desta escolha.Em minha pesquisa, eu também encontrei tais backgrounds em alguns casos. Mas, na maioria dos casos, estas são pessoas que simplesmente mudam sua filiação religiosa. Eles não mergulham no processo de transformação mais fundamental, ao qual nos referimos quando falamos de "conversão"[2]. Para a maioria dos convertidos que entrevistei, só se pode perceber a decisão da conversão se nos aproximássemos ao tema sob uma perspectiva "mais profunda", ou seja, sob o enfoque de uma análise biográfica. Mas no fundo, nem uma análise biográfica pretende compreender o caso particular em si.. Ela busca certos aspectos generalizáveis deste caso algo típico. Entretanto, a análise deve começar a partir do caso particular, porque somente olhando para ele podemos reconstruir o processo seletivo, que no fim leva a uma estrutura reprodutiva (ver Oevermann 2000).

3. A abordagem: análise biográfica em uma perspectiva funcional

Minha abordagem combina a análise biográfica com uma perspectiva funcional. Estou interessada na função preenchida pela conversão, no que diz respeito à biografia. Esta abordagem – em uma terminologia um tanto diferente – leva em conta o que Alfred Schütz entendeu com o termo "o motivo pelo qual". A questão central por trás disto é o background vivencial, baseado no qual desenvolvem-se planos específicos. Aos "motivos pelos quais" da teoria funcional de Schütz – como representadas por Merton ou Luhman – correspondem as falas sobre os "problemas de referência", nos quais um determinado fenômeno é citado como a solução de um problema. "Motivos pelos quais" – como as funções – podem ser apenas parcialmente imaginados pelo agente ele (ou ela) mesmo. Por esta razão, a teoria funcional fala sobre "funções latentes"[3]. A abordagem funcional prefere uma visão específica, que relaciona coisas diferentes entre si. Ela pede uma ligação entre uma coisa e outra, entre religião e biografia. Este modo de relacionar coisas diferentes entre si pode parecer suspeito aos observadores de dentro do campo religioso, porque eles freqüentemente clamam por um fundamento religioso para a decisão pela conversão, como por exemplo, o descontentamento com a cristandade. Portanto, eles preferem termos religiosos para explicar o processo de conversão, como por exemplo "iluminação" ou "revelação". Um fenômeno religioso é explicado pela referência à religião. Minha experiência mostrou que tentar explicar a re-orientação religiosa sociologicamente é considerado especialmente suspeito se se referir ao Islã, porque neste caso, não é apenas a perspectiva religiosa que deve ser defendida contra a visão dissecadora da sociologia, mas é também a perspectiva de uma religião estrangeira, que aparentemente necessita de proteção especial.

Mas ao pesquisarmos a conexão entre a religião e o modo de vida, certamente caminhamos em sólido terreno sociológico – e o material empírico que coletei durante minha pesquisa também aponta para esta perspectiva. Não há evidências de que a conversões ao Islã resultem de conflitos intra-religiosos. Algumas vezes os convertidos se referiram àqueles problemas na entrevista, como por exemplo problemas com relação à idéia da Trindade ou da Concepção Imaculada, mas tornou-se claro, no curso da entrevista, que esta visão problematizadora só se desenvolveu após estas pessoas terem entrado em um ambiente com outros convertidos. Isto então deve ser interpretado como um discurso de convertidos, que confirma sua nova identidade social e confere distinção em relação à antiga: é identidade partidária. Seria uma falácia concluir a partir disto, o motivo da conversão. Resumindo, os conversos que entrevistei, não tinham problemas com sua religião antes de terem se convertido; ou melhor, eles haviam se retirado da religião durante a adolescência. É por causa de diferentes processos que a religião ganha nova relevância para eles no Islã. A análise biográfica mostra que há uma relação entre os processos de crise biográfica e a decisão pela conversão. Mesmo que esta perspectiva não se alinhe com a auto-descrição religiosa, sob meu ponto de vista, seria uma restrição problemática da análise sociológica se alguém evitasse formular esta conexão. Formulada no contexto da teoria funcional, a relação entre crise biográfica e conversão religiosa pode ser descrita como a relação entre o problema-referência e o problema-solução.

Não é comum as pessoas se converterem em um processo de auto-terapia consciente. Elas não se convertem para resolver seus problemas: isto destruiria a natureza religiosa de sua escolha. Isto as reduziria a estrategistas no campo religioso, como a figura do Casanova no campo da intimidade. Certamente isto pode acontecer, mas é, antes, raro. Contudo, narrativas biográficas demandam um material necessário para a reconstrução sociológica, para reconstruir o problema referência e o problema solução. Olhar para o material biográfico em termos funcionais implica em Ter o olhar de um observador. Este observador depende da narrativa do convertido, mas ele ou ela, não estarão geralmente alinhados com a comunicação pretendida com esta apresentação, com a auto-teoria do convertido. A análise visa as funções ou significados latentes[4].

Esta abordagem difere de uma abordagem que foi dominante na sociologia da conversão durante os últimos anos, e foi denominada "giro lingüístico" em pesquisas sobre conversão (Krech 1995). Esta abordagem concentrou-se nas formas de comunicação religiosa e nas estratégias de auto-representação, através das quais os convertidos apresentavam-se confiavelmente como convertidos. O convertido era considerado como um tipo social, que pode ser reconhecido como convertido apenas por uma retórica específica (ver Snow/Machalek 1983; 1984). Às vezes chegava-se mesmo a afirmar que apenas esta forma específica de comunicação e apresentação é que faziam da pessoa um convertido. Conseqüentemente, era apenas a "narrativa de conversão" enquanto "gênero de comunicação" específico (Taylor 1976; Sprondel 1984; Luckmann 1986; 1987; Ulmer 1988 et al.) que apresentava interesse, enquanto que as narrativas de conversão tornaram-se mais e mais suspeitas enquanto fontes de achados sobre as causas das conversões. Comparada às abordagens anteriores, esta perspectiva mostrou-se muito frutífera para a sociologia da conversão. Mas ela implicou em um estreitamento que, entretanto, pretendeu ser especificamente sociológico: o refinamento de formas e estratégias de apresentação em um contexto social específico. A questão era o que estava complemente fora da vista, e por que isto fazia sentido para o indivíduo, participar em procedimentos que para a maioria das pessoas parece antes estranho. Assim, a questão da relação estrutural entre um tipo específico de determinada apresentação social e a identidade biográfica, foi excluída.

4. A investigação empírica: conversão ao Islã na Alemanha e nos Estados Unidos

Entre 1992 e 1996, eu dirigi 42 entrevistas com muçulmanos convertidos em diferentes cidades da Alemanha e dos Estados Unidos. É muito difícil calcular o número de muçulmanos convertidos em geral, uma vez que a conversão ao Islã é muito pouco formalizada, e as comunidades muçulmanas apresentam, em geral, um baixo nível de organização burocrática. Isto implica na ausência de estatísticas sobre "membros", como há nas outras igrejas. Por estes motivos, não existem estatísticas confiáveis sobre o número de convertidos e os números sobre muçulmanos em geral também são dificilmente confiáveis, ao menos nos Estados Unidos.

Há algumas novas estimativas que, a população muçulmana geral nos Estados Unidos gira em torno de 5 ou 6 milhões de pessoas, enquanto que, na Alemanha na época da pesquisa, havia uma população muçulmana em torno de 2,2 milhões. Isto significa que a Alemanha possui um percentual muito mais alto de muçulmanos em sua população, em sua maioria imigrantes turcos. O número de convertidos, entretanto, é difícil de se calcular, e não deve ser misturado com o número de alemães muçulmanos. Provavelmente há uns poucos milhares de muçulmanos convertidos na Alemanha. O que podemos dizer é que mais ou menos dois terços deles são mulheres[5].

Comparado à Alemanha, os Estados Unidos possuem uma porcentagem muito menor de muçulmanos em sua população, mas entre eles, a porcentagem de convertidos é muito maior. Em 1986, Yvonne Haddad (1986: 1) estimou que mais ou menos um terço dos muçulmanos americanos eram afro-americanos convertidos, enquanto que os brancos convertidos eram somente dez mil, naquela época.

Na minha pesquisa, a amostra alemã era composta de 7 homens e 12 mulheres, entre as quais, duas haviam crescido na Alemanha Oriental. A amostra americana era composta por 11 homens afro-americanos e 12 mulheres de origens étnicas diferentes, a maioria das quais estava vivendo com homens afro-americanos, pelo menos por algum tempo. Dessa forma, a composição da amostra novamente aponta para o contexto ambiental diferente dos dois países. Mesmo se a conversão ao Islã hoje não possua primariamente um background político, como foi o caso na época do movimento nacionalista Negro, a conversão ao Islã nos Estados Unidos é, apesar disso, um fenômeno afro-americano, que é predominantemente passado adiante dentro deste grupo étnico. Na Alemanha, as conversões estão geralmente relacionadas a contatos interculturais, especialmente o casamento com um esposo muçulmano. Todavia, freqüentemente, casamentos inter-religiosos não acompanham conversões, e se isto acontece, a conversão não pode ser explicada apenas pelo casamento. Em alguns casos, a conversão acontece primeiro, e só então um parceiro é encontrado no novo contexto religioso. Em outros casos, casamento e conversão são dois momentos em um processo de reorientação, que caminham na mesma direção e estabilizam-se mutuamente. Em muitos casos, o parceiro muçulmano masculino que poderia estar procurando uma mulher "ocidental", não que, nem impõe esta reorientação. Acontece justamente o oposto: é a mulher convertida que "força" seus parceiros a se aderir mais fortemente a suas origens muçulmanas, e a praticar sua religião. Parceiros muçulmanos, entretanto, têm um importante papel, uma vez que são eles que trazem a nova religião para o horizonte do possível convertido. E somando-se a isto, eles são parte da dinâmica biográfica ao longo da qual a conversão acontece. Poderíamos dizer: eles fornecem o material que pode ser utilizado biograficamente.

Meu interesse agora, recai especialmente sobre a relação entre a conversão como uma mudança na cosmovisão, e o background biográfico e a repercussão biográfica daqueles que submetem-se a tal mudança. Para formular em termos de análise funcional: o objetivo é reconstruir o problema ao qual a conversão se refere e elaborar a solução específica do problema que vem junto com a conversão.

5. Resultados: Três tipos de conversão

No que se segue, não apresentarei estudos de caso, mas sim um material de forma condensada: apresentarei três tipos de conversão que encontrei em meu estudo. A construção dos tipos é baseada no estudo de casos, mas, a partir daí, a estrutura básica dos casos foi formulada com referência à função biográfica da conversão. Baseadas em narrativas biográficas, três tipos de conversão ao Islã podem ser reconstruídas, as quais – apesar de diferenças específicas – foram encontradas em ambos os países. A distinção entre estas três funções é uma distinção ideal típica, enquanto que nas biografias concretas estas funções podem se sobrepor.

Os três tipos de conversão referem-se aos três diferentes campos de experiência e os problemas característicos que os acompanham (i.e., problemas de referência típicos). Através da conversão, estes problemas podem ser articulados e encontrar soluções específicas.

O primeiro escopo de problemas refere-se a temas de sexualidade e relações de gênero. Características para isto, são as experiências de desvalorização pessoal resultantes da violação das normas referentes à sexualidade e relação de gênero, tanto quanto experiências de dissolução de uma ordem social relacionada ao gênero. A conversão ao Islã capacita a simbolização e a articulação dessas experiências, e, através disto, um processo de resolução do problema tem seu início. Com o estabelecimento de novas fronteiras, regras e interpretações, uma nova ordem é criada, o que implica na revalorização da pessoa. Classifiquei esta solução e a função da conversão que a acompanha como "Implementação da Honra".

O segundo escopo de problemas refere-se aos temas de mobilidade social. As experiências características são as tentativas fracassadas de mobilidade para cima, e a perda de reconhecimento que as acompanha. Através da conversão ao Islã, estas tentativas podem ser tanto estabilizadas, quanto referir-se a uma carreira alternativa, através da qual um novo reconhecimento pode ser adquirido. Esta estabilização está intimamente relacionada com a reorientação religiosa, e toma a forma de uma "Sistematização de Condutas de Vida". Esta é a segunda função da conversão ao Islã.

O terceiro escopo de problemas refere-se a temas de nacionalidade e etnia. Características disto, são experiências de pertença precárias, que se tornam relevantes não apenas em público, mas também na esfera privada. De importância específica, temos a atribuição de identidade coletiva ou social, que, por certas razões, não pode ser tomada como própria - ou que define a exclusão social. Pode ser também que antigas formas de distinção e afiliação não funcionem mais sob novas circunstâncias, e por este motivo, novas relações tornam-se relevantes. Conversão ao Islã nesses casos preenche a função de "Emigração Simbólica e batalha simbólica". Através do Islã, um novo tipo de associação global, no sentido de "comunidade imaginada", entra em ação.

Estes escopos de problemas e os tipos de experiências que os acompanham, mostram que, sem referência à biografia específica da pessoa, a conversão só pode ser compreendida superficialmente. Olhando para os meus resultados, a dinâmica específica da conversão é que as experiências de crise biográfica que não poderiam ser resolvidas por outros meios não-religiosos, ou para as quais não havia outras soluções disponíveis, podem agora ser simbólica e ritualisticamente articuladas em um suporte religioso de referência. A solução do problema vem junto com isto. Portanto, falo de conversão como a transformação simbólica da crise de experiência.

Parte da solução deste problema são as diferentes formas de moralização que se referem aos campos nos quais a desvalorização, fracasso e desintegração foram experimentados: a moralização da sexualidade e as relações de gênero; a disciplina pessoal e a ordem política e social, o que corresponde aos três tipos.

6. Comparando sociedades: crises individuais e crises do ambiente

Os três tipos podem ser reconstruídos em ambos os países. O que parecia ser muito diferente no princípio – a conversão de homens americanos negros e de mulheres alemãs brancas, para falarmos dos exemplos mais característicos – tornou-se, no fim, bastante semelhante. Obviamente o Islã, como um ponto de referência para ocidentais convertidos, unifica, em certo grau, os problemas relacionados a ele. Mas há, entretanto, diferenças características que apontam para o diferente "cenário" religioso dos dois países.

Em relação ao primeiro tipo, a "implementação da honra", as entrevista alemãs referiram-se principalmente a experiências pessoais de desvalorização e estigmatização. Os entrevistados narraram experiências onde eles, como indivíduos, saíram de uma ordem normativa. Mas obviamente, não havia um quadro de referências partilhado coletivamente ao qual eles pudessem se referir para articular estas experiências.

Nos casos americanos, o problema ao qual a conversão está relacionada, é principalmente o tema da ordem sexual e de gênero enquanto tal. As narrativas centram-se muito mais na distinção entre masculinidade e feminilidade, homossexualidade e heterosexualidade. Nas entrevistas com afro-americanos, muitas vezes a ordem do sexual está implicitamente posta em paralelo com a ordem do ambiente negro, e a dissolução da ordem sexual e de gênero representa a dissolução do ambiente. Em uma entrevista, por exemplo, a idéia de uma ordem original do ambiente negro foi reproduzida até na forma lingüística de apresentação: em uma narração extremamente detalhada, implicou até mesmo em nomes de ruas e números, descrevendo sotaques específicos e sons da infância, configurando um cosmos negro altamente integrado. Até a segregação, treinamento e violência são constituintes deste cosmos, onde tudo tem seu lugar certo. Mas, conforme prossegue o centro da narrativa, esta ordem é solapada e destruída pela homossexualidade e por uma ordem de gênero que ficou deslocada.

Além disso, a resolução do problema, que vem com o Islã, no contexto alemão, refere-se a experiências individuais de desvalorização, enquanto que no contexto americano refere-se ao "problema da ordem" em geral. No caso alemão, por exemplo, o cobrir-se e também parcialmente a circuncisão, transformam-se em símbolos para a recriação e reavaliação da pessoa. Isto é enfatizado por um cenário familiar ou social específico, que possui nítidas esferas de responsabilidades. No caso americano, o Islã e os conceitos de identidade de gênero derivados dele, transformam-se em um substituto para o que é considerado a "ordem original" do meio negro. A situação que havia saído de controle, ao menos simbolicamente foi posta em ordem novamente. Sob tais circunstâncias, cobrir-se é menos relacionado à pessoa do que ao meio ambiente. O véu é o símbolo de pertencer a uma nova ordem, e confere distinção em relação à vizinhança e ao ambiente da rua. Implica também uma distinção moral em relação a este ambiente.

Uma certa diferença entre a Alemanha e os Estados Unidos também pode ser encontrada no segundo tipo, a "sistematização das condutas de vida". Comum para ambos os países, é o problema-referência do fracasso nas tentativas de elevação social. Aqui novamente, para o caso americano, há uma referência ao contexto social. Ambientes negros são contrastantes e negativos horizontes que ameaçam a tentativa de estabilização de alguém. A rua e seus perigos transformam-se em um horizonte negativo, em relação ao qual deve-se estar alerta para o perigo, mas em relação ao qual tem-se também que ser diferente. Isto é verdadeiro mesmo se os pais de alguém conseguiram se elevar, mas a pessoa em si não consegue reproduzir este status. Neste caso, a distinção moral substitui a distinção social. Neste sentido, o Islã é uma religião que é contextualizada em um ambiente social específico, e há modelos de papéis islâmicos vindos desse ambiente. Fora isso, quase não há referências específicas a certos ambientes para convertidos ao Islã. Freqüentemente a conversão provoca conflitos com o meio de origem da pessoa ou de seus pais, e muitas vezes, dá suporte ao desengajamento deste ambiente e suas demandas pela reprodução do status e da mobilidade para cima. Entretanto, muitas vezes a tentativa de fazer parte de um meio de imigrantes muçulmanos permanece precária.

Características do último tipo, "emigração simbólica/batalha simbólica", são, em ambos os países, os problemas de pertença e de distinção. Os exemplos mais característicos da amostra alemã são duas mulheres da Alemanha Oriental, mas a função da emigração simbólica também é de importância em outros casos. Em um desses casos, o problema é que por um lado, tanto para a família quanto para o estado comunista, um anti-fascismo programático é uma parte importante da cosmovisão coletiva. Mas, por outro lado, o passado biográfico desta família, especialmente o papel do pai durante o fascismo, é muito mais ambivalente, mas não pode ser comentado. Esta contradição cria conflitos massivos para a entrevistada, que não podem ser resolvidos dentro do sistema da Alemanha Oriental. A conversão ao Islã, que neste caso é acompanhada pelo casamento com um homem turco e a emigração do país, capacita tanto o abandono do quadro de referência conflitivo, quanto a adoção de uma nova identidade social num sentido bem amplo. No outro caso da Alemanha Oriental, após a reunificação da Alemanha, os modos de distinção e associação – que funcionaram durante o tempo da Alemanha Oriental, especialmente através da integração a um ambiente alternativo – não funcionaram mais após a reunificação. A conversão ao Islã, tanto quanto o casamento com um homem muçulmano, tornaram-se instrumentos idealizados de deixar de ser alemã, e tronar-se parte de uma comunidade idealizada de muçulmanos. Mas a integração nesta comunidade islâmica, imaginada como uma grande família, ainda não tinha se tornado realidade na época da entrevista. Após ter estado casada por quatro anos, a jovem mulher ainda não tinha sido apresentada a seus sogros, embora seu marido os visitasse muitas vezes por ano, durante várias semanas.

Nos contextos americanos, estes problemas de pertença possuem uma dimensão étnica. Um jovem afro-americano, por exemplo, abre sua entrevista sugerindo-me que eu entrevistasse pessoas que já haviam nascido muçulmanas. Do ponto de vista dele, não era importante nascer muçulmano, se a pessoa não se decidisse por uma existência muçulmana. Este apelo por uma forma de afiliação social e religiosa - que não é uma questão de herança, mas uma questão de escolha individual por uma forma específica de vida – adquire um significado específico no background da narrativa biográfica. O jovem era nascido como filho ilegítimo de pai negro e mãe branca. Na entrevista, ele referiu-se à ascendência européia de sua mãe, listando exageradamente muitos países da Europa. Com o exemplo de sua mãe, ele ilustrou o fenômeno do "caldeirão"[**], o que – conforme ele me explicou – não existia fora dos americanos de origem européia. E quando ele me disse que ele era o fruto de uma relação extra-marital entre seu pai afro-americano e sua mãe branca, ele comentou com as palavras: "Eu acho que se poderia dizer que sou um bastardo".

A necessidade de filiação religiosa que não seja baseada em herança social, mas em conquista e escolha pessoais, neste caso, obviamente corresponde ao background de pertencer precariamente a seu próprio contexto social e cultural. A definição do "caldeirão", que só inclui euro-americanos, exclui o próprio entrevistado desta definição. O rótulo auto-estigmatizante de "bastardo" enfatiza o fato de achar que um problema de pertença precária, é um dos principais aspectos neste caso. Na entrevista este problema é transformado na idéia de ir ao Irã no futuro, estudar lá o Alcorão, e finalmente entrar na luta armada contra os Estados Unidos. Os Estados Unidos aparecem como o regime do mal, que não merece nada além da destruição.

Nestes exemplos diferentes, o Islã aparece como um princípio e ideologia contrastantes, que habilita a pessoa a deixar seu enquadre simbólico conflitivo. Enquanto no caso das mulheres da Alemanha Oriental a conversão tem primariamente a função de emigração simbólica, no caso americano ela se relaciona à função de batalha simbólica.

Em ambos os contextos o problema de pertença precária vira-se contra o sistema que faz a pertença ser problemática. A desvalorização moral do velho sistema corresponde à imaginação de uma comunidade de moral muçulmana.

7. Religião e Moralidade – Segmentos diferentes do Mercado Religioso para diferentes Problemas de Referência?

Uma análise funcional deve considerar equivalências funcionais. Se a conversão para o Islã para alemães e americanos preenche a função simbólica latente de transformar experiências de auto-desvalorização, de degradação e desintegração, mantém-se, entretanto, uma questão: por que as pessoas se referem ao Islã em sua maneira de lidar com estes problemas. Uma parte da resposta, é, certamente, que havia pessoas importantes ao redor delas, que as fizeram prestar atenção ao Islã, e que participaram da dinâmica que resultou na conversão.

Mas minha pesquisa também mostra que a conversão ao Islã – comparada a outros tipos de conversão - implica em uma forma específica de resolução de problemas. Em sua crítica à Teoria da Escolha Racional, Steve Bruce argumentou com um tipo culturalístico de explicação. A religião – sob o ponto de vista dele – é forte quando ela se conecta a problemas de etnia, e quando ela preenche a função de "defesa cultural" (Bruce , 1999: 25f.). Sob esta perspectiva, a religião é forte, quando ela tem a ver com o estabelecimento mais geral de grupos do tipo "nosso grupo"[***]. Minha tese é que a conversão ao Islã representa o lado oposto desta função. É somente no background da íntima relação entre religião e defesa cultural que a conversão ao Islã pode adquirir seu significado provocativo. A provocação entretanto, não é um fim em si mesma. São aquelas pessoas que escolheram o Islã que tiveram a experiência de cair fora de uma ordem dominante[6]. Eles experimentaram a estigmatização, fracasso e desintegração dentro de seus próprios contextos, e eles articularam estas experiências com referência a uma religião "estrangeira". Com referência ao Islã, uma construção paradoxal é posta: simbolizar a máxima distância em relação à sociedade, mas fazer isto partindo de dentro desta própria sociedade. Comparada a outras formas de distâncias simbolizadas – por exemplo, com símbolos fascistas – os convertidos muçulmanos reportam-se a um senso comum pluralístico, que dá espaço para este tipo de articulação.

Mas ainda há um outro argumento com referência específica ao Islã. O declínio expressivo de forte adesão às igrejas que pode ser observado na Europa desde os anos sessenta, tem sido descrito como um processo de des-tradicionalização. Isto foi acompanhado por um declínio da rigorosidade moral, especialmente no campo da moralidade sexual. Hoje, até mesmo os membros da igreja católica consideram as questões de sexualidade como um assunto de decisão pessoal. Mas o efeito desta liberalização, é que pessoas com problemas que antigamente podiam ser trabalhados através moralização, hoje em dia dificilmente podem se reportar aos programas das grandes igrejas cristãs. O que sobra, nestes casos, se eles não escolhem a psicoterapia, são as seitas cristãs (ver Liebsch 2001), ou – em geral – aquelas religiões que formulam uma ligação próxima entre religião e moralidade[7]. Para formular isto em termos da teoria de mercado: as diferentes religiões (ou o que reporta a elas) obviamente suprem diferentes segmentos do mercado religioso, aos quais os diferentes problemas podem se referir. A biografia dos convertidos mostra que, também nas modernas sociedades universalísticas, a desvalorização pessoal e coletiva, bem como a degradação moral, continuam acontecendo. O processo de transformação simbólica que acompanha a conversão ao Islã implica um processo de re-moralização em um duplo sentido. Primeiro, através da re-habilitação moral da pessoa, e segundo, através da criação de um cosmos imaginário moral, onde tudo tem sua ordem clara, o que permite ao indivíduo distinguir-se do contexto dominante. A re-moralização funciona através da distinção moral de um contexto, dentro do qual a pessoa estava moralmente desacreditada.

Notas

[*] N.T. – Em alusão ao uso de roupas

[1] Um exemplo característico encontra-se na tese de Samuel Huntington (1997), sobre um "choque de civilizações", de acordo com a qual, o mundo islâmico representa uma "tribo" diferente da tribo da cristandade européia.

[2] Para a diferença entre conversão e mudança de filiação, ver Snow/Machalek, 1984: 171.

[3] Refiro-me à análise funcional conforme desenvolvida por Luhman (1970 a; b; c), com referência crítica a Merton (1995). Na teoria de Luhman, a idéia de "manutenção da continuidade" foi substituída pela idéia da resolução do problema, considerando-se certos "problemas – referência".

[4] Metodologicamente, isto se refere aos procedimentos de análise dos dados que visam a reconstrução do significado latente; neste caso, o método de "hermenêutica objetiva" (ver Oevermann 2000).

[5] Esta proporção de homens e mulheres foi apontada por várias organizações e especialistas muçulmanos da área. Foi também confirmada pela análise estatística que eu fiz, baseada em documentos de conversão da "Comunidade de muçulmanos de língua alemã" em Berlim.

[**] 2 N.T. – melting pot – caldeirão onde se fundem coisas

[***] 3 N.T. – "We-groups"

[6] Isto mostra, por outro lado, que também na sociedade "individualizada" há formas dominantes de ordem, das quais você pode "cair fora". Mas está se tornando mais e mais diferente interpretar este "cair fora" como uma experiência coletiva.

[7] Outra opção seria a referência à moralização na mídia, i.e., em talk-shows, etc. Mas, tendo em vista a curta duração dos períodos de atenção que estes shows oferecem, dificilmente eles servem como uma resolução de problema a longo prazo.